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Brasil política (1964-1975)

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Maria Cecília Spina Forjaz

Brasil política (1964-1975)

Por Fernando Pedreira, São Paulo, Difusão Européia do Livro, mar. 1975. Prefácio do Prof. Fernando Henrique Cardoso (Coleção Corpo e Alma do Brasil, v. 43).

O livro constitui uma seleção de artigos já publicados por Fernando Pedreira no jornal O Estado de São Paulo (e alguns também no Correio da Manhã) entre outubro de 1966 e julho de 1972. Salvo alguns pequenos cortes, o autor manteve a redação original desses escritos ao reuni-los para a publicação deste livro.

Com exceção do último texto de Brasil política, "1975": Esses incorrigíveis otimistas, os brasileiros", escrito em janeiro deste ano para a revista Foreign Affairs, e que fornece uma análise retrospectiva e mais sistemática da Revolução de 1964 no Brasil, todos os outros artigos foram escritos no calor dos acontecimentos e representam, portanto, ensaios de interpretação política com base nas conjunturas analisadas.

No entanto, apesar do caráter jornalístico de seus trabalhos, a análise política de Fernando Pedreira possibilita uma visão relativamente aprofundada do processo político brasileiro atual, na medida em que o presente é sempre interpretado à luz de todo um processo histórico de formação da sociedade brasileira.

De uma perspectiva liberal, o autor faz uma crítica mordaz ao sistema autoritário vigente no País e às elites tecnoburocráticas dominantes, deixando transparecer claramente seu próprio projeto político para o Brasil: a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, não nos moldes tradicionais da democracia burguesa ocidental (infelizmente inviável no Brasil, segundo ele), mas uma democracia adaptada às condições singulares da sociedade brasileira.

Os artigos foram reagrupados em sete capítulos que abrangem fases específicas do movimento de 31 de março. Pretendemos resumir a temática fundamental de cada um desses capítulos, sem nos atermos aos detalhes de cada artigo, tarefa difícil, dada a diversidade e riqueza dos temas abordados pelo autor.

Capítulo I: Ilusões e realidade no Brasil

Nesse capítulo o autor indaga sobre a viabilidade da implantação efetiva de instituições políticas democráticas no Brasil, não nos moldes do passado, ou seja, da importação de instituições das velhas metrópoles, que aqui não se efetivaram na prática política e passaram a mascarar uma realidade oligárquica, paternalista, de tendência autoritária e na qual nunca (incluindo o período de 1945 a 1964) houve organismos políticos independentes do governo e que representassem a vontade dos cidadãos frente ao Estado.

Segundo o autor, a persistência dessas características do sistema político brasileiro ao longo de nossa história torna tão difícil, hoje, a destruição do Estado burocrático de base militar, que veio, na verdade, exprimir antigas tradições políticas brasileiras que viviam escondidas sob o falso liberalismo de nossas instituições e elites políticas.

Capítulo II: 1966/67: Castelo e Costa e Silva, o regime: Os militares e a Sorbonne. O quadro brasileiro.

O autor procura demonstrar uma evolução gradativa no Governo Castelo Branco de um maior liberalismo em 64 para um autoritarismo crescente, consubstanciado na edição do Ato Institucional n.º 2, em outubro de 1965. Esse ato constituiria um importante divisor de águas, marcando o início de uma nova etapa em que Castelo recua definitivamente das tendências liberais, que manifesta no início do processo revolucionário, e cede às suas velhas convicções sorbonnianas. O autor sugere que essa trajetória de Castelo é determinada pela pressão dos setores militares mais radicais, a chamada "linha dura".

Critica também a Constituição de 1967 e o método arbitrário pelo qual foi imposta. Vê nessa Constituição, na Lei de Imprensa e na Lei de Segurança Nacional expressões jurídicas da ideologia da Escola Superior de Guerra. Compara essa instituição aos Comitês Centrais dos Partidos Comunistas dos países socialistas, órgãos fechados, de cúpula, que impõem um programa próprio e assumem a representatividade dos interesses nacionais sem nenhum vínculo político com as bases sociais que pretendem representar.

Procura demonstrar como os próprios fundamentos da ideologia da ESG - o conceito de Segurança Nacional, derivado das concepções do Departamento de. Defesa dos Estados Unidos, de Guerra Total e da necessidade de intransigente subordinação das atividades básicas nacionais aos interesses de sua segurança - estão sendo revistos na sua própria matriz.

Além da subordinação da ESG a essas doutrinas importadas, o autor aponta o perigo da generalização de uma concepção que denomina de representatividade democrática imanente de nosso Exército: "Quando se diz que, no Brasil, o Exército costuma refletir, em momentos de crise aguda, os pontos de vista da classe média tradicional, o que se quer dizer é que nesses momentos críticos, o Exército tem sido capaz de realizar, por meios grosseiros e antidemocráticos (o golpe militar), os desejos de setores decisivos da opinião pública. Mas daí a supor que o Exército possa substituir ou sobrepor-se aos canais normais de representação democrática, que seja capaz de tornar-se numa espécie de conduto natural e permanente, mesmo imperfeito, para as aspirações da opinião pública, vai uma grande distância. Em si mesmo, essa suposição da representatividade democrática imanente do nosso Exército, hoje presente nas idéias de tantos militares e civis, tornou-se uma fonte de distorções no comportamento político da maioria dos oficiais" (p. 74-5).

Esse tipo de mentalidade, de acordo com Fernando Pedreira, vem levando a uma identificação cada vez maior entre as Forças Armadas e o próprio Estado brasileiro, especialmente ao seu sistema de segurança. Tal identificação implicaria, em última instância, uma metamorfose das Forças Armadas em Polícia Política, e na transformação do Estado brasileiro num Estado policial.

Frente a essa situação, o autor evoca, com certa nostalgia e boa dose de sarcasmo, os tempos em que as Forças Armadas no Brasil exerciam o papel de Poder Moderador, de árbitro final das divergências insolúveis das elites dominantes. A vigência tão prolongada desse Poder Moderador teria levado a uma deformação dupla, da sociedade civil e do Exército. A primeira não desenvolveu mecanismo de representatividade democrática e o segundo tornou-se cada vez mais autoritário e prepotente, até transformar a tutela latente numa tutela efetiva e direta da sociedade civil.

Capítulo III: 1967/1968: Paroxismo dos jovens e reação termidoriana. O malogro de Costa e Silva. O Governo (secreto) dos coronéis. A iniciativa com os radicais. O caminho do golpe, o Nove de Novembro.

Neste capítulo ressaltam-se as considerações do autor sobre o Governo Costa e Silva e sobre o desenvolvimento acelerado de sua crise final.

Segundo Fernando Pedreira, vigora no Brasil desde 64 uma ambigüidade básica que se acentua muito com Costa e Silva - a vigência de dois governos: o ostensivo e o secreto. O primeiro é o responsável legal e político das decisões adotadas e o segundo é o núcleo militar que constitui o centro verdadeiro da tomada de decisões e que se localiza no Conselho de Segurança Nacional, nos principais estados maiores e nos organismos centrais de segurança. Esse Governo secreto, por sua vez, vincula-se à ESG e à ECEME (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército), órgãos produtores da ideologia e dos quadros que sustentam o regime.

Frente a esse quadro, Costa e Silva apresenta uma sucessão interminável de indecisões. Ora submete-se humildemente às determinações do Governo secreto, ora procura prestigiar o Governo ostensivo contra as investidas do núcleo militar dominante.

Agrega-se a essa uma outra ambigüidade: a da Constituição de 1967, que instaurou no Brasil um regime híbrido, uma meia ditadura que possibilita a existência de oposições civis, embora débeis. Frente às investidas dessas oposições (esquerda e oposição liberal) produz-se uma radicalização de núcleo militar dominante e uma cisão interna do Exército.

Costa e Silva segue à deriva nesse mar tormentoso, até perder definitivamente o controle das decisões. Já em fevereiro de 1968, Fernando Pedreira prevê a queda de Costa e Silva.

Esse panorama nacional conturbado se inscreve numa conjuntura internacional também bastante crítica: a acensão da rebelião mundial dos jovens, nos países capitalistas, e o inconformismo anti-stalinista e anti-soviético nos países socialistas.

No Brasil e no mundo a reação termidoriana esmaga o movimento renovador: o endurecimento patente dos militares brasileiros, a invasão soviética em Praga, a vitória eleitoral de Nixon e De Gaulle são algumas das manifestações desse processo.

Capítulo IV: 1969/70: Médici ou a consolidação do regime burocrático-militar, Perspectivas do novo Governo. Opções políticas e ideológicas. O Estado burocrático e o Governo da Casa Grande. Thiers no Brasil.

Entre o último artigo do capítulo anterior (13-10-1968) e o primeiro do presente capítulo (30-11-1969) há, um intervalo significativo de mais de um ano. Não há, portanto, em Brasil política nenhuma análise da queda de Costa e Silva, da decretação do Ato Institucional n.º 5, do Governo da Junta Militar e da eleição de Médici.

Ao analisar os primeiros meses do Governo Médici, o autor manifesta expectativas de uma reabertura democrática, que muito rapidamente cedem lugar à verificação de que a preocupação básica do novo Governo é a consolidação do regime burocrático-militar e de que se acentua o vazio político e a ausência de legitimidade do sistema. São manifestações eloqüentes dessas tendências, o processo de escolha dos novos governos estaduais e a apatia e apoliticismo crescentes que envolveram a vitória da Arena nas eleições legislativas de 1970. Esse partido, no entender do autor, não fornece uma sustentação política ao Governo; pelo contrário, está dependurado nele.

Como opção ideológica fundamental do regime, o autor aponta a teoria da incompatibilidade entre democracia e desenvolvimento econômico e a conseqüente adesão ao desenvolvimento em detrimento das liberdades democráticas.

Como pano de fundo dessa conjuntura política. Fernando Pedreira mostra a tendência estrutural de fortalecimento do Estado no Brasil, a partir de 1937. Porém, de 1964 para cá, esse Estado-Moloch "passou às mãos dos seus próprios funcionários. Foi entregue ao domínio de uma burocracia criada e alimentada por ele mesmo: os militares e seus assessores tecnocratas" (p. 182).

Capítulo V: Soljenitzin: O Estado policial, Verso e reverso. A tecnocracia.

É bastante significativa da própria consolidação de um Estado policial no Brasil, durante o Governo Médici, o fato deste capítulo, repentinamente, centrar sua ênfase em Soljenitzin, sua obra e a realidade histórica que ela descreve. As referências ao Brasil e a seu momento político passam a parecer secundárias e são feitas não mais diretamente, mas usando a técnica da metáfora: falando da União Soviética e do stalinismo o autor está falando do Estado policial brasileiro.

Embora reconhecendo a especificidade dos regimes autoritários vigentes na América Latina hoje, o autor não deixa de apontar "as características essenciais que são comuns a todos os regimes autoritários".

Da mesma forma, Fernando Pedreira usa metáforas e referências a outras realidades históricas e literárias para analisar a dominação tecnocrática que se instaura no Brasil e para tentar desmascarar a falácia do descomprometimento político do tecnocrata.

Capítulo VI: 1971/72: Democracia e autoritarismo, os padrões políticos e as raízes brasileiras. Centralismo e nacionalismo.

Após algumas,considerações sobre a definição de democracia e autoritarismo, e uma comparação entre a idéia democrática no Brasil e nos Estados Unidos, o autor reafirma sua tese da secular tendência antidemocrática no Brasil, onde nunca chegamos a libertar-nos das concepções senhoriais e patriarcais que presidiram a nossa formação histórica.

Analisa em seguida, a evolução do Estado brasileiro, do federalismo radical da Primeira República em direção a um centralismo cada vez maior, e atingindo o seu clímax com a revolução de 64. Faz essa mesma análise sobre o nacionalismo no Brasil e propõe a superação da noção isolacionista de nacionalismo, já que para os países latino-americanos - que são enxertos da civilização européia - "A afirmação nacional exprime-se por meio desse mesmo processo de participação crescente e de integração progressiva numa cultura comum" (p. 258).

Critica, a seguir, o ufanismo do progresso e do "Brasil Grande", que vem produzindo, ao lado das medidas repressivas, às quais vamos nos acostumando, um violento processo de sedução do povo brasileiros.

Capítulo VII: Esses incorrigíveis otimistas, os brasileiros.

Partindo de uma interrogação sobre o sentido da reabertura democrática proposta pelo Governo Geisel e afirmando que ela não é fruto da pressão da opinião pública, mas resultado de uma dinâmica interna do regime militar, Fernando Pedreira resume toda a trajetória da revolução de 64 para chegar à explicação da opção militar pela reabertura.

Tendo chegado até a completa ditadura, restava aos militares duas opções: ou ficavam onde estavam, ou ensaiavam eles próprios uma volta atrás. A decisão de recuar, cristalizada no momento em que adotaram a candidatura Geisel, não foi fácil nem unânime, e foi motivada por dois fatores principais: a) a luta sucessória pode dividir o exército, e é sabido que a unidade do estabelecimento militar é a base de seu poder, além de condição da ordem e tranqüilidade do país; b) nos regimes fechados é impossível evitar a dependência do Governo diante dos órgãos de inteligência.

Porém, a tateante abertura política vem encontrando resistências civis (setores empresariais conservadores e oposição de esquerda) e militares (correntes de tendência autoritária mais radical e órgãos de segurança). Mas, mesmo assim, os incorrigíveis otimistas que são os brasileiros vêm apostando no êxito da tão proclamada reabertura política.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 1976
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