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Apresentação simultânea de glaucoma juvenil e retinosquise juvenil: relato de caso

Simultaneous presentation of juvenile glaucoma and juvenile retinoschisis: case report

RESUMO

O glaucoma e a retinosquise juvenis são doenças raras isoladamente. Ocorrem bilateralmente com início precoce, resultando em grave perda visual. O glaucoma juvenil é descrito principalmente no sexo masculino, com pressão intraocular elevada, e a retinosquise juvenil é caracterizada por formação de cistos retinianos. Este caso relata um paciente do sexo masculino de 16 anos com perda visual progressiva que apresentou a associação de ambas as patologias, tratando-se este de um acometimento incomum e grave. Após diagnóstico e tratamento medicamentoso adequado, evoluiu com melhora do quadro, não necessitando de intervenção cirúrgica.

Descritores:
Retinosquise; Glaucoma de ângulo aberto; Acuidade visual

ABSTRACT

Juvenile glaucoma and retinoschisis are rare diseases alone. They occur bilaterally with early onset, resulting in severe visual loss. Juvenile glaucoma is mainly described in males, with high intraocular pressure, and juvenile retinoschisis is characterized by the formation of retinal cysts. This case reports a 16-year-old male patient with progressive visual loss that presents an association of both pathologies, which is an uncommon and severe involvement. After adequate diagnosis and drug treatment, the condition improved and did not require surgical intervention.

Keywords:
Retinoschisis; Glaucoma; open-angle; Visual acuity

INTRODUÇÃO

O glaucoma juvenil é uma doença rara, com início precoce dos 4 aos 35 anos.(11 Serra-Castanera A. Glaucoma pediátrico: sospecha, confirmación diagnóstica y tratamiento. Acta Estrabológica. 2019;48(2):99-116.) Seu início é assintomático, sendo a idade média ao diagnóstico na terceira década.(22 Selvan H, Gupta S, Wiggs JL, Gupta V. Juvenile-onset open-angle glaucoma - A clinical and genetic update. Surv Ophthalmol. 2022;67(4):1099-117,33 Khalil AK. Outcomes of adjusted trabeculotomy in cases with juvenile glaucoma. Graefes Arch Clin Exp Ophthalmol. 2021;259(3):697-704.) É predominante no sexo masculino e frequentemente relacionada à miopia.(22 Selvan H, Gupta S, Wiggs JL, Gupta V. Juvenile-onset open-angle glaucoma - A clinical and genetic update. Surv Ophthalmol. 2022;67(4):1099-117) Essa é uma patologia de herança autossômica dominante, com mutação dos genes TIGR e MYOC, que influenciam na drenagem do humor aquoso através da malha trabecular, ocasionando grandes elevações da pressão intraocular (PIO).(11 Serra-Castanera A. Glaucoma pediátrico: sospecha, confirmación diagnóstica y tratamiento. Acta Estrabológica. 2019;48(2):99-116.,44 Su CC, Liu YF, Li SY, Yang JJ, Yen YC. Mutations in the CYP1B1 gene may contribute to juvenile-onset open-angle glaucoma. Eye (Lond). 2012;26(10):1369-77.) Apresenta curso progressivo, sendo muitas vezes refratária ao tratamento medicamentoso e necessitando de cirurgias de glaucoma.(33 Khalil AK. Outcomes of adjusted trabeculotomy in cases with juvenile glaucoma. Graefes Arch Clin Exp Ophthalmol. 2021;259(3):697-704.)

A retinosquise juvenil é uma degeneração vitreorretiniana recessiva ligada ao X, geralmente caracterizada por maculopatia bilateral e retinosquise periférica, sendo responsável por aproximadamente 5% de todas as distrofias retinianas hereditárias com início na infância.(55 Grigg JR, Hooper CY, Fraser CL, Cornish EE, McCluskey PJ, Jamieson RV. Outcome measures in juvenile X-linked retinoschisis: A systematic review. Eye (Lond). 2020;34(10):1760-69.,66 Barbisan PR, Barbisan PA. Late ophthalmology findings in a X-linked juvenile retinoschisis patient. Rev Bras Oftalmol. 2021;80(1):59-62.) Acomete principalmente homens jovens, apresentando-se bilateralidade em 40% dos casos e resultando em perda visual progressiva com a idade.(55 Grigg JR, Hooper CY, Fraser CL, Cornish EE, McCluskey PJ, Jamieson RV. Outcome measures in juvenile X-linked retinoschisis: A systematic review. Eye (Lond). 2020;34(10):1760-69.,66 Barbisan PR, Barbisan PA. Late ophthalmology findings in a X-linked juvenile retinoschisis patient. Rev Bras Oftalmol. 2021;80(1):59-62.) É causada por mutações no gene RS1, que codifica a proteína retinosquisina, a qual permite a adesão e a interação entre as células e as camadas retinianas. Assim, defeitos ou sua ausência repercutem no desenvolvimento de microcistos intrarretinianos, e sua coalescência acarreta na retinosquise, demonstrada na tomografia de coerência óptica (OCT), além da desorganização das camadas retinianas.(66 Barbisan PR, Barbisan PA. Late ophthalmology findings in a X-linked juvenile retinoschisis patient. Rev Bras Oftalmol. 2021;80(1):59-62.,77 Silveira CG, Soares GH, Provenzano J. Retinosquise juvenil ligada ao X. Rev Bras Oftalmol. 2015;74(4):241-3.) A principal terapêutica é por meio dos inibidores da anidrase carbônica, que reduzem as alterações císticas retinianas.(55 Grigg JR, Hooper CY, Fraser CL, Cornish EE, McCluskey PJ, Jamieson RV. Outcome measures in juvenile X-linked retinoschisis: A systematic review. Eye (Lond). 2020;34(10):1760-69.) O descolamento de retina e a hemorragia vítrea são as principais complicações dessa doença.(77 Silveira CG, Soares GH, Provenzano J. Retinosquise juvenil ligada ao X. Rev Bras Oftalmol. 2015;74(4):241-3.)

O presente relato de caso demonstra a associação simultânea entre ambas as patologias em um menino de 16 anos, sendo uma apresentação rara e grave. Exibe diminuição da acuidade visual, PIO elevada, escavação total do nervo óptico (NO) e cistos subretinianos, característicos dessas doenças. Dessa forma, torna-se necessário um exame oftalmológico completo, para rápido diagnóstico e tratamento, visando a um melhor prognóstico visual, visto que são doenças com grande limitação da visão se manejadas tardiamente.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, com 16 anos, queixa de baixa acuidade visual progressiva nos dois olhos há 5 meses, pior em olho direito (OD). Buscava uma segunda opinião por não apresentar diagnóstico até aquele momento. Negava antecedentes familiares.

Ao exame oftalmológico, apresenta acuidade visual com correção (AVcc) de 20/150p em OD e 20/30p em olho esquerdo (OE), PIO pelo tonômetro de aplanação de Goldmann de 36mmHg em ambos os olhos (AO), biomicroscopia sem alteração e fundoscopia com NO exibindo escavação total AO (Figura 1A e 1B). Trouxe OCT de NO, que demonstrava redução generalizada na camada de fibras nervosas peripapilar AO, e OCT de mácula, com presença de múltiplos cistos subretinianos AO (Figura 2A e 2B). Dessa forma, foi prescrita bimatoprosta 0,03% associada a maleato de timolol 0,5% em AO e solicitado exames.

Figura 1
(A) Retinografia evidenciando escavação total em OD; (B) retinografia apresentando escavação total em OE.
Figura 2
(A e B) OCT macular do OD e OE, respectivamente, com múltiplos cistos subretinianos.

O paciente retornou em 7 dias com PIO de 16mmHg AO, gonioscopia com inserção alta de íris 360º AO e campo visual 10:2 com escotoma absoluto em OD e escotoma tubular em OE (Figura 3A e 3B). Foram introduzidos nepafenaco e cloridrato de dorzolamida 2%, sendo solicitada avaliação cirúgica em hospital de referência.

Figura 3
(A) Campo visual 10:2 do OD apresentando escotoma absoluto; (B) campo visual 10:2 do OE demonstrando escotoma tubular.

Após 1 mês, exibia AVcc de 20/100p em OD e 20/25 em OE, PIO de 10mmHg AO e OCT macular evidenciando diminuição dos cistos (Figura 4A e 4B). Assim, foram mantidos os colírios e o acompanhamento clínico periódico, sem indicação cirúrgica naquele momento.

Figura 4
(A e B) OCT macular do OD e OE, respectivamente, com redução dos cistos após 1 mês.

DISCUSSÃO

A averiguação da causa de baixa acuidade visual em jovens do sexo masculino, como apresentado neste relato, é de extrema importância. O paciente deste caso apresenta duas patologias raras, ainda mais quando associadas, sendo elas a retinosquise juvenil e o glaucoma juvenil. Ambas estão relacionadas à perda visual, principalmente quando o diagnóstico é tardio e negligenciado.

O glaucoma juvenil é decorrente da formação anômala da malha trabecular, sendo inadequada a drenagem do humor aquoso, acarretando em aumento da PIO.(88 Gupta V, Gupta S, Dhawan M, Sharma A, Kapoor KS, Sihota R. Extent of asymmetry and unilaterality among juvenile onset primary open angle glaucoma patients. Clin Exp Ophthalmol. 2011;39(7):633-8.,99 Kwun Y, Lee EJ, Han JC, Kee C. Clinical Characteristics of Juvenile-onset Open Angle Glaucoma. Korean J Ophthalmol. 2016;30(2):127-33.) Alterações típicas do seio camerular não são comuns, e sua fisiopatologia permanence incerta; todavia estudos atuais revelam que a PIO elevada nesses indivíduos está relacionada à goniodisgenesia, resultando na deficiência da formação da câmara anterior, na malha trabecular imatura e em feixes trabeculares encorpados.(99 Kwun Y, Lee EJ, Han JC, Kee C. Clinical Characteristics of Juvenile-onset Open Angle Glaucoma. Korean J Ophthalmol. 2016;30(2):127-33.) No caso descrito, o paciente demonstrou inserção alta de íris 360º, corroborando o diagnóstico de glaucoma juvenil.

A retinosquise juvenil é descrita por acometimento macular bilateral simétrico, mais frequente na primeira década de vida. Os pacientes afetados geralmente têm visão entre 20/60 e 20/120, com piora durante a primeira e a segunda décadas de vida. Esses aspectos se assemelham ao perfil do caso relatado. A OCT é o principal procedimento relacionado ao diagnóstico dessa patologia atualmente, com a identificação de esquise foveal intrarretiniana e cistos.(1010 Sieving PA, MacDonald IM, Hoang S. X-Linked Congenital Retinoschisis. 2003 Oct 24 [updated 2020 Nov 5]. In: Adam MP, Everman DB, Mirzaa GM, Pagon RA, Wallace SE, Bean LJH, Gripp KW, Amemiya A, editors. GeneReviews®. Seattle (WA): University of Washington, Seattle; 1993-2022.,1111 Lee EJ, Kee HJ, Han JC, Kee C. The Progression of Peripapillary Retinoschisis May Indicate the Progression of Glaucoma. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2021;62(2):16.)

Estudos recentes mostram a correlação temporal entre retinosquise e glaucoma primário de ângulo aberto, sendo incluído o glaucoma juvenil. Neles, a retisnosquise é observada com maior frequência em pacientes com diagnóstico ou suspeita de glaucoma (1,0% a 6,0%) do que em indivíduos saudáveis (0,5%). Além disso, está fortemente relacionado à progressão do glaucoma, embora o mecanismo da relação não foi elucidado devido à sua raridade.(1111 Lee EJ, Kee HJ, Han JC, Kee C. The Progression of Peripapillary Retinoschisis May Indicate the Progression of Glaucoma. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2021;62(2):16.,1212 Bayraktar S, Cebeci Z, Kabaalioglu M, Ciloglu S, Kir N, Izgi B. Peripapillary Retinoschisis in Glaucoma Patients. J Ophthalmol. 2016;2016:1612720.)

Caso ocorrido no estado do Arizona, em 2013, confirmou a melhora do edema cístico ao ser introduzido o cloridrato de dorzolamida, pertence à classe dos inibidores da anidrase carbônica, tal qual o paciente deste relato.(1313 Ali S, Seth R. X-linked juvenile retinoschisis in females and response to carbonic anhydrase inhibitors: case report and review of the literature. Semin Ophthalmol. 2013;28(1):50-4.) Outro estudo retrospectivo demontrou que, de 15 pacientes, dez apresentaram resposta favorável ao uso do cloridrato de dorzolamida 2%.(1414 Genead MA, Fishman GA. Efficacy of sustained topical dorzolamide therapy for cystic macular lesions in patients with retinitis pigmentosa and usher syndrome. Arch Ophthalmol. 2010;128(9):1146-50.)

Com o diagnóstico associado de glaucoma e retinosquise juvenis no relato, após o tratamento clínico, o paciente apresentou recuperação considerável da visão. Não houve necessidade de trabeculotomia até o momento, devido ao rigoroso controle pressórico. Observa-se também que, com o uso de anti-inflamatório e cloridrato de dorzolamida 2% tópica, o paciente evoluiu com redução dos cistos na OCT, demonstrando excelente evolução e controle clínico com melhora da qualidade vida. O paciente permanece em acompanhamento cuidadoso e frequente, com a realização de exames de campimetria, OCT macular, da camada de fibras nervosas e de células ganglionares, além do controle pressórico. Por serem doenças raras, principalmente quando associadas, tornam-se necessários mais estudos para investigação diagnóstica e elucidação dos mecanismos fisiopatológicos e possíveis tratamentos, visto que essas patologias podem acarretar cegueira irreversível.

  • Instituição de realização do trabalho: Hospital Oftalmológico Visão Laser, Santos, SP, Brasil.
  • Fonte de auxílio à pesquisa: não financiado.

REFERÊNCIAS

  • 1
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  • 2
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  • 3
    Khalil AK. Outcomes of adjusted trabeculotomy in cases with juvenile glaucoma. Graefes Arch Clin Exp Ophthalmol. 2021;259(3):697-704.
  • 4
    Su CC, Liu YF, Li SY, Yang JJ, Yen YC. Mutations in the CYP1B1 gene may contribute to juvenile-onset open-angle glaucoma. Eye (Lond). 2012;26(10):1369-77.
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    Grigg JR, Hooper CY, Fraser CL, Cornish EE, McCluskey PJ, Jamieson RV. Outcome measures in juvenile X-linked retinoschisis: A systematic review. Eye (Lond). 2020;34(10):1760-69.
  • 6
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  • 7
    Silveira CG, Soares GH, Provenzano J. Retinosquise juvenil ligada ao X. Rev Bras Oftalmol. 2015;74(4):241-3.
  • 8
    Gupta V, Gupta S, Dhawan M, Sharma A, Kapoor KS, Sihota R. Extent of asymmetry and unilaterality among juvenile onset primary open angle glaucoma patients. Clin Exp Ophthalmol. 2011;39(7):633-8.
  • 9
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  • 10
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2022
  • Aceito
    02 Out 2022
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