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Relações internacionais do Brasil em um mundo em transição

NOTA

Relações internacionais do Brasil em um mundo em transição* * Resenha de OLIVEIRA, Henrique Altemani & LESSA, Antônio Carlos (orgs.). Relações internacionais do Brasil: temas e agendas (vols. 1 e 2). São Paulo: Saraiva, 2006. ISBN: 85-02-06040-6 e 85-02-06042-2.

Rogério de Souza Farias

Mestrando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB (rofarias@gmail.com)

O filósofo da ciência Karl Popper utilizava a metáfora de nuvens e relógios para representar uma tipologia de sistemas. De um lado, estava o sistema solar, relógios de precisão e motores de carros; de outro, nuvens de gás, o clima e outros sistemas dinâmicos. Um dos desafios do autor era entender como o mundo social deveria ser representado cientificamente: seria uma realidade mecânica ou um sistema governado pela contingente? Para Popper, o mundo social mais se aproximaria de um sistema de controles plásticos, nos quais as idéias estão em constante e intensa interação com outras idéias e o mundo físico; uma interação moldada por seres que possuem objetivos, aspirações, memórias e uma grande capacidade de aprendizado1 1 (Almond e Genco: 1977). .

A realidade das relações internacionais do Brasil não é muito distinta da visão de Popper: trabalhamos com um mundo em constante transformação. É necessário esforço, persistência e acendradas mentes para desvelar os contornos e tendências desse campo de pesquisa. Foi esse o grande desafio a que se lançaram os organizadores e autores da circunspecta obra em dois volumes "Relações internacionais do Brasil: temas e agendas".

A primeira parte do primeiro volume, com contribuições de Amado Cervo, Sombra Saraiva e Guilhon de Albuquerque, todos decanos na pesquisa e ensino de Relações Internacionais no Brasil, volta-se exatamente para o entendimento das modificações sistêmicas que desafiam a inserção internacional do Brasil. Muito se fala de novos temas e agendas, mas como bem coloca Amado Cervo, as modificações sistêmicas não introduziram os novos temas e agendas; na verdade, elas só retiraram "da camisa de força que os prendia ao sistema bipolar leste-oeste. Tornou-os globais."2 2 (Cervo: 2006, 7). É uma nova moldura para um quadro já em composição.

Sombra Saraiva, com sua percuciente análise, complementa Amado Cervo, analisando os matizes das forças históricas na constituição das relações internacionais após o fim da Guerra Fria. O mundo de hoje, de acordo com Saraiva, é "a resultante dos choques de condensação de processos que se avolumaram no passado ante as novas condições que alimentam o inédito"3 3 (Saraiva: Ibid., 59). . Somente o exame histórico consegue dar inteligibilidade, clareza e balancear a complexo jogo de movimentos que constitui a morfogênese da complexa sociedade internacional.

Ancorado nesse arrife, assentam-se os próximos oito capítulos, divididos em duas partes – respectivamente, segunda e terceira do primeiro volume. Na segunda, está o exame das relações do Brasil com os Estados Unidos, Europa, Ásia, África e mundo árabe; na terceira, é examinada a relação do país com a América do Sul, o Mercosul e a Alca.

O primeiro destaque desses trabalhos é o capítulo de Altemani de Oliveira sobre o Brasil e o leste asiático. Atualmente, a dimensão estratégica que a região tem na sustentação do dinamismo econômico brasileiro demonstra claramente como as linhas orientais da inserção internacional brasileira serão centrais para o desenvolvimento do país no século XXI. Altemani observa como ocorreu a pluralização do olhar brasileiro para a região: se, na década de 70, restringia-se ao Japão, hoje abrange também a Coréia do Sul e a China. Elabora um breve mas importante histórico do relacionamento brasileiro com a região desde o século XIX, mas prioriza o importante e necessário exame da década de 90. Depreende-se do texto o que muitos já identificaram: há, na vertente asiática da inserção internacional do Brasil, espasmos de ativismo entremeados pela ociosidade.

O segundo destaque é o texto de Luiz Alberto Moniz Bandeira sobre o Brasil e a América do Sul. A primeira investida do autor é trazer uma avaliação histórica dos conceitos de América Latina e América do Sul. Desde o século XIX, fica claro como a região definia-se por contraposição, por contraste, pelas diferenças que tinha com o gigante do norte: os Estados Unidos da América. Para o Brasil, durante muito tempo, o sentido estratégico da América do Sul estava no Prata, principalmente pela necessidade de comunicação com a província de Mato Grosso; foi somente no século XX que as Repúblicas do Pacífico vieram a revelar-se importantes na política externa do país, saindo da rota estrita das questões lindeiras.

No eixo das identidades, Moniz Bandeira traz a importante noção de que o Brasil nunca se considerou uma mera força contábil dentro de uma matriz homogênea na América do Sul. O Brasil tinha geografia, história, cultura e economia distinta, e, por isso, não poderia ser considerado semelhante aos seus vizinhos. O tratamento da potência do norte, portanto, não poderia relegar o país a um status minoritário na região. No decorrer do século XX, com a projeção de interesses concretos em todos os eixos hemisféricos, o Brasil credenciou-se para ser um ator de contraposição aos Estados Unidos no desenho dos marcos cooperativos de integração da América do Sul, principalmente na área econômica. É aqui que a narrativa de Moniz Bandeira liga o terreno profundo da história com a contemporânea inserção brasileira na região. Os projetos de infra-estrutura, a instabilidade dos vizinhos, a integração econômica, enfim, todas as questões relevantes da década de 90 até os anos recentes parecem ligados em uma viva narrativa tecida pelo autor.

O segundo volume traz quinze contribuições de excelência sobre a hodierna inserção do Brasil em diversos nichos de interação internacional, divididas em três partes – indo do sistema interamericano às estratégias de desenvolvimento social e combate à pobreza no Brasil. Como no primeiro volume, percebe-se a importância da mudança do contexto internacional para explicar o engajamento do Brasil após a Guerra Fria nesses domínios: espaço que separa a "autonomia pela distância" da "autonomia pela participação"4 4 (Fonseca(Jr.): 1998, 361-3). , divide igualmente a paralisia de grande parte das instituições e regimes internacionais no período da Guerra Fria e a renovada cooperação a partir da década de 90.

Na primeira parte, os dois primeiros trabalhos, de Virgílio Arraes, sobre a atuação brasileira no sistema ONU, e o de Alcidez Vaz, sobre o Brasil e o sistema interamericano, conseguem um feito extraordinário: sustentar de forma sintética o complexo participativo em dois domínios de tamanha amplitude que até então desafiavam exercícios abrangentes menos factuais e mais analíticos por parte da academia. O de Arraes, então, faz uma excelente síntese sobre a busca brasileira por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Ainda na primeira parte, há a contribuição de Renato Baumann sobre o Brasil e o Fundo Monetário Internacional, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial. Primeiramente, Baumann disseca a trajetória das idéias que guiaram o pensamento sobre reformas estruturais e desenvolvimento econômico dentro do histórico mais amplo dos três organismos internacionais. Depois, parte para a análise da inserção brasileira. O interessante no trabalho do autor é sua avaliação técnica, perspectiva oposta de exercícios mais estridentes dedicados à questão.

O texto de Antônio Augusto Cançado Trindade sobre o Brasil e o direito internacional dos direitos humanos abre a segunda parte do livro. O autor aborda a transição da posição brasileira na matéria a partir de 1985, destacando, principalmente, como o Poder Legislativo constitui-se como um ator relevante na determinação da forma que o país se insere dentro dos marcos jurídicos internacionais de proteção aos direitos humanos. A falta de modificação das normas domésticas e a própria natureza parlamentar dos procedimentos domésticos é, para o autor, variável chave para a compreensão do porquê, mesmo após o período autoritário, o Brasil ainda continuar a ter problemas em lidar com o regime internacional de direitos humanos.

Tocando no papel do parlamento nas relações internacionais do Brasil, convém fazer uma reflexão mais apurada sobre uma das maiores contribuições conceituais da obra organizada por Lessa e Altemani: a inauguração de uma nova visão para a área, implementando uma reorganização conceitual que já se ensaiava há mais de uma década. Com efeito, por muito tempo a história diplomática promovia uma escola da "goma arábica" com pouco pensamento crítico e muita glosa dos despachos oficiais5 5 Lima Barreto tinha uma visão crítica e muito bem humorada desse período (Barreto: 2004). . Havia uma dominação do campo por pessoas vinculadas direta ou indiretamente à condução dos negócios governamentais. O resultado é que, muitas vezes, neste período, não se fazia história, fazia-se lauréis; não se escrevia biografia, fazia-se hagiografias. Depois, passamos para uma etapa mais profissional, com vários historiadores mais independentes; mesmo assim, o foco do estudo era um núcleo bastante restrito de atividades da Chancelaria.

Nas últimas décadas, no entanto, há uma diversificação não só das origens profissionais de estudiosos – proporcionalmente menos diplomatas e militares –, como do foco da comunidade epistêmica. Mais e mais a atenção é voltada para outros atores e outras dinâmicas que permeiam a interação entre o interno e o externo. O próprio esforço dos organizadores em nomear a obra Relações internacionais do Brasil e não Política externa brasileira foi consciente para indicar essa evolução. De certa forma, todo esse movimento responde à expansão do interesse pelas relações internacionais no seio da sociedade brasileira desde o fim da Guerra Fria, como bem coloca Antônio Carlos Lessa, no último capítulo do segundo volume.

A obra em dois volumes, portanto, consolida o grande ensinamento para os que trabalham dentro do moderno campo das relações internacionais do Brasil: é um imperativo sair das ante-salas dos gabinetes da Esplanada dos Ministérios e começar a lidar com os órgãos de classe, as redes de interesse, as prefeituras e estados, e o próprio parlamento para entender de forma tridimensional a inserção internacional brasileira – objetivo perseguido na terceira e última parte do segundo volume. Isso significa que a inserção internacional do país não refletirá necessariamente os interesses corporativos estatais que usualmente colocamos no centro das atenções.6 6 Não há uma perspectiva nova, pois até José Maria da Silva Paranhos, no século XIX, colocava de forma normativa que "a diplomacia não tem somente por fim promover e sustentar os interesses gerais de cada país, mas também os interesses particulares dos seus súditos". (José Maria da Silva Paranhos: 2005, 35).

As janelas pelas quais o Brasil interage com o mundo tornaram-se grandes demais tanto para a atuação governamental clássica como para os estudiosos que se debruçam sobre a matéria. Essa transformação, refletindo muito bem a concepção de nuvens que Popper utilizava para compreender o mundo social, faz com que a oportuna e apolínea obra organizada por Antônio Carlos Lessa e Henrique Altemani marque um renovado e necessário progresso para o ensino e pesquisa das relações internacionais no Brasil.

Recebido em 10 de maio de 2007

Aprovado em 10 de junho de 2007

  • ALMOND, Gabriel A. e Genco, Stephen J. Clouds, Clocks, and the Study of Politics. World Politics, v. 29, n. 4, p. 489-522. 1977.
  • BARRETO, Lima. Carta Aberta. In: Resende, Beatriz e Valença, Rachel (org.). Lima Barreto: toda crônica. Rio de Janeiro: Agir, 2004. p. 282-4.
  • CERVO, Amado Luiz. A ação internacional do Brasil em um mundo em transformação: conceitos, objetivos e resultados (1990-2005). In: OLIVEIRA, Henrique Altemani & LESSA, Antônio Carlos (orgs.). Relações internacionais do Brasil: temas e agendas. São Paulo: Saraiva, 1, 2006. p. 7-34.
  • FONSECA(Jr.), Gelson. A legitimidade e outras questões internacionais. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
  • JOSÉ MARIA DA SILVA PARANHOS, Visconde Do Rio Branco. Com a palavra, o visconde do Rio Branco: a política exterior no parlamento imperial. Rio de Janeiro e Brasília: CHDD e FUNAG, 2005.
  • SARAIVA, José Flávio Sombra. À busca de uma nova sociedade internacional: teoria e prática das relações internacionais no início do século XXI. In: Altemani, Henrique e Lessa, Antônio Carlos (org.). Relações internacionais do Brasil: temas e agendas. São Paulo: Saraiva, 1, 2006. p. 57-88.
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    Resenha de OLIVEIRA, Henrique Altemani & LESSA, Antônio Carlos (orgs.). Relações internacionais do Brasil: temas e agendas (vols. 1 e 2). São Paulo: Saraiva, 2006. ISBN: 85-02-06040-6 e 85-02-06042-2.
  • 1
    (Almond e Genco: 1977).
  • 2
    (Cervo: 2006, 7).
  • 3
    (Saraiva:
    Ibid., 59).
  • 4
    (Fonseca(Jr.): 1998, 361-3).
  • 5
    Lima Barreto tinha uma visão crítica e muito bem humorada desse período (Barreto: 2004).
  • 6
    Não há uma perspectiva nova, pois até José Maria da Silva Paranhos, no século XIX, colocava de forma normativa que "a diplomacia não tem somente por fim promover e sustentar os interesses gerais de cada país, mas também os interesses particulares dos seus súditos". (José Maria da Silva Paranhos: 2005, 35).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007
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