Acessibilidade / Reportar erro

Associação entre alergia ocular leve e ceratocone em crianças

Association between mild ocular allergy and keratoconus in children

RESUMO

Objetivo:

Avaliar a possibilidade de alterações precoces sugestivas de ectasia detectáveis no Pentacam em casos sutis de alergia ocular em crianças.

Métodos:

Análise retrospectiva de 49 prontuários, com paciente de ambos os sexos e idades entre 3 e 14 anos. Do total de crianças estudadas, 31 apresentavam alergia ocular grau 1, e 18 não apresentavam qualquer sinal ou sintoma de alergia ocular, servindo como controles. Avaliaram-se diversos índices do Pentacam.

Resultados:

Houve associação estatisticamente significativa nas variáveis “Df – variação do mapa da elevação anterior da córnea” e “Pentacam combinado”, que podem estar relacionadas com a detecção precoce de ectasia corneana nesses pacientes.

Conclusão:

Houve relação causal entre a prevalência da alergia ocular e alterações tomográficas na córnea, sugestivas de ceratocone em alguns pacientes provavelmente suscetíveis, podendo ser considerado um fator de risco para essa complicação.

Descritores:
Conjuntivite alérgica; Doenças da córnea; Ceratocone; Oftalmologia; Segmento anterior do olho

ABSTRACT

Objective:

To assess if early alterations detected by Pentacam in children suffering from mild ocular allergy are suggestive of ectasia.

Methods:

A retrospective analysis of 49 medical records of patients of both sexes, aged between 3 and 14 years was performed. In this sample, 31 children suffered from grade I ocular allergy, and 18 presented no signs or symptoms of ocular allergy and comprised the control group. Several Pentacam indexes were evaluated.

Results:

A statistically significant association was found in the variables “Df – variation of the anterior corneal elevation map” and “combined Pentacam”, which can be related to the early detection of corneal ectasia in these patients.

Conclusion:

There was a causal relation between prevalence of ocular allergy and tomographic alterations on the cornea, suggestive of keratoconus in some probably susceptible patients, which may be considered a risk factor for this complication.

Keywords:
Conjunctivitis, allergic; Corneal disease; Keratoconus; Ophthalmology; Anterior eye segment

INTRODUÇÃO

A conjuntivite alérgica pode comprometer a qualidade de vida e afetar a visão.(11. Bielory L, Skoner DP, Blaiss MS, Leatherman B, Dykewicz MS, Smith N, et al. Ocular and nasal allergy symptom burden in America: the Allergies, Immunotherapy, and RhinoconjunctivitiS (AIRS) surveys. Allergy Asthma Proc. 2014;35(3):211-8.,22. Shaker M, Salcone E. An update on ocular allergy. Curr Opin Allergy Clin Immunol. 2016;16(5):505-10.) Sua prevalência parece estar aumentando em todo o mundo, tendo relação não apenas com a sensibilização a alérgenos, mas também com diferenças de etnia, clima, dieta, fatores socioeconômicos e exposição a diversos tipos de poluentes.(33. Miyazaki D, Fukagawa K, Okamoto S, Fukushima A, Uchio E, Ebihara N, et al. Epidemiological aspects of allergic conjunctivitis. Allergol Int. 2020;69(4):487-95.)

De acordo com o Consenso Latino Americano de Alergia Ocular, essa patologia pode ser classificada baseada em sua severidade em graus de 1 a 4, levando-se em conta o tamanho das papilas conjuntivais, o grau de hiperemia, edema e cicatriz conjuntival e o acometimento corneano e limbar.(44. Santos MS, Alves MR, Freitas D, Sousa LB, Wainsztein R, Kandelman S, et al. Ocular allergy Latin American consensus. Arq Bras Oftalmol. 2011;74(6):452-6.) Essa doença acarreta diversas consequências e complicações oculares, e sua relação com o ceratocone já está bem estabelecida na literatura.(55. Naderan M, Shoar S, Rezagholizadeh F, Zolfaghari M, Naderan M. Characteristics and associations of keratoconus patients. Cont Lens Anterior Eye. 2015;38(3):199-205.,66. Merdler I, Hassidim A, Sorkin N, Shapira S, Gronovich Y, Korach Z. Keratoconus and allergic diseases among Israeli adolescents between 2005 and 2013. Cornea. 2015;34(5):525-9.)

O ceratocone é uma patologia ocular que aparece geralmente entre a segunda e terceira décadas de vida.(77. Sorkin N, Varssano D. Corneal collagen crosslinking: a systematic review. Ophthalmologica. 2014;232(1):10-27.) É uma condição bilateral crônica caracterizada por afinamento corneano e astigmatismo irregular, levando frequentemente a prejuízo visual.(88. Rabinowitz YS. Keratoconus. Surv Ophthalmol. 1998;42(4):297-319.) Um dos fatores desencadeadores é o trauma mecânico da fricção ocular, secundário ao prurido, nos indivíduos geneticamente predispostos.(99. Dantas PE, Alves MR, Nishiwaki-Dantas MC. Topographic corneal changes in patients with vernal keratoconjunctivitis. Arq Bras Oftalmol. 2005;68(5):593-8.) Nos casos de alergia ocular, é possível ser detectado precocemente por meio de topografia de córnea.(1010. Totan Y, Hepşen IF, Cekiç O, Gündüz A, Aydin E. Incidence of keratoconus in subjects with vernal keratoconjunctivitis: a videokeratographic study. Ophthalmology. 2001;108(4):824-7.)

Diferentemente do topógrafo, que só estuda a face anterior da córnea, o Pentacam, aparelho usado em nosso estudo, obtém informações da superfície anterior e posterior, empregando a técnica de imagem Scheimpflug.(1111. Chen D, Lam AK. Reliability and repeatability of the Pentacam on corneal curvatures. Clin Exp Optom. 2009;92(2):110-8.) Apresenta índices topográficos e tomográficos da córnea com precisão e reprodutibilidade, possibilitando avaliar riscos de ectasia corneana.(1212. Belim MW, Khachikian SS, Ambrósio Júnior R, Salomão M. Keratoconus/Ectasia detection with the Oculus Pentacam: Belim/Ambrosio enhanced ectasia display. Highlights of Ophthalmology. 2007 [cited 2021 Apr. 21];35(6):5-12. Available from: https://www.oculus.de/uploads/media/belin.pdf
https://www.oculus.de/uploads/media/beli...
) É sabido que formas prematuras de ceratocone costumam ter um curso mais agressivo.(1313. Léoni-Mesplié S, Mortemousque B, Touboul D, Malet F, Praud D, Mesplié N, et al. Scalability and severity of keratoconus in children. Am J Ophthalmol. 2012;154(1):56-62.e1.)

Assim, o objetivo deste estudo foi avaliar a possibilidade de alterações precoces sugestivas de ectasia detectáveis no Pentacam em casos sutis de alergia ocular em crianças

MÉTODOS

Trata-se de estudo retrospectivo em que foram analisados prontuários de 49 pacientes. Destes, 31 tinham diagnóstico de alergia ocular grau 1 de acordo com a classificação do Consenso Latino Americano de Alergia Ocular, sendo 22 do sexo masculino, com idades entre 3 a 14 anos, e 18 pacientes, sendo 12 meninas, com idades entre 6 e 12 anos, não tinham alterações oftalmológicas ou diagnóstico de alergia ocular e serviram como grupo controle.

As crianças foram atendidas no Ambulatório de Oftalmologia da Fundação Hilton Rocha, na cidade de Belo Horizonte, no período de outubro de 2013 a dezembro de 2015 e todas foram submetidas ao exame oftalmológico completo, além do exame de tomografia de córnea (Pentacam).

Devido à inexistência de banco de dados padronizados para crianças no Pentacam, os pacientes foram comparados com o grupo controle formado por crianças sem alterações oculares e na mesma faixa etária. Foram utilizados apenas os exames validados pelo aparelho. Foram excluídos do estudo pacientes com diagnóstico ou suspeita de ceratocone ou outra patologia que pudesse levar a alterações corneanas, casos de alergia ocular classificados de 2 a 4 de acordo com o Consenso Latino Americano de Alergia Ocular, incapacidade de realizar o exame e exames não validados pelo aparelho.

Avaliaram-se os seguintes índices do Pentacam: ART Max (Ambrósio's Relational Thickness); K Max (valor de ceratometria máxima); Df (variação do mapa da elevação anterior); Db (variação do mapa da elevação posterior); Dp (desvio do índice da progressão paquimétrica médio); Dt (variação da espessura mínima); Da (desvio do ART Max); D (valor da variação total). Consideramos também a possibilidade de o paciente ter pelo menos um dos índices analisados alterado, o que foi denominado neste estudo como “Pentacam combinado”.

Utilizaram-se as funções de análise de dados e estatística descritiva para obtenção das médias, desvio-padrão, mínimas e máximas encontradas nos resultados de todos os exames realizados, assim como o percentual de exames alterados de cada grupo. A análise de correlação de Pearson foi utilizada, além do teste do qui-quadrado para análise de dados categóricos. Todos os resultados foram considerados significativos para uma probabilidade de significância inferior a 5% (p<0,05), tendo, portanto, pelo menos 95% de confiança nas conclusões apresentadas.

Este estudo foi postado na Plataforma Brasil (CAAE: 36424820.7.0000.5141), tendo sido aprovado pela Associação Educativa do Brasil/Faculdades Unidas do Norte de Minas, com número do parecer 4.272.378.

RESULTADOS

Foram analisados 98 olhos de 49 pacientes, de ambos os sexos, com idade variando de 3 a 14 anos (média de 9,1±2,3 anos). Do total de crianças estudadas, 31 apresentavam alergia ocular grau 1, e 18 não apresentavam qualquer sinal ou sintoma de alergia ocular.

Buscou-se avaliar alterações precoces de índices tomográficos do Pentacam daqueles pacientes com alergia ocular grau 1 em relação às crianças sem alergia ocular ( Tabela 1 ).

Tabela 1
Associação entre cada um dos parâmetros avaliados pelo Pentacam e o grupo de crianças quanto à alergia ocular

DISCUSSÃO

Uma dificuldade encontrada neste estudo foi a inexistência de parâmetros consolidados do Pentacam relativos à população infantil, apesar de estarem sendo publicadas pesquisas iniciais na tentativa dessa padronização.(1414. Zheng Y, Huang G, Huang W, He M. Distribution of central and peripheral corneal thickness in Chinese children and adults: the Guangzhou twin eye study. Cornea. 2008;27(7):776-81.,1515. Vieira MI, Germano AM, Zangalli C, Ferreira BG, Castro RS, Okanobo A, et al. Corneal evaluation in healthy Brazilian children using a scheimpflug topography system. J Clin Exp Ophthalmol. 2017 [cited 2021 Apr. 21];8(2):1-7. Available from: https://www.longdom.org/open-access/corneal-evaluation-in-healthy-brazilian-children-using-a-scheimpflugtopography-system-2155-9570-1000648.pdf
https://www.longdom.org/open-access/corn...
) Por essa razão, foram utilizadas como grupo controle crianças não portadoras de conjuntivite alérgica. A questão que estimulou esta pesquisa foi a dúvida se existiriam indícios de ectasia mesmo nas alergias oculares com poucas queixas e sinais.

A variável Df, que avalia a superfície anterior da córnea, mostrou diferença significativa entre os grupos, com 3,7 vezes mais chances de estar alterada em crianças alérgicas. Alguns estudos, no entanto, mostraram que alterações na superfície posterior da córnea são mais sensíveis no diagnóstico do ceratocone,(1616. de Sanctis U, Aragno V, Dalmasso P, Brusasco L, Grignolo F. Diagnosis of subclinical keratoconus using posterior elevation measured with 2 different methods. Cornea. 2013;32(7):911-5.,1717. Lema I, Sobrino T, Durán JA, Brea D, Díez-Feijoo E. Subclinical keratoconus and inflammatory molecules from tears. Br J Ophthalmol. 2009;93(6):820-4.) diferentemente dos achados deste estudo. Uma explicação para isso talvez seja o fato de que, nas fases iniciais da doença, a agressão corneana seja mais superficial, atingindo as camadas mais internas em um segundo momento. Outra questão seria uma diferença de características estromais nos ceratocones não relacionados com alergia ocular, que não sofrem a ação mecânica (fricção) e inflamatória da atopia.

Quando se verificou a possibilidade de o paciente apresentar pelo menos um parâmetro fora da faixa normal do Pentacam combinado, o grupo alérgico apontou para 3,5 vezes mais chances desse acontecimento em relação ao controle, enfatizando a utilidade e a necessidade de se controlarem mais amiúde as crianças alérgicas.

Apesar de a relação entre alergia ocular nas suas formas mais agressivas e crônicas e ceratocone já ser bem estabelecida na literatura,(66. Merdler I, Hassidim A, Sorkin N, Shapira S, Gronovich Y, Korach Z. Keratoconus and allergic diseases among Israeli adolescents between 2005 and 2013. Cornea. 2015;34(5):525-9.) não foram encontrados trabalhos sobre essa relação nos casos iniciais da doença.

Dada a limitação da inexistência de um banco de dados no aparelho relativo à população infantil, mais estudos são necessários para se comprovarem possíveis alterações precoces que possam predizer o risco de ectasia corneana naquelas crianças com quadro de alergia leve.

CONCLUSÃO

Houve relação causal entre a prevalência da alergia ocular e alterações tomográficas na córnea, sugestivas de ceratocone em alguns pacientes provavelmente suscetíveis, podendo ser considerado um fator de risco para essa complicação.

Dentre os índices preditivos estudados, o Df encontrou-se significativamente alterado, podendo haver relação direta desse parâmetro, com a detecção precoce de alterações corneanas em pacientes com alergia ocular. Pacientes alérgicos demonstraram mais chances de terem alteração em pelo menos um dos itens estudados no Pentacam combinado, comparados com o grupo controle.

  • Instituição: Fundação Hilton Rocha, Belo Horizonte, MG, Brasil.
  • Fonte de auxílio à pesquisa: não financiado.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Bielory L, Skoner DP, Blaiss MS, Leatherman B, Dykewicz MS, Smith N, et al. Ocular and nasal allergy symptom burden in America: the Allergies, Immunotherapy, and RhinoconjunctivitiS (AIRS) surveys. Allergy Asthma Proc. 2014;35(3):211-8.
  • 2
    Shaker M, Salcone E. An update on ocular allergy. Curr Opin Allergy Clin Immunol. 2016;16(5):505-10.
  • 3
    Miyazaki D, Fukagawa K, Okamoto S, Fukushima A, Uchio E, Ebihara N, et al. Epidemiological aspects of allergic conjunctivitis. Allergol Int. 2020;69(4):487-95.
  • 4
    Santos MS, Alves MR, Freitas D, Sousa LB, Wainsztein R, Kandelman S, et al. Ocular allergy Latin American consensus. Arq Bras Oftalmol. 2011;74(6):452-6.
  • 5
    Naderan M, Shoar S, Rezagholizadeh F, Zolfaghari M, Naderan M. Characteristics and associations of keratoconus patients. Cont Lens Anterior Eye. 2015;38(3):199-205.
  • 6
    Merdler I, Hassidim A, Sorkin N, Shapira S, Gronovich Y, Korach Z. Keratoconus and allergic diseases among Israeli adolescents between 2005 and 2013. Cornea. 2015;34(5):525-9.
  • 7
    Sorkin N, Varssano D. Corneal collagen crosslinking: a systematic review. Ophthalmologica. 2014;232(1):10-27.
  • 8
    Rabinowitz YS. Keratoconus. Surv Ophthalmol. 1998;42(4):297-319.
  • 9
    Dantas PE, Alves MR, Nishiwaki-Dantas MC. Topographic corneal changes in patients with vernal keratoconjunctivitis. Arq Bras Oftalmol. 2005;68(5):593-8.
  • 10
    Totan Y, Hepşen IF, Cekiç O, Gündüz A, Aydin E. Incidence of keratoconus in subjects with vernal keratoconjunctivitis: a videokeratographic study. Ophthalmology. 2001;108(4):824-7.
  • 11
    Chen D, Lam AK. Reliability and repeatability of the Pentacam on corneal curvatures. Clin Exp Optom. 2009;92(2):110-8.
  • 12
    Belim MW, Khachikian SS, Ambrósio Júnior R, Salomão M. Keratoconus/Ectasia detection with the Oculus Pentacam: Belim/Ambrosio enhanced ectasia display. Highlights of Ophthalmology. 2007 [cited 2021 Apr. 21];35(6):5-12. Available from: https://www.oculus.de/uploads/media/belin.pdf
    » https://www.oculus.de/uploads/media/belin.pdf
  • 13
    Léoni-Mesplié S, Mortemousque B, Touboul D, Malet F, Praud D, Mesplié N, et al. Scalability and severity of keratoconus in children. Am J Ophthalmol. 2012;154(1):56-62.e1.
  • 14
    Zheng Y, Huang G, Huang W, He M. Distribution of central and peripheral corneal thickness in Chinese children and adults: the Guangzhou twin eye study. Cornea. 2008;27(7):776-81.
  • 15
    Vieira MI, Germano AM, Zangalli C, Ferreira BG, Castro RS, Okanobo A, et al. Corneal evaluation in healthy Brazilian children using a scheimpflug topography system. J Clin Exp Ophthalmol. 2017 [cited 2021 Apr. 21];8(2):1-7. Available from: https://www.longdom.org/open-access/corneal-evaluation-in-healthy-brazilian-children-using-a-scheimpflugtopography-system-2155-9570-1000648.pdf
    » https://www.longdom.org/open-access/corneal-evaluation-in-healthy-brazilian-children-using-a-scheimpflugtopography-system-2155-9570-1000648.pdf
  • 16
    de Sanctis U, Aragno V, Dalmasso P, Brusasco L, Grignolo F. Diagnosis of subclinical keratoconus using posterior elevation measured with 2 different methods. Cornea. 2013;32(7):911-5.
  • 17
    Lema I, Sobrino T, Durán JA, Brea D, Díez-Feijoo E. Subclinical keratoconus and inflammatory molecules from tears. Br J Ophthalmol. 2009;93(6):820-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2021
  • Aceito
    21 Abr 2021
Sociedade Brasileira de Oftalmologia Rua São Salvador, 107 , 22231-170 Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (55 21) 3235-9220, Fax: (55 21) 2205-2240 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rbo@sboportal.org.br