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Pedagogia do trabalho - raízes da educação socialista

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Afrânio Mendes Catani

Rossi, Wagner Gonçalves. Pedagogia do trabalho - raízes da educação socialista. São Paulo, Moraes, 1981. 177 p. Cr$ 500,00.

Em 1978, Wagner Gonçalves Rossi publicou Capitalismo e educação (São Paulo, Cortez e Moraes), onde realizou, em linguagem clara e das mais acessíveis, uma análise das funções atribuídas à educação escolar por várias teorias economicistas e políticas, mostrando como a escola participa da reprodução da força de trabalho, sendo colocada a serviço dos interesses de capital - interesses esses que, segundo a teoria do capital humano, conferiam à educação escolar o papel de aumentar a capacidade produtiva dos trabalhadores. O autor enfatizou, na ocasião, que no capitalismo moderno da grande indústria, a maioria dos trabalhadores não necessita de habilidades específicas que possam ser desenvolvidas através da educação, ou seja, a "qualificação" da mão-de-obra não vai acarretar um aumento na sua capacidade de produção, "já que suas atividades se resumem à execução de tarefas parcelares, repetitivas e monótonas, cujo desempenho não melhora através de um aumento da escolaridade formal".

Tais considerações podem levar analistas precipitados-a concluir que a escola não manteria relação alguma com a produção, esquecendo-se que a vida social como um todo não pode ser divorciada da realidade econômica. Segundo tal visão, os fenômenos econômicos ficariam reservados à economia, subordinando as demais esferas da vida social, porém não sendo influenciados por elas. Daí acharem que a educação não poderia ter influência sobre as condições de exploração econômica dos trabalhadores, vista como um fenômeno isolado e com atribuições bastante específicas. O que, de fato, Wagner Gonçalves Rossi destacava em seu já citado estudo era a necessidade da verificação dos "efeitos da educação capitalista sobre a taxa de exploração do trabalho", que se determina em grande proporção na luta social e política entre as classes (ver, a respeito, Ponce, Aníbal. Educação e luta de classes. 2.ed. São Paulo, Cortez, 1981).

Pedagogia do trabalho - raízes da educação socialista, que acaba de sair, constitui uma unidade, embora tenha sido desmembrada por motivos editoriais em dois outros volumes - Pedagogia do trabalho: caminhos da educação socialista e Princípios da pedagogia do trabalho: socialismo e educação - sendo o conjunto originalmente apresentado como tese de doutoramento à Bowling Green State University, Ohio. Este primeiro volume é, nas palavras do autor, uma "tentativa para recuperar na história da educação as contribuições que, por não atenderem aos interesses dos dominadores, foram obscurecidas, relegadas a segundo plano ou mesmo inteiramente esquecidas. Muitos dos problemas com que se defrontaram os educadores críticos em nossos dias foram equacionados claramente pelos precursores da educação revolucionária, cujos trabalhos serão discutidos. Conhecê-los evitará que se despenda enorme esforço em abrir 'portas abertas', isto é, que se repita a história" (p. 11). Assim, são estudados, entre outros, "sem pretender exaurir suas contribuições", os pensadores utópicos como Rabelais, Montaigne e Rousseau; os "teóricos das comunidades", como Cabet, Fourier, Owen e Considérant; os revolucionários pré-marxistas, como Babeuf, Buonarroti e Saint-Simon; um liberal como Marti, até a síntese científica de Marx, Engels e Lênin. Através desse percurso, é possível examinar as raízes históricas da pedagogia do trabalho, bem como preparar as condições para se iniciar a análise de sua condição moderna.

A pedagogia do trabalho é caracterizada como aquela que associa trabalho e educação num processo integrado, contribuindo para a efetiva substituição de um sistema baseado na valorização do capital e da propriedade por outro baseado na valorização do trabalho e do trabalhador. E a pedagogia do trabalho está, segundo o autor, intimamente relacionada à constituição do proletariado como classe social, devendo ser entendida como uma alternativa crítica às abordagens tradicionais das relações entre trabalho e educação, não apenas por evidenciar que a "pedagogia tradicional" exclui qualquer referência ao trabalho na educação - através da completa separação entre educação e vida -, mas também por rechaçar as propostas modernizadoras e liberais da vocacionalização ou profissionalização da educação. Nesse sentido, a educação seria colocada como parte da luta política pelo controle da sociedade por parte da classe trabalhadora (seria, enfim, uma contra-educação trabalhadora); "é a alternativa da classe trabalhadora à educação classista da burguesia, instrumento de sua hegemonia" (p. 18).

Uma grande virtude do primeiro volume desta trilogia é a facilidade com que são expostas, em número relativamente reduzido de páginas, as idéias centrais de aproximadamente vinte pensadores que, de maneira direta ou indireta, ocuparam-se do fenômeno pedagógico e de suas conseqüentes implicações políticas e sociais. E esse poder de síntese do autor é um poderoso instrumento didático, pois introduz os interessados ao pensamento dos principais estudiosos ocidentais desse campo de preocupações intelectuais a que o livro se refere, fazendo com que esse primeiro contato (e é o primeiro, para a maioria das pessoas) entre estudantes e autores seja crítico, e não superficial. Para tal empreitada, Wagner Gonçalves Rossi utiliza-se de bibliografia das mais ricas, incluindo-se na área propriamente educacional textos de, entre outros, H. I. Marrou, M. Lobret, M. Dommanget, G. Snyders e IV?. A. Manacorda, além de muitos outros textos que são normalmente citados em trabalhos acadêmicos de história, sociologia e política.

Editorialmente falando, um razoável equívoco prejudica a edição: ao longo das 177 páginas encontram-se 499 notas de rodapé, repletas de observações e referências bibliográficas. Entretanto, a editora julgou que seria dispensável a costumeira bibliografia geral bem como um índice remissivo. Se os três volumes fossem lançados simultaneamente, tudo bem, o último daria conta do recado; mas não é o que ocorre. Então, o pobre do leitor é obrigado a ficar manuseando infinitas vezes boa quantidade de páginas sempre que desejar obter qualquer referência bibliográfica, por mais banal que seja.

A leitura dos capítulos (ou tópicos? ) referentes a Marx e Engels, Bakunin, José Martí, Robin, Ferrer e Lênin é das mais enriquecedoras e, em meu entender, constitui-se em exame obrigatório àqueles que desejam conhecer algo relativo à educação a partir das concepções dos citados pensadores. Gostaria, entretanto, de tecer ligeiras observações a respeito destas leituras realizadas pelo autor.

A primeira diz respeito à divergência entre Marx e Engels, que se desenvolveu ao redor do problema da educação industrial - "de que Engels foi um defensor entusiástico" (p. 121), segundo o autor. Marx, como se sabe, baseou suas idéias sobre educação "na associação entre trabalho e escolaridade". A análise de sua posição (feita anteriormente por Rossi) "indicou que ele excluiu de sua educação todas as atividades desenvolvidas na fábrica capitalista" (p. 121). Certo, mas acho que seria interessante Rossi apontar no texto -o que não faz - em que publicação (bem como sua data) Engels defendeu a educação industrial. Isso é importante porque após o encontro com Marx, ao que consta, as idéias em geral de ambos os pensadores se amalgamaram. Essa divergência é indicada por Rossi através do trabalho de M. A. Manacorda, Marx y la pedagogia moderna (Barcelona, Oi-kos-Tau Ediciones, 1969. p. 25-8), sendo que o autor brasileiro não indica o texto de Engels. É evidente que essa omissão não invalida, de modo algum, a referida divergência, mas seria uma preciosa informação que enriqueceria os comentários tecidos por Rossi sobre Marx e Engels no que se refere às suas contribuições no campo educacional - talvez na nota 364 (p. 127) o autor procure fornecer uma das informações que estou lhe cobrando, mas isto não fica bem claro.

A segunda observação refere-se a considerações realizadas por Wagner Gonçalves Rossi, às páginas 125-26 de seu trabalho, quando afirma que "o caráter capitalista da escola foi negado por 'economistas críticos', que sob a influência neo-ricardiana tentaram transformar o marxismo num assunto simplesmente técnico" (p. 125), escrevendo o seguinte em rodapé, nota 360: "Ver, por exemplo, Salm, Cláudio. Escola e trabalho. Brasiliense, 1'980". E mais: afirma que tais concepções pertencem a um "marxismo desodorizado", que exclui de suas preocupações problemas como a luta de classes ou a hegemonia ideológica, que reintroduz "uma visão da escola como sendo neutra" e da educação "como uma realidade sem nenhuma relação com a economia ou outras áreas do social". E continua: tal "esvaziamento" do marxismo "permitiu a alguns neoricardianos construir um discurso particular em teoria marxista, enquanto agem como assessores do governo autoritário (o que não consideram incompatível porque se consideram 'técnicos' tratando de questões 'técnicas')". Continua suas críticas dizendo que "no seu economícismo, criam um feudo particular - a economia técnica - do qual querem excluir outros cientistas sociais e educadores, no caso destes sob a alegação de que deveriam se ater, apenas, ao desenvolvimento de metodologias educacionais, restringindo sua ação ao que esses economistas tecnocratas consideram 'problemas educacionais' (o que não deixa de ser uma expressão clara da concepção burguesa que têm do mundo, onde eles podem separar a 'sua' economia da totalidade do social, uma concepção que não pode ser, em nenhum sentido, aceita como marxista). Para esses 'intelectuais', a escola não pode ser capitalista e, seguindo a mesma linha de raciocínio, também o Estado se torna 'neutro', o que serve de justificação (ou consolo) para os excelentes serviços que eles lhe prestam". Que braveza, não? Pois é, Wagner Gonçalves Rossi ataca violentamente o trabalho (ou a pessoa? ) de Salm e companheiros, tendo, aparentemente, no meu entender, poucas razões para fazê-lo, uma vez que Escola e trabalho não é ruim, muito pelo contrário (realizei algumas considerações sobre o livro de Salm nesta mesma revista - ver v. 21, n.2, p. 79-81, abr./jun. 1981). Acontece que, divergências teóricas à parte, a maioria das pessoas não gosta de receber críticas, e muito menos da maneira irônica como Cláudio Salm as realiza às páginas 28, 29, 32 e 37 de seu livro sobre o de Wagner Gonçalves Rossi (Capitalismo e educação), afirmando no tópico "O Apelo a Marx na crítica à educação" que boa parte dos críticos da economia da educação (rol em que inclui Rossi) cometem inúmeros equívocos em suas leituras de Marx. Vejam só em que toada ele vai, apenas para citar um trecho, quando pondera que irá se preocupar páginas adiante com tais equívocos, denunciando-os, "não apenas para inocentar a Marx de qualquer cumplicidade com as análises que estão na praça, embora só o respeito já o exigisse. Trata-se de seguir o rastro dos críticos em seus passeios inconseqüentes por O Capital para retomar a trilha que nos parece ser a correta" (p. 30). Bom, aí o Wagner Gonçalves Rossi se queimou e reagiu da maneira como procurei mostrar, transcrevendo algumas linhas de sua resposta irada. Foi pena...

Entretanto, estas observações não invalidam, de maneira alguma, os méritos (e são muitos) que o livro possui. As duas outras partes, que estão no prelo, prometem. Em Pedagogia do trabalho: caminhos da educação socialista são estudadas experiências concretas e novas contribuições teórico-práticas à composição da pedagogia do trabalho: Pistrak e a escola do trabalho na União Soviética; Dewey e o pragmatismo americano; Antonio Gramsci e a questão da hegemonia; Paulo Freire e a pedagogia problematizadora e emancipatória; e, também, o trabalho dos educadores socialistas mais conhecidos, como Makarenko e Freinet, bem como algumas das contribuições contemporâneas ao desenvolvimento da educação crítica, como as de Snyders e Nidelcoff. Ao final, introduz-se a discussão de algumas experiências contemporâneas com uso do trabalho em educação em Cuba, na China e na Guíné-Bissau. Esse material, acrescido ao relacionado no volume 1, de que é inseparável, constituirá a base para o desenvolvimento de análise abrangente sobre as condições, os princípios e as práticas para a construção em nossos dias da pedagogia do trabalho, a educação revolucionária dos trabalhadores, objeto do terceiro livro - Princípios da pedagogia do trabalho: socialismo e educação" (p. 12). Aguardemos, portanto, que tais lançamentos editoriais, prometidos para breve, mantenham o elevado padrão intelectual deste primeiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1982
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