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O controle do processo de trabalho na agricultura

ARTIGO

O controle do processo de trabalho na agricultura

Maria Rita Garcia Loureiro

Professora do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração, da EAESP/FGV

I. Começa-se a questionar, em estudos mais recentes sobre a sociedade agrária, a idéia, presente implícita ou explicitamente em grande parte da literatura marxista, referente à homogeneização crescente entre agricultura e indústria, como fruto da chamada modernização tecnológica e do desenvolvimento capitalista. Isto é, começa-se a rever as concepções de que o desenvolvimento do capitalismo no campo implica necessariamente a destruição das formas de produção não-capitalistas, a proletarização crescente, como ocorre na cidade, do trabalhador rural, enfim a transformação da atividade agrícola em uma atividade industrial como outra qualquer, regida pelas leis gerais da produção capitalista.

Este questionamento surge a partir da constatação de que, na agricultura, o desenvolvimento do capitalismo não tem levado a generalização do trabalho assalariado, mas, ao contrário, à reprodução e mesmo ampliação do trabalho familiar, isto é, de uma relação não-capitalista. Isto não só em países como o Brasil, caracterizado como de capitalismo dependente, tardio, etc., mas inclusive em países como a França e EUA, tidos como mais avançados capitalisticamente. Assim, por exemplo, Vergopoulos (s.d) mostra que na França, em 1954, os trabalhadores autônomos já representavam 37% do total da população economicamente ativa e os assalariados 23%. Em 1968, acentua-se mais ainda o peso dos autônomos, que passam para 46%, caindo os assalariados para apenas 20% do total. Também em países como os EUA há indicações de que, dos 4,6 milhões de pessoas que trabalhavam em 1975 na agricultura americana, 3,3 milhões eram de trabalhadores familiares e apenas 1,3 milhão era de assalariados (Clement, 1976).1 1 Análise mais aprofundada das relações entre unidade de produção familiar e trabalho assalariado na agricultura americana encontra-se em Friedmann. World market, state, and family farm: social bases of household production in the era of wage labor. Comparative Studies in Society and History, 20 (4), Oct. 1978. Para o Brasil, embora as informações estatísticas que se dispõem não sejam adequadas para o conhecimento das relações de produção na agricultura, os dados organizados por Guimarães (1978) a partir dos censos agrícolas da Fundação IBGE oferecem indicações importantes para a revisão de velhas idéias. Embora não aprofundando o significado desta constatação, Guimarães afirma que está ocorrendo um processo de "acamponesamento" dos trabalhadores rurais, expresso nos seguintes dados: enquanto em 1940 os empregados correspondiam a 49% do pessoal ocupado na agricultura brasileira, totalizando 5,6 milhões de pessoas, e os trabalhadores familiares representavam apenas 34%, com 3,8 milhões de pessoas, em 1970 a situação se altera: os empregados caem para 15% do total, com 2,6 milhões de pessoas, e os trabalhadores familiares passam para 9 milhões, o que corresponde a mais da metade do pessoal ocupado no campo no período (52%).

Diante da constatação da presença de formas de produção não-capitalistas na agricultura, os estudiosos no Brasil tendem a explicá-la ou como expressão de situação de atraso no desenvolvimento (os famosos resíduos feudais ou pré-capitalistas) ou como produto anômalo do capitalismo, mas necessário à sua acumulação. Nesta última alternativa, coloca-se ênfase nos dados e explicações - aliás inquestionáveis - relativos à deterioração tendencial dos termos de troca entre agricultura e indústria e a questão da produção a baixos custos dos alimentos básicos na cesta de consumo do operariado urbano, etc.

Todavia, estudos ainda incipientes, que procuram aprofundar a análise do desenvolvimento do capitalismo na agricultura, têm observado seu caráter específico com relação ao processo de industrialização e que este tem a ver não só com os preços obtidos pelos produtos agrícolas no mercado, mas também com condições internas ao processo produtivo agrícola. Assim, o economista francês A. Mollard (1978) afirma que a industrialização da agricultura não é um processo de identificação da agricultura à indústria, embora sejam transmitidas certas características de uma para outra: é um processo de transformação da agricultura pela indústria, mesmo se esta última permanece exterior à esfera agrícola, e mesmo à economia nacional, como muito bem mostrou J. F, Troussier a respeito da agricultura dinamarquesa. É um processo que não implica necessariamente a predominância de grande exploração, como constatou o mesmo autor para a Dinamarca, e como vê-se igualmente para a maioria das agriculturas da Europa Ocidental. A industrialização capitalista da agricultura, impulsionada pelas grandes empresas internacionais da química e da mecânica, mas também pelas indústrias agrícolas e alimentares, tem como objetivo essencial fazer produzir crescentemente mais-valia relativa aos agricultores e ao conjunto dos trabalhadores. Mas a indústria capitalista não pode moldar inteiramente a agricultura a sua imagem, devido às especificidades da produção agrícola e isto é o que funda em parte os itinerários particulares da agricultura (grifo nosso, os demais são de Mollard). Ora, estes itinerários particulares têm sua origem de um lado na própria especificidade da gestão dos recursos naturais, no estado atual das técnicas. Assim, a agricultura é grande consumidora de espaço, o que lhe confere numerosas particularidades, notadamente o deslocamento das máquinas sobre o suporte da produção, enquanto na indústria a maioria dos postes das máquinas são fixos e as matérias-primas móveis. É igualmente evidente que os processos biológicos mobilizados apresentam seus limites (aqueles do próprio ciclo biológico) e que estes especificam fortemente o processo de trabalho e de produção... " (p. 22).

Na medida em que Mollard pensa esta especificidade do processo de produção agrícola como transitória e superável pelo avanço técnico, o futuro da agricultura é, embora retardado, o mesmo da indústria e, conseqüentemente, o futuro das classes sociais rurais será também o da polarização entre burgueses e proletários. Portanto, o camponês, mesmo sendo útil para a acumulação capitalista enquanto tal, e mesmo tentando resistir à sua destruição, será inevitavelmente proletarizado: "... antes mesmo da transformação de sua força de trabalho em mercadoria, os camponeses podem ser explorados no seu trabalho e destituídos de seu excedente... O conceito de exploração do trabalho em nossa hipótese é, pois, o centro de gravidade de toda explicação da evolução atual da agricultura; ele permite compreender ao mesmo tempo por que a agricultura camponesa subsiste ainda no modo de produção capitalista atual e a este beneficia e por que ao mesmo tempo ela desenvolve um processo inelutável de regressão; ele permite ligar a industrialização e a regressão da agricultura" (p. 25, grifo nosso).

Outros estudiosos desta problemática, que também enfatizam o caráter específico do processo produtivo agrícola ou da "industrialização da agricultura", afirmam, porém, diferentemente de Mollard, que as unidades camponesas ou familiares não estão destinadas inevitavelmente ao desaparecimento. Assim, os economistas brasileiros Aidar e Perosa (1980), estudando a agricultura americana atual, afirmam: "O conjunto de informações apresentadas até aqui e referentes ao poder da agropecuária norte-americana no contexto da agricultura mundial, sua concentração e a revolução tecnológica pela qual tem passado, com um enorme incremento da produtividade do trabalho, leva-nos a crer que estamos diante de um setor altamente capitalizado, cujas linhas de evolução tenderiam a reproduzir o mesmo desenvolvimento observado na indústria: o domínio de grandes empresas cada vez mais internalizadas em estruturas oligopolizadas e empregadoras de um crescente contingente de trabalhadores assalariados. Como se verá, entretanto, tal não é o caso A revolução tecnológica acima mencionada, ao lado da enorme capitalização dos estabelecimentos agrícolas, veio fortalecer, através de máquinas cada vez mais modernas e eficientes, a posição da propriedade familiar" (p. 6-7).

Procurando explicar esta situação, outro economista brasileiro desenvolve uma análise com base na teoria marxista, ''mostrando como as condições de existência da produção capitalista no interior da agricultura são destruídas, tornando inviável economicamente o empreendimento capitalista" (p. 4). Os argumentos oferecidos por Nakano (1980), para explicar a reprodução por ele chamada de "perpétua" da unidade familiar no capitalismo, podem ser esquematizados em dois pontos básicos:

1. A agricultura, na etapa do capitalismo monopolista, não consegue gerar a taxa média de lucro nem tampouco a renda da terra. Portanto, o capital foge deste setor criando espaço para a unidade familiar, que por sua vez tem superioridade técnica (em termos de produtividade) em relação à grande unidade capitalista.

2. A destruição da taxa média de lucro na maior parte do setor agrícola e da renda da terra, por sua vez, ocorre devido aos limites oferecidos pela atividade agrícola ao processo de oligopolização e pelo caráter específico assumido aí pelo progresso técnico.

Eis as palavras do próprio Nakano:

"... é a oligopolização do capital industrial determinando um alto grau de monopólio que permite ao setor industrial como um todo captar uma taxa de lucro bem acima da competitiva, o que acaba destruindo a taxa de lucro e a renda fundiária na agricultura. Neste último setor não existem as mesmas condições que permitem bloquear a mobilidade de capital e assim defender a taxa de lucro" (...): "os requisitos de capital e as economias de escala estão ao alcance das unidades familiares; o conhecimento tecnológico pode ser rapidamente difundido pela simples observação e experiência; as possibilidades de diferenciação da produção são limitadas, etc." (p. 7 e 9).

Por outro lado, "o processo produtivo na agricultura está sujeito a uma seqüência temporal regida por leis biológicas inalteráveis de crescimento. A produção também depende do solo, do sol e da chuva sobre os quais a tecnologia não tem controle completo. O processo de crescimento das plantas e animais estabelece uma continuidade básica no processo de trabalho e na própria estrutura organizacional, diferentemente da indústria. Dada a natureza seqüencial do processo de trabalho, mesmo quando totalmente mecanizado, o seu parcelamento e a introdução da divisão técnica de trabalho são bastante limitados. Nestas circunstâncias, a natureza do processo técnico na agricultura é totalmente diferente quando comparada à da indústria. A utilização de fertilizantes e adubos não dá vantagens para as grandes unidades comparadas às pequenas. As máquinas e os equipamentos desenvolvidos, por mais sofisticados que sejam, têm que se ajustar ao local natural de trabalho (terra) e podem ser conduzidos por um indivíduo com o auxílio de uma ou duas pessoas no máximo. Resultado disso é que em quase todos os setores da agricultura uma unidade de produção conduzida por um ou dois homens pode captar todos os ganhos gerados pelo progresso técnico em termos de redução do custo unitário de produção. O estabelecimento de unidades produtivas maiores do que a familiar acaba gerando custos crescentes de coordenação administrativa dada a falta de uniformidade entre os recursos naturais e a natureza consecutiva e dispersa do processo de produção. Em outras palavras, o padrão de progresso técnico na agricultura é tal que a unidade produtiva adequada (escala ótima) é aquela que pode ser conduzida basicamente com a mão-de-obra familiar" (p. 8-9).2 2 Vale lembrar aqui que, embora recorrendo a outro tipo de explicação, tanto Samir Amin como Kostas Vergopoulos (s.d.) identificam a mesma situação para a agricultura européia na etapa monopolista do capitalismo: a partir da crise agrária do final do século passado provocada pelo comércio ultramarino, pela intervenção estatal, enfim pelo avanço imperialista do capital, as condições da produção capitalista na agricultura - lucro e renda da terra - são destruídas, criando-se espaço para a produção familiar.

As exceções a esta situação ocorrem onde for possível o transplante do "sistema de fábrica" (como nas granjas modernas) ou a integração vertical da agricultura com a indústria monopolista, pois a administração dos preços do produto agrícola final permite remunerar o capital investido na atividade produtiva agrícola. E, ainda, quando a atividade produtiva ocorrer sobre uma terra de fertilidade muito superior à média, resultando em uma redução substancial dos custos de produção.

Pode-se observar que as afirmações acima são bastante heterodoxas com relação às teses clássicas. Elas têm porém como álibi a própria realidade, captada pelos dados citados anteriormente, referentes à permanência de produtores familiares nas economias capitalistas. E, se a estas tentativas de explicação pode-se atribuir um determinismo biológico (ou de natureza física), elas têm como mérito, de meu ponto de vista, o questionamento de ortodoxias que só têm servido para esterilizar as pesquisas, na medida em que têm a pretensão de conhecer desde já o futuro do capitalismo no campo e na sociedade em geral. Além disso, oferecem pistas, válidas ou não, para o avanço da teoria do desenvolvimento agrícola no capitalismo monopolista.

Em suma, procurando sintetizar o conjunto de observações efetuadas até aqui, tendo em vista avançar na análise do tema aqui proposto, pode-se afirmar que a inviabilidade da empresa capitalista na agricultura ocorre tanto pela deterioração dos termos de troca entre agricultura e indústria (isto é, a nível do mercado) quanto por características internas ao processo de trabalho agrícola (isto é, a nível da produção). A primeira razão explica, por exemplo, a presença no Brasil de empresas agrícolas capitalistas nos subsetores voltados para a exportação, quando conjunturas internacionais permitem remunerar o capital, ou ainda no ramo canavieira, onde a integração com a indústria açucareira possibilita administrar preços, etc.; a segunda razão explica a permanência ou o surgimento de empresas capitalistas substituindo empresas familiares nos ramos onde for possível estabelecer o "sistema de fábrica", não só do ponto de vista técnico mas também do ponto de vista de controle do trabalhador (como ocorre atualmente no ramo avicultor no Brasil) ou, ao contrário, a permanência da unidade familiar. É com relação a esta última situação que as análises de Braverman (1980) sobre o processo de trabalho industrial na etapa monopolista oferecem contribuições importantes para seu aprofundamento.

II. Tentando utilizar comparativamente os estudos de Braverman para o processo de trabalho agrícola,3 3 Deve-se notar aqui que, embora os estudos de Braverman tenham-me estimulado a aprofundar a questão da especificidade do processo de trabalho agrícola, ele próprio não retém esta questão. Pensa, ao contrário, como todos os marxistas clássicos, que o avanço capitalista cria um mercado universal, homogeneizando todos os trabalhadores - urbanos e rurais - na mesma temática geral de desqualificação do trabalhador frente a busca incessante por parte do capital monopolista de mais mais-valia relativa. pode-se afirmar de modo geral que a dificuldade de aplicação ao processo produtivo agrícola dos métodos da gerência "científica", especialmente no sentido taylorista de imposição ao trabalhador de uma forma rigorosa de execução do trabalho, constitui outro fator que impede a elevação da produtividade de trabalho agrícola e, conseqüentemente, a formação aí de taxas e massas de lucro compatíveis com aquelas vigentes nos setores industriais monopolistas.

Para se analisar com mais profundidade esta última afirmação, é preciso retomar alguns pontos básicos do raciocínio que Braverman desenvolve no texto citado.

Este autor parte da idéia marxista de que, nas novas relações de produção criadas no capitalismo, o trabalhador desprovido dos meios de produção, ao vender para o capitalista sua força de trabalho, aliena também sua capacidade de comando ou controle sobre o processo de trabalho e portanto seu interesse pelo trabalho, isto é, perde a característica que particulariza o trabalho humano, distinguindo-o da atividade mecânica e inconsciente do animal. Portanto, sob o capitalismo o trabalho humano se desumaniza. Trata-se, porém, de uma situação fundamental para o capitalista, pois é a partir da retirada do controle sobre o processo produtivo das mãos do trabalhador que ele pode extrair, da capacidade potencial do trabalhador, o máximo de produtividade e conseqüentemente maior excedente (ou mais-valia) e maior lucro. É nisto que consiste o caráter do antagonismo das relações de produção capitalistas nó interior da fábrica: a disputa entre o propósito constante do capital de concretizar ao máximo a potencialidade da força humana de trabalho e a resistência cotidiana do trabalhador frente a este processo. "... quando o capitalista compra imóveis, matérias-primas, ferramentas, maquinaria, etc, pode avaliar com rigor seu lugar no processo de trabalho. Ele sabe que certa parcela de seu desembolso será transferida a cada unidade de produção e sua contabilidade o lançará sob o título de custos e depreciação. Mas quando ele compra tempo de trabalho, o resultado será longe de ser tão certo e tão determinado de modo que possa ser computado desse modo, com rigor e antecipação. Isto significa simplesmente que a parcela de seu capital despendido na força de trabalho é a porção 'variável' que sofre um aumento no processo de produção; para ele, a questão é de quanto será o aumento. Torna-se, portanto, fundamental para o capitalista que o controle sobre o processo de trabalho passe das mãos do trabalhador para as suas próprias. Esta transição apresenta-se na história como a alienação progressiva dos processos de produção do trabalhador; para o capitalista, apresenta-se como o problema de gerência" (p. 59).

Todavia, é só na etapa monopolista que o capitalismo conseguiu revolucionar realmente os processos de produção e estabelecer o controle "taylorista" sobre o trabalhador. As referências de Braverman sobre o trabalho por tarefa e por regime de subcontratação, vigentes até o final do século passado na Europa como nos EUA, são claras a esse respeito. Enquanto nas primeiras etapas do capitalismo industrial o capitalista comprava trabalho acabado, isto é, "procurava tratar o trabalho como qualquer outra mercadoria" (p. 64) (e não como uma mercadoria especial capaz de produzir mais-valia), a organização monopolista da industria retira qualquer decisão do trabalhador, impondo-lhe não só tarefas, determinadas horas de trabalho, etc, mas uma forma rigorosa de executá-lo. 'Taylor elevou o conceito de controle a um plano inteiramente novo quando asseverou como uma necessidade absoluta para a gerência adequada a imposição ao trabalhador de uma maneira rigorosa pela qual o trabalho deve ser executado" (grifo de Braverman). Para ele, "a gerência só podia ser um empreendimento limitado e frustrado se deixasse ao trabalhador qualquer decisão sobre o trabalho" (p. 86). E ainda, no capitalismo monopolista, "a unidade de pensamento e ação, concepção e execução, mão e mente, que o capitalismo ameaçou desde os seus inícios, é agora atacada por uma dissolução sistemática que emprega todos os recursos da ciência e das diversas disciplinas da engenharia nela baseadas:4 4 Embora não discutida no âmbito deste trabalho, a tese básica de Braverman nesse livro, e que se tornou objeto de muita polêmica nos meios acadêmicos americanos e de outros países, centra-se nesta questão: o desenvolvimento tecnológico, a aplicação sistemática da ciência à indústria, trouxe consigo um violento processo de desqualificação do trabalhador, na medida em que cada vez mais o processo produtivo capitalista é levado a cabo por uma minoria de indivíduos que o planejam e uma grande massa de trabalhadores que executam mecânica e desinteressadamente os movimentos indicados pelas máquinas. Desqualificação esta que atinge inclusive as profissões de nível superior como a engenharia. o fator subjetivo do processo de trabalho é transferido para um lugar entre seus fatores objetivos inanimados. Aos materiais e instrumentos da produção acrescenta-se uma "força de trabalho", "outro fator de produção", e o processo é daí por diante executado pela gerência como o exclusivo fator subjetivo. Este é o alvo a que tende a gerência, e na busca do qual ela emprega e adapta toda inovação produtiva proporcionada pela ciência" (p. 150) (grifo nosso).5 5 O que Braverman está procurando reter nestas passagens nada mais é que a formulação marxista a respeito da subordinação formal e real do trabalho ao capital. Embora Marx não tenha alcançado em vida a constituição dos grandes monopólios, as análises no chamado "Capítulo Inédito" vão claramente nesta direção. Assim, ele diz que na subordinação formal do trabalho ao capital, embora o trabalhador já trabalhe para o capital, tendo em vista a sua valorização, "en el modo de producción mesmo no se verifica aún ninguna diferencia en esta etapa. El proceso laboral, desde al punto de vista tecnológico, se efectua exactamente como antes (grifo nosso, p. 61). Por outro lado, "la subsunción real del trabajo en el capital - el modo de producción capitalista propiamente dicho - no hace su entrada en escena hasta tanto no se hayan apoderado de la producción capitales de cierta magnitud, sea que o comerciante se tranforme en capitalista industrial, sea que sobre la base de la subsunción formal se hayan constituido capitales industriales más fuertes" (p. 62-3, grifo nosjo).

Braverman esclarece porém que "a redução do trabalho ao nível de instrumento no processo produtivo não está de modo algum exclusivamente associada com a maquinaria" (p. 151), ou melhor, depende exclusivamente do desenvolvimento tecnológico. Toda sua argumentação vai no sentido de enfatizar o papel do controle ou comando exercido pelo capital - seja ele personificado no próprio capitalista ou em seus gerentes - sobre o trabalhador. É a partir deste comando que inclusive se define a técnica ou o conjunto do instrumental técnico a ser utilizado.6 6 Com esta última observação, pretendo descartar possível objeção ao texto de Braverman relativa à elevação da produtividade do trabalho no capitalismo monopolista: esta seria muito mais decorrente do avanço técnico do que de uma prática gerencial específica, como afirma aquele autor. Ora, a "luta" de Taylor para superar o "marcapasso sistemático" dos operários em uma fábrica dos EUA, citada por Braverman, para ficar neste exemplo, indica que é a partir da monopolização de toda a decisão sobre o processo de trabalho nas mãos do capitalista (ou de seus gerentes) que se pode inclusive decidir entre qual tecnologia adotar, ou deixar de adotar. Em outras palavras, a técnica utilizada é fruto de uma decisão gerencial anterior e não vice-versa.

Em suma, pode-se reter das observações de Braverman que a elevação da produtividade do trabalho na etapa monopolista do capitalismo é determinada não só pelo progresso técnico, pela aplicação sistemática da ciência à produção, mas igualmente pelo avanço da gerência científica, isto é, pelo avanço dos métodos de controle do trabalhador assalariado.

Ora, na medida em que na agricultura o processo de produção se faz sobre a terra, isto é, em um espaço amplo e não concentradamente em um espaço reduzido, como a fábrica, na medida em que as máquinas no campo é que se locomovem e não as matérias-primas, etc, como lembrou Mollard no texto transcrito anteriormente, as possibilidades de controlar a intensidade do trabalho, de instalar por exemplo a esteira rolante ou a linha de montagem - meios historicamente decisivos para intensificar o trabalho na industria - são bastante reduzidas.7 7 Descrevendo o surgimento da esteira rolante na indústria Ford do início do século nos EUA, a qual permitiu a fabricação em um dia do mesmo número de carros que eram fabricados anteriormente em um ano, Braverman diz: "O aceleramento do índice de produção, neste caso, dependia não apenas da mudança da organização do trabalho, mas do controle que a gerência conseguiu, de um só golpe, sobre o ritmo da montagem, de modo que podia agora dobrar, triplicar, o índice a que as operações a serem executadas deviam obedecer e assim submeter seus trabalhadores a uma intensidade extraordinária de trabalho" (p. 131).

Além disso, os cuidados "artesanais" exigidos por , certos produtos agrícolas tornam praticamente impossível a mecanização de todas as etapas produtivas e conseqüentemente o controle do trabalhador assalariado. Ou, como disse Nakano no texto citado anteriormente, a coordenação administrativa implica custos tão elevados, "dada a falta de uniformidade entre recursos naturais e a natureza consecutiva e dispersa do processo de produção", que não é viável para o capitalista. Assim, por exemplo, o plantio da cebola de bulbo exige a avaliação constante por parte do trabalhador da distância entre um bulbo e outro em função de seu tamanho (bulbos maiores demandam distanciamento maior), o que praticamente impossibilita a mecanização desta atividade (pois implica padronização).8 8 Loureiro, Maria Rita Garcia. Terra, família e capital. Rio de. Janeiro, FGV, 1980. mimeogr. Descrições de situações semelhantes para os cultivos do bicho-da-seda, do fumo, etc. mostram que aí também as decisões sobre o processo de trabalho estão nas mãos do trabalhador e não nas mãos do capitalista que, por exemplo, industrializa a seda ou o fumo.

Vale lembrar para reforçar a linha de argumentação que estou desenvolvendo aqui que as grandes empresas capitalistas que atuam no campo, como a Nestlé, Cica, Souza Cruz, etc, não investem capitais no processo produtivo agropecuário, do tomate ou do fumo, preferindo, ao contrário, investir no processo industrial de sua transformação. O caso da Nestlé, por exemplo, é clássico, ela jamais produziu o leite que industrializa. Kautsky inclusive faz referência à sua atuação já no século passado, comprando leite em 180 aldeias européias sem pensar em expropriar os meios de produção de seus fornecedores, substituindo-os no processo produtivo agrícola (Kautsky, 1968, p. 130).

Enfim, como de modo geral na agricultura a possibilidade de controlar o trabalhador assalariado de forma "científica", como dizem os gerentes, é pequena, sua produtividade é baixa. Vale recordar a título de ilustração que grande parte da movimentação que se produziu no Brasil há alguns anos atrás a respeito do bóia-fria parece ter sido determinada, do meu ponto de vista, não só devido a razões humanitárias (ligadas à sua miséria), mas também por motivos de ordem econômica relacionados com a ótica capitalista: trata-se de uma forma de exploração do trabalho pouco vantajosa para o empresário, na medida em que a produtividade do trabalhador é baixa.

É por esta razão que o trabalho familiar (seja ele de pequenos produtores, de arrendatários ou de parceiros) surge como alternativa para que o processo produtivo se realize em níveis mais altos de produtividade se comparados ao do trabalho assalariado sem controle "científico". Ò estudo de Aidar e Perosa, já citado, mostra índices de produtividade da unidade familiar nos EUA bastante elevados. Meu trabalho sobre parceria mostra igualmente índices de produtividade do trabalho do parceiro muito superiores aos do trabalhador assalariado (Loureiro, 1977). O autocontrole exercido pelo trabalhador e sua família sobre seu próprio trabalho, isto é, seu interesse pela atividade produtiva é que explica sua maior produtividade.

III. Para concluir, devo observar que recusar a idéia de um mercado universal de trabalho, de uma classe trabalhadora homogeneizada, e reter analiticamente a especificidade do processo de trabalho agrícola, com relação ao processo de trabalho inteiramente controlado pelo capitalista (ou "subordinado realmente ao capital"), é fundamental para se compreender a diversidade não só de condições concretas de existência social, mas também de lutas políticas dos trabalhadores: diversidade entre trabalhadores rurais e urbanos e de trabalhadores rurais entre si. Assim, se há trabalhadores rurais, como os dos engenhos açucareiros no Nordeste, reivindicando, como os operários do ABC em São Paulo, não só melhores salários, mas também menor intensidade de trabalho, delegado de engenho, etc. (cf. Sigaud, 1980 e Humphrey, 1980), há igualmente trabalhadores rurais empenhados em reivindicações por melhores condições de produzir: elevação de preços dos produtos agrícolas, diminuição do preço dos insumos, formação de cooperativas de comercialização, etc. E, ainda, trabalhadores rurais lutando por acesso à terra, por uma bandeira de reforma agrária.

Perder de vista esta diversidade é afastar-se da realidade concreta e, portanto, da possibilidade de transformá-la efetivamente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Aidar & Perosa. Viabilidade da empresa agrícola. Fundação Getúlio Vargas, 1980. mimeogr.

Braverman, Harry. Trabalho e capital monopolista. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1980.

Clément, J. M. Performances économiques et évolution tecnique de l'agriculture américaine. Problèmes Economiques, Paris, n. 1.438, sept. 1976.

Friedmann, Harriet. World market, State and family farm: social bases of household production in the era of wage labor. Comparative Studies in Society and History, 20 (4), Oct. 1978.

Guimarães, Alberto Passos. A Crise agrária. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

Humphrey, John. As Raízes e os desafios do "novo" sindicalismo da indústria automobilística. Estudos Cebrape, São Paulo, n. 26, 1980.

Kautsky, Karl. A Questão agrária. Rio de Janeiro, Laemment, 1968.

Loureiro, Maria Rita Garcia. Parceria e capitalismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.

______. Terra, família e capital. Fundação Getúlio Vargas, 1980. mimeogr.

Marx, K. El Capital. 3. ed. Buenos Aires, Siglo Veintiuno Livro I, cap. VI (inédito). 1974.

Mollard, Amédée. Paysans exploités. Presses Universitaires de Grenoble, 1978.

Nakano, Yoshiaki, Progresso técnico, grau de monopólio e a destruição da taxa de lucro e da renda da terra na agricultura. Fundação Getúlio Vargas, 1980. mimeogr.

Sigaud, Ligia, Greve nos engenhos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980.

Vergopoulos, El Caso de la agricultura en el capitalismo. In: Amin, Samir & Vergopoulos, Kostas. La Cuestión campesina y el capitalismo. México, Nuestro Tiempo, s.d.

* Este texto constitui-se de algumas reflexões preliminares sobre um dos pontos centrais da subordinação do trabalhador no capitalismo. Ele se inspira no importante estudo de Braverman intitulado Trabalho e capital monopolista, referente , especificamente ao processo de trabalho industrial. Pretendo aprofundar as idéias aqui expostas em projeto de pesquisa que acabei de apresentar ao Núcleo de Pesquisas e Publicações (NPP) da EAESP/FGV.

  • Aidar & Perosa. Viabilidade da empresa agrícola. Fundação Getúlio Vargas, 1980. mimeogr.
  • Braverman, Harry. Trabalho e capital monopolista. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1980.
  • Clément, J. M. Performances économiques et évolution tecnique de l'agriculture américaine. Problèmes Economiques, Paris, n. 1.438, sept. 1976.
  • Friedmann, Harriet. World market, State and family farm: social bases of household production in the era of wage labor. Comparative Studies in Society and History, 20 (4), Oct. 1978.
  • Guimarães, Alberto Passos. A Crise agrária. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
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  • Kautsky, Karl. A Questão agrária. Rio de Janeiro, Laemment, 1968.
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  • ______. Terra, família e capital. Fundação Getúlio Vargas, 1980. mimeogr.
  • Marx, K. El Capital. 3. ed. Buenos Aires, Siglo Veintiuno Livro I, cap. VI (inédito). 1974.
  • Mollard, Amédée. Paysans exploités. Presses Universitaires de Grenoble, 1978.
  • Nakano, Yoshiaki, Progresso técnico, grau de monopólio e a destruição da taxa de lucro e da renda da terra na agricultura. Fundação Getúlio Vargas, 1980. mimeogr.
  • Sigaud, Ligia, Greve nos engenhos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980.
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    Análise mais aprofundada das relações entre unidade de produção familiar e trabalho assalariado na agricultura americana encontra-se em Friedmann. World market, state, and family farm: social bases of household production in the era of wage labor.
    Comparative Studies in Society and History, 20 (4), Oct. 1978.
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    Vale lembrar aqui que, embora recorrendo a outro tipo de explicação, tanto Samir Amin como Kostas Vergopoulos (s.d.) identificam a mesma situação para a agricultura européia na etapa monopolista do capitalismo: a partir da crise agrária do final do século passado provocada pelo comércio ultramarino, pela intervenção estatal, enfim pelo avanço imperialista do capital, as condições da produção capitalista na agricultura - lucro e renda da terra - são destruídas, criando-se espaço para a produção familiar.
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    Deve-se notar aqui que, embora os estudos de Braverman tenham-me estimulado a aprofundar a questão da especificidade do processo de trabalho agrícola, ele próprio não retém esta questão. Pensa, ao contrário, como todos os marxistas clássicos, que o avanço capitalista cria um mercado universal, homogeneizando todos os trabalhadores - urbanos e rurais - na mesma temática geral de desqualificação do trabalhador frente a busca incessante por parte do capital monopolista de mais mais-valia relativa.
  • 4
    Embora não discutida no âmbito deste trabalho, a tese básica de Braverman nesse livro, e que se tornou objeto de muita polêmica nos meios acadêmicos americanos e de outros países, centra-se nesta questão: o desenvolvimento tecnológico, a aplicação sistemática da ciência à indústria, trouxe consigo um violento processo de desqualificação do trabalhador, na medida em que cada vez mais o processo produtivo capitalista é levado a cabo por uma minoria de indivíduos que o planejam e uma grande massa de trabalhadores que executam mecânica e desinteressadamente os movimentos indicados pelas máquinas. Desqualificação esta que atinge inclusive as profissões de nível superior como a engenharia.
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    O que Braverman está procurando reter nestas passagens nada mais é que a formulação marxista a respeito da subordinação formal e real do trabalho ao capital. Embora Marx não tenha alcançado em vida a constituição dos grandes monopólios, as análises no chamado "Capítulo Inédito" vão claramente nesta direção. Assim, ele diz que na subordinação formal do trabalho ao capital, embora o trabalhador já trabalhe para o capital, tendo em vista a sua valorização, "en el modo de producción mesmo no se verifica aún ninguna diferencia en esta etapa.
    El proceso laboral, desde al punto de vista tecnológico, se efectua exactamente como antes (grifo nosso, p. 61). Por outro lado, "la subsunción real del trabajo en el capital - el modo de producción capitalista propiamente dicho - no hace su entrada en escena hasta tanto
    no se hayan apoderado de la producción capitales de cierta magnitud, sea que o comerciante se tranforme en capitalista industrial, sea
    que sobre la base de la subsunción formal se hayan constituido capitales industriales más fuertes" (p. 62-3, grifo nosjo).
  • 6
    Com esta última observação, pretendo descartar possível objeção ao texto de Braverman relativa à elevação da produtividade do trabalho no capitalismo monopolista: esta seria muito mais decorrente do avanço técnico do que de uma prática gerencial específica, como afirma aquele autor. Ora, a "luta" de Taylor para superar o "marcapasso sistemático" dos operários em uma fábrica dos EUA, citada por Braverman, para ficar neste exemplo, indica que é a partir da monopolização de toda a decisão sobre o processo de trabalho nas mãos do capitalista (ou de seus gerentes) que se pode inclusive decidir entre qual tecnologia adotar, ou deixar de adotar. Em outras palavras, a técnica utilizada é fruto de uma decisão gerencial anterior e não vice-versa.
  • 7
    Descrevendo o surgimento da esteira rolante na indústria Ford do início do século nos EUA, a qual permitiu a fabricação em um dia do mesmo número de carros que eram fabricados anteriormente em um ano, Braverman diz: "O aceleramento do índice de produção, neste caso, dependia não apenas da mudança da organização do trabalho, mas do controle que a gerência conseguiu, de um só golpe, sobre o ritmo da montagem, de modo que podia agora dobrar, triplicar, o índice a que as operações a serem executadas deviam obedecer e assim submeter seus trabalhadores a uma intensidade extraordinária de trabalho" (p. 131).
  • 8
    Loureiro, Maria Rita Garcia.
    Terra, família e capital. Rio de. Janeiro, FGV, 1980. mimeogr.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1981
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