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Quem educará os educadores?

COMENTÁRIOS

Quem educará os educadores?

Heinrich Rattner; José Paulo Carneiro Vieira

Professores do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Administração de Emprêsas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas

Êste comentário objetiva discutir alguns aspectos do artigo Educar - para quê?, de autoria do Professor Raimar Richers, publicado neste mesmo número da RAE. O autor se propõe a fazer uma contribuição a uma filosofia clara e concisa capaz de nortear as reformas de ensino de um PMD (país menos desenvolvido) em prol do incentivo ao desenvolvimento.

Embora escrito com muita erudição e coerência interna, o artigo em pauta nos parece frágil em sua argumentação e vulnerável em suas premissas. Ademais, o autor trata do problema da "educação" de uma forma "ahistórica" e acrítica, situando- o num país "imaginário" e num mundo ideal e harmonioso, que faria inveja até a Cândido ...

Quanto às premissas, parece subjacente ao artigo a idéia da educação como "panacéia" universal para os problemas do desenvolvimento, ignorando ou abstraindo, simplesmente, a relação e interdependência funcional entre o sistema educacional e a estrutura social à qual serve e para cuja sobrevivência contribui.

Também, o autor não esconde sua preferência por um sistema educacional "coercitivo", orientado e dirigido pelo Estado, sem contudo esclarecer a natureza dêsse Estado, dentro de um determinado contexto social e político. Poder-se-ia levantar uma dúvida bastante séria, quanto à legitimação da ação coercitiva do Estado, nos regimes totalitários ou nas ditaduras pollclescas onde o consenso e a vontade da maioria da população não conseguem prevalecer. Não parece logicamente possível tratar de uma filosofia da educação, sem antes definir claramente a natureza do Estado e a filosofia política da sociedade em que se insere o sistema educacional.

Entretanto, o autor, para desenvolver sua própria filosofia da educação, começa por estabelecer de maneira exclusiva as duas opções ou alternativas que se abrem ao sistema educacional dos países menos desenvolvidos: ou o sistema de ensino transmite valôres e atltudes 'antecipantes, que levam à modernização, ou então valôres e atitudes retrogradentes, que levam ao conservativismo. Diz o Professor Raimar:

"Implícito na própria abordagem dêstes conceitos está o que pode ser considerado o problema crucial do planejamento educacional nos PMDs, qual seja a pergunta: para que tipo de sociedade devem as escolas preparar seus alunos?" Esta é uma questão alarmante que implica a suposição de que as escolas têm o direito de preparar alunos fixando valôres homogêneos e um caminho único na direção de uma sociedade qualquer, atual ou sonhada. Para tanto, o autor critica a Tese Liberal, tratando-a de forma sumária e superficial demais. A nosso ver, essa tese não se refere apenas "à máxima liberdade de escolha e opções profissionais" para os alunos, mas diz, sobretudo, respeito à própria "atitude crítica dos estudantes, diante da sociedade e suas instituições educacionais". A liberdade de opinião, de pesquisa, de crítica construtiva, de informação parecem-nos inseparáveis de qualquer atitude inovadora e modernizante. As tentativas de doutrinar os outros, a partir da "verdade" conhecida unicamente por uma minoria, são tão antigas quanto a humanidade, e nem por isso conseguem motivar a população para o desenvolvimento.

Supondo-se, com o Professor Raimar, que a escola deve preparar seus alunos para a sociedade moderna (??), e para que a escola latino-americana "consiga levar a população aos caminhos da modernizacão", torna-se necessária "uma boa dose de interferência coercitiva nos sistemas de socialização em vigor". O autor acredita que esta interferência pode partir ou de uma minoria rebelde de alunos, ou então do Estado. Todavia, a ação do Estado é preferível por envolver menores riscos e por ser passível de um planejamento cauteloso. O Estado é encarado, portanto, como a única instituição capaz de introduzir atitudes e valôres modernizantes. Se êsse fôr realmente o caso, é lícito perguntar por que, até agora, o Estado não desempenhou ou não desempenha satisfatoriamente essa função inovadora? Ademais, essa colocação do problema deixa implícito que o Estado já constituiria um sistema aberto e modernizante, mesmo que a sociedade, como um todo, ainda permaneça mergulhada em atitudes "retrogradentes". Seria conveniente examinar as relações dinâmicas entre a sociedade - sua estrutura de poder e seu processo de transmissão da herança social, ou seja, ésta mesma estrutura de poder. O autor parece confiar demais num esquema idealizado, segundo o qual uma maior eficiência educacional levaria ao aumento da produtividade, o que resultaria em crescimento econômico, o que, por sua vez, traria maior bem-estar geral ... Embora a tese seja simpática, ela não encontra, pelo menos até o presente, evidências empíricas para sua validade, especialmente no que se refere aos PMDs. A realidade parece demonstrar um caminho inverso: primeiramente ocorre a reestruturação política e econômica da sociedade, da qual resultará. então, um nôvo sistema educacional, apto a transmitir às jovens gerações atitudes e valôres modernizantes, mais coerentes com a nova estrutura.

O sistema educacional torna-se ainda mais importante na medida em que, de acôrdo com o Professor Raimar, "constitui o único meio institucional, moralmente defensável (grifo nosso), para incutir mensagens de socialização modernizante à população .em larga escala". Esta é uma postura ambígua, na medida em que critica a tese liberal, mas procura manter a emprêsa (privada?) e a família intocáveis, e na medida em que manifesta profundos receios em relação aos riscos da ação dinamizadora da "minoria rebelde", ao mesmo tempo em que louva os riscos da ação do Estado, pois "onde há riscos, também há oportunidades".

Quanto ao teor das mensagens de socialização modernizante, o autor acredita que deve estar vinculado à atual tendência de emancipação que se delineia em alguns (??) países latino-americanos. "Caso essa tendência de emancipação prevaleça, ao menos alguns países latinoamericanos poderão contar com a esperança de entrar na última etapa da "descolonização.". Para o autor, essa emancipação se dá pela integração dos PMDs no concêrto internacional das nações, as quais dependem (tôdas elas) "para o seu progresso, da tecnologia, e cada vez mais também, dos capitais das emprêsas multinacionais". Não ficou muito clara a argumentação do autor, referente à motivação para o desenvolvimento. Fala de emancipação e "descolonização" e do fim da "submissão inconsciente"... Não explica, contudo, como isto será alcançado. Aponta, acertadamente, o perigo do chauvinismo e isolacionismo, mas oferece como alternativa "a integração no concêrto internacional das nações", o que, nas condições atuais das relações econômicas e políticas mundiais, significa submissão às superpotências e continuação da espoliação comercial. Aparentemente, dentro do sistema mundial contemporâneo, não existe terceira alternativa, a menos que o autor a guarde para um futuro artigo!

Prossegue o autor afirmando que, para que a educação "possa tomar os rumos mais apropriados em direção à autonomia econômica e social, é preciso dirigi-la, o que equivale a dizer: alguém com podêres amplos e disposto a agir deve não só programar os escassos recursos disponíveis à educação nos PMDs, como também orientar a maneira como êsses recursos podem ser melhor aplicados face a dados objetivos econômicos e sociais". Ao término da sua conclusão, o autor coloca a seguinte questão: "que benefícios operacionais podemos esperar dum planejamento que não esteja firmemente arraigado em alguma convicção que possa servir de estímulo e guia para o planejamento e a ação?" O Professor Raimar, que se mostrou tão avesso e temeroso em relação ao tipo de risco envolvido na politização de novas gerações, enfrenta o problema com grande coragem quando se trata de atribuir a alguém (??), convicto e poderoso, a responsabilidade de definir e impor valôres, diretrizes e objetivos para os sistemas educacionais nacionais dos PMDs. Adota a Professor Raimar uma postura paternalista e autoritária em relação ao problema da educação, que deixa muitas perguntas importantes sem resposta:

Os objetivos, diretrizes e valôres são impostos em função de que interêsses?

Quem é o Estado e o que êle representa? Por que o Professor Raimar assume o ponto de vista de que o Estado paira acima das condições gerais de subdesenvolvimento?

Quem educará os educadores donos da verdade, caso as suas convicções pessoais estejam em desacôrdo com a realidade do "país imaginário" criado pelo Professor Raimar?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1971
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