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Desenvolvimento e marginalidade: um estudo de caso

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Amélia Cohn

Desenvolvimento e marginalidade: um estudo de caso

Por Maria Célia Pinheiro Machado Paoli. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1974.

Se a relevância do tema explorado neste livro é indiscutível devido à magnitude do fenômeno da marginalidade social nos países latino-americanos, isso se aplica mais ainda à forma pela qual a autora aborda tal problema.

Partindo de um estudo de caso numa área restrita - o sítio do Pai Cará, na Baixada Santista - onde a pesquisa consistiu na entrevista de 39 indivíduos, Maria Célia consegue o objetivo básico do seu trabalho: esclarecer e situar a discussão teórica de um problema tão em voga. Segundo suas próprias palavras, a pesquisa visa "reequacionar a crença de que a 'marginalidade' é um fator revelador da inviabilidade, ou dos limites do capitalismo dependente" (p. 12). Assim, ela consegue o seu alvo de "inserir a 'marginalidade' como uma das situações articuladas, pelo atual momento de realização do capitalismo dependente; (o que é) fundamental... por revelaras combinações entre o capital e"a força de trabalho em certos momentos históricos específicos" (p. 12).

Para tanto, é discutido, num primeiro momento, e inclusive de uma perspectiva histórica, o debate teórico em torno do tema, o que é indispensável, à medida que a autora se defronta com dois problemas: de um lado, a própria dificuldade de identificação do objeto de análise; e de outro, a adoção e justificação de uma linha de abordagem teórica para a análise desse objeto. A autora acaba adotando uma perspectiva de análise que justifica como a mais rica por lançar mão de dois aspectos básicos: num primeiro momento, o nível de análise situa-se nos fatores de produção, vale dizer, referese à identificação teórica da marginalidade ao mercado dos fatores de produção das formações sociais periféricas; e num segundo momento, incorpora a análise da estrutura social de dominação, tentando, a partir daí, acompanhar as mediações ao nível econômico, seu modo de organização e a natureza de suas relações com outras estruturas de significação. Isso implica, imediatamente, a análise do sentido dado pelos indivíduos que se encontram em situação marginal à sua experiência vivida.

Esse esforço - de analisar a marginalidade ao nível do mercado dos fatores de produção e das relações sociais de produção, de um lado, e, de outro, ao nível do universo de significações - acaba-se traduzindo no decorrer de toda a obra num certo desequilíbrio, sobretudo nos momentos em que é tentada a junção de ambas as análises. Fato bastante compreensível diante da complexidade da análise teórica proposta. Permeia, assim, por todo o estudo o conceito de "campo de carências", nunca bem definido e cujas implicações nunca aparecem bem claras.

A análise da evolução econômica da área (Baixada Santista), de modo de incorporação da mão-de-obra daí decorrente, do problema da qualificação da mão-de-obra e das relações sociais do trabalho chega a algo fundamental: a desmistificação do problema da marginalidade, daí seu maior mérito. Mostra a autora, através de um estudo sociológico empírico, como a marginalidade adquire significado, exatamente porque não se refere aos limites de possibilidade de expansão do sistema capitalista nas formações sociais periféricas, mas è, ao contrário, um elemento de expansão desse sistema. E aí está um dos pontos-chave do trabalho: embora se mantenha reservada quanto às possibilidades de generalização de uma tal teoria, fica patente em sua pesquisa como "a evolução da produção e do mercado de trabalho mostra uma direção fundamental: a constituição e reprodução da força de trabalho concomitantemente feita com a 'exclusão' relativa da parte dela, aproveitada intermitentemente nos serviços que sustentam a expansão urbana e econômica da área, cujo custo se mantém baixo... o 'efeito excludente' é então parte integrante do crescimento econômico da área. Cria, então, um destino social para parte da mão-de-obra: a vinculação ao sistema em termos de participação-exciusão, um tipo humano de trabalhador pressionado a se manter no limite possível de sobrevivência do sistema" (p. 60-1).

Embora a obra analise exaustivamente a constituição histórica dessa população marginal e seu significado para a economia local, mostrando aí o significado político dos sindicatos e as relações sociais vividas por esses indivíduos, a parte mais elaborada do trabalho é exatamente a do estudo das configurações simbólicas dessa população, vale dizer, do modo pelo qual ela apreende sua situação real nas relações de produção. E aí, mais uma vez, embora lançando mão de Marcuse, para quem a cultura é entendida como uma dimensão da dominação que se afirma historicamente como uma imposição ideológica, ganha relevo o conceito de " campo de carências". Para a autora, o que importa nesse segundo momento ê "caracterizar as relações fundamentais que determinam a apreensão simbólica das relações sociais objetivas vividas pelos sujeitos em questão: porque, entre todos os elementos que compõem o estoque cultural da sociedade, são alguns e não outros os apropriados por estes agentes e como adquirem predominância no processo de constituição da participação-exclusão, como 'campo de carências'" (p. 117).

A partir daí, adquire significado a forma pela qual esses indivíduos, definidos anteriormente como marginalizados no nível das relações sociais de produção - e que, portanto, são absorvidos de uma forma peculiar pelo sistema - concebem a religião, a legalização (através da compra) da posse das terras por eles ocupadas, o trabalho estável, os programas de televisão, e sobretudo, como são indivíduos voltados para o presente, na medida em que a sobrevivência cotidiana é seu principal marco de referência. Finalmente, como todo esse universo - ou seja, essa "integração simbólica" para usar o termo da autora - tem sua repercussão direta no nível político, em termos de reforço da dominação vigente na sociedade e, portanto, de diminuição das tensões inerentes a ela.

A importante conclusão a que chega é que a mão-de-obra marginal é um produto da diferenciação interna da força de trabalho de que o sistema dispõe, e que portanto não é excluída nem "sobrante", na medida em que representa o baixo custo de sua reprodução como força de trabalho, e como tudo isso conjugado representaria uma transferência de renda para os setores e grupos sociais situados na parte superior da escala social.

O fato de a autora atribuir o caráter de hipóteses a essas conclusões indica a preocupação básica que permeia todo o trabalho: o de representar uma tentativa de formulação do esboço de um quadro teórico de análise de um problema tão concreto e de tanta importância, vivido pelos países do chamado terceiro mundo, na medida em que é aqui, na periferia do sistema capitalista, que se apresenta na sua forma mais aguda.

Resulta daí a importância do livro de Maria Célia: o fato de delimitar, desmistificar e ordenar, ao mesmo tempo que apresenta propostas, todo o imenso debate existente em torno de um dos temas centrais da sociologia latino-americana contemporânea.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Abr 1975
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