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Ambliopia severa na infância relacionada à persistência da vasculatura fetal

Severe childhood amblyopia associated to persistence of fetal vasculature

RESUMO

A persistência do vítreo primário hiperplásico, atualmente referida como persistência da vasculatura fetal, é uma anomalia congênita que resulta da não regressão do vítreo vascular primário e do sistema da artéria hialoide durante a embriogênese. Trata-se de uma anomalia unilateral na maioria dos casos, esporádica e comumente não associada a nenhum outro achado sistêmico. Clinicamente, essa condição pode ser classificada em persistência anterior e em persistência posterior da vasculatura fetal. A condição anterior está relacionada ao sistema da artéria ciliar, enquanto a persistência da vasculatura posterior associa-se à artéria hialoide e pode apresentar anormalidades, com desfecho visual desfavorável. A detecção da persistência do vítreo primário hiperplásico é de suma importância, visto que é um diagnóstico diferencial para retinoblastoma. O relato de caso a seguir descreve o acompanhamento ambulatorial em um Serviço de Oftalmologia de uma criança do sexo masculino com persistência da vasculatura fetal unilateral e sem alterações sistêmicas.

Descritores:
Ambliopia; Vítreo primário hiperplásico persistente; Embriologia; Vitrectomia; Vasos retinianos

ABSTRACT

Hyperplastic primary vitreous persistence, currently referred to as fetal vasculature persistence, is a congenital anomaly that results from non-regression of the primary vascular vitreous and hyaloid artery system during embryogenesis. It is a unilateral anomaly in the vast majority of cases, sporadic and commonly not associated with any other systemic finding. Clinically, this condition can be classified into anterior and posterior persistence of fetal vasculature. The anterior condition is related to the ciliary artery system, while the persistence of the posterior vasculature is associated with the hyaloid artery, which may present abnormalities with an unfavorable visual outcome. Detecting persistent hyperplastic primary vitreous is of paramount importance, as it is a differential diagnosis for retinoblastoma. The following case report describes the outpatient follow-up at the ophthalmology service of the Federal University of Triângulo Mineiro (UFTM) of a male child with persistent unilateral fetal vasculature and no systemic changes.

Keywords:
Amblyopia; Persistent hyperplastic primary vitreous; Embryology; Vitrectomy; Retinal vessels

INTRODUÇÃO

O vítreo primário é uma estrutura originada das células da crista neural durante o primeiro mês de desenvolvimento, sendo nutrido pela artéria hialoide, um ramo da artéria oftálmica presente durante a fase embrionária. Habitualmente, a artéria hialoide sofre regressão na nona semana e forma o vítreo secundário, que dá origem ao vítreo terciário na 12º semana, responsável por preencher a maior parte da cavidade vítrea em desenvolvimento. A regressão da artéria hialoide origina a artéria central da retina e forma o canal hialoide, ou canal de Cloquet, o qual possui formato de “S” e está situado entre o cristalino e o disco óptico.(11 Tonolli DM, Póvoa FF, Silva AQ, Duarte ML, Duarte CC, Egawa RS. Persistência da vasculatura fetal diagnosticada pela ultrassonografia - Relato de caso. Diagn Tratamento. 2021;26(3):97-100.) Em alguns casos, a artéria pode não regredir completamente, resultando na condição de persistência da vasculatura fetal, uma malformação rara, de origem ainda desconhecida, cujos achados clínicos mais comuns são leucocoria, microftalmia e catarata.(22 Haddad R, Font RL, Reeser F. Persistent hyperplastic primary vitreous. A clinicopathologic study of 62 cases and review of the literature. Surv Ophthalmol. 1978;23(2):123-34.) O diagnóstico pode ser obtido durante o pré-natal com o auxílio do ultrassom, em especial no terceiro trimestre, porém ocorre mais frequentemente após a manifestação de impactos visuais.(33 Esmer AC, Sivrikoz TS, Gulec EY, Sezer S, Kalelioglu I, Has R, et al. Prenatal diagnosis of persistent hyperplastic primary vitreous: report of 2 cases and review of the literature. J Ultrasound Med. 2016;35(10):2285-91.) O prognóstico é, em geral, obscuro, exigindo diagnóstico precoce e manejo adequado.(44 Roche O, Orssaud C, Beby F, Keita Sylla F, Allali L, Dufier JL. Persistance et hyperplasie du vitré primitif: étude rétrospective [Persistent hyperplastic primary vitreous: a retrospective study]. J Fr Ophtalmol. 2007;30(5):483-91. French.)

O objetivo do presente trabalho é relatar o acompanhamento ambulatorial de uma criança com o diagnóstico de persistência da vasculatura fetal e os impactos na acuidade visual desta anomalia.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino atendido no Serviço de Oftalmologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) pela primeira vez aos 5 meses de vida. Apresentava leucocoria em olho esquerdo percebida pela mãe aos 2 meses de vida, motivo que a levou a procurar o Serviço de Oftalmologia. Durante a consulta, a mãe informou que a criança não foi submetida ao teste do reflexo vermelho ao nascimento. Relatou que a gestação ocorreu sem intercorrências por parto cesáreo a termo e sem complicações. Negou histórico familiar positivo para doenças e/ou anomalias oftalmológicas.

Ao exame, a criança apresentava acuidade visual em olho direito, fixa e acompanhava objetos até 5m, e em olho esquerdo fixa e acompanhava objetos até 50cm, dado este interrogado em prontuário, e fundoscopia sem alterações (Figura 1). Ectoscopia mostrou discreta microftalmia de olho esquerdo, biomicroscopia com opacificação central subcapsular (ponto de Mittendorf) em olho esquerdo, fundoscopia com presença de tecido fibroso na anatomia da artéria hialoide, conectando o disco óptico à cápsula posterior do cristalino (Figura 2). Foi realizado ultrassom, com olho direito sem alterações (Figura 3) e olho esquerdo com membrana vítrea de alta ecogenicidade e baixa mobilidade que se estende do nervo óptico à cápsula posterior do cristalino (Figura 4).

Figura 1
Retinoscopia de olho direito.
Figura 2
Retinoscopia de olho esquerdo.
Figura 3
Ultrassom de olho direito.
Figura 4
Ultrassom de olho esquerdo.

A mãe foi orientada sobre a hipótese diagnóstica e o risco severo de ambliopia. O paciente foi encaminhado ao Ambulatório de Oftalmopediatria e Retina Pediátrica para avaliação de vitrectomia como tratamento. A Equipe de Retina Pediátrica confirmou o diagnóstico de persistência da vasculatura fetal e concluiu que não havia benefício do tratamento cirúrgico, devido ao baixo prognóstico visual. Optou-se pelo acompanhamento anual da criança no ambulatório, visando ao acompanhamento e ao estímulo visual de olho direito.

DISCUSSÃO

A persistência da vasculatura fetal apresenta três variações: uma anterior, outra posterior e uma em que há a combinação das duas. A forma anterior é a mais típica, está relacionada ao sistema da artéria ciliar e possui um melhor prognóstico, por não apresentar anormalidades oculares associadas. Nessa condição, uma massa fibrovascular é formada atrás e se adere à lente, fazendo com que o globo ocular fique escurecido, o que é caracterizado clinicamente como “mancha de Mittendorf”. Já a condição posterior associa-se à persistência da artéria hialoide, podendo também serem encontradas uma lesão retrolental e uma trave de tecido conectivo na câmara vítrea, as quais se estendem durante o trajeto do disco óptico. Nesse tipo de acometimento, pode ocorrer uma reabsorção da porção anterior da artéria hialoide, e o tecido fibrovascular remanescente estende-se do disco óptico para a cavidade vítrea – achado que se caracteriza clinicamente como “papila de Bergmeister”.(55 Jacob BM, Santos Teixeira K-I-S S, Figueirêdo S, Nóbrega BB. Persistência hiperplásica do vítreo primitivo: avaliação por métodos de imagem. Radiol Bras. 2003;36(3):173-8.) Os pacientes com persistência da vasculatura fetal posterior frequentemente apresentam um desfecho visual desfavorável, visto que essa condição se relaciona com anormalidades oculares, mas eles podem adquirir uma melhora visual significativa pós-cirúrgica em até 70% dos casos.

A persistência do vítreo primário posterior representa um desafio para os oftalmologistas, devido à dificuldade de um bom resultado visual e, embora seja uma afecção rara, deve ser reconhecida por essa classe, não apenas pelo prognóstico da doença, mas também para fazer diagnóstico diferencial com outros problemas oculares, em especial o retinoblastoma, um tumor maligno do globo ocular de crianças.(66 Chung EM, Specht CS, Schroeder JW. From the archives of the AFIP: Pediatric orbit tumors and tumorlike lesions: Neuroepithelial lesions of the ocular globe and optic nerve. Radiographics. 2007;27(4):1159-86.) Enquanto a persistência da vasculatura fetal apresenta-se com leucocoria diretamente ao nascimento, é unilateral e não possui calcificações em sua composição, o retinoblastoma tende a causar leucocoria mais tardiamente, ser bilateral e apresenta áreas de calcificação. A opção pelo tratamento clínico foi baseada no pior prognóstico visual dos pacientes, que desenvolvem uma ambliopia refrativa e por privação mesmo após a cirurgia.

  • Instituição de realização do trabalho: Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG, Brasil.
  • Fonte de auxílio à pesquisa: não financiado.

Referências

  • 1
    Tonolli DM, Póvoa FF, Silva AQ, Duarte ML, Duarte CC, Egawa RS. Persistência da vasculatura fetal diagnosticada pela ultrassonografia - Relato de caso. Diagn Tratamento. 2021;26(3):97-100.
  • 2
    Haddad R, Font RL, Reeser F. Persistent hyperplastic primary vitreous. A clinicopathologic study of 62 cases and review of the literature. Surv Ophthalmol. 1978;23(2):123-34.
  • 3
    Esmer AC, Sivrikoz TS, Gulec EY, Sezer S, Kalelioglu I, Has R, et al. Prenatal diagnosis of persistent hyperplastic primary vitreous: report of 2 cases and review of the literature. J Ultrasound Med. 2016;35(10):2285-91.
  • 4
    Roche O, Orssaud C, Beby F, Keita Sylla F, Allali L, Dufier JL. Persistance et hyperplasie du vitré primitif: étude rétrospective [Persistent hyperplastic primary vitreous: a retrospective study]. J Fr Ophtalmol. 2007;30(5):483-91. French.
  • 5
    Jacob BM, Santos Teixeira K-I-S S, Figueirêdo S, Nóbrega BB. Persistência hiperplásica do vítreo primitivo: avaliação por métodos de imagem. Radiol Bras. 2003;36(3):173-8.
  • 6
    Chung EM, Specht CS, Schroeder JW. From the archives of the AFIP: Pediatric orbit tumors and tumorlike lesions: Neuroepithelial lesions of the ocular globe and optic nerve. Radiographics. 2007;27(4):1159-86.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2022
  • Aceito
    18 Ago 2022
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