Introdução
Microalgas são fontes economicamente viáveis de proteína para uso na alimentação (Colla et al., 2008), com destaque para a cianobactéria Spirulina (Arthrospira), que contém cerca de 60 a 70% de proteínas, cujos aminoácidos encontram-se em teores próximos aos recomendados como padrão pela FAO (Food and Agriculture Organization). Contêm ainda beta-caroteno, ferro absorvível, além de outros minerais e altos níveis de vitaminas, ácido gama-linolênico e outros ácidos graxos essenciais (Belay et al.,1993; FDA, 2012). Tem sido bastante estudada também, por causa da presença de ficocianina e compostos fenólicos os quais lhe conferem atividade antioxidante, frequentemente associada à capacidade de redução de hiperlipidemias (Alves et al., 2005; Colla et al., 2008; Bertolin et al., 2009). Atualmente, no Brasil, a Spirulina é classificada como novo ingrediente e seu consumo diário, recomendado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), é de 1.6 g/indivíduo (Brasil, 2009). Segundo Becker (2007), entre os fatores que limitam o uso de microalgas na alimentação humana está a presença da parede celular, que pode influenciar na digestibilidade e absorção e, ainda, o alto conteúdo de ácidos nucleicos, cuja ingestão em excesso pode levar ao seu acúmulo no organismo humano e, consequentemente, a doenças como gota e cálculo renal. A partir do consumo diário de Spirulina (1.6g /indivíduo) preconizado pela ANVISA, estabeleceu-se o objetivo desta pesquisa, que foi avaliar a influência de dietas acrescidas de diferentes concentrações de Spirulina LEB-18 no desenvolvimento corporal e no perfil lipídico de ratos Wistar.
Material e Métodos
Biomassa microalgal
A microalga utilizada neste trabalho foi a Spirulina da cepa LEB-18/FURG, isolada da Lagoa Mangueira. Sua produção é realizada na Planta Piloto localizada às margens da Lagoa Mangueira (33o30' 13'' S e 53o08' 59'' W), em Santa Vitória do Palmar, RS. A unidade consiste de três tanques abertos, tipo raceway, de 10.000 L e de um tanque aberto, tipo raceway, de 1.000 L para propagação do inóculo. Os cultivos são protegidos por túnel de filme transparente com proteção contra raios UV e expostos a condições ambientais naturais. Quando a microalga atinge a concentração de 0,50 g.L-1, sua biomassa é separada por meio de filtração e secada em secador de bandejas, a 50 °C, por 5 h (Morais et al.,2008).
Modelos biológicos
Para realização do estudo, 24 Rattus norvegicus da cepa Wistar, machos, recém desmamados (21 dias), com peso médio de 70 g, provenientes do Biotério da Universidade Federal de Pelotas(UFPel), RS, Brasil, foram distribuídos aleatoriamente em grupos (n = 6) e alojados individualmente em gaiolas de arame galvanizado. Estes animais foram mantidos durante cinco dias para adaptação às condições laboratoriais (fase de pré-experimento). Após este período, os animais foram pesados e redistribuídos, conforme a massa corporal, em quatro grupos homogêneos (Berndtson, 1991): C (n = 6), S1 (n = 6), S2 (n = 6), S3 (n = 6).
Dietas
Seguindo as determinações do Instituto Americano de Nutrição (American Institute of Nutrition), o qual publicou em 1993 a fórmula de uma dieta para ratos em crescimento (AIN-93G, growingrats) (Reeves et al.,1993), foram preparadas semanalmente no Laboratório de Processamento de Alimentos da UFPel quatro dietas (Tabela 1): dieta controle (C) (AIN93G adaptada); dieta S1 (8,8% de Spirulina); dieta S2 (17,6% de Spirulina) e dieta S3 (26,4% de Spirulina). A formulação da dieta C, apesar da recomendação de 20% de ingestão de proteína pela AIN-93G, foi calculada para apresentar 10% deste nutriente (Miller & Bender, 1955; Sgarbieri, 1996; Jood & Singh, 2001). Para obtenção desta dieta C, com 10% de proteína, foram adicionados 120 g de caseína, já que essa não se apresentava pura (> 85% de proteína), o restante dos ingredientes, conforme preconizado por Reeves et al. (1993), e o amido de milho adicionado para completar 1000 g de dieta. Para formulação das dietas S1, S2 e S3, o cálculo foi baseado na composição proximal da biomassa e na quantidade de ingestão diária recomendada para roedores (20 g/rato/dia) (Souza-Soares et al., 2009) e no limite estabelecido pela ANVISA como consumo máximo diário de Spirulina (1,6 g/indivíduo/dia) (Brasil, 2009).
Experimento in vivo
O experimento foi realizado durante 40 dias, período em que o laboratório permaneceu sob condições de luz (fotoperíodo de 12 h) e temperatura (22 ± 2 ºC) controladas, como também sob renovação de ar por sistema de exaustão.
Determinação dos parâmetros ponderais
As dietas foram ofertadas diariamente (20 g/rato), assim como a pesagem da ração não consumida, obtendo-se o valor de ingesta diária. Os pesos dos animais foram registrados semanalmente para cálculo do ganho de peso. Após os 40 dias experimentais, os animais foram avaliados biometricamente, por meio do peso corporal final (g), comprimento vértice-cóccix, comprimento dos membros torácicos e medida da circunferência abdominal (cm).
Análise química da biomassa, dietas e fezes
A composição proximal da biomassa e das dietas foi determinada conforme métodos descritos pela Association of Official Analytical Chemists (AOAC, 1995), com exceção de lipídios totais, os quais foram determinados por método de Bligh & Dyer (1959), também utilizado para avaliação de lipídios nas fezes.
Avaliação nutricional
Foram realizadas as seguintes determinações para avaliação da qualidade das dietas em estudo: Coeficiente de Eficácia Alimentar (CEA), dado pela razão entre o ganho de peso e a quantidade total de dieta ingerida durante o experimento; e Digestibilidade Lipídica Aparente (DL), obtida por meio do cálculo: [lipídio ingerido - lipídio excretado nas fezes/lipídio ingerido]100 (Sgarbieri, 1996).
Análise bioquímica do soro
Ao término do experimento, os animais foram submetidos a um jejum de 12 horas e eutanasiados. Alíquotas de sangue foram coletadas e centrifugadas a 1000 g x 15 min, a 4 ºC, em tubos de ensaio para obtenção do soro, o qual foi congelado a -18ºC e, posteriormente, analisado em avaliador bioquímico LabMax 240 (LABTEST DIAGNÓSTICA S.A.) quanto aos teores de colesterol total, LDL-colesterol (lipoproteína de baixa densidade), HDL-colesterol (lipoproteína de alta densidade), VLDL-colesterol (lipoproteína de baixíssima densidade) e triacilgliceróis.
A execução do experimento foi aprovada pela Comissão de Ética em Experimentação Animal da UFPel, RS, Brasil (processo nº 23110. 008077/2009-22), em conformidade com as normas do Colégio Brasileiro de Experimentação Animal - COBEA.
Resultados e Discussão
Verifica-se (Tabela 2) que o grupo S3 não diferiu do grupo C relativamente a todos os parâmetros ponderais e nutricionais avaliados. Da mesma forma, o grupo S1, apesar de apresentar menor consumo que C (p ≤ 0,05), resultou em parâmetros ponderais e nutricionais semelhantes, estatisticamente (p > 0,05), ao grupo controle (C), indicando ser também sua formulação uma boa fonte proteica. Já o grupo S2 apresentou valores de peso final, ganho de peso total, consumo alimentar total, vértice-cóccix, circunferência abdominal e coeficiente de eficiência alimentar inferiores (p ≤ 0,05) aos do grupo C.
Tabela 2: Respostas ponderais e nutricionais de ratos Wistar alimentados por 40 dias com as dietas C (controle), S1 (8,8% Spirulina), S2 (17,6% Spirulina) e S3 (26,4% Spirulina)

De acordo com Vieira & Bion (1998), proteínas originadas de diferentes misturas e usadas em diferentes proporções podem resultar em variações nas concentrações de aminoácidos limitantes, os quais interferem na eficiência de sua utilização pelo homem e pelos animais. Rogatto et al. (2004) analisaram uma dieta com 17% de Spirulina, em substituição total à proteína da dieta controle (caseína), em ratos machos jovens Wistar durante cinco semanas e obtiveram CEA de 0,21, valor este semelhante ao que se encontrou nos tratamentos com 17,6 e 26,4% de Spirulina (0,23 e 0,22; respectivamente).
Proteínas de menor qualidade ou combinação de diferentes proteínas que apresentam deficiências em aminoácidos essenciais serão, preferencialmente, destinadas a vias metabólicas de catabolismo. Após a degradação no trato gastrintestinal das proteínas ingeridas em seus aminoácidos, estes alcançam o fígado através da corrente sanguínea. Chegando ao fígado, o primeiro passo no catabolismo dos aminoácidos é a remoção dos grupos amino, por ação de transaminases, resultando na formação de glutamato e de unidades de três e quatro átomos de carbonos (α-cetoácidos). Estes esqueletos carbônicos provenientes da desaminação dos aminoácidos são convertidos em glicose, por meio da gliconeogênese, a qual poderá ser utilizada para suprir as necessidades energéticas das células ou para ser armazenada na forma de ácidos graxos, por meio do metabolismo hepático (Devlin, 2007).
A hiperlipidemia caracteriza-se por uma série de distúrbios ocasionados pelo excesso de substâncias, dentre estas o colesterol, triacilgliceróis e lipoproteínas do plasma sanguíneo, como HDL (lipoproteína de alta densidade), LDL (lipoproteína de baixa densidade) e VLDL (lipoproteína de densidade muito baixa), sendo um importante fator de risco no desenvolvimento de doenças cardíacas e de arteriosclerose. Na Tabela 3, observa-se que o grupo S1 não diferiu do C em todos os parâmetros bioquímicos avaliados; já o S2 apresentou níveis de colesterol total e de LDL-c e LDL/HDL mais elevados (p ≤ 0,05) que C; enquanto o S3 resultou em HDL-c inferior e LDL/HDL maior que C (p ≤ 0,05).
Tabela 3: Respostas bioquímicas de ratos Wistar alimentados por 40 dias com dietas C (controle), S1 (8,8% Spirulina), S2 (17,6% Spirulina) e S3 (26,4% Spirulina)

Se for tomado como referência o valor médio de colesterol total (46 mg.dL-1), em Rattus norvegicus sadios descrito por Mitruka & Rawnsley (1981), os tratamentos S1 e S3 apresentam as melhores respostas. Vilela et al.(2000), ao avaliarem os níveis séricos de lipídios em ratos Wistar com 21 dias, sob ação de uma dieta com extrato proteico de leveduras em substituição à caseína, constataram que esta (58 mg.dL-1 de colesterol total) se comportou semelhantemente ao controle com caseína (60 mg.dL-1 de colesterol total). Denardin et al. (2009) encontraram 62,67 e 72,93 mg.dL-1 de colesterol total em ratos Wistar alimentados com dieta com arroz e macarrão em substituição à caseína, respectivamente.
Bertolin et al., (2009), autores que estudaram o efeito da S.platensis no perfil lipídico de ratos Wistar, não encontraram alteração significativa ao tratar os animais com dieta hipercolesterolêmica, acrescida de Spirulina, por 60 dias, sugerindo que a microalga associada a uma dieta rica em colesterol não altera os níveis lipídicos. Segundo Miller (1993), a fração LDL-c deve representar cerca de dois terços (2/3) do valor do colesterol total, fato esse ocorrido nos animais do grupo S2, no qual, apesar do colesterol total estar elevado, os valores de LDL-c aumentaram proporcionalmente.
Bertolin et al.(2009) não avaliaram os níveis de LDL-c individualmente e, sim, em somatório ao valor de VLDL-c, obtendo 60,1 mg.dL-1. Ao se somarem os resultados obtidos de LDL-c e VLDL, neste estudo, são encontrados os seguintes valores: 39,75; 36,15; 54,71 e 40,61 mg.dL-1 para C, S1, S2 e S3, respectivamente. Estes valores, quando calculados os seus percentuais em relação ao do colesterol total, mostram índices de 56,7% (dieta controle), 56,0% (S1), 61,6% (S2) e 62,8% (S3) em relação aos mesmos, indicando uma resposta mais harmônica entre as dietas. Esses dados assemelham-se aos obtidos por Bertolin et al., (2009) para dietas fornecidas durante 30 e 60 dias, respectivamente, que foram 61,5 e 76,7% (controle), 34,6 e 69,5% (hiperlipídica com 5% de colesterol) e 41,8 e 60,7% (hiperlipídica com 5% de Spirulina), indicando, nas respostas, o efeito da duração do experimento e que a presença de Spirulina na dieta hiperlipêmica, em função deste, não foi efetiva. Evidenciam, também, a tendência hiperlipêmica das dietas contendo caseína.
Na patogênese da aterosclerose, a lipoproteína de alta densidade (HDL-c) apresenta um importante papel protetor, pois transporta o excesso de colesterol das artérias e da corrente sanguínea até o fígado, onde é metabolizado e eliminado sob a forma de ácidos e sais biliares (Duarte et al.,2009). Na Tabela 3, observa-se que o tratamento com maior percentual de Spirulina (S3) resultou em níveis de HDL-c inferiores (p ≤ 0,05) ao controle. Bertolin et al., (2009) encontraram níveis de HDL-c igual a 12,3 mg.dL-1 , nos animais do grupo controle, e 32,3 mg.dL-1, nos animais alimentados com dieta hipercolesterêmica acrescida de Spirulina.
De forma semelhante ao que foi relatado, anteriormente, em relação aos valores de colesterol total, os dados para colesterol HDL deste trabalho, quando considerados seus percentuais, indicam 43,5% (C), 43,6% (S1), 36,5% (S2) e 36, 6% (S3), assemelhando-se aos dados de Bertolin et al. (2009), que foram, respectivamente, de 38,9 e 19,7% (controle), 56,7 e 27,5% (hiperlipídica) e 45,6 e 32,5% (hiperlipídica + 5% de Spirulina). Estes valores, quando calculados os seus percentuais em relação aos de colesterol total, mostram índices de 56,7% (C), 56,0% (S1), 61,6% (S2) e 62,8% (S3). No estudo de Vilela et al. (2000), uma dieta com extrato proteico de leveduras em substituição à caseína comportou-se semelhantemente (45 mg.dL-1) àquela com caseína (50 mg.dL-1) , quanto ao teor de HDL-c presente no soro de ratos Wistar.
Embora ainda não tenha sido determinada a relação LDL/HDL ideal para roedores e o valor estipulado para humanos não possa ser utilizado diretamente, convenciona-se que esta relação deva ser a menor possível para indicar uma característica benéfica. O grupo S1 não diferiu do controle na relação LDL/HDL, ambos apresentando valores mais baixos (p ≤ 0,05) que os grupos S2 e S3. Contudo, todas as dietas acrescidas de Spirulina bem como a dieta controle resultaram em valores superiores aos encontrados por Silva (2009), de 0,43 e 0,30 mg.dL-1, em ratos fêmeas Wistar alimentados com as dietas controle e experimental (leite caprino), respectivamente.
Triacilgliceróis são os lipídios presentes em maior quantidade na alimentação e constituem a forma de armazenamento de todo o excesso de nutrientes, seja carboidrato, proteína ou o próprio lipídio, representando a maior reserva energética dos mamíferos (Devlin, 2007). Os tratamentos não diferiram entre si quanto aos níveis de triacilgliceróis, sendo estes apresentados numa faixa de 66,35 a 78,00 mg.dL-1. De acordo com dados preconizados pela equipe do Centro de Bioterismo da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP, 2010), triacilgliceróis devem estar presentes no soro de Rattus norvegicus sadios em torno de 66,35 a 78,0 mg.dL-1. Apesar de não ter havido diferença estatística entre os grupos, observa-se que o tratamento S3, o qual apresenta Spirulina como fonte exclusiva de proteínas, obteve respostas menores de triacilgliceróis. Já os grupos, que têm como fonte proteica uma mistura de caseína e Spirulina, obtiveram valores maiores de triacilgliceróis que os tratamentos S3 e C.
A utilização da Spirulina como alimento tem sido bastante discutida, pelo fato de ser boa fonte de proteína, vitaminas, minerais e ácidos graxos poli-insaturados (Rogatto et al., 2004; Ambrosi et al., 2008; Moreira et al., 2011). Segundo Colla et al.(2008), a presença de compostos antioxidantes, como ficocianina, compostos fenólicos, e ácidos graxos poli-insaturados pode ser a principal responsável pela diminuição dos níveis lipídicos. A capacidade antioxidante de extratos de Spirulina foi avaliada por Miranda et al. (1998) no plasma de ratos Wistar adultos, os quais receberam uma dose diária de 5 mg/dia do extrato por 2 e 7 semanas. Os autores consideraram que as quantidades de ácidos fenólicos, α-tocoferol e β-caroteno, presentes na Spirulina, foram responsáveis pela redução dos níveis lipídicos dos animais.
Conclusão
As diferentes concentrações de Spirulina cepa LEB-18 (8,8, 17,6 e 26,4%) influenciaram diferentemente o desenvolvimento corporal e os níveis bioquímicos determinados em ratos Wistar. O tratamento com 8,8% de Spirulina mostrou-se equivalente ao controle, apresentando respostas mais adequadas de CEA, medidas de crescimento e lipídios séricos. Já o S2 não foi capaz de promover um bom desenvolvimento , comparativamente ao controle, além de elevar os níveis de colesterol total e LDL-c, enquanto S3 apresentou somente valores inferiores de HDL-c, quando comparado ao controle (p ≤ 0,05). Assim, conclui-se que, no tempo e condições deste estudo, o tratamento S3, único com Spirulina como fonte exclusiva de proteína, foi capaz de substituir a fonte proteica padrão (caseína) na dieta para roedores, mostrando-se adequada para o desenvolvimento corporal e lipídico dos animais.