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Aspectos metodológicos do planejamento urbano no Brasil

COMENTÁRIO

Aspectos metodológicos do planejamento urbano no Brasil* * Este artigo foi escrito com base na experiência de uma equipe na qual participaram, além dos autores, Sebastião Simões Filho, Rodrigo Brotero Lefèvre e José Expedito Prata.

Francisco OliveiraI; Gabriel BolaffiII

IConsultor independente

IIProfessor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

O planejamento urbano no Brasil é uma atividade recente cuja necessidade passou a se fazer sentir com intensidade cada vez maior nas últimas décadas sob o impacto do crescimento rápido e desordenado das nossas cidades. Com efeito, em conseqüência do crescimento econômico e físico e da industrialização, as cidades brasileiras perderam o caráter de organismo dotado de funções urbanas diferenciadas e específicas, capazes de satisfazer a uma ampla gama de necessidades, para se transformarem nos aglomerados uniformemente caóticos e congestionados que todos nós conhecemos. Mais ainda, a incapacidade de prever o crescimento e suas conseqüências fêz com que se perdesse a oportunidade de aproveitar suas potencialidades latentes no sentido de um real desenvolvimento urbano. Assim, por exemplo, o inegável dinamismo imobiliário de após guerra e todos os recursos por êle gerados ao invés de serem canalizados para o aprimoramento dos serviços urbanos, serviu apenas para deteriorar as condições pré-existentes.

A partir de 1965, e em grande parte graças às oportunidades oferecidas pelo Serviço Federal de Habitação e Urbanismo - SERFHAU - o poder público e, especialmente, as prefeituras vêm tomando consciência da necessidade de atuar sobre o processo urbano. Busca-se agora corrigir as principais distorções de nossas cidades no plano físico, urbanístico e arquitetônico e, concomitantemente, aproveitar os impulsos econômicos latentes para dinamizá-los no sentido de transformar o mero crescimento em desenvolvimento.

Assim, teve início no Brasil uma atividade prática de planejamento urbano que vem se afirmando em face à complexidade crescente dos problemas da administração pública municipal. Para esta atividade, têm sido recrutados sociólogos, economistas e arquitetos, teoricamente preparados em suas respectivas especialidades, mas na grande maioria dos casos, com pouca ou nenhuma experiência prática. Nestas condições, o primeiro impulso dos profisionais engajados em planejamento tem sido recorrer à metodologia de países como França e Inglaterra nos quais já existe uma experiência considerável de planejamento urbano.

Porém, planejamento não é uma atividade abstrata e independente dos fins que procura atingir. Embora se trate de uma atividade eminentemente técnica e especializada, ela não pode ser generalizada e é, portanto, imprescindível que seja diretamente referida ao contexto sobre o qual será exercida. Em outras palavras, não existem modelos prontos de planejamento, mas sim normas metodológicas para uma atividade criadora que requer uma renovação constante na definição dos fins e na seleção dos meios.

É por estas razões que a prática do planejamento no Brasil apresenta uma problemática marcadamente distinta daquela usual nos países desenvolvidos e industrializados, onde na maioria das vezes o problema fundamental consiste, ou pelo menos deveria consistir, na alocação ótima de recursos existentes. Muito pelo contrário, no Brasil, como nos demais países em processo de desenvolvimento, o problema fundamental é o da carência de recursos econômicos, tecnológicos e humanos. Neste contexto, o esforço do poder público deve ser orientado não para as condições ideais - sempre impossíveis de serem atingidas - mas para as melhores condições possíveis no quadro das limitações acima referidas.

É necessária, portanto, uma visão realista dos problemas a serem enfrentados, capaz de definir os objetivos a serem perseguidos apenas em função dos meios e dos recursos disponíveis e nunca em função de aspirações demasiadamente generosas, mas, necessariamente, utópicas. Mas, para esta abordagem realista, não bastam as boas intenções e nem é suficiente a consciência da sua necessidade, pois uma vez tomada a decisão somos novamente lançados para o campo da capacidade técnica e para os requisitos de uma metodologia adequada. Tratase então de possuir instrumentos de conhecimento do universo social e econômico sobre o qual se vai atuar que permitam escalonar os problemas a serem enfrentados segundo critérios racionais - não arbitrários - de prioridade.

Assim, se temos consciência de que em virtude da limitação dos recursos disponíveis é impossível dar uma solução plenamente satisfatória a todos os problemas contidos na realidade sobre a qual somos solicitados a amar, que critérios irão nortear a seleção das áreas prioritárias de atuação e de alocação de recursos? Este é certamente o principal problema das prefeituras, secretarias e dirigentes de autarquias, assim como da administração pública em geral no Brasil.

1. Metodologia básica de atuação

Nas condições acima referidas, o principal problema metodológico, em qualquer nível de planejamento - o urbano e setorial inclusive - consiste em captar a essência e o significado das forças que impulsionam o processo de desenvolvimento, entendendo-se este último termo em sentido lato e não apenas econômico. Somente uma abordagem metodológica pertinente capaz de distinguir o essencial do acessório, pode enfrentar com propriedade problemas tão diferentes como os que ocorrem em cidades tão distintas como, por exemplo, Campinas e Belo Horizonte.

Historicamente, as cidades expressam uma tendência universal. Nesse sentido, em termos amplos e em qualquer latitude, elas estão destinadas às mesmas funções e, portanto, têm uma problemática comum: habitação, circulação, densidades, recreação, etc. A tarefa metodológica passa a ser então captar as diferenças específicas. Estas, ainda, comportam uma divisão em dois níveis: o primeiro é o da diferença específica global, isto é, trata-se de definir o universo ou a formação socioeconômica-política em que se inserem as cidades. Trata-se de saber a que sistema institucional elas servem e quais são as tendências desse sistema: centralizado ou descentralizado, autônomo ou dependente, harmônico ou desiquilibrado, suas taxas de crescimento, os fatores obstaculizantes do seu desenvolvimento, etc.

É apenas em função das diferenças específicas globais de um dado sistema que se podem definir, segundo cada nível, as diferenças específicas particulares de cada cidade. Em outras palavras, as funções específicas das cidades num país, cujo sistema seja centralizado, autônomo e harmônico, serão distintas daquelas que estejam num país cujo sistema seja descentralizado, dependente e desiquilibrado, por exemplo. Sinteticamente, as diferenças de funções das cidades são, em certo sentido, exteriores às cidades para situarem-se no nível institucional em que se inserem.

A diretriz metodológica principal deve consistir em captar e definir as diferenças específicas, sem o que o exercício do planejamento urbano regrediria às concepções anteriores, fundamentalmente voltadas para os aspectos de traçado, gabaritos, etc. A partir desse reconhecimento, o plano de trabalho, incluindo-se nele as pesquisas e levantamentos, busca definir as melhores condições possíveis, e não idéias, de viabilizar o processo de desenvolvimento urbano. Escolhemse as variáveis explicativas fundamentais, buscando-se apreendê-las qualitativa e quantitativamente.

Por outro lado, esta orientação implica necessariamente na limitação dos objetivos, ou de escopo do plano. Em primeiro lugar, ela parte da identificação dos aspectos essenciais do universo empírico para em seguida limitar-se a conhecer em profundidade somente aquelas variáveis que comandam e explicam o comportamento das demais. Em segundo lugar, porque esta orientação também está baseada na consciência de que a magnitude dos problemas a serem resolvidos pelo planejamento é sempre maior do que os recursos disponíveis. Conseqüentemente, o escopo do plano deve limitar-se aos aspectos da realidade que são significativos em termos dos seus efeitos sobre os demais e que são exeqüíveis em termos da capacidade de investimento do poder executivo. Fugir a estas imposições da realidade leva necessariamente a comprometer as possibilidades de implementação do plano, mesmo que êle tenha sido realizado de acordo com as melhores técnicas acadêmicas de planejamento.

Este procedimento limitativo, além de garantir a efetiva aplicação do plano, contribui para reduzir sensivelmente os custos dos trabalhos Já que, como afirmamos acima, as diferenças de funções das cidades do município, realizando levantamentos de dados, demorados e onerosos, mas de identificar antecipadamente os dados relevantes e de colher apenas estes. Também não se estará desperdiçando recursos para chegar a propostas intrinsecamente boas, talvez, mas economicamente impraticáveis, num período previsível de tempo.

Já que, como afirmamos acima, as diferenças de funções das cidades são exteriores ao projeto em si mesmo, dependendo do contexto regional e institucional, é possível identificar o essencial antes do início dos levantamentos de dados. Em outras palavras, as técnicas e o objeto da investigação podem e devem ser definidos antes da fase de elaboração do plano propriamente dita com base nas funções exteriores, que são geralmente conhecidas, ou facilmente identificáveis pelo técnico.

Uma vez concluídos os levantamentos, analisados os dados obtidos e formuladas as propostas, faz-se necessário transformar o conhecimento adquirido num corpo coerente e operacional de medidas. No caso mais comum de planos urbanos encomendados por prefeituras municipais, é preciso que pelo menos a maioria das medidas necessárias sejam da alçada municipal. Essa maioria deve conter, necessariamente, as medidas decisivas para o desenvolvimento urbano, sem o que elas não passariam de um conjunto de boas intenções. Desse ponto de vista, o plano deve ser, sobretudo, um instrumento de trabalho da alçada municipal e, em segundo lugar, um instrumento de compatibilização com planos regionais, estaduais e federais.

O conjunto de medidas acima descrito deve corresponder a um plano de ação, o qual, quase que, forçosamente, deve desdobrar-se num programa de investimentos e num programa de obras. Esta orientação reconhece e explicita que a ação dos poderes públicos municipais no desenvolvimento urbano freqüentemente se exerce através de obras e modificações no plano físico.

Isto não equivale a considerar o planejamento urbano como um processo meramente no plano físico, o que seria um retrocesso conceituai e metodológico, mas a realçar-lhe o caráter operacional e pragmático, ao nível das prefeituras. Todo o problema consiste pois, na maioria dos casos, em traduzir a estratégia de desenvolvimento num conjunto de obras.

O passo seguinte é o de compatibilizar necessidades e possibilidades. Aquelas aquilatadas e indicadas pela estratégia escolhida e estas pelo conjunto de recursos de ordem material, técnica e financeira à disposição das administrações municipais. Trata-se de traduzir o plano em termos dos recursos existentes e capazes de serem gerados pelo desenvolvimento das próprias atividades contempladas pelo plano. Aqui é o momento de formularem-se os critérios de prioridade para escolha e escalonamento das medidas, obras e investimentos recomendados pelo plano.

Estes critérios devem levar em conta a essencialidade e a oportunidade do elenco de recomendações, escalonando-as em períodos compatíveis relativos à capacidade financeira das prefeituras ou dos órgãos executivos em geral, aos prazos político-administrativos (mandatos, períodos de gestão dos administradores, etc.) ei geração de outros recursos técnicos (pessoal especializado) e materiais (oferta de bens de produção, de matérias-primas) requeridos.

2. Problemas de implantação dos planos

A experiência disponível de planejamento indica que o período crucial do processo apenas se inicia com a entrega formal dos relatórios. Ê na capacidade de execução que soem ocorrer os maiores problemas, que podem levar inclusive ao abandono do plano elaborado. Claro está que uma das boas qualidades de qualquer plano deve residir numa correta avaliação das possibilidades e capacidade de implementação das medidas que recomenda.

Ao nível do planejamento urbano, dois problemas costumam influir poderosamente na capacidade de execução das prefeituras municipais. O primeiro refere-se à estruturação técnica e administrativa dos órgãos municipais, o que quase sempre sugere a necessidade de que o plano contenha em seu bojo uma reforma administrativa, geral ou parcial, integral ou setorializada. O caso mais geral é o de que, pelo menos, as entidades e órgãos técnicos e administrativos diretamente relacionados com o plano devem ser adequados e racionalizados para suas novas tarefas. Casos mais especiais requerem uma revisão geral dos procedimentos de todo o aparato das prefeituras municipais.

O segundo problema refere-se aos quadros humanos. A regra geral encontrada é a de que as prefeituras municipais ressentem-se, quase sempre, de uma aguda escassez de pessoal técnico qualificado, o que termina por simplificar demasiado a própria estrutura organizacional acumulando sobre os poucos técnicos disponíveis a maior parte dos trabalhos e das decisões. A causa mais profunda desse problema reside quase sempre na pouca capacidade de competição das prefeituras municipais no mercado de mão-de-obra técnica especializada, devido aos salários mais altos que a empresa privada e os outros níveis da administração pública, governos federal e estaduais, pagam.

Em nossa experiência temos podido solucionar parcialmente o problema. Em primeiro lugar, através da própria reforma administrativa, o que reduz grandemente as necessidades absolutas de pessoal altamente qualificado. Em segundo lugar, através da promoção de cursos de especialização e atualização dos funcionários municipais que vão participar da implementação do plano, preparando-os em técnicas financeiras, orçamento-programa, administração de pessoal, de material e em alguns temas específicos, tais como administração de distritos industriais, de hospitais, etc.

Freqüentemente, pode-se combinar duas formas de contornar as dificuldades anteriormente enunciadas, através da contratação de Tarefas de Implementação do plano. Nossa experiência indica que certos setores da administração municipal, cuja reorganização pode ser prioritária, dificilmente pode ser levada a cabo em tempo útil com os recursos técnicos disponíveis. Oferece-se então a possibilidade desta responsabilidade ser atribuída ao próprio grupo que elaborou o plano para a implantação da reforma recomendada. Ao mesmo tempo, farse-á então a transição e implantação dos novos métodos, sem necessidade de as prefeituras contratarem para seus quadros técnicos altamente especializados promovendo-se o treinamento no serviço dos funcionários municipais.

Terminada a etapa de implantação da reforma, a nova rotina passa a ser conduzida pelos próprios funcionários municipais treinados. A adoção dessa solução tem produzido bons resultados, principalmente na implantação por exemplo, de técnicas relativamente novas como o orçamento-programa.

Com estas considerações não tivemos a pretensão de esgotar uma problemática que pela sua natureza é complexa e inexaurível. Quisemos apenas apontar alguns critérios e procedimentos básicos, assim como apontar algumas coordenadas que consideramos essenciais à prática do planejamento urbano no Brasil. Possivelmente algumas das nossas colocações serão discutíveis ou refutáveis, outras serão de difícil apreensão para ps que vêem no planejamento apenas um meio de promoção empresarial. Mas numa época em que o planejamento está se tornando um instrumento imprescindível de governo e administração pública e na qual tantas oportunidades são desperdiçadas pela falta de uma verdadeira consciência profissional, parece-nos oportuno discutir tentativamente as bases de uma metodologia desenvolvida já a partir da curta experiência brasileira.

Ao discutir estes critérios metodológicos inspirados numa abordagem realista, buscamos também retirar aos planos o caráter mágico de que se procura revesti-los hoje em dia. O planejamento urbano é apenas um instrumento de administração pública com todas as restrições e potencialidades da realidade sobre a qual se pretende atuar.

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    Este artigo foi escrito com base na experiência de uma equipe na qual participaram, além dos autores, Sebastião Simões Filho, Rodrigo Brotero Lefèvre e José Expedito Prata.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Maio 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1970
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