Acessibilidade / Reportar erro

Um estudo sobre as empresas multinacionais no Brasil

COMENTÁRIOS

Um estudo sobre as empresas multinacionais no Brasil

Luiz Carlos Bresser Pereira

Professor do Departamento de Economia da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas

1. INTRODUÇÃO

Em um momento em que todo o modelo brasileiro de desenvolvimento passa ou deve passar por um profundo reexame na medida em que contradições se aprofundam ao mesmo tempo em que a época dos êxitos fáceis vai se tornando assunto do passado, o livro de Carlos von Doelllnger e Leonardo Cavalcanti, Empresas multinacionais na indústria brasileira

1 constitui uma contribuição importante. O modelo de subdesenvolvimento industrializado que se implanta no Brasil a partir dos anos 50 tem nas empresas multinacionais um dos seus agentes conformadores decisivos. O trabalho dos dois economistas do IPEA amplia de maneira decisiva nossos conhecimentos sobre o comportamento dessas empresas no Brasil.

O livro baseou-se em uma pesquisa que teve como universo as maiores empresas industriais do país em 23 setores industriais. Em cada setor foram relacionadas as 10 maiores empresas, com base no patrimônio, capital social e faturamento. Da união desses três conjuntos resultou uma média de quase 14 empresas, somando um total de 318 empresas. Destas, 8 são governamentais, 177 nacionais privadas e 133 subsidiárias de multinacionais. Com esse critério de seleção, a pesquisa não contém realmente uma amostra. O que se pesquisou foi um universo limitado às maiores empresas de cada setor industrial. Isto, entretanto, não tira em nada o significado da pesquisa, já que as grandes empresas pesquisadas têm uma importância decisiva na economia nacional.

O trabalho começa por conceituar operacionalmente as empresas multinacionais: são grandes empresas cujas operações internacionais são relativamente extensas e abrangem a movimentação internacional de bens e recursos financeiros, tecnologia e management. Apresenta, em seguida, as diversas teorias sobre a origem e evolução das empresas multinacionais, dando ênfase à "teoria do ciclo do produto" de Vernon e à "teoria da reação oligopolística" de Kníckerbocker. Segundo a primeira teoria, as empresas multinacionais visariam conquistar os mercados externos para aproveitar mais extensamente a tecnologia de produto já amortizada no pais sede; a segunda teoria salienta o fato de que, uma vez tomada a decisão por uma empresa de investir em um pais, as demais empresas que participam desse mercado oligopolístico são levadas também a reagir investindo no mesmo pais. Para os autores, estas duas teorias, e especialmente a primeira, explicariam basicamente a grande expansão das empresas multinacionais no Brasil no pós-guerra.

Em relação a esta expansão, apresentam os autores alguns dados significativos. Esta expansão ocorreu de forma predominante na indústria de transformação. Em 1943 os investimentos nessa indústria representavam apenas 28% do total dos investimentos norte-americanos no Brasil. Em 1969, tomando-se capitais de todas as procedências, a indústria de transformação já respondia por 82% dos Investimentos estrangeiros. No universo pesquisado, as empresas multinacionais controlam 55,27% do faturamento, 40,40% do patrimônio, 35,21 % do ativo fixo e 13,41% do emprego. Estas subsidiarias brasileiras, entretanto, são pouco importantes para suas matrizes, representando apenas 2,32% de seu faturamento total.

2. CONTRIBUIÇÃO PARA O CRESCIMENTO RECENTE

Os autores passam a examinar, em seguida, a contribuição das multinacionais para o crescimento industrial recente. Essas empresas concentram-se nos setores mais dinâmicos em termos de taxas de crescimento. Uma analise de correlação entre os setores mais dinâmicos e a participação das multinacionais revelou um coeficiente de correlação de 0,60, significante a nivel de 5%. Concentram-se também nos setores tecnologicamente mais sofisticados. O grau de tecnologia, medido pela participação de mão-deobra qualificada e de nivel superior apresenta um Índice de correlação com a participação em cada setor das multinacionais de 0,75.

Esta colocação estratégica das empresas multinacionais nos setores mais dinâmicos e tecnologicamente mais sofisticados leva a uma situação em que "o crescimento industrial e, por conseqüência, o desempenho da economia como um todo dependem do dinamismo das empresas multinacionais e de sua capacidade de transferir recursos, tecnologia e capacidade gerencial. E como corolário dessa situação, as subsidiárias das empresas multinacionais controlam certas variáveis cruciais de política econômica, tais como a taxa de investimento industrial, a transferência de tecnologia e a expansão das exportações" (p. 59).

As grandes empresas multinacionais pesquisadas pelos autores vêm crescendo a uma taxa superior às empresas nacionais. São capitalintensfvas, criando poucos empregos em relação ao seu ativo fixo. Embora o ativo fixo das multinacionais pesquisadas seja 67% superior ao das nacionais, seu emprego total é apenas 45% superior ao das nacionais.

A mão-de-obra nas empresas multinacionais é mais "produtiva" e mais bem remunerada. O salário médio é 33% superior nas multinacionais do que nas nacionais privadas. A produtividade, medida em termos de valor adicionado (cruzeiros de 1972) dividido por número de empregados, ê maior nas estatais (Cr$ 99 370) seguidas pelas multinacionais (Cr$ 53 410) e pelas nacionais privadas (Cr$ 34 760). Em sintese, "as empresas multinacionais, por se concentrarem nos setores onde prevalecem maiores relações capltal-produto, investem mais em ativo fixo que as Um estudo sobre as empresas multinacionais no Brasil nacionais privadas... A 'produtividade' média dessas empresas ê bem mais elevada que das nacionais privadas, porém essa diferença se explica mais em termos da composição da mão-deobra (com salários médios bem mais elevados) do que em função das diferenças de capital por unidade de mão-de-obra" (p. 70).

Observam ainda os autores que, sendo muito maiores, embora não tanto mais intensivas de capital, as empresas multinacionais criam mais empregos. Este tipo de análise comparativa faz pouco sentido. Se as empresas são maiores, se têm um ativo fixo consideravelmente maior, devem criar mais empregos. Seria mais adequado enfatizar que elas criam relativamente menos empregos, ao invés de afirmar que criam absolutamente mais empregos que as empresas nacionais pesquisadas.

Verificaram ainda os autores que as empresas multinacionais, relativamente a seu faturamento, exportam mais do que as nacionais privadas (7,9% contra 4,8%). Por outro lado, as empresas multinacionais têm uma maior propensão a importar. Além disso remetem rendas para o exterior (lucros, royalties, assistência técnica etc.) em proporções bem maiores do que as empresas nacionais.

As empresas multinacionais apresentam um índice de endividamento total (exigível/patrimônio líquido) elevado: 1,11 para as multinacionais, 1,03 para as nacionais privadas e 0,48 para as governamentais. A lucratividade das multinacionais pesquisadas (lucro líquido/patrimônio liquido), no período 1970/73, apresentouse ligeiramente inferior: 15,8% para as multinacionais contra 16,4% para as nacionais privadas e 17,6% para as estatais. Dispõem-se, entretanto, "de indicações de alguma subestimativa dos lucros apresentados nos balanços das subsidiárias" (p. 84).

3. CUSTOS SOCIAIS

Passam, em seguida, os autores a examinar os custos sociais para o Brasil das empresas multinacionais. Partem da consideração inicial de 43 que "a empresa estrangeira difere da nacional em um aspecto fundamental: seu benefício liquido (lucro líquido) constitui um custo social para o país anfitrião, na medida em que consome divisas quando é remetido para o exterior".

As empresas multinacionais vêm remetendo menos de 5% de seu capital, segundo o Banco Central (4,4% em 1974). Entretanto, seus lucros remetidos também estão subavaliados. "Sabe-se que as empresas utilizam os pagamentos a título de assistência técnica e royalties por marcas e patentes para, de fato, remeter uma parcela de lucros ao exterior" (p. 90-1). Além disso, as subsidiárias adotam a estratégia de endividar-se, e em seguida remeter juros e amortizações. O endividamento è, na verdade, parte do patrimônio liquido das empresas. Segundo cálculos do Ministério da Fazenda (1973), aos US$ 3.404 milhões de capital registrados no Banco Central dever-se-ia somar US$ 2.219 milhões referentes a 1/3 do endividamento daquela época. Em conseqüência, 1 /3 dos juros pagos deveria também ser considerado remessas de lucros.

Enumeram e analisam, em seguida, os autores uma série de outros custos sociais das empresas multinacionais:

a) dão preferência a fontes de suprimento de matérias-primas e equipamentos pertencentes ao próprio grupo;

b) limitam as exportações quando estas possam competir com produtos similares da casa matriz;

c) transferem tecnologia geralmente inadequada à disponibilidade de fatores;

d) podem neutralizar as políticas econômicas governamentais;

e) praticam a estratégia do "preço de transferência" para remeter lucros disfarçados; e

f) tendem a comprar empresas nacionais existentes ao invés de criar novas empresas.

Através do mecanismo de transferência as empresas multinacionais subfaturam exportações ou superfaturam importações, transferindo assim seus lucros sem pagar impostos. Com relação à estratégia de compra de empresas nacionais, isto vem ocorrendo de maneira crescente. Entre 1946 e 1950 apenas 9% das empresas multinacionais estabeleceram-se no Brasil através de compras de empresas nacionais. Esta percentagem sobe para 61 % no período 1971/73.

4. CRITICAS E CONFLITOS

Examinam, em seguida, os autores os conflitos que as empresas multinacionais vêm Griando em seus próprios países. Elas têm sido acusadas pelos sindicatos de exportar empregos e, em certas circunstâncias, pelos governos de deteriorar o balanço de pagamentos e promover evasão fiscal. Na verdade, um recente relatório do Governo dos Estados Unidos revelou que o emprego nesse pais não tem sido afetado negativamente pelo fato de as multinacionais investirem no exterior, e o balanço de pagamentos americano tem sido grandemente favorecido por essas empresas. Na verdade, as empresas multinacionais utilizam pouco capital próprio para investir no exterior.

Com relação aos países subdesenvolvidos, observam inicialmente os autores que os investimentos das multinacionais são relativamente reduzidos, quando comparados com investimentos em outros países desenvolvidos. Ocupam, entretanto, posição estratégica crescente nos países subdesenvolvidos e tendem a criar conflitos com os governos locais. Esses conflitos, geralmente, dizem respeito aos efeitos negativos das multinacionais sobre os balanços de pagamento, à estratégia do preço de transferência, às limitações às exportações, ao enfraquecimento das empresas nacionais, ao caráter oligopolistico organizado em forma de cartel dos mercados operados pelas multinacionais, aos lucros elevados, à inadequação de tecnologia. Nos países em que as empresas multinacionais exploram recursos naturais não renováveis esses conflitos tendem a ser mais grave.

Nestas discussões os autores observam que tem sido dada excessiva ênfase a problemas relacionados com as remessas de lucros e o aparte de capital, quando "o centro de discussões deveria ser deslocado para outros .temas mais relevantes, tais como o da transferência de tecnologia, o do traçado de políticas econômicas eficientes e que aumentam o "poder de barganha" desses países, o da oportunidade de joint venturas etc." (p. 126).

Em relação ao caso brasileiro, observam os autores que a partir dos anos 50 e 60 a presença dessas empresas aumentou consideravelmente. A expansão procedeu-se de forma "absoluta", quando ocorreu a simultânea liquidação das firmas nacionais, ou então "relativa", quando as empresas multinacionais preenchem áreas vazias ou convivem com empresas nacionais.

Nos anos 50 houve um grande surto de investimentos das multinacionais no Brasil. Esse surto volta a ser importante a partir da recuperação de 1968/69, quando a economia se recuperava de uma crise. Por outro lado, a legislação brasileira sobre capital estrangeiro ê uma das mais liberais do mundo. Ao se dirigirem para o Brasil, as empresas buscam não apenas o mercado interno brasileiro, mas também a utilização de mão-deobra barata (melhor alocação internacional de recursos) para a produção de bens exportáveis, e a exploração de recursos naturais. Como resultado, "é notória, assim, uma crescente internacionalização da economia brasileira" (p. 133). Não obstante, e em contraste com muito países latino-americanos, a posição oficial do Governo, pelo menos até fins de 1973, era a de que se desejava um mínimo de interferência na ação dessas empresas.

No final do trabalho, depois de um resumo de sua análise, os autores apresentam algumas sugestões para um melhor controle da entrada de capitais, para garantia de efetiva absorção de tecnologia, para a preferência às empresas nacionais, para a realização de joint venturas etc.

Este trabalho de Carlos von Doellinger e Leonardo Cavalcanti, seja pela pesquisa primária realizada, seja pelo levantamento de dados secundários e da literatura sobre as empresas multinacionais, aumenta de forma significativa nossos conhecimentos sobre o papel que estas empresas vêm desempenhando na economia nacional. A análise do problema ê clara, bem estruturada, e economicamente rigorosa.

Algumas limitações, entretanto, elevem ser assinaladas. O trabalho tem uma aspiração à neutralidade ideológica que leva a situações às vezes claramente inconclusivas. A análise da criação de emprego pelas multinacionais é um exemplo disto. As recomendações finais também poderiam ser mais precisas. A atitude geral dos autores é, sem dúvida, critica em relação às empresas multinacionais, mas esta atitude perde-se às vezes em um jogo de prós e contras, de beneficios e custos. È preciso, no entanto, admitir que, até um certo ponto, estas Indecisões derivam da própria natureza contraditória do problema estudado.

Por outro lado, não è feita no trabalho a análise da inserção das multinacionais no modelo histórico de desenvolvimento adotado pelo Brasil. Referências muito ligeiras são feitas sobre o assunto. Em nenhum momento, porém, fica claro que a abertura do pais à penetração das multinacionais constitui um elemento essencial e definidor do modelo de desenvolvimento adotado. Fala-se diversas vezes em transferência de tecnologia inadequada, mas os autores estão se referindo especialmente à tecnologia de processo capital-intensiva. Não fazem referência ao fato de que a presença de empresas multinacionais, produzindo bens de consumo de luxo no pais, constitui-se em uma dependência tecnológica de produto, que se constitui ao mesmo tempo em causa e consequência da opção por um estilo de desenvolvimento altamente concentrador de renda, na medida em que apenas uma minoria da população pode consumir tais bens.

O trabalho seria também enriquecido se nos apresentasse uma visão histórica geral da expansão das empresas multinacionais no setor manufatureiro e na economia em geral. Seria especialmente importante dar uma dimensão também histórica à distinção entre os investimentos extrativos e de serviços públicos, tfpicos do período primario-exportador de nossa economia, em confronto com os investimentos industriais que passam a ocorrer em grande quantidade a partir dos anos 50.

Assinalamos estas limitações, mas não queremos com isto diminuir a importância do estudo de Doellinger e Cavalcanti. Com este trabalho o IPEA e seus autores contribuem de forma decisiva para esclarecer o papel desempenhado pelas empresas multinacionais no desenvolvimento recente do Brasil. Nada melhor, portanto, do que deixar a palavra final aos próprios autores: "Na verdade, muitos dos objetivos dessas empresas (multinacionais) tanto implicam beneficios (para os países hospedeiros) como custos: o investimento estrangeiro aumenta a capacidade produtiva da economia, transfere tecnologia e cria empregos, mas também inibe a expansão das empresas locais e muitas vezes implica mesmo a extinção dessas empresas, reduz a soberania económica do pais e enfraquece alguns instrumentos de política econômica; pode, eventualmente, transferir tecnologia inadequada à disponibilidade de fatores e subutilizar as potencialidades locais de desenvolvimento tecnológico; pode ainda exacerbar a demanda de profissionais qualificados e elevar os custosas empresas nacionais. As empresas multinacionais são muito mais poderosas, e sua atuação nos mercados nacionais, tanto pode aumentar a competição quanto concentrar a produção em rígidos oligopólios" (p. 87).

  • 1 Doellinger, Carlos von & Cavalcanti, Leonardo. Empresas multinacionais na industria brasileira. Rio de Janeiro, IPEA/INPES, 1975. Relatório de Pesquisa nş. 29.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Fev 1976
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rae@fgv.br