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Controle da população e ideologia

ARTIGOS

Controle da população e ideologia

Luiz Carlos Bresser Pereira

Professor do Departamento de Planejamento e Análise Econômica Aplicados à Administração da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas

Poucos temas são mais carregados de conotações ideológicas do que o do controle da população ou do planejamento familiar. Já a distinção entre essas duas expressões possui óbvias implicações políticas. Controle da população implicaria uma intervenção impositiva do Estado, enquanto planejamento familiar seria apenas um sistema de orientação e apoio para as famílias, às quais seria deixada plena liberdade para decidir o número de filhos. Se o problema é ideologicamente conturbado, isto significa que é preciso.procurar por trás das posições publicamente assumidas os interesses dos Estados nacionais e das classes sociais. Só assim poderemos ter uma visão um pouco mais clara da questão real que se esconde sob o véu dos interesses de classe.

Entretanto, a partir das pesquisas sobre índices de natalidade, é possível chegar a conclusões mais objetivas. É possível inferir, sobretudo, que as famílias urbanas muito pobres e as famílias rurais apenas pobres auferem vantagens em ter muitos filhos. Em contrapartida, para as famílias apenas remediadas já começa a ser interessante controlar sua taxa de natalidade. Nestes termos, desde que a renda das famílias esteja crescendo, e que exista um hiato entre o momento em que se torna objetivamente interessante para as famílias realizar o controle e o momento em que elas percebem o fato e/ou se instrumentalizam para realizar esse controle, torna-se viável auxiliá-las a controlar a própria fertilidade por meio de um programa de planejamento familiar patrocinado pelo Estado que teria a finalidade de preencher esse hiato. E, obviamente, caberia a esse programa um papel estritamente secundário em relação ao objetivo maior - do qual a taxa de natalidade depende - de promover um padrão de desenvolvimento e de distribuição de renda que garanta rápido crescimento do padrão de vida das famílias mais pobres.

A questão ideológica envolvida é a mais ampla possível. Nela estão contidos aspectos religiosos, sexuais, econômicos, ecológicos e de poder, de uma forma quase inextricável. Verificaremos que as posições em relação ao controle da população são tomadas a partir dos interesses dos Estados nacionais, da burguesia, da tecnoburocracia, da esquerda, dos economistas, dos ecólogos, dos homens bem-pensantes em geral. E os critérios levam em consideração a revolução ou a conservação do status quo, o desenvolvimento econômico, a independência nacional, a defesa da natureza. Em todo o processo, os trabalhadores cuja taxa de natalidade se pretende ou não se pretende controlar são tratados como objetos e não como sujeitos. É possível, entretanto, encontrar a respeito do problema critérios objetivos que nos indiquem quais são os reais interesses dos trabalhadores, a partir da análise de seu próprio comportamento em relação ao controle da natalidade. Não pretendemos com isto excluir nossos próprios condicionamentos ideológicos, mas eventualmente lançar um pouco de luz sobre o problema a partir da adoção de um método crítico de pensamento.

A discussão começa ao nível da moral religiosa familiar com a questão: é legitimo ou não planejar o tamanho da familia? Ou então, quais os métodos legítimos e quais os ilegítimos de que dispõe o casal para controlar o número de filhos? Não vou discutir o problema nesse plano. Cabe entretanto lembrar que a moral católica, que condena a utilização de métodos artificiais, inclusive o uso de pílulas anticoncepcionais, é provavelmente vítima de uma defasagem histórica. A condenação do controle da natalidade era socialmente necessária na Idade Média, quando, dadas as altas taxas de mortalidade, a não-limitação da taxa da natalidade era muitas vezes uma condição de sobrevivência da sociedade.

1. CRITÉRIOS POLÍTICOS

O plano político, entretanto, será estudado um pouco mais detidamente. Após a II Guerra Mundial o controle familiar transformou-se definitivamente em um problema político fundamental. Antes o problema já existia, mas foi só a partir de então que os governos, principalmente nos países asiáticos, tanto pertencentes à esfera capitalista quanto à comunista, passaram a desenvolver programas de controle populacional. Nos países periféricos capitalistas, suas políticas foram desenvolvidas com o mais decidido apoio dos países centrais.1 1 A explosão populacional em todo o mundo e principalmente nos países subdesenvolvidos pode ser expressa pela evolução das taxas de crescimento'da população. Entre 1750 e 1850 os países desenvolvidos cresciam a uma taxa de 0,5% ao ano, enquanto os subdesenvolvidos o faziam a 0,4%. Estas taxas já podiam ser consideradas elevadas em relação às anteriores, inferiores a 3% ao ano. Refletiam a revolução agrícola e em seguida a industrial. No século seguinte essas taxas crescem para respectivamente 0,6 e 0,9%. Finalmente, entre 1950 e 1975 há um dramático crescimento da população nos países subdesenvolvidos, cuja taxa de crescimento sobe para 2,3%, ao passo que nos desenvolvidos a taxa tende a estabilizar-se em torno de 1,1%. Colocou-se então a questão: deve o Estado participar ativamente de campanhas de controle da população ou de planejamento familiar? Em caso afirmativo: é legítimo um controle populacional coercitivo ou apenas um planejamento familiar indicativo.

Os países capitalistas centrais favorecem decididamente o controle populacional nos países subdesenvolvidos, mas isto não os impede de, em vários casos, estimular o crescimento populacional em suas próprias fronteiras. A ambivalência sugere o imperialismo, embora esses Estados tenham um bom argumento a seu favor: nos países subdesenvolvidos a população cresce explosivamente e, principalmente na Ásia, há muitos países superpovoados. Já os países capitalistas periféricos dividem-se: os claramente superpovoados, principalmente na Ásia, tendem a adotar o controle, enquanto aqueles com grandes quantidades de terras virgens, como acontece em geral na América Latina, tendem a recusar mesmo o planejamento familiar. Adotam essa posição em nome do poder nacional e da definição de desenvolvimento econômico como um processo de crescimento da renda total, não aceitando uma medida um pouco melhor, ainda que falha, como é a da taxa de crescimento da renda por habitante.

Os países comunistas periféricos, como a China e Cuba, adotam fórmulas de planejamento ou controle familiar.

Ao substituirmos o critério de Estado nacional pelo de classe, as posições ideológicas são também contraditórias. A burguesia dos países centrais tenderia a favorecer a expansão populacional na medida em que isto aumenta a oferta da força de trabalho. Entretanto, este é um efeito a longo prazo, e a burguesia está interessada em efeitos a curto prazo. Nesse plano, conforme observou Cândido Procópio Ferreira de Camargo, convém à burguesia manter limitado o tamanho da família, a fim de não ter aumentado o custo de reprodução da força de trabalho (4, p. 6).

A posição mais comum da esquerda condena o controle da natalidade, acusando-o de estratégia burguesa para abafar a luta de classes. Esta posição corresponde à tese de que, para a revolução socialista, quanto pior melhor. Uma posição um pouco mais sofisticada afirma que a prioridade está em mudar o padrão de acumulação, ou, mais radicalmente, em substituir o modo de produção capitalista pelo socialista. Desta posição plenamente coerente e aceitável, entretanto, deduz-se

que controlar a população constitui uma alternativa desviacionista da direita, não podendo, portanto, ser admitida. Trata-se, é óbvio, de uma meia-verdade seguida por uma conclusão ilógica: um típico non sequitur.

Outros setores da esquerda, porém, começam a criticar essas posições. Observam que o fato de que a direita tenda a apoiar programas de controle populacional não significa automaticamente que esta seja uma tese reacionária. Não há dúvida de que há outros problemas com prioridade maior. Mudar estruturalmente o padrão de acumulação, caminhar em direção ao socialismo são tarefas mais importantes do que controlar a população. Mas uma ação não prejudica a outra.

A tese de que a pauperização dos trabalhadores - da qual a inexistência de planejamento familiar não é a causa mas um fator obviamente agravante - facilita a sua tomada de consciência política é historicamente incorreta. Não é nos países mais subdesenvolvidos ou entre os trabalhadores mais pobres que a conscientização política é mais desenvolvida. Um padrão de vida razoável não é condição suficiente, mas é condição necessária para uma participação política efetiva. Trabalhadores subnutridos, miseráveis, preocupados com a mera sobrevivência de uma família numerosa não têm condições de conscientização e organização política. A tese do quanto pior melhor cai, assim, por terra e um número crescente de representantes da esquerda começa a aceitar a necessidade ou a conveniência do planejamento familiar.

Neste debate, os critérios para as tomadas de posição são os mais diversos e estão entrelaçados. Podemos, entretanto, distingui-los. Há o critério político, que já examinamos. Para a direita ou para os países centrais a explosão populacional nos países subdesenvolvidos é ameaçadora, convém segurá-la. Para os governantes de Estados com terras ainda não-exploradas, como na América Latina, ou com taxas de crescimento populacional extremamente baixas, como em certos países da Europa, o aumento da população torna-se politicamente desejável. Dentro do projeto de "Brasil potência", definido pelos militares neste país a partir de 1964, por exemplo, está incluído um crescimento populacional sem freios.2 2 Devido à influência da tecnoburocracia civil, ao nível dos ministérios e aos níveis sociais, a politica brasileira em relação ao controle da natalidade está mudando. Em maio de 1977 o Ministério da Saúde se preparava para apresentar ao Conselho de Desenvolvimento Social um programa de distribuição de pílulas anticoncepcionais para prevenção da gravidez de alto risco. O conceito de gravidez de alto risco, entretanto, estava sendo definido de forma bastante ampla, incluindo os casos de subnutrição da mãe, de forma a abranger entre 20 e 25% dos casos de gravidez no Nordeste. Em 27 de julho de 1977 o Conselho de Desenvolvimento aprovou oficialmente um programa de planejamento familiar com uma doação de 54 milhões de cruzeiros para um período de 4 anos. Quase metade da verba será utilizada na compra de pílulas anticoncepcionais. O DIU não será utilizado. Cada família terá a autoridade de controlar ou não seu número de filhos. A vitória da linha a favor do planejamento familiar dentro do governo brasileiro provavelmente indica que, depois da crise que se abateu sobre o país a partir de 1974, os sonhos do "Brasil potência" estavam mais moderados. Para a esquerda, o critério é a revolução, que, à luz de uma primeira análise, seria ajudada pela explosão populacional. Mas, examinando o problema mais em profundidade, verificamos que a revolução socialista seria prejudicada por essa mesma explosão populacional. Em todas essas posições, o trabalhador e o bem-estar mínimo da familia estão em segundo plano. Serão alcançados por meio da política, jamais antes ou concomitantemente com ela.

2. CRITÉRIOS ECONÔMICOS

Mas há outros critérios que rivalizam com o critério político. Os tecnoburocratas, os economistas e, sob sua influência, a burguesia estão preocupados com o desenvolvimento econômico e perguntam-se: o crescimento da população prejudica ou facilita o aumento da renda per capital Imaginam que respondendo a esta questão terão resolvido o problema de controlar ou não a população. A ideologia capitalista, que subordina todos os demais valores aos econômicos, é assim explicitada pelo desenvolvimentismo tecnoburocrático, segundo o qual a eficiência é o critério último do bem e do mal.

A resposta, em termos de desenvolvimento econômico, entretanto, não é simples. Se adotarmos como fórmula operacional aproximada de definir desenvolvimento econômico o crescimento da renda por habitante, D, podemos escrever que:

em que Y e N são respectivamente o produto nacional e a população. Por esta fórmula, uma primeira conclusão é que, dada a taxa de crescimento da renda, quanto maior for o crescimento da população menor será o desenvolvimento.

Esta conclusão é apressada, na medida em que pressupõe um dado crescimento da renda. Ora, o crescimento do produto depende da população, a não ser que o país esteja superpovoado. Por mais que a tecnologia moderna seja capital-intensiva, a força de trabalho está longe de ter-se tornado supérflua. Os períodos de grande desenvolvimento econômico, desde a Revolução Industriai, são geralmente acompanhados de grande crescimento populacional. O desenvolvimento é o resultado da acumulação de capital, e esta determina o volume de emprego necessário. Quando a população não cresce para satisfazer suas necessidades, há o recurso aos imigrantes, como aconteceu nos Estados Unidos no século passado e na Europa no após-guerra. Caso isto não ocorra, os salários crescerão, os lucros serão reduzidos e a acumulação de capital voltará a diminuir. Paulo Singer (8) salienta o papel importante do crescimento populacional como condição para a manutenção de elevadas taxas de acumulação.

Mas o crescimento da população só será essencial ao desenvolvimento quando estivermos, a longo prazo e descontadas as variações conjunturais da economia, em condições de pleno emprego. Ora, nos países subdesenvolvidos o desemprego disfarçado, o subemprego são a regra. Mesmo que seus recursos naturais ainda estejam subutilizados, há excesso de população, há desemprego.

A razão para isto é simples. O nível de emprego, L, depende do estoque de capital, K, de um país. O acréscimo no emprego depende da acumulação de capital, Δ K.

L = f (K)

ΔL = fK)

Como os países subdesenvolvidos são subcapitalizados, são também marcados pelo desemprego. E são, portanto, superpovoados, justificando-se assim, sob o ponto de vista econômico, o planejamento populacional.

É nosso pressuposto que nas condições capitalistas de produção, em que a rentabilidade privada de cada empreendimento deve ser maximizada, os coeficientes técnicos implícitos nas duas funções acima são fortemente rígidos. A margem para substituição de mão-deobra por capital em condições econômicas ótimas é muito pequena. As propostas de tecnologia intermediária, como as realizadas por Schumacher (9), são muito atrativas e generosas, mas infelizmente suas possibilidades práticas no mundo capitalista são limitadas.

Já nas economias planejadas, em que os critérios de rentabilidade individual podem ser abandonados, e podem continuar a coexistir lado a lado sistemas moderníssimos, altamente capital-intensivos, com sistemas artesanais, para produzir os mesmos produtos - nessas economias os coeficientes técnicos tornam-se mais flexíveis. É o caso típico da China. Com este tipo de política o desemprego é eliminado. Toda a população é utilizada na produção. Entretanto, como os trabalhadores marginais estão sendo utilizados ineficientemente, e como há uma crescente pressão sobre os limitados recursos naturais do país, o controle populacional está firmemente implantado na China, apesar da maior flexibilidade dos coeficientes técnicos de produção.

Esta observação sugere um outro critério, que vem sendo cada vez mais empregado para discutir os problemas populacionais: o critério ecológico. A humanidade, nos últimos 10 anos, tomou, definitiva e dramaticamente, consciência da limitação dos recursos naturais do planeta Terra. Contribuições como as d<* Georgescu-Roegen (5) ou do Clube de Roma, no estudo sobre os Limites do crescimento, foram decisivas para alertar o homem não apenas contra os abusos do consumismo e dos gastos militares desenfreados, mas também contra o perigo da explosão populacional, em nome da sobrevivência da humanidade. Seus argumentos são irrespondíveis.

3. MERCADORIA OU SISTEMA

Os critérios políticos, econômicos e ecológicos são respeitáveis, mas em última análise são todos ideológicos, são todos direta ou indiretamente políticos. E nesses termos só são aceitáveis para cada um dos participantes do debate - economistas, sociólogos, demógrafos, políticos, capitalistas, religiosos, médicos, assistentes sociais - na medida em que estão de acordo com os seus interesses de classe. Ora, no mundo contemporâneo os ilustres estamentos profissionais que acabei de citar pertencem a uma das duas classes dominantes: ou à burguesia ou à classe tecnoburocrática. Os trabalhadores são o objeto dessa discussão. Não são sujeitos do debate nem sua própria condição de vida é o principal critério das tomadas de posições. Os defensores de critérios políticos, econômicos ou ecológicos e, naturalmente, também os defensores de critérios religiosos podem pretender que seu objetivo final é o bem-estar do povo, mas é fácil perceber que esse objetivo é muito indireto, pairando antes e sempre sob o crivo dos inte resses da própria classe dos debatedores.

Para o capitalismo puro, o trabalhador é uma mercadoria como qualquer outra que deve ser produzida e consumida. Quando a mão-de-obra é abundante, nas fases iniciais do capitalismo, "o consumo da força de trabalho pelo capital tende a ser extremamente predatório", conforme observa Francisco de Oliveira (7, p. 17). Mais tarde, quando nos países centrais começa a escassear mão-de-obra, seu "consumo" por parte do capital começa a ser mais cuidadoso, inclusive porque nesse momento os trabalhadores já se acham organizados sindicalmente.

Para o estatismo ou o tecnoburocratismo puro,3 3 Sobre o conceito de estatismo ou modo tecnoburocrático de produção ver Bresser Pereira (3), primeira parte. o trabalhador não é uma mercadoria, mas um sistema de produção como qualquer outro: um sistema de produção que recebe inputs e produz outputs nos termos em que foi planejado. É preciso dosar cuidadosamente os inputs em termos de alimentação e treinamento, a fim sobretudo de maximizar a eficiência operativa do trabalhador.

Para o capitalismo puro, quanto mais crescer a população, mais assegurada estará a acumulação de capital. Já para o tecnoburocratismo ou o estatismo, a população, como todos os demais subsistemas do sistema geral de produção, deve ser cuidadosamente controlada. Em certos momentos, será indicado estimular o crescimento da população; em outros, procurar reduzi-lo. Mas, sempre, controlá-lo em nome do Estado planejador de todo o sistema social.

4. UM CRITÉRIO OBJETIVO

Diante dessas posições ideologicamente condicionadas das classes dominantes, pergunta-se: seria possível encontrar um critério objetivo que legitime ou condene o planejamento familiar? Por critério objetivo entendemos um critério que parta dos trabalhadores que vão realizar o planejamento, e que atenda aos seus próprios interesses.

Não creio que uma pesquisa de campo, em que se procurasse determinar a opinião dos trabalhadores, fosse resolver o problema. Se as famílias pobres têm muitos filhos, de duas uma: ou esta prática atende às suas necessidades, ou é um erro que essas famílias estão cometendo por falta de informações e orientação adequadas. Uma pesquisa à base de entrevista poderá fornecer alguns elementos a respeito, mas dificilmente será conclusiva, dada a hipótese de que pode haver falta de informação por parte das famílias trabalhadoras.

Mais significativas são as pesquisas que relacionam nível de renda com fecundidade das mulheres. Elza Berquó, por exemplo, verificou que existe uma forte correlação negativa entre a renda per capita e a fecundidade das mulheres brasileiras (2, p. 109). Esta pesquisa veio confirmar um grande número de outras observações e pesquisas no mesmo sentido.

Quando as famílias são muito pobres, os índices de natalidade são muito altos. Para essas famílias, os custos adicionais de educação, saúde e vestuário são mínimos, já que elas nada gastam com esses objetivos. E os próprios custos de alimentação são baixos, especialmente na zona rural. Em contrapartida, "filho homem é seguro de velho". Os filhos podem transformar-se muito cedo em um ativo importante, como mão-de-obra produtiva, e para a velhice dos pais podem representar um papel decisivo. Mas assim que a sociedade se urbaniza, e que o padrão de vida das famílias cresce um pouco, as condições começam a mudar rapidamente. Os custos de alimentação são os primeiros a se tornarem inescapáveis e, portanto, a subir vertiginosamente. A conseqüência é a dramática subalimentação das crianças. Os demais custos sobem em seguida, à medida que a família vai procurando incorporar-se aos padrões de consumo mínimos da vida urbana.

A necessidade das famílias de planejar seu número de filhos pode ser diretamente deduzida da correlação negativa entre renda por habitante e fecundidade das mulheres. A natalidade decresce à proporção que as famílias aumentam seu nível de vida e se urbanizam. Embora ambos os fatores sejam correlacionados, a urbanização é uma dependente também muito importante. Considerado um mesmo nível de vida, famílias urbanas têm menos filhos do que famílias rurais. Na vida urbana, a partir do momento em que o padrão de vida das famílias cresce um pouco, torna-se cada vez menos interessante um grande número de filhos. Este é um dado objetivo ao qual devemos, entretanto, acrescentar uma hipótese: existiria um hiato entre o momento em que objetivamente deixa de ser interessante para as famílias dos trabalhadores maximizar o seu número de filhos e o momento em que elas tomam consciência do problema e se instrumentalizam técnica e economicamente (porque, é bom lembrar, alguns métodos, como as pílulas, são caros) para realizar o controle.

O papel do planejamento familiar como política do Estado é preencher esse hiato. É colocar à disposição das mulheres, que são as maiores sacrificadas no processo, e das famílias em geral as informações necessárias para um efetivo controle da própria fertilidade. Além da orientação, formas de subsídio às famílias mais necessitadas são também perfeitamente recomendáveis. Nestes termos, o Estado não desenvolve uma política populacional. A fertilidade é um problema que diz respeito à liberdade de cada família. A política populacional é alguma coisa que se define a partir da própria elevação do padrão de vida dos trabalhadores e da sua tomada de consciência de que as vantagens em limitar os filhos são muito grandes nas sociedades industriais e urbanizadas.

5. CONCLUSÃO

Em conclusão, critérios externos aos trabalhadores podem inclusive legitimar formas autoritárias de controle populacional. No momento em que procuramos encontrar um critério objetivo para o problema a partir dos interesses das próprias famílias trabalhadoras, e não nos basear em critérios oriundos dos interesses e ideologias de capitalistas e tecnoburocratas, podemos legitimar formas de planejamento familiar democráticas, que garantam a autonomia dos trabalhadores em relação à dimensão de sua própria família.

É óbvio, entretanto, que tanto uma política de planejamento familiar democrática quanto formas autoritárias de controle populacional serão fadadas ao insucesso caso não sejam acompanhadas de uma elevação real do padrão de vida da população. A correlação negativa entre renda familiar e fertilidade, dadas taxas de mortalidade decrescentes, é, também aqui, um critério objetivo a condicionar a redução da taxa de crescimento da população à elevação do padrão de vida dos trabalhadores. Não apenas o planejamento familiar não é prioritário em relação a modificações estruturais no padrão de desenvolvimento, mas também, se não se encontram formas de desenvolvimento menos concentradoras de renda, os programas de planejamento familiar ou de controle populacional tenderão a apresentar parcos resultados.

O planejamento familiar implica custos não apenas para o Estado ou as instituições privadas que os administram mas também para as famílias que se disponham a colocá-lo em prática. Para as famílias extremamente pobres, o custo de ter filhos é relativamente pequeno, enquanto os benefícios, em termos de mãode-obra infantil e de seguro para a velhice, são muito elevados. Qualquer programa de planejamento familiar nesse estágio será provavelmente fadado ao insucesso. No momento, entretanto, em que começa a se elevar o padrão de vida das famílias, em que a mulher é alfabetizada e passa a trabalhar como assalariada, as taxas de natalidade começam a cair imediatamente.

A redução da taxa de natalidade é, portanto, função do desenvolvimento econômico, ou melhor, da elevação do padrão de vida das populações mais pobres, onde se encontram as altas taxas de natalidade. Aceleradas taxas de crescimento econômico acompanhadas por um forte processo de concentração de renda, do tipo que ocorreu no Brasil em anos recentes, terão provavelmente pequena influência na redução da natalidade. Em contrapartida, conforme observa Antonio Carlos Kfoury Aidar, "a níveis econômicos agregados similares, quanto mais igual for a distribuição econômica e social, menor será o nível geral de fertilidade e mais rápido o declínio da fertilidade, de forma a permitir uma taxa menor de crescimento da população" (1, p. 15). Este fato foi verificado empiricamente. Países em que a distribuição de renda é relativamente igual, como a Malásia Ocidental e a China, apresentaram um enorme declínio da taxa de natalidade, enquanto em outros países, como México, Colômbia ou índia, caracterizados por uma alta concentração de renda, os resultados foram muito mais modestos.4 4 A Malásia Ocidental, cuja taxa de crescimento da população era de 3,1% ao ano no período 1958-1964, baixou-a para 1,7% no período 1970-73. A China, cuja taxa de aumento populacional já era de 1,5% ao ano no período 1958-1964, reduziu-a para 1,4% em 1963-1967. A Colômbia, que no primeiro período apresentava uma taxa de 3,2%, mantinha a mesma taxa em 1970-1973, e o México aumentou sua taxa de crescimento populacional de 3,2% para 3,5% nos mesmos períodos. No Brasil, onde não houve política de controle familiar, a taxa de crescimento da população baixou de 3,1 % para 2,9%. Este fato deve-se provavelmente ao forte processo de urbanização e à redução de fertilidade nas famílias das camadas médias. Na índia, nos mesmos períodos, as respectivas taxas foram de 2,3% e 2,1%. (Fonte: Anuários Demográficos da Organização das Nações Unidas, 1965, 1967, 1973.)

O problema do planejamento familiar, portanto, está diretamente relacionado com a capacidade dos países subdesenvolvidos de se desenvolver e principalmente de fazê-lo distribuindo a renda de forma muito mais igualitária. Na medida em que isto ocorrer, programas de planejamento familiar poderão ser bem sucedidos, desde que, acompanhando a tendência já existente no sentido do controle da natalidade, orientem e acelerem essa tendência. A última coisa que penderíamos imaginar, porém, é a idéia, tão cara aos ideólogos conservadores de direita, de que o planejamento familiar vá ser a causa da elevação do padrão de vida das populações pobres. O processo, sem dúvida, é dialético, um fator reforçando o outro, mas a linha causal determinante é muito mais forte e significativa no sentido inverso. Só a implantação de sistemas econômicos e sociais mais justos e igualitários permitirá a redução da natalidade e o êxito de programas de planejamento familiar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Aidar, Antonio Carlos Kfoury. The relationship between development and fertility decline. Michigan State University, 1976. Xerogr.

2. Berquó, Elza. A fecundidade no Brasil em 1970. In: Crescimento populacional (histórico e atual) e componentes do crescimento (fecundidade e migrações). São Paulo, 1973. (Caderno CEBRAP, nº16.)

3. Bresser Pereira, Luiz C. Estado e subdesenvolvimento industrializado. São Paulo, Brasiliense, 1977.

4. Camargo, Cândido Procópio Ferreira de. A ambigüidade de uma ideologia. CEBRAP, 1977. mimeogr. (Pesquisa Nacional de Reprodução Humana).

5. Georgescu-Roegen, Nicholas. The entropy law and economic process. Harvard University Press, Cambridge, 1971.

6. Meadows, Oonela H.; Meadow Dennis L.; Ran¬ ders, Jorgen & Behrens III, William W., 1972. Limites do crescimento. São Paulo, Perspectiva, 1973. (ed. ingl., 1972).

7. Oliveira, Francisco de. Notas sobre a reprodução humana sob o capital. In: Estudos CEBRAP, n. 16, abr./jun. 1976.

8. Singer, Paul. Dinâmica populacional e desenvolvimento. São Paulo, CEBRAP, 1970.

9. Schumacher, E. F., 1972. Small is beautiful - Economics as if people mattered. New York, Harper & Row, 1975 (1st. ed., 1973).

  • 1. Aidar, Antonio Carlos Kfoury. The relationship between development and fertility decline. Michigan State University, 1976. Xerogr.
  • 3. Bresser Pereira, Luiz C. Estado e subdesenvolvimento industrializado. São Paulo, Brasiliense, 1977.
  • 4. Camargo, Cândido Procópio Ferreira de. A ambigüidade de uma ideologia. CEBRAP, 1977. mimeogr. (Pesquisa Nacional de Reprodução Humana).
  • 5. Georgescu-Roegen, Nicholas. The entropy law and economic process. Harvard University Press, Cambridge, 1971.
  • 6. Meadows, Oonela H.; Meadow Dennis L.; Ran¬ ders, Jorgen & Behrens III, William W., 1972. Limites do crescimento. São Paulo, Perspectiva, 1973. (ed. ingl., 1972).
  • 8. Singer, Paul. Dinâmica populacional e desenvolvimento. São Paulo, CEBRAP, 1970.
  • 9. Schumacher, E. F., 1972. Small is beautiful - Economics as if people mattered. New York, Harper & Row, 1975 (1st. ed., 1973).
  • 1
    A explosão populacional em todo o mundo e principalmente nos países subdesenvolvidos pode ser expressa pela evolução das taxas de crescimento'da população. Entre 1750 e 1850 os países desenvolvidos cresciam a uma taxa de 0,5% ao ano, enquanto os subdesenvolvidos o faziam a 0,4%. Estas taxas já podiam ser consideradas elevadas em relação às anteriores, inferiores a 3% ao ano. Refletiam a revolução agrícola e em seguida a industrial. No século seguinte essas taxas crescem para respectivamente 0,6 e 0,9%. Finalmente, entre 1950 e 1975 há um dramático crescimento da população nos países subdesenvolvidos, cuja taxa de crescimento sobe para 2,3%, ao passo que nos desenvolvidos a taxa tende a estabilizar-se em torno de 1,1%.
  • 2
    Devido à influência da tecnoburocracia civil, ao nível dos ministérios e aos níveis sociais, a politica brasileira em relação ao controle da natalidade está mudando. Em maio de 1977 o Ministério da Saúde se preparava para apresentar ao Conselho de Desenvolvimento Social um programa de distribuição de pílulas anticoncepcionais para prevenção da gravidez de alto risco. O conceito de gravidez de alto risco, entretanto, estava sendo definido de forma bastante ampla, incluindo os casos de subnutrição da mãe, de forma a abranger entre 20 e 25% dos casos de gravidez no Nordeste. Em 27 de julho de 1977 o Conselho de Desenvolvimento aprovou oficialmente um programa de planejamento familiar com uma doação de 54 milhões de cruzeiros para um período de 4 anos. Quase metade da verba será utilizada na compra de pílulas anticoncepcionais. O DIU não será utilizado. Cada família terá a autoridade de controlar ou não seu número de filhos. A vitória da linha a favor do planejamento familiar dentro do governo brasileiro provavelmente indica que, depois da crise que se abateu sobre o país a partir de 1974, os sonhos do "Brasil potência" estavam mais moderados.
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    Sobre o conceito de estatismo ou modo tecnoburocrático de produção ver Bresser Pereira (3), primeira parte.
  • 4
    A Malásia Ocidental, cuja taxa de crescimento da população era de 3,1% ao ano no período 1958-1964, baixou-a para 1,7% no período 1970-73. A China, cuja taxa de aumento populacional já era de 1,5% ao ano no período 1958-1964, reduziu-a para 1,4% em 1963-1967. A Colômbia, que no primeiro período apresentava uma taxa de 3,2%, mantinha a mesma taxa em 1970-1973, e o México aumentou sua taxa de crescimento populacional de 3,2% para 3,5% nos mesmos períodos. No Brasil, onde não houve política de controle familiar, a taxa de crescimento da população baixou de 3,1 % para 2,9%. Este fato deve-se provavelmente ao forte processo de urbanização e à redução de fertilidade nas famílias das camadas médias. Na índia, nos mesmos períodos, as respectivas taxas foram de 2,3% e 2,1%. (Fonte: Anuários Demográficos da Organização das Nações Unidas, 1965, 1967, 1973.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 1978
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