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Indicadores socias e planificação do desenvolvimento

ARTIGOS

Indicadores socias e planificação do desenvolvimento* * Trabalho apresentado na 28.ª Reunião Anual da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizada de 8 a 14 de julho de 1976 em Brasília, D.F.

Henrique Rattner

Professor do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas

1- INTRODUÇÃO

A crescente preocupação com a elaboração de indicadores sociais,1 1 Veja, além da bibliografia citada, os trabalhos de Hamburger, Polia Lerner. Indicadores sociais no sistema de informação mercadológica. RAE, v. 16, n. 4,1976; e Considerações sobre "qualidade de vida" no processo decisório: impacto sobre as entidades públicas e privadas. RAE, v. 15, n. 2, 1975. considerados instrumentos da planificação governamental, surge num momento crítico da história contemporânea, em que o ceticismo e a desilusão a respeito do crescimento econômico, tal como apregoado e defendido durante três décadas, se expandem rapidamente e permeiam largos círculos acadêmicos e administrativos.

Durante mais de um quarto de século, o crescimento econômico tinha sido apresentado como meta e valor supremos das sociedades ocidentais e orientais, desenvolvidas e subdesenvolvidas. A tamanha exaltação do aumento da produção material estavam subjacentes as seguintes premissas:

a) o crescimento econômico seria um processo linear, quantificável e de duração praticamente ilimitada;

b) seu êxito asseguraria, necessária e inevitavelmente, o "progresso" ou o desenvolvimento social e político;

c) problema e tensões, à medida que surgissem no decorrer do processo, representariam apenas crises efêmeras da fase inicial de crescimento, a serem superadas pela própria dinâmica do sistema econômico, dirigido de forma racional e competente petos tecnocratas e planejadores;

d) o planejamento - técnica "científica e apolítica" de mudança dirigida, seria o instrumento mais adequado para assegurar o sucesso dos planos é a consecução das metas e objetivos.

A crença na validade da tese e de suas premissas levou à adoção de objetivos econômicos muito ambiciosos nos países em desenvolvimento, onde o crescimento acelerado passou a ser considerado como o único caminho capaz de solucionar os graves problemas de habitação, saúde, alimentação, educação e emprego que afligem essas sociedades. A avaliação dos resultados da Primeira Década de Desenvolvimento das Nações Unidas (1960-1970),2 2 Veja, entre outros: Adelman, I. & Morris, C.T. Economic growth and social equity in developing countries. Stanford University Press, 1973. cf. cap. 4; Furtado, C. O mito de desenvolvimento económico. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1974; McNamara, R.S. Anual address to the board of governors of the World Bank Group (Nairobi). IBRD, Washington, 1973; Marsden, K. Em direção a uma síntese entre crescimento econômico e justiça social, RAE, v. 14, n. 3 jun. 1974; Mishan, E.J. Doenças, males e disfunções: preço do crescimento. Daedalus, Autumn 1973. Trad. port. Rui Fontana Lopez. EAESP/FGV. mimeogr. bem como da situação social em vários países que experimentaram uma expansão econômica acelerada nos últimos anos, parecem indicar uma compatibilidade, antes insuspeita, entre crescimento econômico e deterioração da situação social, sendo freqüente o agravamento das desigualdades e das contradições internas nas sociedades em vias de desenvolvimento.

Ao verificar-se portanto que o crescimento acelerado nio leva necessariamente a maior eqüidade e justiça social, mister tornar-se-ia o exame da viabilidade de caminhos e instrumentos alternativos para a consecução do objetivo último - uma sociedade justa e harmonicamente equilibrada.

Nesta perspectiva a concentração do principal esforço teórico não deve recair no aperfeiçoamento e na sofisticação dos instrumentos do crescimento econômico - o planejamento e os respectivos indicadores - mas sim na análise crítica do próprio processo e dos modelos a ele subjacentes.

Neste ensaio pretendemos focalizar, embora de forma sumária, os resultados de políticas de crescimento econômico tais como formuladas nos diferentes "planos de desenvolvimento", nos quais o "social" aparece invariavelmente como uma categoria residual. Em seguida, apontaremos alguns aspectos políticos e ideológicos do planejamento, freqüentemente mistificados pelo manto da neutralidade "científica" vestido por seus autores, para finalmente tentarmos, à luz das análises precedentes, definir as funções dos indicadores em processos de mudança social dirigida.

2. OS RESULTADOS DO CRESCIMENTO ECONÔMICO

A experiência "desenvolvimentista" das últimas décadas mostra que a acumulação rápida e "primitiva" exige e condiciona a concentração dos investimentos em grandes empresas e a centralização das mesmas em áreas metropolitanas, o que tende a favorecer as classes de alta renda, cuja participação no produto e renda nacionais tende a crescer, em termos absolutos e relativos, a um ritmo superior ao de outros estratos sociais.

Os teóricos do crescimento econômico apontam a necessidade e inevitabilidade desses desequilíbrios iniciais, a fim de se obter taxas de crescimento do PIB mais elevadas, prometendo para fases posteriores, quando alcançado "certo" nível de acumulação, recompensas pelos sacrifícios assumidos pela maioria da população em função da expansão econômica.

Todavia, a história recente demonstra que os desequilíbrios e discrepâncias provocados por um processo de crescimento econômico acelerado não são reduzidos ou eliminados por tendências automáticas ou espontâneas para o restabelecimento do equilíbrio. Ao contrário, se na fase do boom as necessidades da acumulação impediram uma política distributiva mais justa, na época de recessão econômica escassearão os recursos para cumprir essa meta. Em outras palavras, a visão dicotômica que separa, no tempo, produção e distribuição, revela-se historicamente inviável: a própria organização da produção - ou as "relações de produção" - irão determinar as formas e os limites concretos da repartição do produto social.

Passando em retrospectiva um quarto de século de esforço "desenvolvimentista", mister é reconhecer que o crescimento da economia como um todo apresenta índices não-insatisfatórios, devido, em boa parte, ao processo de substituição das importações. Foram criados inúmeros complexos industriais, os quais, apesar de sérias lacunas e imperfeições, permitiram avanços significativos no caminho do crescimento. Entretanto, os principais problemas sociais não foram resolvidos ou, pelo menos, amainados conforme deixara implícito o modelo de desenvolvimento - ao contrário, o agravamento e os impasses da problemática social manifestaram-se paralelamente ao avanço e à expansão da economia.

A concentração da renda aumentou nos anos de maior expansão, enquanto um contingente cada vez maior de desempregados, oculto sob a forma de subemprego urbano e rural, parecia perfeitamente compatível com o crescimento do PIB.

Também o fosso que separa a cidade do campo, ou regiões desenvolvidas de subdesenvolvidas, vem-se ampliando constantemente, provocando movimentos migratórios e o êxodo rural, com a conseqüente marginalização de vastas e crescentes camadas populacionais, na periferia das áreas metropolitanas.3 3 Cf. Hoffmann, R. Tendências de distribuição da renda na Brasil e suas relações com o desenvolvimento econômico. Piracicaba, ESALQ/USP, 1972; Mello e Souza, A. Efeitos econômicos do salário mínimo, In: APEC. A Economia brasileira e suas perspectivas. Rio, 1971; Duarte, J.C. Aspectos da distribuição da renda no Brasil em 1970. Piracicaba, ESALQ/USP, 1971; Camargo, Cândido P.F. de et alii. São Paulo 1975: crescimento e pobreza. Edições Loyola, São Paulo, 1976; Rattner, H. Os custos sociais da aglomeração metropolitana, RAE, v. 15, n. 6, dez. 1975.

Uma análise mesmo superficial do crescimento econômico evidencia que seus benefícios não foram distribuídos de forma equitativa: os setores modernos da economia inter-relacionaram-se mais com as economias estrangeiras do que com o espaço econômico, especialmente o rural, em seu próprio país, enquanto desenvolveram e estimularam padrões de consumo e introduziram técnicas de produção copiadas dos países ricos.

Em conseqüência do papel fundamental assumido pelo capital estrangeiro no processo de industrialização por substituição das importações, uma ampla e crescente parcela dos ganhos decorrentes do aumento das vendas e do consumo tem retornado aos países investidores, seja sob forma de gastos crescentes com insumos e equipamentos, seja sob forma de remessa de lucros ou pagamento de royalties.

Não tendo obedecido a critérios seletivos e a um planejamento global, a substituição das importações tem geralmente agravado o já precário equilíbrio do balanço de pagamentos nos países "em desenvolvimento".

Por outro lado, o rápido desenvolvimento industrial pouco contribuiu para reduzir os níveis de desemprego e subemprego. Dados recentes4 4 Prebisch, R. Change and development: Latin America's great task. Washington DC , BID, 1970. evidenciam uma correlação mais estreita entre expansão industrial e produtividade de trabalho do que entre aquela e o nível de emprego. No caso brasileiro, a um crescimento médio da produção industrial de 7%, entre 1950-1968, corresponde um incremento da produtividade de trabalho de 5% e um aumento do emprego de 2%, apenas.

Sem pretensão de aprofundar aqui essa análise, parece evidenciar-se um problema estrutural básico comum aos países "em desenvolvimento", configurado como crescimento econômico baseado numa industrialização "perversa", orientada para a produção de bens e serviços capital-intensivos e poupadores de mão-de-obra.

Embora as análises da distribuição da renda e das técnicas de produção adotadas possam enriquecer o nosso conhecimento da dinâmica do processo, esses fatores não constituem variáveis independentes e explicativas por si, a não ser que a discussão seja encaminhada por um raciocínio tautológico.

O enfoque analítico deverá concentrar-se na dinâmica do próprio processo de expansão do capital na fase dos conglomerados transnacionais, cujas necessidades de acumulação, estimuladas e impulsionadas por uma alta taxa de retorno sobre os investimentos, criam e perpetuam desequilíbrios sociais, setoriais e regionais e portanto agravam os problemas sociais, para cuja solução estão sendo invocados.

Poder-se-ia alegar que políticas distributivas e medidas nacionalistas, como controle mais rígido sobre remessa de lucros, royalties, e contratos de transferência de tecnologia; as reformas fiscal e tributária, a elevação das tarifas de importação e até uma reforma agrária pudessem inverter a tendência, fundamental na sociedade contemporânea, para o agravamento das desigualdades social e econômica. Cumpre assinalar, contudo, que tais diretrizes da política econômica e social forçosamente tenderiam a diminuir as taxas de crescimento econômico e, portanto, de acumulação do capital, com conseqüentes tensões e conflitos políticos.

3. PLANEJAMENTO E MUDANÇA SOCIAL

A ênfase crescente na elaboração de indicadores socioeconômicos vem inserir-se numa corrente de pensamento evolucionista que atribui ao planejamento características de panaceia para o processo de mudança social. Partindo do pressuposto de que todos os países estariam fatalmente evoluindo em direção à "sociedade industrial", à imagem das sociedades de consumo ocidentais, infere-se a necessidade da planificação, para acelerar o processo de transformação, e da quantificação e mensuração como instrumentos e garantia de uma abordagem objetiva, neutra e racional, equivalente em rigor científico à verificação experimental de hipóteses, na área de disdiplinas exatas.

Nesta parte do trabalho, tentaremos argumentar que o planejamento é, em todas as suas fases, essencialmente um ato político, cuja racionalidade só pode ser analisada à luz dos interesses, objetivos e aspirações dos diferentes grupos ou camadas da população que não tendem necessariamente a uma situação de equilíbrio consensual. As contradições e resultados negativos de muitos planos não podem ser explicados apenas pela falta de indicadores mais precisos - as próprias metas, objetivos e valores que orientam sua elaboração e execução devem passar pelo crivo da análise crítica, em que as relações de poder e os interesses conflitivos constituem parâmetros de avaliação. Conseqüentemente, a insistência na neutralidade e no caráter apolítico dos indicadores e dos planos não procede, haja visto que o próprio diagnóstico dos "problemas" e a definição dos conceitos e instrumentos para solucioná-los são atos eminentemente políticos, carregados de juízos de valor.

As grandes teorias da sociologia dos séculos XIX e XX pouca preocupação tiveram com a quantificação ou mensuração dos processos de mudança social. Seus objetivos e pretensões concentraram-se na elaboração de esquemas ou modelos abrangentes, capazes de proporcionar explicações, em termos "científicos", das transformações sociais, isolando e descrevendo as suas condições específicas.

A maior dificuldade encontrada por esses autores reside na complexidade do "sistema social" objeto da análise, que engloba diferentes subsistemas sociais, desde as pequenas comunidades rurais até as relações entre nações ao nível do mercado mundial. Tal variedade de fenômenos torna extremamente precário o poder explicativo de qualquer teoria global de mudança, sendo a maioria dessas teorias formulada em nível de abstração tão elevado que pouca relevância apresentam para a realidade empírica. Por outro lado, os modelos empiricistas desenvolvidos pela sociologia norte-americana, enfatizando os aspectos observáveis e quantificáveis da vida social, perdem-se na análise de fatos isolados e fragmentados, apresentados em esquemas mais descritivos do que explicativos.

Fiéis ao espírito positivista, tanto os modelos macro quanto aos esquemas microssociológicos de mudança social se esmeram na busca de um fator "crucial" (variável independente) ao qual pudesse ser atribuída uma função causal na história. Assim, verificamos alternadamente tendências a um privilegiamento exacerbado e estanque da economia, da tecnologia, do espaço, dos traços psicológico-culturais, cuja presença ou ausência em grau e intensidade permitiria aos cientistas sociais formular previsões e, eventualmente, apresentar receitas para a orientação do processo social na direção desejável.

Ora, o desenvolvimento não pode ser concebido como um problema puramente econômico ou social, cultural ou político. Ele possui uma conotação macrossociológica que abrange toda a organização da economia, da interação social, da política e da cultura, numa configuração que é derivada do conjunto dos fatores e processos societários.

Entretanto, a insistência em descobrir "a causa" da evolução social é explicada pelo alto valor atribuído nas sociedades capitalistas e burocrático-estatais à mudança como sinônimo de progresso ou desenvolvimento. Descobrir e enunciar as "leis" desse processo poderia proporcionar instrumentos de dominação e legitimação poderosos para as nações mais avançadas no processo de industrialização, baseadas na interpretação tendenciosa de um trecho de Marx, segundo o qual "... o país mais avançado mostra o caminho ao menos desenvolvido ...."5 5 Marx, K. Das Kapital-Kritik der Politischen Okonomie. Alfred Kroner Verlag, Leipzig, 1929. v. 3, cap. 25. Pois se a evolução social se processasse de modo linear e por etapas graduais, estaria legitimada e justificada a interferência das grandes potências nos destinos dos pequenos países, os quais devem ser conduzidos pelas nações mais "experientes".

Outro pressuposto teórico do planejamento, diferente do modelo analítico causal, é representado pela abordagem funcionalista sistêmica, que procura explicar os fenômenos sociais por sua "função" ou contribuição à existência do conjunto. Admitindo os princípios da interação e interdependência como pilares da vida social, o funcionalismo6 6 Veja Rattner, H. Desenvolvimento da comunidade no processo de urbanização: Notas para uma crítica das teorias sociológicas do planejamento. RAE, v. 16, n. 3, jun. 1976. Gross, B.M. The state of the nation: social systems accounting. In: Bauer, R.A. ed. Social indicators. Cambridge, Mass. MIT Press, 1966. revela-se como uma teoria essencialmente conservadora, preocupada mais com o equilíbrio de acordo com as leis inerentes ao sistema do que com a mudança social. Como instrumento de análise, enfatiza e supervaloriza o equilíbrio, a unidade e o consenso entre as partes componentes do conjunto, levando os seus protagonistas a pautar "o que deve ser" mais do que a explicar o porquê das mudanças sociais. Características semelhantes encontramos nos diversos modelos sistêmicos, enriquecidos pelos mecanismos de auto-regulagem e retro alimentação.

A aceitação e aplicação desses modelos por parte da tecnocracia privada e estatal foi bastante entusiasta, pois encontraram na descrição empírica minuciosa dos elementos do sistema um sucedâneo para a teoria. O baixo nível de abstração, porém, não confere confiabilidade às previsões quanto à evolução do sistema. Por outro lado, a tecnocracia necessita de uma "teoria" para legitimar uma gama crescente de planos e intervenções na vida econômica, sociopolítica e cultural.

De fato, estruturar a produção em grandes unidades, construídas e administradas de acordo com as exigências da tecnologia moderna, exige um tipo de planificação melhor configurado no modelo sistêmico-funcionalista. A padronização dos produtos fabricados em massa por equipamentos de alto custo e indivisíveis pressupõe uma programação completa das operações, inclusive a previsão das eventuais perturbações do fluxo e seu controle pelos mecanismos do sistema, cujos "objetivos" (sic!) não podem sofrer os riscos de incerteza.

O mesmo raciocínio é aplicado, por analogia, à vida social e aos planos macrossociais de desenvolvimento concebidos como um conjunto orgânico de objetivos e meios para sua realização, mutuamente adaptados, os planos expressariam as "necessidades" do sistema sociopolítico e à tecnocracia caberia determinar a alocação de recursos e sua distribuição, por etapas e tarefas preestabelecidas, para os diferentes agentes sociais.7 7 Veja, por exemplo: Bell, D. A sociedade pós-industrial. In: Ginzberg, E., ed. Tecnologia e transformação social. Rio, Forense, 1966; ______. Twelve modes of prediction - a preliminary sorting of approaches in the social science. Daedalus, 1964. 93, p. 845-80.

A função legitimadora do modelo sistêmico consiste na abstração aparente de juízos de valor, devido ao caráter "científico" do modelo que o coloca acima dos interesses e pressões grupais e o encobre com o manto da neutralidade política e de racionalidade científico-tecnológica, evitando-se assim submeter os planos e seus resultados a uma avaliação em termos de custo/oportunidade e de custos sociais. Entretanto, tentar reduzir a vida social a um modelo sistêmico mecanicista em que as variáveis e sua interação são perfeitamente controláveis parece-nos um raciocínio falacioso por analogia.

O planejamento social, com toda a sua variedade e complexidade de processos e fatores, não pode ser enquadrado na racionalidade sistêmica, da mesma forma que uma sociedade em desenvolvimento não é suscetível de ser dirigida e administrada de acordo com normas e padrões rígidos, como uma empresa ou um projeto técnico econòmico. Visto sob um ângulo crítico, o planejamento sistêmico revela-se mais como uma técnica burocrática de solucionar ou controlar problemas, inclusive de ordem social e política, do que como um instrumento de desenvolvimento. Quanto mais difundido o tratamento "técnico" dos problemas sociais, mais acentuada se torna a pressão da tecnocracia no sentido de reprimir a discussão política e a confrontação pública de valores e objetivos sociais. Não havendo participação ativa da população, mediante processos políticos apropriados, estes objetivos são derivados dos interesses e aspirações de grupos específicos e legitimados pelo prestígio e poder conferidos em nossa sociedade aos planejadores e tecnocratas.

Ademais, a quantificação e manipulação estatística dos dados, o uso de modelos matemáticos de simulação mediante computadores, conferem aos planos e aos planejadores poder decisório e capacidade de previsão e controle que, embora ofusquem os verdadeiros problemas sociais, reforçam suas posições de detentores exclusivos do know-how e da expertise.

Enfim, é lícito assumir que cada teoria sociológica apresenta, de forma mais ou menos explícita, uma visão do homem como sujeito e objeto do processo social, o que permite avaliar a sua conveniência como fundamento para o planejamento, ou seja, é possível aferir cada teoria pelo grau de liberdade que ela atribui ao homem como agente social, consciente e dinâmico, de suas condições de existência.

A premissa de "consenso" como princípio fundamental da ordem social, subjacente à maioria dos modelos teóricos sociológicos, serve para derivar parâmetros de "bem comum" e de "interesse público", os quais funcionam como critérios para o planejador e o tecnocrata. Entretanto, assim estabelecidos os objetivos prioritários dos planos, passa-se à identificação implícita do consenso com eficiência e democracia, considerados valores supremos da nossa sociedade. Eliminados o debate público, a ação e a participação espontâneas e criativas dos indivíduos em função do "consenso", caberia aos tecnocratas, mais do que resolver, definir o que é e o que não é problema social, baseados no poder de alocar recursos financeiros e humanos às áreas e setores declarados "problemáticos".

Concebendo o plano como um reflexo das relações sociais (e políticas) de produção, uma análise crítica do planejamento concebido como técnica de mudança social dirigida deve indagar sobre "quem planeja", "quais seus objetivos e meios" e "em função de quais grupos de interesse".8 8 Veja Hamburger, Polia Lerner, op. cit. RAE, v. 16, n. 4, 1976.

Em outras palavras, a visão sociológica crítica encara o planejamento como um processo político, em que a parcela de poder detida pelos respectivos grupos sociais será determinante para a definição dos problemas e a decisão sobre as soluções. O uso do poder, além de distorcer a neutralidade e racionalidade dos planejadores, limita também a gama de opções entre os objetivos relevantes e realizáveis.

Presos aos vieses economicista, tecnicista, espacial etc, os planejadores se inclinam a diagnosticar e a "solucionar" os problemas das favelas, dos transportes, da poluição, das áreas verdes, enfocando os problemas sociais como "residuais", expressos em déficit de casas, escolas, leitos hospitalares. Essa visão não pode ser atribuída apenas à ignorância dos tecnocratas; ela decorre de determinada posição filosófico-política estribada no "consenso" e na harmonia da mudança social (desenvolvimento), cujo motor seria o crescimento econômico.

É preciso, portanto, reexaminar criticamente as premissas da teoria política implícita a certas técnicas de planejamento, inclusive a elaboração de indicadores sociais. Ao admitir a heterogeneidade conflitiva de interesses e aspirações numa sociedade em desenvolvimento, torna-se difícil sustentar a noção do "bem-estar comum", e o objetivo de atender às aspirações de todos. Contrariamente à pouca ênfase dada nos planos de desenvolvimento aos aspectos sociopolíticos, é a estrutura institucional - o mercado de trabalho, a distribuição da renda e o acesso aos canais de informação e de participação política - que devia merecer tratamento prioritário pelos técnicos em planejamento e pelos administradores públicos.

Planejar sem investigar e diagnosticar as causas do subdesenvolvimento e da marginalização de vastos contingentes da população é "tapar o sol com a peneira" e tenderá inevitavelmente a agravar aqueles problemas sociais cuja solução é invocada como legitimação da intervenção sistemática e dirigida do poder público.

4. DA FUNÇÃO DOS INDICADORES SOCIAIS

Na parte anterior deste trabalho tentamos argumentar que somente em certas condições sociais, políticas e ideológicas o planejamento se torna instrumento de desalienação do homem e, portanto, do desenvolvimento social.

A política, em si, não é uma atividade humana que possa ser planejada, pois se fundamenta em opções e elementos valorativos que refletem as próprias contradições da realidade. Trata-se então de planejar instrumentos, motivações, normas e instituições que permitam a concretização de objetivos coletivamente elaborados e decididos. A coordenação desses objetivos e a avaliação de sua coerência interna e externa para com o nível econômico far-se-ão a partir de princípios políticos fundamentados na filosofia da opção, numa realidade social concebida como uma totalidade e não apenas ao nível das atividades econômicas.

Entretanto, implícita à visão economicista e tecnocrática do desenvolvimento está a necessidade de conhecer e refletir sobre uma gama mais ampla de aspectos de vida social do que seria possível com base nos indicadores econômicos comumente elaborados. A lógica desses indicadores é derivada da própria "racionalidade" do crescimento econômico, baseado numa industrialização intensiva, cujos benefícios - assim se alega - poderiam ser compartilhados também pelas camadas desprivilegiadas da população, à condição que se dispusesse de indicadores e informações mais numerosos e acurados sobre a situação social.

O tratamento matemático e estatístico das informações colhidas mediante censos e levantamentos, utilizando, como esquema básico de inferência, correlações e a análise multivariacional, confere a estas técnicas o prestígio e a fidedignidade que normalmente são atribuídos aos resultados da experimentação, nas ciências naturais. Contudo, à falta de hipóteses teoricamente fundamentadas, corre-se o perigo de obter resultados mais exatos do que significativos, em que possa pesar o viés na conceituação, na construção da amostra e no modelo de explicação dos indicadores pesquisados.

A história recente do planejamento está repleta de casos em que foram realizadas pesquisas e levantamentos para confirmar ou negar hipóteses, previamente formuladas pelos tecnocratas e seus auxiliares, sobre "o que a população quer". Nestas circunstâncias, os indicadores pesquisados podem tornar-se instrumentos de promoção e legitimação de objetivos, programas e projetos específicos, presumidos e declarados pelos planejadores como necessários e desejados.9 9 Veja nota de rodapé 17, na p. 27 do artigo citado da RAE, v. 16, n. 4/76.

Não se pretende com isto negar a utilidade de indicadores e de sistemas de informações que abrangem desde os movimentos demográficos e os aspectos estruturais da economia (produção, mão-de-obra, tecnologia e emprego, etc.) até as características distributivas do sistema social (educação, saúde, consumo, etc.) e seus processos de transformação mais amplos (como, por exemplo, indicadores sobre a estratificação e a mobilidade social). Esses dados podem ter importante função exploratória no diagnóstico de situações concretas e na definição de metas prioritárias (as quais não são, necessariamente, idênticas aos objetivos da tecnocracia), à medida que forem conhecidas e esclarecidas previamente as premissas teóricas que orientam e sustentam o levantamento. À falta desse trabalho preliminar, corre-se o perigo de ignorar ou encobrir as projeções ideológicas e as ambições políticas subjacentes a qualquer tipo de planejamento.

Entre as definições mais plausíveis do que seja um indicador social encontramos a conceituação de Bauer (1966), segundo o qual "é uma informação que nos permite avaliar aonde vamos e onde estamos com relação aos nossos objetivos e valores, servindo, inclusive, para avaliar programas de ação e seu alcance".10 10 Bauer, R.A., (ed.) Social indicators. Cambridge, Mass. MIT Press, 1966. p. 18-9.

Indicadores sociais seriam, portanto, estatísticas aptas a medir os elementos atinentes à condição social e do bemestar dos diversos segmentos da população, se possível ao nível dos indivíduos e não de agregados, medindo inclusive a evolução desses elementos no tempo.11 11 Unesco - Les indicateurs socio-economiques: theories et applications. Revue Internationale des Sciences Sociales, Paris, v. 27, n. 1, p. 13-4. 1975.

Contudo, subjacentes a esta definição estão as premissas de que: a) os indicadores estatísticos constituiriam um retrato fiel e fidedigno da realidade; e b) a tarefa mais importante seria aperfeiçoar o sistema de informações para o planejamento, ou seja, "melhores" indicadores levariam quase que automaticamente a uma política social mais eficaz e justa.

Finalmente, a definição admite e sugere um processo de mudança social gradual e suave, para que possa ser orientado e controlado pelos tecnocratas (veja Moore & Sheldon, 1970), cujo modelo básico de organização social seria um sistema baseado no "consenso". Neste sistema, os principais problemas e os parâmetros para o diagnóstico e a determinação dos objetivos são definidos tendo em vista a identificação, de forma bastante arbitrária e de caráter ideológico, de consenso e democracia, com relação ao "interesse público" pelos detentores do poder.

Do exposto, parece lícito inferir a necessidade de concentrar os esforços mais na análise e interpretação da dinâmica do processo de crescimento econômico e de seus fatores determinantes, do que nas mensurações quantitativas; ou seja, a explicação das relações sociopolíticas subjacentes aos planos, metas e programas de desenvolvimento deve preceder à elaboração e à sofisticação dos sistemas de informações e dos indicadores sociais.

A ênfase e o entusiasmo algo ingênuo pelos indicadores, concebidos como instrumentos analíticos capazes de explicar o porquê da persistência da pobreza apesar de duas décadas de crescimento, não somente desviam a atenção dos problemas fundamentais do desenvolvimento mas também insinuam que, com seu aperfeiçoamento, poderse-ia definir novas diretrizes e programas para a redução e eliminação do subdesenvolvimento, no futuro.

Ao afirmarmos como valor supremo a criação de uma sociedade livre e igualitária, da qual seriam eliminados tanto a pobreza quanto o consumo supérfluo, cumpre também assinalar que, para a tecnocracia, é funcional, ao nível econômico, o tratamento matemático-estatístico do sistema produtivo sem referi-lo às relações sociopolíticas que o sustentam; ao nível ideológico, a tecnocracia difunde uma visão apolítica dos instrumentos geradores do "progresso", mistificando a inovação tecnológica e o fluxo interminável de bens de consumo supérfluos como acessíveis a todos, embora coincidam com uma deterioração da qualidade de vida das massas, especialmente nas aglomerações metropolitanas.

Finalmente, como corolário deduzido ao nível político, advoga-se a organização e manutenção de governos autoritários, únicos capazes de manterem a "paz social" de acordo com o modelo de consenso, e de conduzirem os destinos das nações subdesenvolvidas, com isenção e racionalidade, em função do "interesse público e do bem-estar coletivo".

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    Trabalho apresentado na 28.ª Reunião Anual da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizada de 8 a 14 de julho de 1976 em Brasília, D.F.
  • 1
    Veja, além da bibliografia citada, os trabalhos de Hamburger, Polia Lerner. Indicadores sociais no sistema de informação mercadológica.
    RAE, v. 16, n. 4,1976; e Considerações sobre "qualidade de vida" no processo decisório: impacto sobre as entidades públicas e privadas.
    RAE, v. 15, n. 2, 1975.
  • 2
    Veja, entre outros: Adelman, I. & Morris, C.T.
    Economic growth and social equity in developing countries. Stanford University Press, 1973. cf. cap. 4; Furtado, C.
    O mito de desenvolvimento económico. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1974; McNamara, R.S.
    Anual address to the board of governors of the World Bank Group (Nairobi). IBRD, Washington, 1973; Marsden, K. Em direção a uma síntese entre crescimento econômico e justiça social,
    RAE, v. 14, n. 3 jun. 1974; Mishan, E.J.
    Doenças, males e disfunções: preço do crescimento. Daedalus, Autumn 1973. Trad. port. Rui Fontana Lopez. EAESP/FGV. mimeogr.
  • 3
    Cf. Hoffmann, R.
    Tendências de distribuição da renda na Brasil e suas relações com o desenvolvimento econômico. Piracicaba, ESALQ/USP, 1972; Mello e Souza, A. Efeitos econômicos do salário mínimo, In: APEC.
    A Economia brasileira e suas perspectivas. Rio, 1971; Duarte, J.C.
    Aspectos da distribuição da renda no Brasil em 1970. Piracicaba, ESALQ/USP, 1971; Camargo, Cândido P.F. de et alii.
    São Paulo 1975: crescimento e pobreza. Edições Loyola, São Paulo, 1976; Rattner, H. Os custos sociais da aglomeração metropolitana,
    RAE, v. 15, n. 6, dez. 1975.
  • 4
    Prebisch, R.
    Change and development: Latin America's great task. Washington DC , BID, 1970.
  • 5
    Marx, K.
    Das Kapital-Kritik der Politischen Okonomie. Alfred Kroner Verlag, Leipzig, 1929. v. 3, cap. 25.
  • 6
    Veja Rattner, H. Desenvolvimento da comunidade no processo de urbanização: Notas para uma crítica das teorias sociológicas do planejamento.
    RAE, v. 16, n. 3, jun. 1976. Gross, B.M. The state of the nation: social systems accounting. In: Bauer, R.A. ed.
    Social indicators. Cambridge, Mass. MIT Press, 1966.
  • 7
    Veja, por exemplo: Bell, D. A sociedade pós-industrial. In: Ginzberg, E., ed.
    Tecnologia e transformação social. Rio, Forense, 1966;
    ______. Twelve modes of prediction - a preliminary sorting of approaches in the social science. Daedalus, 1964. 93, p. 845-80.
  • 8
    Veja Hamburger, Polia Lerner, op. cit.
    RAE, v. 16, n. 4, 1976.
  • 9
    Veja nota de rodapé 17, na p. 27 do artigo citado da RAE, v. 16, n. 4/76.
  • 10
    Bauer, R.A., (ed.)
    Social indicators. Cambridge, Mass. MIT Press, 1966. p. 18-9.
  • 11
    Unesco - Les indicateurs socio-economiques: theories et applications.
    Revue Internationale des Sciences Sociales, Paris, v. 27, n. 1, p. 13-4. 1975.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Fev 1977
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