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Principais achados em um paciente com diagnóstico de Amaurose Congênita de Leber

Main findings in a patient diagnosed with Leber’s Congenital Amaurosis

RESUMO

A amaurose congênita de Leber, também conhecida como neuropatia óptica hereditária de Leber, é caracterizada por uma das formas mais graves de distrofia da retina com início na infância. Os achados clássicos são deficiência visual grave e precoce, nistagmo e eletrorretinograma (ERG) anormal ou não detectável. O objetivo deste estudo é relatar um caso de um paciente com amaurose congênita de Leber com comprometimento visual desde os 6 meses de vida e acentuado declínio visual a partir dos 15 anos de idade. A realização de exames específicos para confirmar o diagnóstico é importante para o manejo e o seguimento adequado do paciente e para proporcionar melhor qualidade de vida para o mesmo.

Descritores:
Amaurose congênita de Leber; Distrofias retinianas; Atrofia óptica; Oftalmopatias hereditárias

ABSTRACT

Leber Congenital Amaurosis, also known as Leber hereditary optic neuropathy, is characterized by one of the most severe forms of childhood-onset retinal dystrophy. Classic findings are severe and early visual impairment, nystagmus, and abnormal or undetectable electroretinogram. The aim of this study is to report a case of a patient with Leber Congenital Amaurosis with visual impairment since the first six months of age and marked visual decline from fifteen years of age. Performing specific tests to confirm the diagnosis is important for the proper management and follow-up of the patient and to provide them with a better quality of life.

Keywords:
Leber congenital amaurosis; Retinal dystrophies; Optic atrophy; Eye diseases, hereditary

INTRODUÇÃO

A amaurose congênita de Leber (ACL), também conhecida como síndrome de Leber ou neuropatia óptica hereditária de Leber, é caracterizada por uma das formas mais graves de distrofia da retina com início na infância.(11 Li L, Xiao X, Li S, Jiao X, Hejtmancik JF, Zhang Q. Lack of phenotypic effect of triallelic variation in SPATA7 in a family with Leber congenital amaurosis resulting from CRB1 Mutations. Mol Vis. 2011;17:3326-32.) As distrofias retinianas são um grupo de doenças hereditárias que se caracterizam por importante disfunção dos fotorreceptores e degeneração de células da retina.(22 Berger W, Kloeckener-Gruissem B, Neidhardt J. The molecular basis of human retinal and vitreoretinal diseases. Prog Retin Eye Res. 2010;29(5):335-75.) A ACL representa cerca de 5% de todas as distrofias retinianas e está presente em cerca de 20% das crianças que apresentam dificuldade visual em escolas especiais. As outras distrofias retinianas que se manifestam na infância são mais raras e, muitas vezes, de difícil diagnóstico.(33 Kumaran N, Moore A, Weleber RG, Michaelides M. Leber congenital amaurosis/early-onset severe retinal dystrophy: clinical features, molecular genetics and therapeutic interventions. J Ophthalmol. 2017;101(9):1147-54.)

A ACL é uma doença genética herdada de forma autossômica recessiva na maioria dos casos e apresenta heterogeneidade genética. A incidência entre a população geral é estimada em apenas três por 100 mil nascimentos,(44 Hosono K, Nishina S, Yokoi T, Katagiri S, Saitsu H, Kurata K, et al. Molecular Diagnosis of 34 Japanese Families with Leber Congenital Amaurosis Using Targeted Next Generation Sequencing. SCI Rep. 2018;8(1):8279.) com frequência aproximada de um em 50 mil na Europa e América do Norte.(55 Leroy BP, Birch DG, Duncan JI, Lam BI, Koenekoop RK, Porto FB, et al. Leber Congenital Amaurosis due to cep290 mutations—severe vision impairment with a high unmet medical need. retina, the journal of retinal and vitreous diseases. Retina. 2021;41(5):898-907.)

As primeiras alterações podem ser observadas nos primeiros meses de vida com deficiência no reflexo pupilar e nistagmo. Durante o curso da doença, é observada uma evolução para deficiência visual grave; também podem ser encontradas lesões do epitélio pigmentado, estreitamento dos vasos sanguíneos e atrofia do nervo óptico.(66 Traboulsi EI. The Marshall M. Parks memorial lecture: making sense of early-onset childhood retinal dystrophies--the clinical phenotype of Leber congenital amaurosis. Br J Ophthalmol. 2010;94(10):1281-7.,77 Chacon-Camacho OF, Zenteno JC. Review and update on the molecular basis of Leber congenital amaurosis. World J Clin Cases. 2015;3(2):112-24.)

Após suspeita clínica, o diagnóstico pode ser confirmado por exames oftalmológicos, como a eletrorretinografia de campo total, com resultado anormal ou não detectável.(88 Jacobson SG, Cideciyan AV, Peshenko IV, Sumaroka A, Olshevskaya EV, Cao L, et al. Determining consequences of retinal membrane guanylyl cyclase (RetGC1) deficiency in human Leber congenital amaurosis en route to therapy: residual cone-photoreceptor vision correlates with biochemical properties of the mutants. Hum Mol Genet. 2013;22(1):168-83.)

A principal forma de tratamento é o suporte, que inclui a correção do erro de refração e o uso de auxiliares de baixa visão. Como a ACL não tem cura e é caracterizada pela perda progressiva da visão, a avaliação oftálmica periódica e da presença de ambliopia, glaucoma ou catarata deve ser assegurada.(33 Kumaran N, Moore A, Weleber RG, Michaelides M. Leber congenital amaurosis/early-onset severe retinal dystrophy: clinical features, molecular genetics and therapeutic interventions. J Ophthalmol. 2017;101(9):1147-54.,55 Leroy BP, Birch DG, Duncan JI, Lam BI, Koenekoop RK, Porto FB, et al. Leber Congenital Amaurosis due to cep290 mutations—severe vision impairment with a high unmet medical need. retina, the journal of retinal and vitreous diseases. Retina. 2021;41(5):898-907.,99 Chung DC, Traboulsi EI. Leber congenital amaurosis: clinical correlations with genotypes, gene therapy trials update, and future directions. JAAPOS. 2009;13(6):587-92.)

A ACL é uma doença pouco conhecida por profissionais da saúde e da educação. A divulgação de novos casos gera subsídios para comunidade científica e da saúde, auxiliando no conhecimento sobre a patologia, no diagnóstico precoce e para realizar o manejo adequado do paciente. Nesse contexto, o objetivo do estudo é relatar o caso de um paciente com ACL.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, 28 anos de idade, apresentou os primeiros sinais de comprometimento visual aos 6 meses de vida, após os pais observarem um olhar fixo para pontos luminosos e baixa interação em locais de pouca luminosidade. Apresentou acentuado declínio visual a partir dos 15 anos de idade, com cegueira noturna, baixo nível de detalhamento visual, fotofobia e nistagmo. O diagnóstico de ACL foi confirmado a partir dos exames oftalmológicos ERG e tomografia de coerência óptica (OCT) aos 18 anos de idade. A ERG evidenciou ausência de respostas registráveis no estímulo escotópico, fotópico e potencial oscilatório. Era considerável a redução nos estímulos fotópico 0 dB e fotópico flicker 30Hz (Figura 1).

Figura 1
Eletrorretinograma com ausência de registro de resposta, tanto nas fases escotópicas quanto fotópicas, em ambos os olhos.

O exame de OCT apresentou redução da espessura retiniana e apagamento das camadas externas, incluindo camada de fotorreceptores (Figura 2).

Figura 2
Tomografia de coerência óptica evidenciando redução na espessura da retina entre os anos de 2013 a 2019. A seta aponta redução das camadas externas, incluindo camada de fotorreceptores. (A) Tomografia de coerência óptica ano 2013; (B) 2014; (C) 2017 e (D) 2019.

Na análise molecular do gene LRAT (4q32.1), foram encontrados o genótipo C/C (c.346 T>C) e Phe116Leu em homozigose, sendo sugestiva de variante patogênica.

DISCUSSÃO

A ACL foi descrita por Theodore Leber in 1869, sendo considerada a forma mais grave das doenças hereditárias da retina.(55 Leroy BP, Birch DG, Duncan JI, Lam BI, Koenekoop RK, Porto FB, et al. Leber Congenital Amaurosis due to cep290 mutations—severe vision impairment with a high unmet medical need. retina, the journal of retinal and vitreous diseases. Retina. 2021;41(5):898-907.) Os achados clínicos característicos, observados já nos primeiros anos de vida, são nistagmo, reflexo pupilar à luz lento e incapacidade de seguir a luz ou objetos.(33 Kumaran N, Moore A, Weleber RG, Michaelides M. Leber congenital amaurosis/early-onset severe retinal dystrophy: clinical features, molecular genetics and therapeutic interventions. J Ophthalmol. 2017;101(9):1147-54.,1010 Feldhaus B, Weisschuh N, Nasser F, den Hollander AI, Cremers FP, Zrenner E, et al. CEP290 Mutation Spectrum and Delineation of the Associated Phenotype in a Large German Cohort: A Monocentric Study. Am J Ophthalmol. 2020;211:142-50.) Inicialmente, a retina pode se apresentar normal, mas, geralmente, a partir do segundo ano de vida, ocorre grave comprometimento das células fotossensíveis (cones e bastonetes), que pode ocorrer de forma estável ou com piora gradativa.(1111 Varela MD, Guimaraes TA, Georgiou M, Michaelides M. Leber congenital amaurosis/early-onset severe retinal dystrophy: current management and clinical trials. Br J Ophthalmol. 2022;106(4):445-51.) Os achados clássicos foram observados no presente relato, com acentuada perda visual a partir dos 15 anos de idade. Outros achados associados com o passar do tempo também podem ser encontrados como hipermetropia, ceratocone, catarata e glaucoma, não presentes no relato em questão.(55 Leroy BP, Birch DG, Duncan JI, Lam BI, Koenekoop RK, Porto FB, et al. Leber Congenital Amaurosis due to cep290 mutations—severe vision impairment with a high unmet medical need. retina, the journal of retinal and vitreous diseases. Retina. 2021;41(5):898-907.)

O diagnóstico correto e precoce é de grande importância para manejo adequado do paciente, planejamento familiar, possíveis opções de tratamento e auxiliar no prognóstico.(66 Traboulsi EI. The Marshall M. Parks memorial lecture: making sense of early-onset childhood retinal dystrophies--the clinical phenotype of Leber congenital amaurosis. Br J Ophthalmol. 2010;94(10):1281-7.) Na ACL, o diagnóstico é baseado na clínica do paciente; dessa forma, devem-se buscar sinais e sintomas característicos da doença. Exames como ERG e OCT auxiliam no diagnóstico. A ERG se apresenta com ausência ou diminuição das respostas elétricas, e a OCT permite observar as alterações nas camadas da retina. No relato apresentado, houve ausência do estímulo elétrico na fase escotópica e fotópica, evidenciando elevado comprometimento das células fotossensíveis e corroborando a baixa acuidade visual apresentada pelo paciente.

Para chegar ao diagnóstico definitivo, é necessário recorrer a testes genéticos para identificar o gene e a respectiva mutação. Atualmente, pouco mais de 20 genes já foram relacionados com a ACL.(44 Hosono K, Nishina S, Yokoi T, Katagiri S, Saitsu H, Kurata K, et al. Molecular Diagnosis of 34 Japanese Families with Leber Congenital Amaurosis Using Targeted Next Generation Sequencing. SCI Rep. 2018;8(1):8279.) Apesar de existir uma grande heterogeneidade fenotípica, parece haver correlação entre a apresentação clínica e os diferentes genótipos. Diferentes mutações localizadas em genes relacionados à função e à manutenção da retina contribuem para comprometimentos e fenótipos variados.(1010 Feldhaus B, Weisschuh N, Nasser F, den Hollander AI, Cremers FP, Zrenner E, et al. CEP290 Mutation Spectrum and Delineation of the Associated Phenotype in a Large German Cohort: A Monocentric Study. Am J Ophthalmol. 2020;211:142-50.) No presente relato, o gene investigado foi o LRAT (lecithin retinol acyl-transferase), que expressa a enzima que converte a vitamina A (all-trans-retinol) em ésteres de retinil, retirando o retinol da circulação para locais de armazenamento, como o epitélio pigmentar da retina. Mutações em LRAT resultam num défice de 11-cis-retinal e reduzem os níveis de pigmento visual funcional. Isso leva à perda de fotorreceptores, com degeneração dos cones a ocorrer rapidamente e a degeneração dos bastonetes mais lentamente. Mutações no gene LRAT são encontradas em aproximadamente 1 a 2% dos casos de ACL.(44 Hosono K, Nishina S, Yokoi T, Katagiri S, Saitsu H, Kurata K, et al. Molecular Diagnosis of 34 Japanese Families with Leber Congenital Amaurosis Using Targeted Next Generation Sequencing. SCI Rep. 2018;8(1):8279.,1212 Huang CH, Yang CM, Yang CH, Hou YC, Chen TC. Leber’s Congenital Amaurosis: Current Concepts of Genotype-Phenotype Correlations. Genes (Basel). 2021;12(8):1261.) Hosono et al. identificaram a mutação em LRAT em uma família, no total de 34 famílias investigadas. No presente relato, a mutação encontrada no gene LRAT ainda não foi descrita em outros trabalhos, destacando a importância de estudos moleculares para conhecer novas mutações e também correlacionar com a clínica da ACL.

O tratamento da ACL é, na maioria dos casos, paliativo, como uso de óculos para erros de refração e alívio de cefaleia, terapia farmacológica e reposição gênica. Nos últimos anos, pesquisas de terapia gênica para tratamento da ACL vêm crescendo e, no ano de 2017, foi aprovado o Voretigene Nepavoreque (VN) (Luxturna®, Novartis) pela Food and Drug Administration (FDA), a primeira terapia gênica para tratar a ACL; em 2020, o Luxturna® foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para uso no Brasil. A terapia é utilizada em pacientes com mutação bialélica (homozigoto) para o gene RPE65 e tem demonstrado efeitos positivos na visão dos pacientes.(1313 Maguire AM, Bennett J, Aleman EM, Leroy BP, Aleman TS. Clinical Perspective: Treating RPE65-Associated Retinal Dystrophy. Mol Ther. 2021;29(2):442-63.)

Outros estudos buscam usar a terapia gênica futuramente para outros genes relacionados à ACL e proporcionar melhora visual e na qualidade de vida dos pacientes.

  • Instituição de realização do trabalho: Centro Universitário Una, Itabira, MG, Brasil.
  • Fonte de auxílio à pesquisa: trabalho não financiado.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Li L, Xiao X, Li S, Jiao X, Hejtmancik JF, Zhang Q. Lack of phenotypic effect of triallelic variation in SPATA7 in a family with Leber congenital amaurosis resulting from CRB1 Mutations. Mol Vis. 2011;17:3326-32.
  • 2
    Berger W, Kloeckener-Gruissem B, Neidhardt J. The molecular basis of human retinal and vitreoretinal diseases. Prog Retin Eye Res. 2010;29(5):335-75.
  • 3
    Kumaran N, Moore A, Weleber RG, Michaelides M. Leber congenital amaurosis/early-onset severe retinal dystrophy: clinical features, molecular genetics and therapeutic interventions. J Ophthalmol. 2017;101(9):1147-54.
  • 4
    Hosono K, Nishina S, Yokoi T, Katagiri S, Saitsu H, Kurata K, et al. Molecular Diagnosis of 34 Japanese Families with Leber Congenital Amaurosis Using Targeted Next Generation Sequencing. SCI Rep. 2018;8(1):8279.
  • 5
    Leroy BP, Birch DG, Duncan JI, Lam BI, Koenekoop RK, Porto FB, et al. Leber Congenital Amaurosis due to cep290 mutations—severe vision impairment with a high unmet medical need. retina, the journal of retinal and vitreous diseases. Retina. 2021;41(5):898-907.
  • 6
    Traboulsi EI. The Marshall M. Parks memorial lecture: making sense of early-onset childhood retinal dystrophies--the clinical phenotype of Leber congenital amaurosis. Br J Ophthalmol. 2010;94(10):1281-7.
  • 7
    Chacon-Camacho OF, Zenteno JC. Review and update on the molecular basis of Leber congenital amaurosis. World J Clin Cases. 2015;3(2):112-24.
  • 8
    Jacobson SG, Cideciyan AV, Peshenko IV, Sumaroka A, Olshevskaya EV, Cao L, et al. Determining consequences of retinal membrane guanylyl cyclase (RetGC1) deficiency in human Leber congenital amaurosis en route to therapy: residual cone-photoreceptor vision correlates with biochemical properties of the mutants. Hum Mol Genet. 2013;22(1):168-83.
  • 9
    Chung DC, Traboulsi EI. Leber congenital amaurosis: clinical correlations with genotypes, gene therapy trials update, and future directions. JAAPOS. 2009;13(6):587-92.
  • 10
    Feldhaus B, Weisschuh N, Nasser F, den Hollander AI, Cremers FP, Zrenner E, et al. CEP290 Mutation Spectrum and Delineation of the Associated Phenotype in a Large German Cohort: A Monocentric Study. Am J Ophthalmol. 2020;211:142-50.
  • 11
    Varela MD, Guimaraes TA, Georgiou M, Michaelides M. Leber congenital amaurosis/early-onset severe retinal dystrophy: current management and clinical trials. Br J Ophthalmol. 2022;106(4):445-51.
  • 12
    Huang CH, Yang CM, Yang CH, Hou YC, Chen TC. Leber’s Congenital Amaurosis: Current Concepts of Genotype-Phenotype Correlations. Genes (Basel). 2021;12(8):1261.
  • 13
    Maguire AM, Bennett J, Aleman EM, Leroy BP, Aleman TS. Clinical Perspective: Treating RPE65-Associated Retinal Dystrophy. Mol Ther. 2021;29(2):442-63.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2022
  • Aceito
    21 Out 2022
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