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O que os olhos não veem a microcirurgia ensina: modelo de treinamento oftalmológico com olho de boi

What the eye cannot see, microsurgery teaches: a model of ophthalmological training with a bull’s eye

RESUMO

Objetivo

Descrever e validar um modelo oftalmológico para treinamento de transplante e microssutura de córnea utilizando globo ocular bovino.

Métodos

Para a montagem do modelo de treinamento, o globo ocular foi disposto sob o campo cirúrgico, apoiado sobre um recipiente plástico cilíndrico comum de 3,5cm de diâmetro, para a retirada da córnea. Foi realizada uma incisão circular superficial, e, posteriormente, uma tesoura Castroviejo curva de 9 cm foi utilizada para remoção completa da córnea, que foi recolocada em sua posição original, para que, em seguida, fossem confeccionados nove pontos equidistantes, usando fio de nylon 10-0. Por fim, foram avaliados os seguintes critérios: tempo de realização das suturas; evolução do tempo e da qualidade a cada teste; e destreza e aperfeiçoamento da realização das suturas.

Resultados

O modelo descrito demonstrou-se viável e adequado para o treinamento de microssuturas na córnea, possibilitando aperfeiçoamento e ganho de habilidades cirúrgicas.

Conclusão

O modelo de treinamento microcirúrgico apresentado possui alta viabilidade para a simulação de cirurgias oftalmológicas e textura semelhante à do olho humano real, o que o torna próximo à realidade.

Microcirurgia; Olho; Bovinos; Educação médica; Treinamento de simulação; Transplante de córnea

ABSTRACT

Objective

To describe and validate an ophthalmic model for corneal transplantation and micro suture training using a bovine eyeball as a model.

Methods

For the training model, the eyeball was placed under the sanitary field placed on the ends of a common 3.5cm diameter cylindrical plastic container for corneal removal. A superficial circular incision was made, then 9cm curved Castroviejo scissors were used for complete corneal removal. The cornea was replaced in its original position, and 10-0 nylon thread was used to perform the sutures, with 9 equidistant stitches. Finally, the following criteria were evaluated: suturing time, time and quality progression in each attempt, dexterity and suturing improvement.

Results

The described model proved to be feasible and suitable for corneal micro suture training, allowing improvement and gain of dexterity in the sport.

Conclusion

The presented microsurgical training model has a high feasibility for the simulation of ophthalmic surgeries, in addition to a texture similar to the real human eye, which makes it close to reality.

Microsurgery; Eye; Bovine; Medical education; Simulation training; Corneal transplantation

INTRODUÇÃO

As habilidades manuais do cirurgião e seu treinamento prático estão intrinsicamente ligados aos resultados cirúrgicos e à recuperação do paciente. Durante a Residência de Oftalmologia, assim como nas demais especialidades cirúrgicas, a aquisição de habilidades, técnicas e autonomia se dão por meio da prática, o que não ocorre quando o staff experiente executa o procedimento enquanto o residente somente observa. Para o desenvolvimento de confiança para tomadas de decisão durante o procedimento, é necessário que o médico se exponha ao ato.(11. Kunac A, Oliver JB, McFarlane JL, Anjaria DJ. General Surgical Resident Operative Autonomy vs Patient Outcomes: Are we Compromising Training without Net Benefit to Hospitals or Patients? J Surg Educ. 2021;78(6):e174-e182.

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-33. Hammond I, Karthigasu K. Training, assessment and competency in gynaecologic surgery. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2006;20(1):173-87.)

Na ausência de modelos de treinamento, a evolução e a manutenção da curva de aprendizado da técnica microcirúrgica oftalmológica ocorrem principalmente no contato direto do médico aprendiz com o paciente, durante a cirurgia, o que pode repercutir negativamente na recuperação da visão do paciente. Todavia, o aprendizado na prática, nesse caso, não é aceitável, visto que os olhos são órgãos nobres, compostos de estruturas delicadas, que concedem o prazer de apreciar a vida pelo sentido visual, além de possuírem fundamental função no equilíbrio e no paladar. Assim, para suprir a ausência de treinamento adequado, modelos experimentais vêm sendo desenvolvidos. Quando paciente é informado de que o cirurgião que realizará a cirurgia fez treinamento em simuladores, embora não seja experiente, há maior confiança nele.(11. Kunac A, Oliver JB, McFarlane JL, Anjaria DJ. General Surgical Resident Operative Autonomy vs Patient Outcomes: Are we Compromising Training without Net Benefit to Hospitals or Patients? J Surg Educ. 2021;78(6):e174-e182.,33. Hammond I, Karthigasu K. Training, assessment and competency in gynaecologic surgery. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2006;20(1):173-87.,44. Landis ZC, Fileta J, Scott IU, Kunselman A, Sassani JW. Impact of surgical simulator training on patients’ perceptions of resident involvement in cataract surgery. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2015; 56(7):130.)

Os modelos de treinamento atuais são desenvolvidos principalmente com a utilização de impressoras tridimensionais e materiais com custo elevado. Há também modelos utilizando alimentos de origem vegetal e animal, como com uva e ovo.(55. Mohan R, Agasti M, Nair M. Innovative models for vitreoretinal training during COVID-19 times. Indian J Ophthalmol. 2022:70(2):709.

6. Santos D, Teixeira R, Pimentel A, Corrêa WJ, Araújo NP, Calvo FC, et al. O oftalmologista e as uvas: Um modelo de treinamento microcirúrgico. Rev Bras Oftalmol. 2020;79(6):366-9.
-77. Bentes LG, Costa LV, Pimentel AL, Tramontin DF, Lemos RS, Vasconcelos ME, et al. O que veio primeiro: o ovo ou o treinamento microcirúrgico? Um modelo oftalmológico para desenvolver habilidades básicas em microcirurgia. Rev Bras Oftalmol. 2022;81:e0040.) Todavia, apesar de esses últimos serem modelos com maior facilidade de implementação e utilização, para a Oftalmologia é importante que os modelos apresentem maior fidedignidade ao olho humano, no quesito tecido, textura, consistência, aparência e resistência, o que dificilmente um modelo vegetal ou sintético alcançará. Um modelo de maior proximidade é o com globos oculares suínos para simulação de fotocoagulação a laser, um procedimento para manejo de disfunções vasculares que acomete a retina. Assim como os demais procedimentos oculares, a fotocoagulação a laser necessita de treinamento extensivo, o qual, na maioria das vezes, acontece no próprio paciente, sob supervisão de outro residente, o que não necessariamente é prejudicial ao paciente, embora haja maior benefício em ser operado por mãos com maior nível de habilidade.(88. Kylstra JA, Diaz JD. A simple eye model for practicing indirect ophthalmoscopy and retinal laser photocoagulation. Dígito J Oftalmol. 2019;25(1):1-4.

9. Bisol T, Bisol R, Rezende F. Eficácia do treinamento com simulador cirúrgico Eyesi em melhorar a capsulorrexe em cápsulas de alta tensão. Rev Bras Oftalmol. 76(2):106-7.

10. Speaks L, Helmer SD, Quinn KR, Lancaster J, Blythe M, Vincent KB. Chief resident indirect supervision in training safety study: is a chief resident general surgery service safe for patients? J Surg Educ. 2021;78(6):145-53.

11. Lucas L, Schellini SA, Lottelli AC. Complications in the first 10 phacoemulsification cataract surgeries with and without prior simulator training. Arq Bras Oftalmol. 2019;82(4):289-94.
-1212. Dean WH, Gichuhi S, Buchan JC, Makupa W, Mukome A, Otiti-Sengeri J, et al. Intense Simulation-Based Surgical Education for Manual Small-Incision Cataract Surgery: The Ophthalmic Learning and Improvement Initiative in Cataract Surgery Randomized Clinical Trial in Kenya, Tanzania, Uganda, and Zimbabwe. JAMA Ophthalmol. 2021;139(1):9-15.)

Nesse contexto, a criação de modelos de treinamento cirúrgico com animais deve incorporar os princípios dos 3R (replacement, reduction and refinement). Desse modo, um modelo animal que respeite os 3Rs, evite o desperdício de tecido animal, possua um baixo custo e simule com maior similaridade as estruturas do globo ocular humano é de extrema relevância para o treinamento de habilidades microcirúrgicas do residente de oftalmologia.(1313. Czubala MA, Eilles E, Staubi A, Ipseiz N, Vogt M, Zieglowski L, et al. 3R Blackboard: A platform for animal and organ sharing. Lab Anim. 2022;56(3):292-6.,1414. Eșanu V, Stoia AI, Dindelegan GC, Colosi HA, Dindelegan MG, Volovici V. Reduction of the Number of live animals used for microsurgical skill acquisition: an experimental randomized noninferiority trial. J Reconstr Microsurg. 2022;38(8):604-12.)

A aplicação de um modelo ético para o treinamento de transplante e sutura de córnea é essencial, pois o residente de Oftalmologia só é introduzido à cirurgia de córnea após o terceiro ano de residência. O treinamento é eficaz para a melhoria da qualidade e destreza cirúrgica – o que é benéfico para o paciente, que já essa não será, pois, mais a primeira tentativa cirúrgica do médico aprendiz, e, para este, que poderá oferecer procedimentos com mais segurança e qualidade.(1515. Lowater SJ, Grauslund J, Vergmann AS. Modern educational simulation-based tools among residents of ophthalmology: a narrative review. Ophthalmol Ther. 2022;11(6):1961-74.,1616. Denadai R, Saad-Hossne R, Todelo AP, Kirylko L, Souto LR. Low-fidelity bench models for basic surgical skills training during undergraduate medical education. Rev Col Bras Cir. 2014;41(2):137-45.)

Assim, o objetivo deste estudo foi descrever e validar um modelo oftalmológico para treinamento de transplante e microssutura de córnea utilizando globo ocular bovino.

MÉTODOS

O presente estudo é caracterizado como um estudo de cirurgia experimental e foi realizado de acordo com a lei brasileira reguladora do uso científico de animais (lei: 11.794/08). O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) sob parecer CAAE 58872022.4.0000.5174 e obteve dispensa do Comitê de Ética em Pesquisa em Uso de Animais da UEPA (CEUA) da instituição na qual foi desenvolvido, nas dependências do Laboratório de Cirurgia Experimental (LCE), localizado no Centro de Ciências Biológicas e de Saúde (CCBS), Campus II da Universidade do Estado do Pará (UEPA).

Para a confecção do modelo experimental, foram utilizados olhos de bois, da raça Nelore, subespécie Bos taurus indicus. Os olhos foram obtidos em um abatedouro local e não tiveram custos, visto que são partes desprezadas para o consumo (Figura 1A).

Figura 1
Etapas da confecção do modelo. A - Disposição no campo cirúrgico. B - Modelo marcado com caneta permanente.

Primeiramente, o globo ocular foi disposto sob o campo cirúrgico encaixado nas bordas de um recipiente plástico cilíndrico comum de 3,5cm de diâmetro, para a retirada da córnea, a qual foi realizada a partir da demarcação, no centro da córnea, de um círculo de 15mm de diâmetro, medido com papel milimetrado, previamente medido; recortado, com a utilização de uma régua simples e com compasso escolar, e marcado, com uma caneta permanente (Figura 1B). Em seguida, com uma lâmina de bisturi tamanho 11, encaixada em um cabo n.° 3, foi realizada uma incisão circular superficial. Posteriormente, uma tesoura Castroviejo curva, de 9cm, foi utilizada para remoção completa da córnea (Figura 2A).

Figura 2
A-Modelo com a córnea parcialmente removida. B - Modelo de treinamento finalizado.

Após a preparação inicial do modelo, a córnea foi recolocada em sua posição original, e, para a realização das suturas, utilizou-se fio de nylon 10-0 em agulha de 80μm (comprimento de 3 mm e três oitavos de círculo). Foram confeccionados nove pontos únicos oftalmológicos equidistantes nos quatro pontos cardeais (0°, 90°, 180° e 270°); em seguida, foi suturado mais um ponto, a cada dois pontos cardeais.

Para a verificação da viabilidade do modelo, seis residentes de Oftalmologia testaram o modelo de cirurgia oftalmológica em quatro sessões de treinamento, nas quais cada residente treinou transplante e sutura de córnea em um olho de boi. Os treinos ocorreram durante 2 semanas corridas, sendo que o intervalo máximo de dias entre sessões foi de 3 dias. Nessas sessões, foram avaliados critérios como tempo de realização das suturas; evolução do tempo e da qualidade a cada teste; e destreza e aperfeiçoamento da realização das suturas.

O modelo experimental teve sua visualização ampliada a partir da utilização de um sistema de videomagnificação, composto de uma câmera Sony© Handycam HDR-XR160, conectada a uma TV 55’ Curva Full HD, por meio de um cabo HDMI. Para melhor a iluminação do campo operatório, duas luminárias com lâmpadas fluorescentes foram colocadas em cada lado.(1717. de Barros RS, Brito MV, de Brito MH, de Aguiar Lédo Coutinho JV, Teixeira RK, Yamaki VN, et al. Morphofunctional evaluation of end-to-side neurorrhaphy through video system magnification. J Surg Res. 2018;221:64-8.,1818. Monteiro de Barros RS, Brito MV, Teixeira RK, Yamaki VN, Costa FL, Sabbá MF, et al. High-definition video system for peripheral neurorrhaphy in rats. Surg Innov. 2017;24(4):369-72.)

Os critérios avaliados na elaboração e na execução do modelo de transplante corneano foram custos; viabilidade da execução; tempo de execução e aperfeiçoamento da técnica. O aperfeiçoamento da técnica foi avaliado por um microcirurgião com mais de 15 anos de experiência, o qual utilizou uma escala adaptada de Santos na primeira e na última sessão, para visualizar o progresso da habilidade técnica de cada residente (Quadro 1). Além disso, o modelo foi avaliado pelos residentes quanto à facilidade de construção do modelo, semelhança com o tecido humano, aproveitamento do treinamento com o modelo bovino e aquisição de habilidades, a partir de uma escala do tipo Likert, adaptada por Martins Filho para a avaliação do modelo de treinamento.(66. Santos D, Teixeira R, Pimentel A, Corrêa WJ, Araújo NP, Calvo FC, et al. O oftalmologista e as uvas: Um modelo de treinamento microcirúrgico. Rev Bras Oftalmol. 2020;79(6):366-9.,1919. Likert R. A technique for the measurement of attitudes. Arch Psychol. 1932;22:5-51.,2020. Martins Filho EF. Métodos alternativos no ensino da técnica veterinária (tese). Jaboticabal: Faculdade de Ciências Agrárias e Vetereinárias; 2015.)

Quadro 1
Escala de classificação de desempenho.

Foram utilizados os softwares Microsoft Office 365® Word e Excel para armazenamento e análise dos dados e para confecção dos gráficos e edição das fotos. Para realizar análise estatística, fez-se uso do software BioEstat© 5.4. Utilizou-se o teste t para verificar a significância da evolução da redução do tempo entre os treinamentos.

RESULTADOS

O modelo descrito demonstrou-se viável e adequado para o treinamento de microssuturas na córnea, possibilitando aperfeiçoamento e ganho de habilidade cirúrgica (Figura 2B).

O material utilizado para a construção do simulador não teve custo, pois houve o reaproveitamento de materiais que seriam desprezados, já que não são consumidos. Os custos dos materiais destinados à confecção da sutura estão contidos na tabela 1.

Tabela 1
Custos totais da simulação.

O tempo médio de confecção do simulador, com a demarcação e a retirada da córnea, foi de 4,02 minutos, com variação de 2,29 a 6,28 minutos. A média de tempo necessário para confecção do simulador no primeiro treino foi de 4,93 minutos, enquanto no sexto foi de 3,02 minutos. Assim, houve redução média de 1,91 minuto, sendo notável a evolução entre as sessões.

Os residentes realizaram nove nós simples no modelo descrito. O tempo médio de realização da sutura completa foi de 38,05±3,61 minutos. O tempo médio por ponto foi de 4,75±0,18 minutos. A análise demonstrou redução de tempo de 20,46% no tempo de confecção da sutura completa no decorrer das sessões de treinamento (Tabela 2), além de diminuição de 24,76% no tempo de cada sutura. A análise estatística do teste t se mostrou significativa quanto à redução do tempo de finalização do transplante (t=10,79; p<0,0001; intervalo de confiança de 99% - IC99% - 5,42-11,90).

Tabela 2
Tempo total da finalização das suturas do transplante de córnea.

Em relação ao desempenho, avaliou-se cada residente individualmente em cada sessão de treinamento. Os critérios nos quais os residentes apresentaram maiores dificuldades foram técnica de sutura, manuseio de instrumentais e ergonomia, enquanto os critérios com maiores pontuações foram cuidado com o tecido e movimentação. Houve aumento médio de 9,5 pontos da escala numérica entre o primeiro e o último treino. Durante a evolução do desempenho dos residentes, o aumento mínimo foi de oito pontos (Figura 3).

Figura 3
Evolução do desempenho ao longo dos treinamentos.

DISCUSSÃO

As habilidades microcirúrgicas do cirurgião oftalmologista devem ser adquiridas e aperfeiçoadas com treinamento contínuo e persistente, o que demanda modelos de treinamento acessíveis, de baixo custo, de fácil manuseio e que não apresentem conflitos éticos. Nesse contexto, os modelos vegetais são de extrema relevância, como o modelo de sutura em uvas; todavia, eles falham na similaridade da textura e da maleabilidade com o tecido humano.(66. Santos D, Teixeira R, Pimentel A, Corrêa WJ, Araújo NP, Calvo FC, et al. O oftalmologista e as uvas: Um modelo de treinamento microcirúrgico. Rev Bras Oftalmol. 2020;79(6):366-9.,1212. Dean WH, Gichuhi S, Buchan JC, Makupa W, Mukome A, Otiti-Sengeri J, et al. Intense Simulation-Based Surgical Education for Manual Small-Incision Cataract Surgery: The Ophthalmic Learning and Improvement Initiative in Cataract Surgery Randomized Clinical Trial in Kenya, Tanzania, Uganda, and Zimbabwe. JAMA Ophthalmol. 2021;139(1):9-15.,2121. Evgeniou E, Walker H, Gujral S. The role of simulation in microsurgical training. J Surg Educ. 2018;75(1):171-81.)

Além disso, há outros modelos de origem animal, como o realizado com o ovo de galinha, que, apesar de preencher todos os critérios citados, possui relativamente baixa semelhança com o tecido do globo ocular humano.(77. Bentes LG, Costa LV, Pimentel AL, Tramontin DF, Lemos RS, Vasconcelos ME, et al. O que veio primeiro: o ovo ou o treinamento microcirúrgico? Um modelo oftalmológico para desenvolver habilidades básicas em microcirurgia. Rev Bras Oftalmol. 2022;81:e0040.) Já o modelo com olhos bovinos consegue alcançar alta semelhança com as estruturas e os tecido humanos, pois, como material biológico de mesma origem embrionária, possui anatomia, textura, resistência, consistência e função semelhante ao órgão humano. Em adição, na escala de satisfação, foi acertado entre os participantes que, com a utilização do modelo, houve maior sensação de simulação em um ambiente real.(33. Hammond I, Karthigasu K. Training, assessment and competency in gynaecologic surgery. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2006;20(1):173-87.,44. Landis ZC, Fileta J, Scott IU, Kunselman A, Sassani JW. Impact of surgical simulator training on patients’ perceptions of resident involvement in cataract surgery. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2015; 56(7):130.)

O presente modelo apresentado incorpora o replacement da pesquisa com animais, ao substituir possíveis modelos animais vivos por tecido animal morto, além de dar finalidade para partes que seriam desprezadas, já que, no Brasil, elas não são destinadas ao consumo humano. Por esse motivo, os globos oculares bovinos são isentos de custos financeiros e de fácil aquisição, sendo possível de adquirir, sem custos, em abatedouros locais.(1313. Czubala MA, Eilles E, Staubi A, Ipseiz N, Vogt M, Zieglowski L, et al. 3R Blackboard: A platform for animal and organ sharing. Lab Anim. 2022;56(3):292-6.,1414. Eșanu V, Stoia AI, Dindelegan GC, Colosi HA, Dindelegan MG, Volovici V. Reduction of the Number of live animals used for microsurgical skill acquisition: an experimental randomized noninferiority trial. J Reconstr Microsurg. 2022;38(8):604-12.)

Em relação à montagem, o modelo não requer habilidades específicas, pois o globo ocular possui estrutura semelhante à do olho humano, não exigindo trabalhosas alterações para simular os olhos dos pacientes. Nesse contexto, o olho está adequado para simular o transplante corneano logo após a retirada e a sutura da córnea, depois de sua aquisição. A facilidade de montagem do modelo se mostrou na redução de tempo, com redução média no tempo de confecção de 1,91 minuto. Também é importante ressaltar que eles podem ser armazenados por cerca de 2 meses em freezer comum, mantendo suas características necessárias para compor um modelo adequado.

Quanto à aquisição e ao aperfeiçoamento de habilidades microcirúrgicas com a utilização do presente modelo, foi verificado que houve relevante diminuição do tempo de prática conforme as sessões ocorreram, com redução média de 25,09% na confecção da sutura completa e de 24,76% na confecção de um único ponto, entre a primeira e a última sessão de treinamento. Em adição, o maior tempo necessário para realizar um único ponto foi 6,28 minutos, enquanto o menor tempo necessário para a realização de um único ponto foi 2,29 minutos, alcançado no último treinamento.

Ainda acerca do aperfeiçoamento, como o olho bovino possui maiores dimensões em relação ao humano, tornou-se mais simples a retirada da córnea com a tesoura microcirúrgica, o que conferiu maior ganho de habilidades microcirúrgicas.

Ao analisar as avaliações de desempenho dos residentes durante os treinos, notou-se importante evolução nos critérios avaliados, com maior ênfase no cuidado com o tecido e na redução da perfuração e rompimento do tecido da córnea por movimentos bruscos. Todavia, apesar dos residentes apresentarem maiores dificuldades no parâmetro de técnica cirúrgica, ainda assim notou-se importante evolução nesse critério. Assim, nas quatro sessões realizadas, foi notável a evolução da curva do aprendizado; se mantido o treinamento, a curva pode apresentar-se maiores resultados, fato que é consenso nos trabalhos que avaliam curva de aprendizagem com o uso de simuladores.(77. Bentes LG, Costa LV, Pimentel AL, Tramontin DF, Lemos RS, Vasconcelos ME, et al. O que veio primeiro: o ovo ou o treinamento microcirúrgico? Um modelo oftalmológico para desenvolver habilidades básicas em microcirurgia. Rev Bras Oftalmol. 2022;81:e0040.,1010. Speaks L, Helmer SD, Quinn KR, Lancaster J, Blythe M, Vincent KB. Chief resident indirect supervision in training safety study: is a chief resident general surgery service safe for patients? J Surg Educ. 2021;78(6):145-53.,1111. Lucas L, Schellini SA, Lottelli AC. Complications in the first 10 phacoemulsification cataract surgeries with and without prior simulator training. Arq Bras Oftalmol. 2019;82(4):289-94.)

Ainda nesse contexto, notou-se que, além da melhora do aspecto final na sutura, ao comparar as primeiras com as últimas suturas, os pontos foram avaliados pela escala de classificação de desempenho, com melhora principalmente na diminuição dos danos teciduais. De forma numérica, houve aumento médio de 11,6 pontos na escala de avaliação de desempenho, considerando a primeira e a última sessão. Semelhantes dados que demonstram a evolução dos cirurgiões que utilizam simuladores para treinar já foi exposta por outros autores.(66. Santos D, Teixeira R, Pimentel A, Corrêa WJ, Araújo NP, Calvo FC, et al. O oftalmologista e as uvas: Um modelo de treinamento microcirúrgico. Rev Bras Oftalmol. 2020;79(6):366-9.,99. Bisol T, Bisol R, Rezende F. Eficácia do treinamento com simulador cirúrgico Eyesi em melhorar a capsulorrexe em cápsulas de alta tensão. Rev Bras Oftalmol. 76(2):106-7.

10. Speaks L, Helmer SD, Quinn KR, Lancaster J, Blythe M, Vincent KB. Chief resident indirect supervision in training safety study: is a chief resident general surgery service safe for patients? J Surg Educ. 2021;78(6):145-53.
-1111. Lucas L, Schellini SA, Lottelli AC. Complications in the first 10 phacoemulsification cataract surgeries with and without prior simulator training. Arq Bras Oftalmol. 2019;82(4):289-94.)

Em adição, após a última sessão de treinamento, os residentes avaliaram o modelo utilizando uma escala do tipo Likert. Foi relatado que o tecido ocular bovino permitiu o desenvolvimento de habilidades microcirúrgicas para a confecção de microssuturas de esclera, concedendo maior confiança ao cirurgião durante a realização de procedimentos em pacientes humanos. Todavia, também foi descrita indiferença no contexto se o modelo causava uma sensação desagradável durante o procedimento. Assim, o modelo de treinamento obteve boa recepção, com relevante satisfação, uma vez que sua utilização constante capacita o oftalmologista para operar de forma incisiva e excelente o nobre órgão que concede o sentido da visão.(44. Landis ZC, Fileta J, Scott IU, Kunselman A, Sassani JW. Impact of surgical simulator training on patients’ perceptions of resident involvement in cataract surgery. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2015; 56(7):130.,2020. Martins Filho EF. Métodos alternativos no ensino da técnica veterinária (tese). Jaboticabal: Faculdade de Ciências Agrárias e Vetereinárias; 2015.,2121. Evgeniou E, Walker H, Gujral S. The role of simulation in microsurgical training. J Surg Educ. 2018;75(1):171-81.)

Quanto às limitações do estudo, tem-se que armazenar os olhos em freezer por mais de 2 meses pode causar a danificação tecidual, fato que interfere na qualidade do treinamento. Além disso, o elevado número de descongelamentos e recongelamentos desencadeia odores desagradáveis ao manipulador do modelo e também afeta negativamente na textura do tecido.

CONCLUSÃO

O modelo de treinamento microcirúrgico apresentado possui alta viabilidade para a simulação de cirurgias oftalmológicas e textura semelhante à do olho humano real, o que o torna próximo da realidade. Quanto aos custos, o modelo não possui, visto que reaproveita partes desprezadas do consumo humano, podendo ser utilizado por residentes de oftalmologia para simulação cirúrgica.

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  • Fonte de auxílio à pesquisa: não financiado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    24 Jun 2023
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