Acessibilidade / Reportar erro

Sobre o debate da distribuição da renda leitura crítica de um artigo de fishlow

ARTIGOS

Sobre o debate da distribuição da renda leitura crítica de um artigo de fishlow* * Desejo agradecer as valiosas sugestões dos membros do Grupo de Pesquisas da FINEP, para o qual foi feito um relatório em que se baseou o presente artigo. Agradeço também a contribuição indispensável de membros do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional. As opiniões aqui desenvolvidas são de exclusiva responsabilidade do autor, e não das instituições mencionadas.

José Sérgio Leite Lopes

Economista da FINEP - Finaciadora de Estudos e Projetos S.A. e aluno do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro

1. Introdução

Aparentemente, desde a divulgação dos dados preliminares do censo de 1970, um espectro parece rondar o "modelo brasileiro": a "distribuição de renda". Esse espectro passou repentinamente para as primeiras páginas dos jornais com as declarações de R. McNamara, presidente do Banco Mundial, na reunião da UNCTAD no Chile, que criticou a distribuição de renda de seu maior cliente, o Brasil. Nessas declarações, McNamara citou alguns dados de um trabalho do economista A. Fishlow.1 1 Cf. Jornal do Brasil de 26-7-1972. O Prof. A. Fishlow, da Universidade da Califórnia, trabalhou no Brasil em 1967 e 1968 como chefe do grupo de pesquisas resultante de um convênio entre o IPEA e a Universidade da Califórnia. O artigo Brazilian size distribution of income, feito no decorrer do ano de 1971, foi objeto de uma comunicação pelo autor no quadro da reunião anual da American Economic Association em New Orleans, em dezembro de 1971. Essa comunicação foi assistida por técnicos do Banco Mundial que fizeram chegar a McNamara o seu conteúdo. As declarações de McNamara na UNCTAD datam de abril de 1972. Logo em seguida, um resumo do trabalho de Fishlow foi publicado no Jornal do Brasil de 23-4-72. As respostas de membros do governo à crítica à concentração de renda serão referidas neste artigo como "parte situacionista" do debate. No decorrer de 1972, um debate público generalizou-se, envolvendo ministros, parlamentares, economistas e sociólogos.

O objetivo do presente artigo é, mais do que fazer uma resenha bibliográfica estrita do trabalho Brasilian size distribution of income, do Prof. Fishlow, discutir criticamente, através daquele trabalho, alguns aspectos comuns à produção intelectual de autores especialistas em econometria e voltados para a política econômica imediata.2 2 O artigo de Fishlow foi publicado na American Economic Review de maio de 1972, sob o título de Brazilian size distribution of income. Tem também uma versão mimeografada anterior, com o mesmo titulo, que contém explicitação maior de seus métodos de imputação. A seguir, quando citarmos apenas a página, sem menção à obra, a citação refere-se ao artigo da revista. As citações da primeira versão mimeografada serão explicitadas, como sendo da "primeira versão". Por isso, antes de entrar propriamente na crítica ao artigo de Fishlow, desejamos situar brevemente o lugar dos estudos estatísticos sobre a distribuição de renda na evolução do "campo intelectual" brasileiro referente ao tema da economia brasileira contemporânea, e o seu lugar no debate público anteriormente referido.3 3 Para o conceito de "campo intelectual" ver Bourdieu P., Campo intelectual e projeto criador. In: Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968. Cf. também a introdução de M. S. Palmeira em Latifundium et capitalisme: lecture critique d'un débat, thèse de 3 ème cycle présentée à l'Université de Paris, 1971. Os outros trabalhos de mensuração da distribuição da renda são: Cepal-Ilpes. La distribución dei ingreso en Brasil, 1970; Hoffman, R., Contribuição à análise da distribuição de renda e da posse da terra no Brasil, tese de livre-docência apresentada à Escola de Agricultura da USP; Duarte, J. C. Aspectos da distribuição de renda no Brasil em 1970, ESALQ-USP, 1971; Langoni, C. Distribuição da renda e desenvolvimento econômico do Brasil. Estudos Econômicos. IPE-USP, v. 2, n. 5, out. 1972.

O debate da distribuição da renda parece apresentar algumas singularidades e paradoxos. Em primeiro lugar, um tema vedado a discussões que extravasem os especialistas, transforma-se repentinamente, numa determinada conjuntura política, em "debate público".4 4 Um trabalho que tratasse especificamente desse debate poderia vê-lo como ilustração da maneira em que um debate público surge atualmente no País: que agentes sociais participam, que tipo de produção intelectual é acionada, que formas de legitimação são acionadas. Em segundo lugar, lança-se mão, de parte a parte, nesse debate, de áridos estudos estatísticos de mensuração da distribuição da renda, e paradoxalmente, é no momento em que os trabalhos dos especialistas se tornam, por assim dizer, esotéricos, que eles são comunicados ao público. Além disso, um subdebate polariza-se em torno de alguns autores, com certas regras específicas de legitimação acadêmica - como é o caso do debate entre os Professores A. Fishlow e C. Langoni.5 5 Entre essas regras especificas de legitimação estão: o valor dado ao titulo de Ph.D . em universidades americanas cotadas, o conhecimento e a atualização com os últimos modelos econométricos, a formulação de sugestões para a política econômica imediata. C. Langoni realizou um estudo encomendado pelo Ministério da Fazenda ao IPE/USP sobre a distribuição de renda, cujos resultados foram anunciados pelo Ministro em junho de 1972. Para a polarização do debate em torno desses dois autores, cf. Veja de 7-6-1972 e o artigo de Fishlow, Brazilian size distribution of income, another look, e a resposta de Langoni, a serem publicados na revista Dados.

Essas singularidades do debate podem ser relacionadas ao fato de que parece fazer parte da própria "camisa de força" em que o debate público está colocado, o processo de limitação e especialização temática que sofreram os fenômenos tradicionalmente designados sob a rubrica da distribuição de renda. Com efeito, o debate público sobre a distribuição de renda já se deu, em outras conjunturas políticas, em torno não dessa categoria em si, mas descentralizado em volta das reivindicações econômicas cotidianas de diferentes grupos sociais. Esse debate dizia respeito a toda a população porque incorporado à sua prática social e política; e a distribuição de renda, categoria da economia política, era debatida enquanto tal entre especialistas - economistas, sociólogos e políticos, preocupados com o processo de desenvolvimento e com as dimensões do mercado interno. Com as restrições impostas às reivindicações econômicas abertas dos grupos sociais, em particular dos trabalhadores, o debate público sobre os fenômenos a que diz respeito a distribuição de renda transformou-se no debate privado entre os economistas sobre o que a categoria significa em sua produção intelectual. Uma primeira limitação temática se operou portanto: de tema público referido à prática social dos diferentes grupos sociais, a distribuição de renda, ao mesmo tempo em que se afirma como categoria específica de debate, restringe-se à discussão entre especialistas. Mas ao mesmo tempo, uma segunda limitação temática se opera devido à correlação de forças internas ao campo intelectual em que o tema é debatido: de tema integrado em análises de conjunto do processo econômico brasileiro, a distribuição de renda tende a ser reduzida ao tratamento de variáveis estatísticas e econométricas.

Assim, essas duas limitações temáticas permitiram que o tema, antes discutido por poucos se tornasse público de uma maneira limitada e controlada. E a conjuntura política do ano passado permitiu que o tema extravasasse controladamente o âmbito dos especialistas e pudesse ser comunicado ao público: não mais o "público" estruturado em grupos sociais, produtor de suas ações reivindicatórias sobre a renda, mas um "público" difuso, agregado de indivíduos, reduzido a consumidor "soberano" de informações escassas. Estava pronta assim, para o debate público, uma problemática imposta: é de sua essência seu tratamento por especialistas em econometria em detrimento da compreensão do público a ser comunicado.

Por outro lado, a limitação da temática às considerações em torno de mensurações estatísticas deve-se também ao fato de que ela é uma resposta a outra temática: a apologética das taxas de crescimento do produto nacional. Assim, os trabalhos de mensuração da distribuição de renda vieram combater aquela apologia no próprio terreno da estatística em que ela se baseava, e tiveram o mérito de desmistificá-la ao enfatizarem e aperfeiçoarem uma nova dimensão estatística para a avaliação do desempenho da economia brasileira (cf. Fishlow, Hoffman & Duarte e CEP AL) . Os trabalhos de mensuração da distribuição, críticos à grande concentração da renda, abriram assim uma brecha para o aprofundamento do debate entre os especialistas de política econômica e vieram também dar uma base estatística às análises críticas ao processo de desenvolvimento brasileiro. 6 6 Cf. os trabalhos recentes de C. Furtado, M. Conceição Tavares, José Serra, P. Singer, F. de Oliveira.

No entanto, esses estudos, ao aceitarem o debate no próprio campo estatístico em que se movimenta a apologia das taxas de crescimento, são estimulados a procurar as causas e as explicações do perfil da distribuição de renda com base nos próprios dados estatísticos. Como a estatística não revela outras relações senão as que são procuradas a priori pelo pesquisador, é necessário discutir-se a própria validade explicativa dessas relações e dos "modelos" que o pesquisador tem que lançar mão em sua análise causai. Assim, a substantivação desse tipo de análise causai pode fazer a análise estatística perder o seu caráter heurístico na sua interrelação com a herança teórica da economia política e da sociologia. A análise estatística pode assim ofuscar, paradoxalmente, a teia de relações sociais subjacentes à distribuição de renda que aquela análise visa esclarecer.

A análise crítica do artigo de Fishlow que se segue tem a preocupação de selecionar alguns de seus aspectos em que esse "ofuscamento" pode dar-se. Ela visa também tentar opor preocupações teóricas à análise estatística, e além disso, mostrar como os dados estatísticos não podem ser tomados pela realidade.7 7 Limitamo-nos à análise do trabalho de Fishlow, embora uma análise da montagem que se pode fazer do debate entre todos esses autores "estatísticos" seja importante e necessária. Na época de redação do relatório em que esse artigo se baseia, não tivemos acesso aos outros trabalhos, e não foi possível analisá-los depois. Por outro lado, a análise específica do artigo de Fishlow tentará mostrar como mesmo tendo ele uma posição crítica com relação à concentração da renda, ele subestima - devido ao seu instrumental estatístico e econométrico - a extensão e a gravidade, para a maioria da população, dos resultados a que chega em sua análise.

2. As imputações estatísticas: o obscurecimento da realidade social pela mensuração imediata

O artigo Brazilian size distribution of income de A. Fishlow - que, assinalando a maior concentração de renda havida no intervalo de 10 anos entre os censos, teve importante papel na discussão sobre a distribuição de renda - explicita sua oposição, no campo estatístico, à temática das taxas de crescimento do produto nacional como único indicador do desempenho de uma economia. Um dos objetivos do documento é o de atuar no sentido de provocar o "... reconhecimento de um sistema de contabilidade que reconhece e aplaude não somente aumentos no produto agregado, mas também contabilize os ganhos diferenciais de riqueza que se refletem na distribuição da renda" (p. 402). O autor aplica-se portanto em mostrar a possibilidade de uma mensuração estatística rigorosa da distribuição de renda. Para isso, tem que trabalhar sobre os resultados incompletos do censo de 1960.

Após justificar a utilização de uma amostra do censo de 60 e não de suas estimativas preliminares, Fishlow procede a dois tipos de ajustamentos sobre os dados da amostra: por um lado, incorporar a renda não monetária excluída do inquérito do censo, e por outro lado, realocar renda para trabalhadores familiares designados pelo inquérito como economicamente ativos mas sem remuneração monetária. Para proceder a estas imputações, o autor recorreu a três tipos de informação: aluguel imputado, consumo doméstico rural imputado e alimentação e dormida imputada para empregados domésticos. É interessante notar-se, com respeito à discussão pública acima referida, que a parte situacionista do debate acusava a parte crítica oposta de ter-se baseado em dados (do censo) que não imputam a renda não monetária percebida por determinados grupos sociais (principalmente do campo), mas não esclarece que o trabalho de Fishlow (cujo destaque na origem da polêmica já foi referido) trabalha sobre os dados do censo, realizando explicitamente e de forma cuidadosa, do ponto de vista estatístico, essas imputações.

O autor então faz quatro ajustamentos à série estatística da amostra do censo: um ajustamento relativo a aluguéis,8 8 O aluguel imputado foi calculado a partir das características da amostra do censo. O aluguel atual pago pelos inquilinos, imputado aos proprietários para calcular o valor dos serviços que seus imóveis lhes prestam, foi obtido através de uma regressão linear em que o aluguel é tomado como função das características do domicilio do inquilino, da renda familiar, do tamanho da família e do aluguel propriamente dito (cf. p. 5 da primeira versão). um ajustamento relativo ao consumo doméstico rural,9 9 As informações relativas a essa imputação não estão contidas na amostra do censo como no caso dos aluguéis: o autor utilizou-se de estudos de orçamentos familiares referentes a 1962 e 1963 realizados em sete estados: Food consumption in Brazil, family budget surveys in the early 1960's. Fundação Getulio Vargas, nov. 1970. um ajustamento relativo à renda não monetária percebida pelos empregados domésticos, e finalmente um ajustamento relativo à realocação de uma fração da renda do chefe de família para trabalhadores familiares não pagos.

Fazendo-se uma leitura um tanto exegética do texto, não deixa de ser sintomático, no entanto, que Fishlow, quando fala dos empregados domésticos, utiliza a categoria "força de trabalho"10 10 "Algo como 21% da força de trabalho feminina são empregadas domésticas, mais da metade das quais reside em seu local de trabalho" (p. 6 do documento mimeografado; primeira versão). e quando fala dos trabalhadores familiares não pagos, utiliza a categoria "população economicamente ativa".11 11 "Tal realocação é necessária se a distribuição da renda da população economicamente ativa é para ser estudada" (p. 7 do documento mimeografado, primeira versão). Ora, não se pode evitar de assinalar aqui a discussão do emprego da categoria de "força de trabalho" para Fishlow. Ela parece ser uma categoria definida ao nível da operacionalização estatística, distinguindo-se assim da categoria força de trabalho, conceito da economia política, que se compõe dos mesmos termos.12 12 Note-se que quando empregamos a seguir o termo força de trabalho grifado, referimo-nos a um conceito da economia política, enquanto o termo "força de trabalho" entre aspas refere-se a uma categoria definida ao nível da operacionalização estatística e designa um somatório de trabalhadores sujeitos ao "mercado de trabalho". Pois a afirmação da nota 10 provavelmente exclui o trabalho feminino não remunerado no quadro da produção familiar camponesa ou artesanal, já que naquela afirmação, a categoria é acompanhada de uma mensuração sem maiores explicações quanto a possíveis estimações. Além disso, só não há uma incoerência na utilização simultânea: a) da exclusão do trabalho familiar feminino da categoria de "força de trabalho"; b) da imputação da renda não monetária percebida pelas empregadas domésticas como contrapartida da venda de sua força de trabalho: se a categoria "força de trabalho" referir-se a "mercado de trabalho". A diferença entre as categorias estatísticas de "força de trabalho" e população economicamente ativa baseia-se na pressuposição da presença ou da ausência de mercado de trabalho. A distinção entre essas duas categorias estatísticas sugere-nos uma distinção entre a utilização da força de trabalho no quadro da produção familiar e a utilização da força de trabalho no contexto de sua venda no mercado de trabalho. Essas duas utilizações da força de trabalho, de forma recorrente, pertencem, com efeito, a dois tipos de "sistemas econômicos" distintos, conforme procuro explicar adiante.

A conseqüência final daqueles quatro ajustamentos é um incremento da renda por trabalhador de quase 20%, e uma redução significativa da concentração da renda; a renda familiar sendo afetada na mesma direção mas em menor grau. As críticas da parte situacionista da discussão sobre distribuição de renda já mencionadas, caem por terra (no mínimo com respeito a esse trabalho do Fishlow).

Cabe aqui, no entanto, levantar uma discussão metodológica, de conseqüências substantivas, a respeito da validade mesma desses ajustamentos e imputações do ponto de vista do conhecimento da intrincada teia de relações sociais subjacente à distribuição da renda. Com efeito, essas imputações fazem agregar uma renda não monetária à renda monetária, transformando artificialmente a heterogeneidade da primeira em benefício de uma homogeneidade segundo a ótica da renda monetária. Essa transformação é justificada pelas necessidades de mensuração. O que queremos ressaltar, em contraposição, é a necessidade de uma discussão conceituai como pré-requisito indispensável a essa transformação. É preciso discutir-se primeiramente o que está por detrás da renda não monetária. A consideração da própria distinção entre as categorias empregadas por Fishlow de "força de trabalho" e "população economicamente ativa" (que fizemos antes, pode servir para nos indicar uma heterogeneidade de fenômenos no seio mesmo da renda não monetária: a categoria "força de trabalho", incluindo por exemplo as empregadas domésticas e excluindo os trabalhadores familiares não remunerados, ambos agentes econômicos perceptores de tipos de renda não monetária, indica a distinção entre um tipo de renda não monetária que é contrapartida à venda da força de trabalho (caso das empregadas domésticas) e um tipo de renda não monetária que tem por base a redistribuição da renda ou do produto no seio da família (caso dos trabalhadores familiares não remunerados).

O primeiro tipo de renda não monetária seria um fluxo de renda interrelacionando de um lado um empregador - por exemplo uma unidade famíliar que empregue uma empregada doméstica, ou por exemplo um senhor de engenho que "dê" moradia a seus trabalhadores - e de outro lado um trabalhador, que vende sua força de trabalho e que recebe em contrapartida uma renda, em parte monetária - a qual servirá para a compra dos bens e serviços necessários à sua subsistência enquanto força de trabalho ativa - e em parte não monetária, isto é, diretamente bens e serviços. Essa parte não monetária pode constituir-se na alimentação e dormida de uma empregada doméstica, na moradia de um trabalhador rural na propriedade de seu empregador, etc. e é explícita no "contrato" de trabalho - seja ele formalizado segundo a lei ou não - entre o trabalhador e seu empregador. Ela é constitutiva do próprio conteúdo do emprego em questão, fazendo parte de suas condições de trabalho. Ora, isso não quer dizer que esses elementos constitutivos das condições de trabalho destes trabalhadores - dos quais a percepção também de uma renda não monetária é um indício - sejam uma vantagem para eles como quer fazer crer a parte situacionista do debate já mencionado. Ainda mais, a própria imputação da renda não monetária à renda monetária desses trabalhadores endossa inconscientemente a crença neste caráter "vantajoso", visto que essa imputação não é acompanhada da análise (ou pelo menos da referência) das implicações que têm esses elementos para o trabalhador na sua relação com o empregador: maior dependência econômica e extra-econômica daquele com relação a este, tendência ao monopólio da utilização da força de trabalho do trabalhador pelo empregador (rigidez do mercado de trabalho). Essa'parte não monetária da renda do trabalhador é regida portanto pelo tipo específico de mercado de trabalho em que está inserido esse trabalhador.13 13 Note-se que não se falou do "mercado de trabalho" em geral, sem qualificações, justamente porque esse mercado de trabalho específico tem por características a menor mobilidade do trabalhador. Além disso, a contrapartida do trabalhador à renda não monetária que lhe é concedida pode ser contabilizada pelo empregador como uma dívida "extra-econômica" (política), de lealdade, por exemplo. Deve-se levar em conta ainda, nesse tipo de emprego, a possibilidade que a totalidade da renda do trabalhador seja não monetária. Em tempo: por que nem se pensa em imputar a renda não monetária dos assalariados superiores e "gerentes", como por exemplo, carro da empresa à disposição e outros prêmios?

O segundo tipo de renda não monetária, ao contrário, é regida não pelo princípio do mercado - prestação de força de trabalho pelo trabalhador, contra-prestação de renda monetária e não monetária pelo empregador - mas pelo princípio da redistribuição:14 14 Para uma discussão da natureza distinta dos sistemas econômicos baseados nos princípios alternativos da reciprocidade, da redistribuição e da troca de mercado cf. Polanyi, K. et alii. Trade and markets in the early empires. N. York, The Pree Press, 1957. do chefe de família a trabalhadores famíliares não pagos, no quadro de uma organização do trabalho totalmente distinta, em que as condições de trabalho são geralmente controladas pela família. No caso do pequeno produtor agrícola independente, a organização do trabalho famíliar, o cálculo econômico do chefe de família, referemse a um sistema econômico regido por leis de funcionamento distintas das leis do mercado de trabalho e das condições de trabalho nas empresas.15 15 Deve-se atentar também para a discussão acima referida sobre o caráter "vantajoso" ou "não vantajoso" da situação do trabalhador rural que percebe esse tipo de renda não monetária, lembrando-se da contrapartida "extra-econômica" que pode ser exigida pelo empregador.

Pode-se ter ainda um caso mais complexo de interrelação entre renda monetária e renda não monetária: o do trabalhador rural que percebe um salário mais a moradia na propriedade do empregador. Nessa moradia muitas vezes está incluído um pequeno sítio onde o trabalhador e sua família podem produzir um complemento à sua alimentação e ainda vender alguma coisa no mercado.16 16 Cf. Chayanov. The theory of peasant economy. Illinois, The American Economic Association, Irwin, 1966. Cf. também, para análise da unidade de trabalho familiar camponesa em uma área do Nordeste, a partir das categorias dos próprio agentes dessas unidades: Heredia, B. & Garcia, A. Trabalho familiar e campesinato. América Latina CLAPCS, n. 1, 1971.

Não se pretende aqui listar e multiplicar casos-limites ou casos extraordinários que se constituiriam em um desafio à estatística e à capacidade de imputação. Pretende-se apenas ao contrário:

a) assinalar a complexidade e a freqüência de diferentes formas de organização econômica e sua interrelação, provocando a necessidade de se repensar as próprias categorias econômicas utilizadas, categorias essas aparentemente universais pelo seu caráter abstrato, mas inteiramente referidas a uma economia capitalista. Nesta parte do artigo (das imputações), Fishlow não comete nenhuma transplantarão de conceito. No entanto, as próprias imputações reduzem as categorias específicas a essas diferentes formas de organização econômica, a categorias monetárias próprias à economia capitalista;

b) adiantar que a compreensão dessa complexidade de formas econômicas pode ser efetivada pela substituição das representações dos pesquisadores econômicos ou estatísticos referidas à sua própria classe social, pelo controle da abordagem antropológica que analisa as representações dos próprios agentes econômicos do grupo social estudado sobre sua prática econômica. Isto é, os pesquisadores inconscientemente tomam suas categorias de pensamento referidas ao seu próprio meio social como verdade universal. Um primeiro caminho de rompimento deste impasse é portanto tentar o acesso ao conhecimento daquela realidade social específica, pela observação direta e pela análise do que pensam sobre ela os próprios agentes sociais que a vivem;

c) assinalar que, com essa análise substantiva prévia, a mensuração estatística, a contabilização e as imputações que se fizerem necessárias multiplicarão sua eficiência, por sua maior adequação à realidade social a ser medida. Isto é, a possibilidade de mensuração é muito dependente da existência de relações monetárias. Ao transformar a renda não monetária em renda monetária, toda uma série de relações sociais - que estão intimamente ligadas às relações econômicas - é abstraída, obscurecendo a realidade social. Por outro lado, não há receitas prontas para a realização dessa "mensuração adequada", a não ser - além da competência estatística do pesquisador - o conhecimento da realidade social em suas diversas formas específicas.17 17 Cf. Cuisenier, Jean. Sur la construction d'un tableau economique cantonai en pays sous-développés. Tiers Monde, t. 3 n. 11, p. 361 e 392, juil./sep. 1962.

3. A "pobreza absoluta" e a subsistência

A preocupação imediata com a mensuração está também presente na parte 1 do artigo de Fishlow quando ele procura construir um padrão de pobreza nacional uniforme. O autor procura construir esse padrão nacional através de um nível mínimo absoluto de renda, em contraposição à variação regional de salários mínimos diferenciados. A preocupação com níveis de renda absolutos nos parece uma preocupação legítima. Uma determinada estrutura de distribuição de renda pode ser muito concentrada mas com um nível mínimo absoluto tal, que a força de trabalho correspondente a esse nível mínimo possa satisfazer suas necessidades básicas sem prejudicar sua reprodução enquanto força de trabalho. Uma outra estrutura de distribuição de renda pode ser menos concentrada, mas ter um nível mínimo absoluto tal, que a reprodução da força de trabalho correspondente a esse nível se faça sem satisfazer às suas necessidades básicas, inclusive ao nível biológico. As diversas combinações possíveis entre concentração da renda e natureza do nível mínimo absoluto de subsistência encontram-se realizadas no Brasil na pior das hipóteses: "A tragédia da situação brasileira, como a da maioria dos países em desenvolvimento, é que tanto a distribuição quanto o nível vão juntos" (p. 392). Se com relação à distribuição da renda um determinado trabalho sobre as estatísticas disponíveis pode dar uma idéia da importância da concentração de renda, um outro trabalho, sobre as informações qualitativas e quantitativas com relação às doenças que se abatem sobre a força de trabalho, pode dar uma idéia sobre a natureza do nível de subsistência, insuficiente do ponto de vista biológico, de grandes parcelas da força de trabalho brasileira.18 18 Talvez se possa distinguir, entre as doenças do trabalho, aquelas por excesso de trabalho ou insalubridade das condições de trabalho - caso freqüente entre operários fabris e outros operários - daquelas por carência alimentar, seja em relação ã extensão ou intensidade do trabalho executado, seja ao nível absoluto (cujos maiores exemplos são os trabalhadores rurais assalariados). Cf. os estudos do Instituto de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco.

Portanto, ao lado da desigualdade da distribuição de renda, é necessário e legítimo preocupar-se com a grandeza absoluta da renda, especialmente a dos grupos populacionais de mais baixa renda. Essa grandeza absoluta da renda é absoluta com relação à distribuição da renda pela população total, pois independe do grau de sua concentração. Mas ela não pode ser tomada como absoluta no sentido de definir um padrão de subsistência mínimo ao qual toda a população nacional estaria referida. Pois essa grandeza absoluta da renda - absoluta em relação ao grau de concentração da distribuição - é relativa ao nível de subsistência necessário à manutenção dos diferentes grupos sociais de que essa população se compõe. Por isso, a construção estatística de um padrão uniforme de pobreza nacional deve ser examinada com cuidado. Á construção desse padrão se faz através de uma série de arbitrários estatísticos,19 19 O salário mínimo real do NE é tomado como o limite inferior aceitável de renda para uma família de 4,3 pessoas. Para o Brasil rural tomou-se o salário que prevalece nas áreas rurais do NE; para o NE urbano tomou-se o nível salarial do município de tamanho médio; e para todos os outros residentes urbanos, é aplicado o nivel do NE + 15%. A linha de pobreza para diferentes tamanhos de família é definida com ajuda da elasticidade da despesa em alimentação com respeito ao tamanho da família (economia de escala da família com respeito à alimentação. (Cf. p. 393.) mas não são esses arbitrários inevitáveis o aspecto mais discutível desta construção e sim a redução do fenômeno da pobreza a um padrão único, aplicável em escala nacional. O autor discute a necessidade da construção desse padrão nacional de pobreza em oposição aos salários mínimos regionais legais, assinalando como de fato esses salários mínimos não satisfazem às demandas mínimas da população.

Estando de acordo com a observação sobre os salários mínimos, supomos entretanto que a questão não está aí. Acreditamos que a questão está, ao contrário, na oposição entre: a) a pretensão ao estabelecimento de um "nível absoluto de bem-estar" (p. 394); b) a atenção à importância do nível de subsistência da força de trabalho.20 20 Isto é, a confrontação entre a renda mínima percebida por uma parte da força de trabalho e suas necessidades de subsistência. Se essa renda mínima independe do grau de concentração da renda, no entanto essas necessidades de subsistência são relativas pois se referem a diferentes grupos sociais.

Com efeito, o autor tem em mente a primeira alternativa: "Um índice de pobreza baseado na variação de salários mínimos incluiria portanto todas as pessoas nas faixas mais baixas das diferentes distribuições regionais independentemente de seu nível absoluto de bem-estar. Ao invés disso, um mínimo absoluto foi adotado, ajustado para a aparentemente muito menor variação nos preços relativos" (p. 394). A construção desse mínimo absoluto implica em uma homogeneização artificial das diferentes necessidades de subsistência da força de trabalho para sua manutenção enquanto tal conforme sua inserção diferencial no processo produtivo e na estrutura ocupacional. As necessidades de subsistência de um trabalhador industrial urbano têm uma composição diferente das necessidades de subsistência de um trabalhador rural (exemplo: aluguel, transportes, dependência total ao mercado de bens de consumo, etc). Assim, a pobreza deve ser considerada como relativa às necessidades que dizem respeito a diferentes grupos de trabalhadores. Dessa forma, a pobreza está em toda parte na sociedade brasileira, e não apenas concentrada no campo, como enfatiza o autor. Fishlow deixa de incluir grupos de trabalhadores dos grandes centros urbanos na categoria de pobreza porque o padrão de referência da pobreza se refere a trabalhadores do Nordeste. No entanto, a dificuldade dos trabalhadores dos grandes centros urbanos em satisfazer suas necessidades elementares, e que tem suficientes indícios empíricos para sua comprovação,21 21 O autor, ele mesmo, dá grande importância à política de contenção salarial em sua explicação da maior concentração da renda nos 10 anos, tanto no artigo aqui analisado quanto em Brazilian income size distribution - another look, a ser publicado pela revista Dados (IUPERJ). Essa já é uma pista para se ver a pobreza dos operários urbanos. Cf. o trabalho Pesquisa de padrão de vida da classe trabalhadora da cidade de São Paulo, resultados preliminares. DIEESE, 1969, mimeogr. Por outro lado, o crescimento da taxa de mortalidade infantil na cidade de São Paulo nos últimos anos nos dá outro indício dessa pobreza. retrata seu estado de privação, necessário à caracterização de sua pobreza.

Assim, o critério limitativo do nível absoluto de bem-estar, com base no qual "31% das famílias brasileiras em 1960 não se aproximaram de um nível aceitável de renda" (p. 394), parece limitativo demais, não tanto pela percentagem que apresenta como pelo fato de eludir implicitamente ao caráter diferencial e relativo da renda conforme as necessidades de subsistência de diferentes tipos de trabalhadores para sua manutenção enquanto trabalhadores ativos desse mesmo tipo.

Deve-se assinalar que a mensuração de um padrão de pobreza absoluto na literatura sobre o assunto é em grande parte conseqüência de um debate norte-americano a partir da década dos 60. A pobreza é definida de maneira oficial e dá direito a um auxílio público. Mas se, ao contrário, a pobreza é referida a nível de subsistência, a própria pobreza americana poderá ser repensada e ampliada.22 22 É interessante notar-se que o autor menciona que, a ser medida pelo padrão de pobreza dos EUA, quase toda a população brasileira seria pobre (p. 9 do documento mimeografado, primeira versão). Se ele constrói um padrão de pobreza específico para o Brasil, é porque implicitamente ele admite a diferença entre a pobreza americana e a brasielira, admitindo portanto que a pobreza é relativa a diferentes países. Por que então seria ela absoluta dentro de um país como o Brasil, e não referenciada a diferentes grupos de trabalhadores? Com relação à pobreza americana, cf. a introdução de Roach & Roach em Poverty. London, Penguin Modem Sociology Readings, 1972; e cf. Baran & Sweezy. Capitalismo monopolista. Rio de Janeiro, Zahar, 1966 p. 285-8. Mas a referência ao nível de subsistência necessita da consideração do conceito de subsistência. Além disso, o conceito de subsistência é complementar ao conceito de excedente. (Os conceitos de trabalho necessário e sobretrabalho podem ser considerados equivalentes teoricamente mais rigorosos do que subsistência e excedente respectivamente.) Evidentemente, esses conceitos só podem manter-se enquanto tais quando inseridos em um quadro teórico ao qual são estruturalmente indispensáveis. O apelo a esses conceitos no quadro de uma construção neoclássica ou keynesiana seria de pouca eficácia teórica devido à heterogeneidade e por vezes incompatibilidade de conceitos. O sentido que pode haver na utilização de um nível de subsistência absoluto é uma subdiscussão que se inclui nessa discussão geral subsistência-excedente: a possibilidade de determinação de um nível de subsistência biológica parece ser uma argumentação frágil diante da necessidade da consideração do nível de subsistência em seu contexto social e cultural e portanto relativo a diferentes tipos de sociedades ou a diferentes grupos sociais.23 23 Cf. a discussão sobre o excedente na antropologia econômica envolvendo Harry Pearson, Marvin Harris e George Dalton (em Trade and market, op. cit. e na revista American Anthropologist) e cf. C. Bettelheim, capítulo do excedente in Planificação e crescimento acelerado. Que se baseia nas contribuições de P. Baran; Zahar.

Com relação tanto às imputações, quanto ao padrão nacional de pobreza, é interessante notar-se finalmente que as necessidades de mensuração imediata, sem uma análise mais detida da realidade social, levaram o autor:

a) a fazer abstração da contrapartida da renda não monetária do trabalhador que é sua maior dependência ao empregador. E isto apesar de ter imputado tal renda à sua renda monetária. Isto implica numa subestimação da condição de privação desse tipo de trabalhador (ver parte 2 deste artigo);

b) a subestimar a condição de privação de trabalhadores urbanos ao construir um padrão nacional de pobreza absoluta.

4. "Capital humano": uma contradição nos termos?

A construção desse padrão nacional de pobreza absoluta traz também poucas conseqüências do ponto de vista do conhecimento, como se pode observar da listagem das "características diferenciadoras da pobreza" feita pelo autor.24 24 As "características diferenciadoras da pobreza" são: baixo nível educacional, concentração em atividades agrícolas, residência em áreas rurais (location in, and non migration from, rural áreas), número limitado de trabalhadores por família, residência no NE, tamanho familiar e número de crianças maior que a média, menores oportunidades relativas para a educação dessas crianças (p. 394). Essa listagem que se refere a dados educacionais, regionais, setorias e demográficos (tamanho da família) sugere-nos a pergunta do critério de escolha dessa lista e não de outra com mais itens. Por que a não inclusão de itens relativos à alimentação (que deve desempenhar um papel fundamental na concepção de um nível absoluto de renda, independente da distribuição de renda mas relativo ao nível de subsistência da força do trabalho), saúde (idem), posse e/ou propriedade da matéria-prima e/ou dos instrumentos de trabalho, regime de trabalho, forma de remuneração, por exemplo? Onde deve acabar essa lista se descobrirmos mais e mais características diferenciadoras? Evidentemente essas características diferenciadoras estão referenciadas à amostra do censo, e portanto são limitadas a priori pelo tipo de dados coletados no censo. Mas o autor não enfatiza essa limitação, o que pode levar à substantivação abusiva dessas características pela redução do fenômeno da pobreza a uma dimensão exclusivamente estatística.

Com efeito, a parte 2 de seu artigo (parte 3 da primeira versão), visa explicar a desigualdade da distribuição de renda em função das variáveis idade, educação, setor e região, através da aplicação de um índice de desigualdade desenvolvido da "teoria da informação" (índice de Theil). Aqui, também, deve-se distinguir entre a explicação econométrica da desigualdade da distribuição de renda e da pobreza - que se reduz a uma explicação em função de fatores decompostos escolhidos com referência às possibilidades estatísticas - e uma explicação daqueles mesmos fenômenos através de uma articulação rigorosa de conceitos. As próprias variáveis escolhidas para a explicação econométrica - nas quais também se baseiam as características diferenciadoras da pobreza - têm um efeito explicativo limitado segundo os critérios do próprio índice de Theil: "Passando finalmente para os resultados substantivos, vários achados aparecem. Em primeiro lugar, as diferenças de idade, setoriais, regionais e educacionais explicam pouco mais do que a metade da desigualdade de renda observada" (p. 396, grifo nosso).

Essas explicações econométricas apresentam um problema de eficácia explicativa relativamente à realidade social, quando reduzem as unidades sociais básicas em que a população se estrutura (para atuar com respeito à distribuição de renda) a indivíduos. O autor salienta, na nota 18 da primeira versão de seu trabalho, que selecionou as variáveis idade, setor, região, educação, por seu poder de explicação das variações de renda ao nível individual. No entanto a compreensão da inserção dos indivíduos em grupos sociais determinados, referenciados ao sistema econômico, parece ser fundamental para o conhecimento tanto do modo como a renda se distribui por subgrupos populacionais quanto dos movimentos de redistribuição, resultante de forças "emitidas" por esses grupos sociais e com a mediação da intervenção estatal.25 25 Um estudo exaustivo segundo essa abordagem para a França, Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha é o de Marchai, Jean & Lecaillon, Jacques. La repartition du revenu national. Paris, Ed. Genin, 4 v.

Mas, além disso, essas explicações econométricas se baseiam em determinados modelos implícitos da realidade social, cujos fundamentos não são discutidos. Fishlow tem o mérito de explicitar sua utilização de modelos implícitos, e mesmo de discuti-los, embora não os seus fundamentos. Com efeito, o interesse do autor nessas variáveis e a importância dada à educação na enumeração das características diferenciadoras da pobreza refere-se ao seu interesse pelo debate interno - travado pelos autores situados na mesma posição de Fishlow com relação ao campo intelectual - a propósito da educação e do chamado "capital humano".26 26 "... a permutabilidade (trade-off) entre redistribuição e crescimento é geralmente exagerada. Há possibilidade de se conseguir ambos simultaneamente através da melhoria da qualidade dos recursos humanos" (p. 395). "A importância dada à idade e à educação na decomposição precedente dá suporte a um modelo implícito de acumulação de capital humano como determinante fundamental dos níveis de renda diferenciais e da desigualdade" (p. 398). Embora o autor desenvolva uma apreciação crítica das abordagens do tipo capital humano e relativize a importância mágica dada à educação nesse segmento do campo intelectual, o fato de ter que se referir a esse debate longamente, encaminhar sempre sua análise estatística no sentido da inclusão da variável educação em detrimento de outras variáveis e de sua inclusão privilegiada nas características diferenciadoras da pobreza em detrimento de muitas outras características pensáveis à primeira vista, demonstra o peso destas abordagens nesse segmento do campo intelectual, e a dificuldade dos autores críticos em se desvencilharem desse peso - que ofusca muitas outras características e variáveis a serem desenvolvidas.27 27 Um resumo (livre) da crítica à "abordagem capital humano" por Fishlow, merece ser apresentado: os modelos de capital humano implicam em causalidade que vai do investimento à renda. No entanto os dados utilizados para implementar a teoria são corrompidos exatamente pela relação oposta (da renda ao investimento). No caso do Brasil, essa relação é importante, onde a renda da família é um dos determinantes significativos da escolaridade. Se a educação superior é monopolizada pelos já ricos, e eles passam para suas crianças oportunidades de renda não associadas com a atual produtividade, aumentar o número de pessoas educadas não levará ao padrão de resultados esperado. Persistência da desigualdade (não presente no modelo): o sistema educacional brasileiro ele próprio é um importante mecanismo para garantir a manutenção da estrutura existente, racionando graus (diplomas) não apenas para os já ricos, mas também predominantemente para aqueles com pais educados. Se um maior acesso ao treinamento é assegurado, isso não significa que outros mecanismos institucionais favorecendo a persistência de diferenciais de renda não emergirão. É necessário lembrar-se não somente o quanto da desigualdade pode ser explicado pela educação, mas também quão pouco ela explica (p. 398). As observações críticas de Fishlow resumidas acima são apenas, segundo o autor, observações contra a "aceitação não crítica do modelo" (p. 398), mas a própria natureza do conceito "capital humano" não é questionada. Com efeito, toda a parte 2 do artigo de Fishlow, que visa "alargar mais geralmente nossa visão para os fatores estruturais causadores da desigualdade entre trabalhadores (to broaden our scope to the structural factors making for inequality among workers more generally - p. 395), é em grande parte dedicada à educação quando uma articulação (e não simples enumeração) de múltiplos fatores seria necessária para um melhor entendimento dessa desigualdade. Cabe refletir, no entanto, sobre o conceito mesmo de capital humano e expressões como "acumulação de capital humano".28 28 Desenvolvemos aqui uma reflexão sobre esse conceito devido à importância que ele assuma no atual debate sobre a distribuição de renda entre os especialistas em econometria, como variável estratégica de mobilidade social. Cf. Langoni, C. Depois do boom virá a distribuição. Jornal do Brasil, 26-11-72; e Distribuição de renda e desenvolvimento econômico do Brasil. Estudos Econômicos, v. 2, n. 5, 1972.

Os equívocos que o conceito de capital humano encerra remetem à própria concepção que têm as diversas variantes da escola neoclássica do conceito de capital. Os neoclássicos tratam esse conceito não como uma relação social específica própria a uma sociedade específica, delimitada historicamente - mas como um "fator de produção" universal, existente em qualquer sociedade humana. Além de dar um status teórico universal a um conceito historicamente específico, a não-compreensão da relação social específica que é subjacente ao conceito de capital faz com que esse conceito para os neoclássicos ora designe os meios de produção (ou às vezes somente a maquinaria), o chamado "capital físico", ora designe o capital financeiro, sem uma conceituação precisa desse conjunto de fenômenos. E a remuneração do detentor do capital é explicada por alguns desses autores (Sênior, Marshall, Fisher, Bõhm-Bawerck) como conseqüência de sua abstinência de consumo ("teoria da espera"). T. W. Schultz, herdeiro dessa corrente, estendeu esse conceito sem especificidade de período histórico nem de relação social, para designar também "investimentos na pessoa humana" que se reflitam na força de trabalho. Com o conceito de capital humano ele espera explicar não somente os fatores que faltam na teoria neoclássica para dar conta dos ganhos de produtividade, mas também a alta de salários reais do "fator trabalho" nos países desenvolvidos pelos ganhos resultantes da "taxa de retorno", devido ao "tempo de espera" do indivíduo na sua educação formal.29 29 "Os trabalhadores transformaram-se em capitalistas, não pela difusão da propriedade das ações da empresa, como o folclore colocaria a questão, mas pela aquisição de conhecimentos e de capacidade que possuem valor econômico." Cf. Schultz. Investment in human capital. American Economic Review, v. 51, p. 1-17, 1961; e cf. p. 35 da tradução brasileira: In: O capital humano. Zahar, 1973. O conceito de "capital humano" complementaria assim o conceito de "salário" de L. Robbins como sendo o resultado da luta pela escassez e como tal aplicável não só aos assalariados como ao empresário. Cf. Introdução de Sweezy. Teoria do desenvolvimento capitalista. Zahar, 1962.

Apesar do conceito de capital humano estar hereditariamente impregnado dos mesmos pecados de falta de rigor metodológico que o conceito de capital dos neoclássicos - o qual se auto-outorga uma falsa validade universal - pode-se tomar aquele conceito como categoria de análise, e constatar-se que ele tem um maior valor explicativo involuntariamente enquanto categoria ideológica do que enquanto conceito científico rigoroso.

Com efeito, a própria conjugação dos termos formadores do conceito parece encerrar, mais que uma ambigüidade, uma contradição nos termos. Ambigüidade pela imagem reificadora que sugere a conjugação desses termos: a redução do humano à qualidade de capital. Mas um conceito tem pretensões teóricas maiores que uma simples imagem, e o seu caráter reificador não parece sequer incomodar os formuladores e usuários desse conceito. Contradição nos termos devido não só à diferença entre o conceito capital e o adjetivo qualificativo humano, diferença esta que é fundamental para a própria constituição do conceito de capital, mas à antinomia entre o que há de humano no processo de produção (ou mais geralmente, em um sistema econômico) - a força de trabalho - e a capitalização do processo produtivo, que além de tender a eliminar progressivamente, de maneira relativa (na indústria; de maneira absoluta na agricultura) a força de trabalho ativa realocando-a constantemente para novos setores (com intervalos crescentes de desemprego e subemprego), subtrai o controle do processo produtivo das mãos da força de trabalho direta e a monopoliza nas mãos do funcionamento automatizado do capital. Nesse sentido, a reificação que a conjugação dos termos encerra, tem toda sua eficácia como imagem. Além disso o caráter de reificação, e não de antropomorfismo, da imagem que sugere a conjugação dos termos, pode ser visto na própria diferença de natureza entre o termo capital tendo pretensão de conceito, e o termo humano, adjetivo qualificativo.

Se a conjugação dos termos formadores da categoria capital humano parece mais sustentar-se enquanto imagem do que enquanto conceito - pela própria hibridez não explicitada de sua conjugação - essa imagem parece ser esclarecedora, à revelia de seus formuladores e usuários, ao apontar para a apropriação da mente e da habilidade pelo capital, que se expressa não somente pela subtração do controle do processo produtivo por parte da força de trabalho direta, mas pela formação e socialização da força de trabalho no sentido do aperfeiçoamento de sua funcionalidade ao capital. Por outro lado, a assimilação do humano ao capital,30 30 Essa assimilação, ou extensão abusiva, faz abstração das características intrínsecas e diferenciadoras do "capital" e da força de trabalho - assimilação esta que se torna possível pela própria homogeneização de fatores que implica a consideração de "fatores de produção" (terra, trabalho, capital: coisificação do trabalho e universalização do capital) compondo Uma "função de produção" na teoria neoclássica. Cf. também a extensão análoga do termo "recursos humanos" proveniente do tradicional termo "recursos naturais". implícita nessa categoria, é insustentável. Se é evidente que a força de trabalho é de grande funcionalidade ao capital (uma funcionalidade essencial), tal aspecto funcional não elimina o fato de sua diferença: o capital é propriedade permanente da empresa mas o trabalho humano vende a utilização de sua força de trabalho - que é intrínseca à pessoa do trabalhador31 31 Mesmo no caso da escravidão, quando a própria força de trabalho é propriedade do senhor de escravos através da propriedade da pessoa do escravo, deve-se distinguir a força de trabalho do "capital". - a cada instante. Tratando-se do chamado "capital físico", ele é uma propriedade definitiva quando de sua compra pelo empresário. A utilização da força de trabalho, ao contrário, é "negociada" periodicamente no mercado de trabalho, segundo diferentes conjunturas, entre seu proprietário - o próprio trabalhador, que é a própria força de trabalho em carne, osso e alma - e o empresário, representante do capital. Além disso, a reposição da força de trabalho para a produção não é controlada diretamente pelo empresário, mas é em grande parte do domínio da vida privada do trabalhador. Entre esses elementos de reposição da força de trabalho em grande parte fora do domínio do empresário - além da subsistência material do trabalhador e de sua família (alimentação, vestuário, habitação etc.) - o elemento educação e qualificação da força de trabalho toma uma importância crescente em relação ao processo produtivo. A "ciência prática" do artesão e do pequeno agricultor, transmitida de geração a geração, é destruída pela consolidação e expansão da revolução industrial que transforma a antiga dependência do instrumento e objeto de trabalho em relação ao trabalhador na dependência inversa do trabalhador em relação ao instrumento e objeto de trabalho. A aplicação da ciência e tecnologia à produção produz um novo apêndice da máquina - o trabalhador. Essa ciência aplicada, agora, é diferente da antiga "ciência prática selvagem", pois só tem acesso a ela uma fração reduzida da força de trabalho - à exclusão da força de trabalho direta - necessária à supervisão e gerência do capital. A força de trabalho direta, no entanto, é atribuído o acesso a uma formação visando sua maior adequação e funcionalidade ao instrumento e objeto de trabalho assim como ao "ambiente" de trabalho, tentando dotá-la das habilidades técnicas necessárias e das normas de conduta e comportamento (explícitas ou não) também necessárias. A pequena parcela da força de trabalho potencial destinada a supervisionar e gerir o funcionamento da produção, por outro lado, é atribuído o acesso ao "ensino superior", para a aplicação da ciência, da tecnologia e da administração "racional" à vida econômica, e dirigindo assim a grande parcela complementar da força de trabalho. Essas necessidades crescentes, por parte do capital, de adequação da força de trabalho, estimulam a intervenção junto ao sistema educacional para a adequação conveniente da mente da força de trabalho atual ou potencial. A ênfase no capital humano junto ao segmento do campo intelectual em questão pode situar-se nesse contexto, cujo corolário é a tendência à adequação do conhecimento humano para o lado do conteúdo do termo capital contra o lado do conteúdo do termo humano - na medida em que evoque os interesses das pessoas constitutivas da força de trabalho - para utilizar os termos polares decompostos da combinação singular do termo capital humano.

Ainda mais, esse contexto tende a abafar a profundidade do pensamento teórico, subordinando-o aos interesses de sua aplicação prática ao funcionamento atual da produção e de suas condições sociais subjacentes. Assim, esse conceito - capital humano - apesar da confusão teórica que realiza, representada pela imagem reificadora, demonstra em sua aplicação prática a distinção mesma entre força de trabalho - a qual depende da mente do trabalhador - e capital. Pois se não há distinção, se a mente do trabalhador é naturalmente adequada às relações sociais subjacentes ao conceito de capital, por que então "investir" no "aperfeiçoamento" da força de trabalho?32 32 Para um aprofundamento da relação entre a educação e a sociedade capitalista, cf. Bourdieu, P. La reproduction. Paris, Ed. Minuit, 1970; Althusser L. Ideologie et appareils idéologiques d'Etat. In: La pensée, juin 1970; e Dossier. Lusine et l'école. In: Les Temps Modernes, n. 301/302, 1971.

5. O fetichismo da produtividade

Na terceira parte de seu artigo Fishlow compara os resultados de suas estimações para o censo de 1960 com os resultados do censo de 1970, constatando um aumento na desigualdade da distribuição de renda. Ele faz então uma breve análise substantiva das possíveis causas desse aumento da desigualdade, incluindo nessa análise uma apreciação da política econômica governamental. Creio não ser inútil resumir aqui algumas de suas conclusões:

a) Fishlow enfatiza o período de 1964/1967, da "política de estabilização", como o período decisivo para o aumento da desigualdade, embora esse resultado não fosse de todo intencional.33 33 "The concentration of income resultant from stabilization was not wholly intentional" (p. 400). A desigualdade crescente resultou, no entanto, indiretamente das prioridades do governo: destruir a ameaça política que representavam os trabalhadores urbanos e reestabelecimento da ordem econômica baseada na acumulação privada de capital;34 34 "In a larger sense, however, the result was accurately indicative of priorities: destruction of the urban proletariat as a political threat, and reestablishment of an economic order geared to private capital accumulation" (p. 400).

b) devido ao fato da persistência - assinala Fishlow - das prioridades políticas acima aludidas, não é fácil ser otimista com relação às implicações da distribuição do rápido crescimento sob um longo período (p. 400);

c) os instrumentos de política econômica - é ainda Fishlow que assinala - tal como aplicados presentemente, dificilmente favorecem a igualdade (p. 400);

d) acrescenta o autor que é importante não dar ênfase exagerada nas possibilidades de influência que possam vir a ter políticas convencionais na distribuição da renda (p. 401);

e) fatores estruturais tais como a distribuição das oportunidades educacionais e a alocação setorial da força de trabalho não tendem a favor da igualdade, ao contrário (p. 401);

f) na ausência de uma alteração efetiva e de longo alcance nas atitudes governamentais, haverá pouco progresso e possivelmente regressão na distribuição de renda. É errado encarar tal resultado como uma lamentável conseqüência do rápido crescimento. Não há inconsistência necessária entre uma maior igualdade e um produto em expansão (p. 402).

A análise feita por Fishlow, nessa última parte de seu artigo, está, em linhas gerais, de acordo com as interpretações de Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares e outros autores.

Parece-nos, em contraposição, de interesse discutir uma dessas conclusões a que chega Fishlow e que é mencionada duas vezes no decorrer do artigo: a de que a pobreza brasileira é diretamente ligada a baixos níveis de produtividade, particularmente rurais, que devem ser atacados.35 35 "Brazilian poverty is directly linked to low leveis of productivity, particularly rural, that are subject to attack" (p. 402). Na parte 1 do artigo, que já examinamos anteriormente, Fishlow, tratando das características diferenciadoras da pobreza brasileira (ver nota 24 deste trabalho) e comparando-as com as características da pobreza americana, afirma que o problema brasileiro é o de possuir baixos níveis de produtividade na economia rural.36 36 "The Brazilian problem is more one of low leveis of productivity within the mainstream of the rural economy" (p. 394). A consideração pelo autor dos "baixos níveis de produtividade" da agricultura sem uma maior qualificação dessa produtividade, e sem uma análise da estrutura interna dessa agricultura, levam Fishlow a dar um passo a frente e propor a disseminação de técnicas modernas na agricultura e a aceleração geral do crescimento como método de combate à pobreza brasileira.37 37 "The policies appropriate to dealing with poverty are correspondingly differenciated. Negative income taxes, subsidies, and welfare programs have less role to play in Brazil than efforts directed at disseminating modern techniques in agriculture and accelerating growth more generally" (p. 394). Não se trata de contestar a veracidade da primeira parte da última frase citada de Fishlow, a saber, a ineficácia dos impostos, subsídios, etc., mas de combater a ingenuidade da segunda parte dessa frase, da crença mágica nas técnicas modernas e no crescimento acelerado como xarope para a pobreza brasileira.

A associação que faz entre pobreza e baixa produtividade parece-nos estar ligada a um certo fetichismo da produtividade. Pois, ao contrário, pode haver pobreza onde há alta produtividade, como é o caso, por exemplo, dos trabalhadores assalariados das mais modernas usinas de açúcar e é o caso também de muitos grupos de operários urbanos (exemplos não faltam). Ora, essa associação denota uma utilização pouco rigorosa da categoria produtividade:

a) o autor parece pensar na produtividade própria à moderna empresa capitalista, utilizando-a como padrão para qualquer outro tipo de unidade de produção;

b) abstrai o fato de que a pobreza coexiste e mesmo se amplia com a alta produtividade inerente ao capitalismo.

Com relação ao ponto (a) : a categoria produtividade não pode ser vista da mesma maneira em qualquer tipo de organização econômica. Se em alguns tipos de organização econômica o trabalhador direto tem o controle direto do processo de trabalho em que está inserido e portanto de sua produtividade, em outros tipos de organização econômica esse controle direto não existe, e ao contrário, a cooperação entre os trabalhadores e também sua produtividade é controlada por um agente econômico distinto. Assim em organizações econômicas em que o trabalhador direto não controla o processo de trabalho nem se apropria do produto, a categoria mesma de produtividade aponta para uma realidade contrária a seus interesses: a maior intensidade do trabalho que pode acarretar um aumento de produtividade beneficia não o trabalhador, mas o não-trabalhador. Não é por acaso que no sistema capitalista os empregadores têm por vezes vantagens em utilizarem a forma do "salário por peças" ou "por produção" - além dos "prêmios de produtividade" - já que essa forma liga o interesse dos trabalhadores diretos pelo salário à produtividade desejada pelo empregador, tentando assim atenuar a falta de ligação entre o interesse do trabalhador e a produtividade, decorrente da própria organização do processo de trabalho. Fishlow parece não ver que a categoria produtividade, uma categoria simples, pressupõe uma categoria mais concreta como por exemplo a empresa capitalista, a plantation, ou o lote de terra de uma família camponesa - isto é, unidades de produção específicas, com uma organização econômica específica. Essa própria pressuposição da categoria simples à categoria concreta corta as asas da pretensão à universalidade (devido ao seu caráter mais abstrato) da categoria simples e a coloca em seus devidos lugares: a sua referência histórica. Mas essa não é uma deficiência própria a Fishlow: a própria não existência de uma teoria do processo de produção no aparato teórico neoclássico e keynesiano - o "inconsciente cultural" da maioria dos economistas - faz com que a categoria produtividade, referenciada unicamente ao produto final por unidade de tempo, seja tomada em um sentido trans-histórico.38 38 Fazendo abstração da divisão do trabalho, da cooperação e das formas de apropriação do excedente dentro do processo produtivo, a herança teórica neoclássica e keynesiana é, ao contrário, fascinada pela reificação do produto final e pelo mercado.

Com relação ao ponto (b) : a proposta de Fishlow, de "disseminar técnicas modernas na agricultura" e "acelerar o crescimento de maneira mais generalizada" para acabar com a pobreza rural parece contraditória com sua crítica à concentração da renda. Ao fazer abstração das relações sociais na agricultura brasileira ao formular essa proposta, ele faz também abstração do fenômeno da "acumulação primitiva" que o capitalismo exerce sobre os produtores diretos rurais. Em primeiro lugar, o autor não se pergunta pelo reverso da medalha da disseminação de "técnicas modernas na agricultura": a tendência à concentração da propriedade da terra, a qual tende a refletir-se no agravamento da concentração da renda. Essa propalada disseminação exerce portanto um primeiro tipo de efeito concentrador: a "fagocitose" dos proprietários mais fracos (que pode ir desde o pequeno camponês, até grandes fazendeiros mais fracos relativamente a concorrentes " tecnifiçados").39 39 Um exemplo histórico dessa "disseminação" e concentração decorrente da propriedade é a criação e expansão das usinas de açúcar, principalmente no NE e em São Paulo e, em menor grau, no Estado do Rio, em detrimento dos antigos "engenhos" que foram ou "fagocitados" ou reduzidos à condição de "fornecedores", cf. Engenhos e canaviais na vida política brasileira. Azevedo, Fernando de. Ed. Melhoramentos. Cf. também o romance Usina de José Lins do Rego. Em segundo lugar, o autor parece ignorar aqui, que, se a "tecnificação" da grande indústria urbana é expulsadora de mão-de-obra de maneira relativa (parte da mão-de-obra expulsa sendo absorvida por novos ramos criados pela industrialização de novas invenções técnicas depois de um período de desemprego ou subemprego), a tecnificação da agricultura é, no entanto, expulsadora de mão-de-obra de maneira absoluta (com a tecnificação, os "novos ramos" criados estão na indústria, e não na agricultura, daí a expulsão absoluta de mão-de-obra).40 40 Um exemplo: a introdução da "carregadeira" mecânica, que transporta a cana cortada do local do corte ao caminhão ou trem, eliminou os "cargos" de "cabo" (espécie de contramestre) e "cambiteiro" (transportador de cana no burro), além de eliminar vários cortadores de cana através da maior intensidade do trabalho dos cortadores remanescentes. Na medida da expansão dessa introdução, os trabalhadores expulsos terão cada vez menos meios de tornarem-se aptos a concorrer com os trabalhadores dos engenhos mecanizados, e não havendo, na agricultura, criação de novos ramos com essa introdução inovadora, a expulsão torna-se absoluta. Cf. também fenômeno de expulsão análogo com relação à pecuária. Tal expulsão, separando o trabalhador rural de seu emprego na agricultura, e, principalmente, separando-o do pequeno sítio, quando for o caso, do qual se serve para a produção de um complemento alimentar, força-o a vender nas piores condições possíveis sua força de trabalho, seja na cidade, seja no próprio campo, seja em áreas de fronteira agrícola. Esse processo de expulsão tem repercussões evidentes sobre o agravamento da concentração da renda tanto no campo quanto na cidade (pressão salarial pelos novos contingentes de trabalhadores) e principalmente sobre as condições de trabalho (levando-se em conta, na situação rural anterior do trabalhador expulso, o seu pequeno lote para a produção de um complemento alimentar).41 41 Cf. os fatores de expulsão da mão-de-obra rural apresentados por P. Slnger, em particular os "fatores de mudança", em Migrações internas: considerações teóricas sobre o seu estudo, s.d. mimeogr.

6. Conclusão: o fetichismo da estatística

A análise anteriormente desenvolvida visa a alertar contra mais um fetichismo: o "fetichismo da estatística", a adesão ao qual é um elemento de prestígio intelectual em certas esferas "tecnocráticas". Esse fetichismo consiste não na mensuração do que merece ser conhecido, mas ao contrário, consiste na crença de que só merece ser conhecido o que pode ser medido.42 42 Pois, "se toda coisa é susceptível de medida estatística, não se segue daí que a estatística seja a medida de toda coisa". Cf. Bourdieu, P. et alii. Travail et travailleurs en Algérie. Paris, La Haye, Mouton, 1963. p. 9-10. Tomando os dados estatísticos pela própria realidade empírica, muitos estudos estatísticos e econométricos não somente ocultam a possibilidade de outros tipos de pesquisa empírica como opõem o peso dessa pretensa realidade ao trabalho teórico rigoroso.

Por uma imputação apressada da renda não monetária, Fishlow de certa forma subestima o estado de privação dos trabalhadores rurais e dos trabalhadores domésticos, enquanto que pela construção de um padrão estatístico de pobreza absoluta ao nível nacional ele subestima a privação dos trabalhadores urbanos. Além disso, pela aceitação de modelos e proposições correntes, ele é levado a enfatizar a variável educação em detrimento de outras explicações para a desigualdade de rendas e a preconizar um aumento de produtividade rural e uma disseminação de técnicas modernas na agricultura que são contraditórios tanto com a desconcentração da renda, quanto com a diminuição da pobreza. Com os mesmos dados estatísticos por ele trabalhados, Fishlow poderia ter chegado a resultados diferentes dos aqui criticados, se amparado por um conhecimento da realidade social que orientasse seu trabalho de mensuração no sentido da adequação àquela realidade.

Somente então os próprios termos em que o debate está colocado para os especialistas em econometria poderiam ser rompidos, e a análise estatística se reencontraria tanto com as análises etnográficas e sociológicas da realidade social brasileira, como com a análise crítica da economia brasileira.

  • 3 Para o conceito de "campo intelectual" ver Bourdieu P., Campo intelectual e projeto criador. In: Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968. Cf. também a introdução de M. S. Palmeira em Latifundium et capitalisme: lecture critique d'un débat, thèse de 3ème cycle présentée à l'Université de Paris, 1971.
  • Os outros trabalhos de mensuração da distribuição da renda são: Cepal-Ilpes. La distribución dei ingreso en Brasil, 1970;
  • Hoffman, R., Contribuição à análise da distribuição de renda e da posse da terra no Brasil, tese de livre-docência apresentada à Escola de Agricultura da USP;
  • Duarte, J. C. Aspectos da distribuição de renda no Brasil em 1970, ESALQ-USP, 1971;
  • Langoni, C. Distribuição da renda e desenvolvimento econômico do Brasil. Estudos Econômicos. IPE-USP, v. 2, n. 5, out. 1972.
  • 16 Cf. Chayanov. The theory of peasant economy. Illinois, The American Economic Association, Irwin, 1966. Cf. também, para análise da unidade de trabalho familiar camponesa em uma área do Nordeste, a partir das categorias dos próprio agentes dessas unidades: Heredia, B. & Garcia, A. Trabalho familiar e campesinato. América Latina CLAPCS, n. 1, 1971.
  • 25 Um estudo exaustivo segundo essa abordagem para a França, Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha é o de Marchai, Jean & Lecaillon, Jacques. La repartition du revenu national. Paris, Ed. Genin, 4 v.
  • *
    Desejo agradecer as valiosas sugestões dos membros do Grupo de Pesquisas da FINEP, para o qual foi feito um relatório em que se baseou o presente artigo. Agradeço também a contribuição indispensável de membros do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional. As opiniões aqui desenvolvidas são de exclusiva responsabilidade do autor, e não das instituições mencionadas.
  • 1
    Cf.
    Jornal do Brasil de 26-7-1972. O Prof. A. Fishlow, da Universidade da Califórnia, trabalhou no Brasil em 1967 e 1968 como chefe do grupo de pesquisas resultante de um convênio entre o IPEA e a Universidade da Califórnia. O artigo Brazilian size distribution of income, feito no decorrer do ano de 1971, foi objeto de uma comunicação pelo autor no quadro da reunião anual da American Economic Association em New Orleans, em dezembro de 1971. Essa comunicação foi assistida por técnicos do Banco Mundial que fizeram chegar a McNamara o seu conteúdo. As declarações de McNamara na UNCTAD datam de abril de 1972. Logo em seguida, um resumo do trabalho de Fishlow foi publicado no
    Jornal do Brasil de 23-4-72. As respostas de membros do governo à crítica à concentração de renda serão referidas neste artigo como "parte situacionista" do debate.
  • 2
    O artigo de Fishlow foi publicado na
    American Economic Review de maio de 1972, sob o título de Brazilian size distribution of income. Tem também uma versão mimeografada anterior, com o mesmo titulo, que contém explicitação maior de seus métodos de imputação. A seguir, quando citarmos apenas a página, sem menção à obra, a citação refere-se ao artigo da revista. As citações da primeira versão mimeografada serão explicitadas, como sendo da "primeira versão".
  • 3
    Para o conceito de "campo intelectual" ver Bourdieu P., Campo intelectual e projeto criador. In:
    Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968. Cf. também a introdução de M. S. Palmeira em Latifundium et capitalisme: lecture critique d'un débat, thèse de 3
    ème cycle présentée à l'Université de Paris, 1971. Os outros trabalhos de mensuração da distribuição da renda são: Cepal-Ilpes.
    La distribución dei ingreso en Brasil, 1970; Hoffman, R., Contribuição à análise da distribuição de renda e da posse da terra no Brasil, tese de livre-docência apresentada à Escola de Agricultura da USP; Duarte, J. C.
    Aspectos da distribuição de renda no Brasil em 1970, ESALQ-USP, 1971; Langoni, C. Distribuição da renda e desenvolvimento econômico do Brasil.
    Estudos Econômicos. IPE-USP, v. 2, n. 5, out. 1972.
  • 4
    Um trabalho que tratasse especificamente desse debate poderia vê-lo como ilustração da maneira em que um debate público surge atualmente no País: que agentes sociais participam, que tipo de produção intelectual é acionada, que formas de legitimação são acionadas.
  • 5
    Entre essas regras especificas de legitimação estão: o valor dado ao titulo de Ph.D . em universidades americanas cotadas, o conhecimento e a atualização com os últimos modelos econométricos, a formulação de sugestões para a política econômica imediata. C. Langoni realizou um estudo encomendado pelo Ministério da Fazenda ao IPE/USP sobre a distribuição de renda, cujos resultados foram anunciados pelo Ministro em junho de 1972. Para a polarização do debate em torno desses dois autores, cf.
    Veja de 7-6-1972 e o artigo de Fishlow, Brazilian size distribution of income, another look, e a resposta de Langoni, a serem publicados na revista
    Dados.
  • 6
    Cf. os trabalhos recentes de C. Furtado, M. Conceição Tavares, José Serra, P. Singer, F. de Oliveira.
  • 7
    Limitamo-nos à análise do trabalho de Fishlow, embora uma análise da montagem que se pode fazer do debate entre todos esses autores "estatísticos" seja importante e necessária. Na época de redação do relatório em que esse artigo se baseia, não tivemos acesso aos outros trabalhos, e não foi possível analisá-los depois.
  • 8
    O aluguel imputado foi calculado a partir das características da amostra do censo. O aluguel atual pago pelos inquilinos, imputado
    aos proprietários para calcular o valor dos serviços que seus imóveis lhes prestam, foi obtido através de uma regressão linear em que o aluguel é tomado como função das características do domicilio do inquilino, da renda familiar, do tamanho da família e do aluguel propriamente dito (cf. p. 5 da primeira versão).
  • 9
    As informações relativas a essa imputação não estão contidas na amostra do censo como no caso dos aluguéis: o autor utilizou-se de estudos de orçamentos familiares referentes a 1962 e 1963 realizados em sete estados:
    Food consumption in Brazil, family budget surveys in the early 1960's. Fundação Getulio Vargas, nov. 1970.
  • 10
    "Algo como 21% da força de trabalho feminina são empregadas domésticas, mais da metade das quais reside em seu local de trabalho" (p. 6 do documento mimeografado; primeira versão).
  • 11
    "Tal realocação é necessária se a distribuição da renda da população economicamente ativa é para ser estudada" (p. 7 do documento mimeografado, primeira versão).
  • 12
    Note-se que quando empregamos a seguir o termo
    força de trabalho grifado, referimo-nos a um conceito da economia política, enquanto o termo "força de trabalho" entre aspas refere-se a uma categoria definida ao nível da operacionalização estatística e designa um somatório de trabalhadores sujeitos ao "mercado de trabalho".
  • 13
    Note-se que não se falou do "mercado de trabalho" em geral, sem qualificações, justamente porque esse mercado de trabalho específico tem por características a menor mobilidade do trabalhador. Além disso, a contrapartida do trabalhador à renda não monetária que lhe é concedida pode ser contabilizada pelo empregador como uma dívida "extra-econômica" (política), de lealdade, por exemplo. Deve-se levar em conta ainda, nesse tipo de emprego, a possibilidade que a totalidade da renda do trabalhador seja não monetária. Em tempo: por que nem se pensa em imputar a renda não monetária dos assalariados superiores e "gerentes", como por exemplo, carro da empresa à disposição e outros prêmios?
  • 14
    Para uma discussão da natureza distinta dos sistemas econômicos baseados nos princípios alternativos da reciprocidade, da redistribuição e da troca de mercado cf. Polanyi, K. et alii.
    Trade and markets in the early empires. N. York, The Pree Press, 1957.
  • 15
    Deve-se atentar também para a discussão acima referida sobre o caráter "vantajoso" ou "não vantajoso" da situação do trabalhador rural que percebe esse tipo de renda não monetária, lembrando-se da contrapartida "extra-econômica" que pode ser exigida pelo empregador.
  • 16
    Cf. Chayanov.
    The theory of peasant economy. Illinois, The American Economic Association, Irwin, 1966. Cf. também, para análise da unidade de trabalho familiar camponesa em uma área do Nordeste, a partir das categorias dos próprio agentes dessas unidades: Heredia, B. & Garcia, A. Trabalho familiar e campesinato.
    América Latina CLAPCS, n. 1, 1971.
  • 17
    Cf. Cuisenier, Jean. Sur la construction d'un tableau economique cantonai en pays sous-développés.
    Tiers Monde, t. 3 n. 11, p. 361 e 392, juil./sep. 1962.
  • 18
    Talvez se possa distinguir, entre as doenças do trabalho, aquelas por excesso de trabalho ou insalubridade das condições de trabalho - caso freqüente entre operários fabris e outros operários - daquelas por carência alimentar, seja em relação ã extensão ou intensidade do trabalho executado, seja ao nível absoluto (cujos maiores exemplos são os trabalhadores rurais assalariados). Cf. os estudos do Instituto de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco.
  • 19
    O salário mínimo real do NE é tomado como o limite inferior aceitável de renda para uma família de 4,3 pessoas. Para o Brasil rural tomou-se o salário que prevalece nas áreas rurais do NE; para o NE urbano tomou-se o nível salarial do município de tamanho médio; e para todos os outros residentes urbanos, é aplicado o nivel do NE + 15%. A linha de pobreza para diferentes tamanhos de família é definida com ajuda da elasticidade da despesa em alimentação com respeito ao tamanho da família (economia de escala da família com respeito à alimentação. (Cf. p. 393.)
  • 20
    Isto é, a confrontação entre a renda mínima percebida por uma parte da força de trabalho e suas necessidades de subsistência. Se essa renda mínima independe do grau de concentração da renda, no entanto essas necessidades de subsistência são
    relativas pois se referem a diferentes grupos sociais.
  • 21
    O autor, ele mesmo, dá grande importância à política de contenção salarial em sua explicação da maior concentração da renda nos 10 anos, tanto no artigo aqui analisado quanto em Brazilian income size distribution - another look, a ser publicado pela revista
    Dados (IUPERJ). Essa já é uma pista para se ver a pobreza dos operários urbanos. Cf. o trabalho
    Pesquisa de padrão de vida da classe trabalhadora da cidade de São Paulo, resultados preliminares. DIEESE, 1969, mimeogr. Por outro lado, o crescimento da taxa de mortalidade infantil na cidade de São Paulo nos últimos anos nos dá outro indício dessa pobreza.
  • 22
    É interessante notar-se que o autor menciona que, a ser medida pelo padrão de pobreza dos EUA, quase toda a população brasileira seria pobre (p. 9 do documento mimeografado, primeira versão). Se ele constrói um padrão de pobreza específico para o Brasil, é porque implicitamente ele admite a diferença entre a pobreza americana e a brasielira, admitindo portanto que a pobreza é relativa a diferentes países. Por que então seria ela absoluta dentro de um país como o Brasil, e não referenciada a diferentes grupos de trabalhadores? Com relação à pobreza americana, cf. a introdução de Roach & Roach em
    Poverty. London, Penguin Modem Sociology Readings, 1972; e cf. Baran & Sweezy.
    Capitalismo monopolista. Rio de Janeiro, Zahar, 1966 p. 285-8.
  • 23
    Cf. a discussão sobre o excedente na antropologia econômica envolvendo Harry Pearson, Marvin Harris e George Dalton (em
    Trade and market, op. cit. e na revista
    American Anthropologist) e cf. C. Bettelheim, capítulo do excedente in
    Planificação e crescimento acelerado. Que se baseia nas contribuições de P. Baran; Zahar.
  • 24
    As "características diferenciadoras da pobreza" são: baixo nível educacional, concentração em atividades agrícolas, residência em áreas rurais
    (location in, and non migration from, rural áreas), número limitado de trabalhadores por família, residência no NE, tamanho familiar e número de crianças maior que a média, menores oportunidades relativas para a educação dessas crianças (p. 394).
  • 25
    Um estudo exaustivo segundo essa abordagem para a França, Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha é o de Marchai, Jean & Lecaillon, Jacques.
    La repartition du revenu national. Paris, Ed. Genin, 4 v.
  • 26
    "... a permutabilidade
    (trade-off) entre redistribuição e crescimento é geralmente exagerada. Há possibilidade de se conseguir ambos simultaneamente através da melhoria da qualidade dos recursos humanos" (p. 395). "A importância dada à idade e à educação na decomposição precedente dá suporte a um modelo implícito de acumulação de capital humano como determinante fundamental dos níveis de renda diferenciais e da desigualdade" (p. 398).
  • 27
    Um resumo (livre) da crítica à "abordagem capital humano" por Fishlow, merece ser apresentado: os modelos de capital humano implicam em causalidade que vai do investimento à renda. No entanto os dados utilizados para implementar a teoria são corrompidos exatamente pela relação oposta (da renda ao investimento). No caso do Brasil, essa relação é importante, onde a renda da família é um dos determinantes significativos da escolaridade. Se a educação superior é monopolizada pelos já ricos, e eles passam para suas crianças oportunidades de renda não associadas com a atual produtividade, aumentar o número de pessoas educadas não levará ao padrão de resultados esperado. Persistência da desigualdade (não presente no modelo): o sistema educacional brasileiro ele próprio é um importante mecanismo para garantir a manutenção da estrutura existente, racionando graus (diplomas) não apenas para os já ricos, mas também predominantemente para aqueles com pais educados. Se um maior acesso ao treinamento é assegurado, isso não significa que outros mecanismos institucionais favorecendo a persistência de diferenciais de renda não emergirão. É necessário lembrar-se não somente o quanto da desigualdade pode ser explicado pela educação, mas também quão pouco ela explica (p. 398). As observações críticas de Fishlow resumidas acima são apenas, segundo o autor, observações contra a "aceitação não crítica do modelo" (p. 398), mas a própria natureza do conceito "capital humano" não é questionada.
  • 28
    Desenvolvemos aqui uma reflexão sobre esse conceito devido à importância que ele assuma no atual debate sobre a distribuição de renda entre os especialistas em econometria, como variável estratégica de mobilidade social. Cf. Langoni, C. Depois do
    boom virá a distribuição.
    Jornal do Brasil, 26-11-72; e Distribuição de renda e desenvolvimento econômico do Brasil.
    Estudos Econômicos, v. 2, n. 5, 1972.
  • 29
    "Os trabalhadores transformaram-se em capitalistas, não pela difusão da propriedade das ações da empresa, como o folclore colocaria a questão, mas pela aquisição de conhecimentos e de capacidade que possuem valor econômico." Cf. Schultz. Investment in human capital.
    American Economic Review, v. 51, p. 1-17, 1961; e cf. p. 35 da tradução brasileira: In: O
    capital humano. Zahar, 1973. O conceito de "capital humano" complementaria assim o conceito de "salário" de L. Robbins como sendo o resultado da luta pela escassez e como tal aplicável não só aos assalariados como ao empresário. Cf. Introdução de Sweezy.
    Teoria do desenvolvimento capitalista. Zahar, 1962.
  • 30
    Essa assimilação, ou extensão abusiva, faz abstração das características intrínsecas e diferenciadoras do "capital" e da força de trabalho - assimilação esta que se torna possível pela própria homogeneização de fatores que implica a consideração de "fatores de produção" (terra, trabalho, capital: coisificação do trabalho e universalização do capital) compondo Uma "função de produção" na teoria neoclássica. Cf. também a extensão análoga do termo "recursos humanos" proveniente do tradicional termo "recursos naturais".
  • 31
    Mesmo no caso da escravidão, quando a própria força de trabalho é propriedade do senhor de escravos através da propriedade da pessoa do escravo, deve-se distinguir a força de trabalho do "capital".
  • 32
    Para um aprofundamento da relação entre a educação e a sociedade capitalista, cf. Bourdieu, P.
    La reproduction. Paris, Ed. Minuit, 1970; Althusser L. Ideologie et appareils idéologiques d'Etat. In:
    La pensée, juin 1970; e Dossier. Lusine et l'école. In:
    Les Temps Modernes, n. 301/302, 1971.
  • 33
    "The concentration of income resultant from stabilization was not wholly intentional" (p. 400).
  • 34
    "In a larger sense, however, the result was accurately indicative of priorities: destruction of the urban proletariat as a political threat, and reestablishment of an economic order geared to private capital accumulation" (p. 400).
  • 35
    "Brazilian poverty is directly linked to low leveis of productivity, particularly rural, that are subject to attack" (p. 402).
  • 36
    "The Brazilian problem is more one of low leveis of productivity within the mainstream of the rural economy" (p. 394).
  • 37
    "The policies appropriate to dealing with poverty are correspondingly differenciated. Negative income taxes, subsidies, and welfare programs have less role to play in Brazil than efforts directed at disseminating modern techniques in agriculture and accelerating growth more generally" (p. 394). Não se trata de contestar a veracidade da primeira parte da última frase citada de Fishlow, a saber, a ineficácia dos impostos, subsídios, etc., mas de combater a ingenuidade da segunda parte dessa frase, da crença mágica nas técnicas modernas e no crescimento acelerado como xarope para a pobreza brasileira.
  • 38
    Fazendo abstração da divisão do trabalho, da cooperação e das formas de apropriação do excedente dentro do processo produtivo, a herança teórica neoclássica e keynesiana é, ao contrário, fascinada pela reificação do produto final e pelo mercado.
  • 39
    Um exemplo histórico dessa "disseminação" e concentração decorrente da propriedade é a criação e expansão das usinas de açúcar, principalmente no NE e em São Paulo e, em menor grau, no Estado do Rio, em detrimento dos antigos "engenhos" que foram ou "fagocitados" ou reduzidos à condição de "fornecedores", cf.
    Engenhos e canaviais na vida política brasileira. Azevedo, Fernando de. Ed. Melhoramentos. Cf. também o romance
    Usina de José Lins do Rego.
  • 40
    Um exemplo: a introdução da "carregadeira" mecânica, que transporta a cana cortada do local do corte ao caminhão ou trem, eliminou os "cargos" de "cabo" (espécie de contramestre) e "cambiteiro" (transportador de cana no burro), além de eliminar vários cortadores de cana através da maior intensidade do trabalho dos cortadores remanescentes. Na medida da expansão dessa introdução, os trabalhadores expulsos terão cada vez menos meios de tornarem-se aptos a concorrer com os trabalhadores dos engenhos mecanizados, e não havendo, na agricultura, criação de novos ramos com essa introdução inovadora, a expulsão torna-se absoluta. Cf. também fenômeno de expulsão análogo com relação à pecuária.
  • 41
    Cf. os fatores de expulsão da mão-de-obra rural apresentados por P. Slnger, em particular os "fatores de mudança", em
    Migrações internas: considerações teóricas sobre o seu estudo, s.d. mimeogr.
  • 42
    Pois, "se toda coisa é susceptível de medida estatística, não se segue daí que a estatística seja a medida de toda coisa". Cf. Bourdieu, P. et alii.
    Travail et travailleurs en Algérie. Paris, La Haye, Mouton, 1963. p. 9-10.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Maio 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1973
    Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: rae@fgv.br