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Quo Vadis?

Quo Vadis?

No momento em que escrevo este editorial, estamos impactados por tudo o que ocorre no mundo, especialmente na Ucrânia, em Israel e no Brasil, onde uma guerra urbana ocorre em vários locais quase diariamente.

Poderia comentar os artigos publicados nesta edição da Revista Brasileira de Oftalmologia ou abordar avanços na oftalmologia, ou algum tópico referente ao que vi ou fiz nestes últimos 50 anos em que presenciei tantos fatos acontecendo na medicina.

Porém, minha atenção está voltada não exclusivamente ao que acontece agora em Israel, mas para os problemas que afligem toda a humanidade.

Recentemente, um amigo comentou comigo: o ser humano está seriamente doente. Fisica e mentalmente!

E eu concordo plenamente! Vemos problemas de toda a sorte afetando milhões dos atuais 7,5 bilhões de terráqueos. Fome, sede, doenças e endemias em imensos bolsões de pobreza em vários continentes, tremendas diferenças sociais, onde poucos tudo tem e muitos nada acumulam ao longo de toda uma vida! Desigualdades na educação, na saúde, nas aposentadorias.

Basta citar esses aspectos para já se dar conta da imensidão de desatinos que afetam nosso planeta. E nem precisamos ir buscar cifras para relatar os desacertos que ocorrem em vários países da América Latina, na África, na Índia, só para lembrar os mais visíveis.

O mundo avançou muito em recursos tecnológicos nestes últimos 50 anos, permitindo desfrutarmos de invejáveis recursos impensáveis na década de 1950.

Só na medicina, exames de imagens tornaram-se muito mais exatos na demonstração visual de diversas patologias, incluindo a ressonância magnética e a tomografia digital. Cada vez mais procedimentos minimamente invasivos se espalham por diversas especialidades graças a videocirurgias e à robótica.

Tratamentos com stents substituíram as grandes cirurgias de revascularização e, em oftalmologia, seguem avançando para o tratamento de certos glaucomas. Retina, antes um território intocável, hoje é manipulada com grande desenvoltura. Na área da catarata, a revolução foi inacreditável!

Tumores são detectados precocemente e monitorizados graças a marcadores moleculares e tratados com novas potentes drogas, mudando totalmente a evolução de uma série deles.

Hoje, já adentramos na telemedicina, com suas virtudes e defeitos, e na inteligência artificial. Aqui ainda estamos em sua infância, mas já dá para percebermos o que a inteligência artificial poderá trazer de benefícios no acompanhamento de uma série de doenças.

Mas, e daí? Como sanar a terrível insanidade do ser humano? Como tratar os males físicos, mentais e da alma do imenso contingente de humanos, atualmente abandonados à própria sorte?

No excelente livro Sapiens: uma breve história da humanidade ( 11. Harari YN. Sapiens: uma breve história da humanidade [ Tradução de Janaína Marcoantonio ]. São Paulo: L & PM Editores; 2015. ) , seu autor, o israelense Yuval Noah Harari, Doutor em História pela Universidade de Oxford nos leva a conhecer toda a evolução do Homo sapiens desde 2,5 milhões de anos atrás. Sabemos das consequências da descoberta do fogo há 300 mil anos e de sua evolução e aprendemos como uma série de recursos foi sendo desenvolvida para agrupar milhares de indivíduos em torno de um líder ou chefe para controle deles.

No mundo animal, poucas espécies conseguem se agrupar, mesmo em pequeno número, e aceitar um líder. O homem percebeu que, para reunir grupos numerosos, uma série de sofismas teria que ser inventada. Dessa maneira, surge o conceito de nacionalidade, país, bandeira, hino, religião e até de Sociedade Anônima. Na visão de Harari, judaísmo, cristianismo e islamismo nada mais são do que criações humanas! Dá para imaginar que, por uma série de razões, grupos se dividiam e se subdividiam, criando conflitos que terminavam em uns querendo se sobrepujar a outros.

Escrevendo a história, as guerras se sucediam nessa busca incessante de controle territorial pelos vencedores. A estes eram acrescidas novas riquezas, ao se tornarem detentores de novas propriedades.

Na visão do escritor e jornalista uruguaio, Eduardo Galeano (1940-2015), as guerras têm, na verdade, um único pretexto: roubar. As guerras sempre invocam motivos nobres, matam em nome da paz, em nome de Deus, da civilização, do progresso, da democracia. Desde 1914, para ficarmos mais próximos dessas guerras, o mundo se envolveu em diversas atrocidades, dentre as quais três de caráter mundial: a Primeira Grande Guerra, de 1914 a 1919, à qual sobreveio a um período de progresso e otimismo por parte dos impérios que ocupavam o centro de poder na Europa; a Segunda Grande Guerra, de 1940 a 1945, que, na visão de muitos historiadores, foi quase uma continuação da primeira, principalmente em função do Acordo de Versalhes, que nunca foi bem aceito pela Alemanha; e a terceira, conhecida como Guerra Fria, que foi iniciada em torno de 1950 e finalizada em 1980. Na verdade, também esta guerra nada mais era do que a prova da insatisfação de vencidos frente ao acordo firmado pelos países do Eixo (aqui já incluindo a Rússia) em 2 de setembro de 1945.

Vários territórios foram retalhados após a Segunda Grande Guerra sem que as novas áreas geográficas respeitassem origens, religiões e diferentes culturas de vários povos que ali viviam. E a beligerância continua atual.

A Euroasia já sofria as consequências de inúmeros embates em vários de seus territórios, além de elas se alastrarem por outros continentes sob as mais diversas justificativas dos países contendores, como a Revolução dos Bolcheviques; a Segunda Guerra Sino-Japonesa; a Guerra Civil Espanhola; a Guerra das Coreias, do Vietnã e a da Croácia; Conflitos Árabes-Israelenses culminando na Guerra do Yom Kippur (1973); Guerra Irã-Iraque; além das guerras de descolonização na África (Angola, Tunísia, Argélia). Isso sem contar as difíceis relações de Cuba com os Estados Unidos e a questão de golpes de estado na Venezuela, no Chile e no próprio Brasil.

Em fevereiro de 2022, eclodiu a invasão da Ucrânia pela toda poderosa Rússia e, em 7 de outubro de 2023, Israel foi atacado pelo grupo terrorista Hamas, detentor da administração palestina na Faixa de Gaza.

Não precisamos nos alongar sobre essa barbárie que ocorreu em Israel e esperamos que, de alguma forma, encontremos um ponto final ainda neste ano de 2023.

Com tudo isso acontecendo, surge um vídeo incrível nos mostrando imagens do cosmos e ilustrado por um texto maravilhoso de Carl Sagan, cientista e escritor norte-americano (1934-1996), baseado numa fotografia tirada da nave espacial Voyager quando já se encontrava próximo a Saturno e a milhões de quilômetros da nossa Terra. Um pixel ... um ponto pálido azul do nosso planeta. Nada se identificava na foto, exceto o tal ponto azul, nos mostrando que éramos um grão de areia perdido numa imensidão do infinito universo. E Sagan nos fala da falta de percepção do homem em desejar preservar seu único local para viver e sobreviver, perdido, impossibilitado de se transferir para qualquer outro acidente cósmico próximo ou longínquo. Condensa quase toda a história do Homo sapiens por meio de centenas de reis e imperadores que buscaram se perpetuar por razão nenhuma; que aqui, neste torrão de rocha e ferro, conviveram (e convivem!) bandidos e mocinhos; heróis e covardes; políticos corruptos e astros, numa sucessão de feitos e fatos que em nada mudou nossa história dentro da realidade em que se insere a humanidade: apenas uma película de ser vivo recobrindo um planeta solitário e muito distante de milhões de tantos outros.

Na verdade, ao fim deste editorial, o que desejo trazer a todos os nossos colegas é o quanto ainda temos que nos aprimorar enquanto seres humanos, desenvolvendo nossa capacidade de ver o outro com mais solidariedade, afeto e compreensão; menos egoísmo; sem ódios ou rancores; sem disputas funestas, e zelando por cada um de nós, mas também pelo próximo. A compaixão deve ser o norte no relacionamento entre os seres humanos.

As religiões podem ser fruto de uma criação humana, não divina, como acreditam Harari, Einstein, Spinoza, mas suas normas e mandamentos seguem sendo basilar nesse mundo tão convulsionado.

Devemos nos lembrar de que somos nada, e nossa existência, dentro da perspectiva da provável existência deste planeta há mais de 4,5 bilhões de anos, é de apenas um picossegundo de vida.

Aproveite bem o Ano Novo! Carpe Diem !

REFERÊNCIAS

  • 1
    Harari YN. Sapiens: uma breve história da humanidade [ Tradução de Janaína Marcoantonio ]. São Paulo: L & PM Editores; 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2023
  • Aceito
    22 Nov 2023
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