Acessibilidade / Reportar erro

Os limites da "abertura" e a sociedade civil

ARTIGO

Os limites da "abertura" e a sociedade civil

Luiz Carlos Bresser Pereira

Professor titular no Departamento de Economia e Planejamento Estratégico Aplicados à Administração - PAE, da EAESP/FGV

Em meados de 1983, depois da derrota parcial e confusa do governo nas eleições de novembro de 1982 e depois do aprofundamento da crise econômica brasileira nos quadros da crise financeira internacional desencadeada a partir de setembro de 1982, o regime político tecnoburocrático-capitalista implantado no Brasil em 1964 vive um momento de aprofundamento da sua própria crise e de impasse político.

A crise da aliança tecnoburocrático-capitalista e, portanto, do regime militar autoritário brasileiro teve inicio em 1975 com a campanha dá burguesia contra a estatização; agravou-se depois do pacote de medidas autoritárias de abril de 1977; amainou com as medidas de abertura política, culminadas com a extinção do Ato Institucional nº 5, que conferia poderes discriminatórios ao presidente da República, e com a capacidade que teve afinal o Presidente Ernesto Geisel de fazer seu sucessor, o Presidente Joio Figueiredo, no final de 1978; continuou em fogo brando nos dois primeiros anos do governo Figueiredo graças às novas medidas de abertura política - a anistia e as eleições diretas para os governos dos estados - e devido ao relativo fracasso enquanto movi' mento político das grandes greves de 1979 e 1980 em São Paulo; agravou-se novamente em 1981 com a incapacidade do Presidente Figueiredo de fazer frente aos grupos militares de extrema direita envolvidos no episodio da explosão no Riocentro, e continuou a se agravar em 1982, com a criação de casuísmos eleitorais para evitar a vitória completa das oposições nas eleições do final daquele ano E agora, depois das eleições e da submissão do governo brasileiro às exigências ou "condicionalidades" do Fundo Monetário Internacional, esta crise alcança seu auge.

Na verdade, desde o inicio de 1983 já estava claro que o Brasil vivia sua maior crise desde 1963/64. Trata-se, sem dúvida, de uma crise muito diferente, na medida em que naquele momento a burguesia, sentindo-se ameaçada pelo próprio presidente, uniu-se contra o governo e foi buscar apoio nas Forças Armadas. Agora toda a sociedade sente-se ameaçada, mas não há um "culpado" específico a ser atacado, nem um "agente salvador" (as Forças Armadas) a ser convocado. .

Os economistas e os empresários, envolvidos no dia-a-dia da atividade econômica, pensam que a crise é fundamentalmente econômica. E, de fato, o componente , econômico da crise é pesado: insolvência externa, estagnação interna, falências, desemprego, maxidesvalorização beneficiando uns poucos em prejuízo de muitos, a efetir va paralisação do governo em matéria de política econômica são alguns dos elementos da crise econômica.

Outros podem pensar que se trata de uma crise moral Os escândalos se sucedem e a grande imprensa (e não apenas a imprensa alternativa, dotada de baixa credibilidade) os denuncia de forma implacável é competente.1 1 Ver a respeito: Assis, José Carlos de. A chave do tesouro; anatomia dos escândalos financeiros: Brasil 1974-1983. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983.

Na verdade, a crise econômica e a crise moral são apenas aspectos de uma crise maior - a crise político-institucional O que está em crise hoje no Brasil é o regime autoritário e, em segundo lugar, o padrão de acumulação, baseado na concentração de renda e no endividamento externo, que o acompanhou. Esta é a crise fundamental pelo simples motivo de que só o encaminhamento da sua solução poderá reunificar a sociedade civil, ou seja, poderá dar conteúdo a um pacto social-democrático entre a burguesia, a classe média assalariada e os trabalhadores.

Esse pacto, entretanto, só poderá formar-se e garantir a estabilidade básica do regime se este for alterado: democratizado. E esta democratização passa por uma questão fundamental: a eleição do novo presidente da República.

A notícia de que o novo presidente será um civil não resolve em nada o problema. Ninguém escolhido por esse Colégio Eleitoral poderá servir de base àquele mínimo de consenso que um pacto social-democrático exige. Sem uma reforma constitucional que mude a forma de escolha do presidente, a crise institucional só se agravará em todos os planos: econômico, moral e propriamente política2 2 Cf. Crise do regime. Folha de São Paulo, 19 mar. 1983, p. 2. Os seis parágrafos anteriores constituem praticamente a transcrição desse artigo.

É certo que as instituições continuam funcionando normalmente. É certo também que não há perspectiva de um novo golpe militar nem de uma sublevação dos trabalhadores ou das massas em geral Não há, portanto, uma crise aberta, não há um processo revolucionário, de direita ou de esquerda, provocando a desagregação acelerada das instituições. Mas há, da parte de toda a sociedade civil, uma sensação muito clara, primeiro, que os graves problemas econômicos que o país enfrenta só poderão ser resolvidos no plano político; segundo, que uma solução política para os problemas do país depende fundamentalmente de um governo com legitimidade política e, portanto, com poder para liderar a sociedade; terceiro, que um governo com essas características, a ser instalado no Brasil rio início de 1985, quando termina o mandato do atual presidente, não pode ser uma mera continuidade dó regime militar tecnoburocrático-capitalista ainda no poder.

Esta visão, entretanto, não e partilhada pelos próprios membros do governo, que, graças à maioria absoluta que obtiveram no Colégio Eleitoral (52,8%) eleito em novembro de 1982, pretendem eleger indiretamente o novo presidente da República, embora o PDS tenha recebido apenas 41,5% dos votos válidos nas eleições majoritárias para governadores e 43,2% dos votos válidos nas eleições proporcionais para a Câmara dos Deputados, conforme demonstra o quadro 1. Surge, assim, o impasse entre a sociedade civil e o governo: a sociedade ansiosa por eleger um governo com legitimidade que lhe permita enfrentar os graves problemas econômicos; o regime autoritário tecnoburocrático-capitalista, ainda que esvaziado de grande parte do apoio da burguesia e das classes médias tecnoburocráticas, que anteriormente representou, pretendendo perpetuar-se no poder a qualquer custo.


Neste artigo não vou fazer novamente uma analise histórica e causal da "abertura",3 3 Sobre o assunto, ver: A dialética entre a "abertura" e a redemocratização. In: Desenvolvimento e crise no Brasil 1930-1982. São Pauto, Brasiliense, 1983. cap. 9; O colapso de uma aliança de classes. São Paulo, Brasiliense, 1978; Pacto social ameaçado. Folha de São Paulo, 26 mar. 1981. p. 3; Pacto social e aliança política. Leia Livros, 36:9, jun./jul. 1981. que culmina no presente impasse. Nato vou também tentar compreender a natureza do regime político autoritário brasileiro. Sobre o assunto a bibliografia já é demasiado extensa Meu objetivo mais limitado é tentar compreender a natureza da crise política atual, ou, o que vem a dar no mesmo, os limites burgueses e tecnoburocráticos para o processo de redemocratização do país.

A questão fundamental que se procurará responder é por que o processo de redemocratização está sendo tio lenta Em trabalhos anteriores procurei desenvolver a teoria de que a "abertura" resultou de uma demanda da sociedade civil e, mais especificamente, do colapso parcial da aliança entre a burguesia e a tecnoburocracia estatal ocorrido a partir de 1975. Cabe, entretanto, perguntar por que esse processo vem sendo tão lenta Se a burguesia é a classe dominante e se essa classe deseja majoritariamente a redemocratização do país, seria razoável esperar que esse processo fosse mais rápido.

No primeiro item discutirei sumariamente a natureza dos processos de "abertura" e de democratização, distinguindo-os e procurando entender a quem cabe a iniciativa de cada um deles. No segundo item examinarei o caráter e as recentes transformações do regime político brasileiro e do pacto social que lhe serve de base. No terceiro item procurarei definir alguns dos novos conceitos, principalmente o de sociedade civil. No quarto item apresentarei duas principais causas da lentidão do processo de redemocratização do pais: o autoritarismo da tecnoburocracia estatal e o autoritarismo ambíguo da burguesia. No quinto item analisarei uma terceira causa da lentidão do processo de redemocratização: o conservadorismo das classes dominantes brasileiras, completando, ao mesmo tempo, a apresentação dos limites tecnoburocráticos e burgueses da "abertura". No sexto item o problema do impasse político atual será discutido. No sétimo item examinarei as demandas da sociedade civil em termos de que haja uma ampla negociação política para fazer frente à crise econômica. O oitavo item é uma conclusão não pessimista, na medida em que apresenta as razões que permitem prever que a sociedade civil será afinal capaz de chegar a um acordo mínimo e, dessa forma, superar a presente crise, não apenas econômica mas institucional.

I

O Brasil encontra-se hoje, portanto, diante de uma grave crise institucional, ou de uma "crise total", segundo Luciano Martins, porque passaram a convergir seus componentes fundamentais: econômicos, sociais, políticos e culturais.4 4 Martins, Luciano. Terra em transe. Folha de São Pauto, 17 jul. 1983. p. 3.

Para compreendermos a natureza dessa crise e mais particularmente do impasse em que se encontra o processo de redemocratização do Brasil em meados de 1983, é essencial compreender a natureza desse processo que recebeu o nome de "abertura".

Em trabalhos anteriores opus o conceito de "abertura" ao de democratização. Enquanto democratização seria o processo real de transição do regime autoritário para o regime democrático exigido pela sociedade civil, a "abertura" é essencialmente uma estratégia dos detentores do poder para conceder sempre o menos possível, postergando a democratização. As concessões liberalizantes são feitas com o objetivo de atender e acalmar a sociedade e, dessa forma, garantir a manutenção do poder. Estabelece-se, assim, uma dialética entre a democratização e a "abertura". Esta, ao invés de ser o próprio processo de transição, conforme pretendem seus autores - a alta tecnoburocracia estatal civil e militar que ocupa o governo federal - é o freio desse processo. Governo e sociedade, "abertura" e democratização participam assim de um jogo de demandas e concessões mútuas.

Acerta essa visão, o debate sobre a quem cabe a iniciativa da transição fica resolvido. À sociedade civil cabe a iniciativa do processo de democratização; ao governo autoritário ou ao "sistema" político-milkar que o constitui e sustenta, a iniciativa da "abertura". O governo autoritário reclama para si a autoria da "abertura";muitos cientistas políticos aceitam essa idéia porque não distinguem os dois fenômenos.5 5 Ver, por exemplo, Bolívar Lamounier, para quem, desde 1973, a "abertura foi esposada e de tato iniciada por uma facção da tecnocracia militar - aquela que assumiu o poder com o General Ernesto Geisel e seu governo". (Openning thought elections: will the Brazilian case become a paradigm?, a ser publicado em Government and opposition, outubro de 1983). De fato essa posição só seria correta se ficasse claro que a "abertura" é muito mais uma estratégia autoritária de manutenção do poder via concessões limitadas. A iniciativa da democratização obviamente cabe à sociedade civil.

Uma forma complementar de se compreender o processo de "abertura" no Brasil, entretanto, é pensá-lo em termos de um processo político-conservador em que estão engajadas não apenas a tecnoburocracia estatal no poder mas a sociedade civil brasileira. O objetivo da sociedade civil, onde o peso das classes dominantes é decisivo, seria o de transitar de um regime autoritário puro, como o existente no Brasil entre dezembro de 1968 (decretação do Ato nP 5) e dezembro de 1978 (extinção do Ato nP 5), para um regime relativamente democrático, sem colocar em risco a essência do sistema de dominação capitalista-tecnobúrocrático.

Encarado o problema nesses termos, continua a existir um processo de conflito e de negociação entre a sociedade e o governo, continua a haver uma dialética entre a democratização e a "abertura", mas nessa relação o elemento negociação sobrepõe-se ao elemento conflito. A sociedade civil, da qual o governo é afinal fruto, estabelece um complexo processo de negociações internas para deixar intacto o sistema básico de dominação e a natureza da formação econômico-social mista, capitalista-tecnoburocrática.

A partir dessa perspectiva, os limites da abertura não são apenas definidos por uma alta tecnoburocracia civil e militar que se constitui em governo, mas também por grande parte da sociedade civil que, conservadoramente, não está disposta a arriscar-se em um processo completo de democratização.

II

Para compreendermos esse fenômeno, é preciso que façamos uma rápida incursão sobre a natureza da formação social brasileira e do sistema político de dominação sobre ela constituído. Ou, em outras palavras, é necessário definir o caráter da sociedade civil brasileira e de sua relação com o Estado.

Até 1930 a formação social brasileira era dominantemente capitalista agrário-mercantiL O capital fundamental estava aplicado no café e era essencialmente mercantil ou especulativo, na medida em que estava orientado para o lucro especulativo e não para a incorporação de progresso técnico e para o aumento da produtividade.

Nestes últimos 50 anos o capital industrial foi aos poucos se tornando dominante. Em um primeiro momento, nos quadros do pacto populista, procurou-se estabelecer, para facilitar a emergência do capital industrial, uma aliança entre a burguesia industrial e os trabalhadores urbanos. Essa aliança, entretanto, jamais chegou a ser firmada completamente e afinal entrou em colapso no início dos anos 60, quando a transferência de renda do capital mercantil cafeeiro para o capital industrial, que servia de base para o pacto populista, esgotou suas virtualidades.

O capital industrial, entretanto, não tinha condições de auto-afirmar-se apenas com base na própria burguesia industrial. E a partir de 1964 estabelece-se uma nova aliança, que já se vinha esboçando desde o Estado Novo (1937-45): a aliança entre a burguesia industrial e a tecnoburocracia estatal Na verdade essa aliança foi mais ampla, englobando de um lado não apenas a burguesia industrial, mas toda burguesia, inclusive a mercantil e a bancária; e de outro não apenas a alta tecnoburocracia estatal mas grande parte das classes médias tecnoburocraticas ou assalariadas situadas no aparelho do estado é nas grandes organizações burocráticas privadas. E deve ainda ser a ela acrescentado um terceiro parceiro: o capital internacional, representado pelas empresas multinacionais e pelo sistema financeiro internacional.

É essa aliança capitalista tecnoburocrática que continua a dominar o pais até hoje. O Brasil é uma formação social mista, capitalista-tecnoburocrática, na medida em que o modo de produção capitalista ê dominante mas o modo tecnoburocrático tem peso crescente.

Nessa aliança, alguns autores, baseados em uma analogia com a Alemanha de Hilferding, sugeriram que o capital financeiro tendia a ser dominante.6 6 O notável ensaio de Maria da Conceição Tavares, Natureza e contradições do desenvolvimento financeiro recente ( Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1972) deu origem a essa interpretação. Trata-se, entretanto, de uma visão duplamente equivocada. O "capital financeiro", ou seja, a fusão do capital bancário mercantil com o capital industrial, sob o controle do primeiro, é um fenômeno histórico que não se verificou no Brasil (da mesma forma que na grande maioria dos países capitalistas), pela razão muito simples de que neste país o financiamento do processo de acumulação não coube aos bancos mas ao Estado. Os bancos, beneficiados pelos altos juros decorrentes de políticas monetaristas de combate à inflação, de fato têm apresentado altos lucros. Mas seu poder político é limitado, já que suas atividades inclusive seus empréstimos estão fortemente controlados pelo Estado através do Banco Central de forma que os bancos, no Brasil, acabam se constituindo em meros agentes repassadores de recursos federais ou então em instrumentos obedientes da tecnoburocracia estatal.

Na verdade, a fração da burguesia cujo poder e prestígio não parou de crescer desde 1930 foi a industrial Apesar de liderada oficialmente por figuras geralmente medíocres, foi a grande acumulação industrial que mudou a face econômica e social do Brasil e tudo indica que se uma fração de classe tende a ser hegemônica no Brasil esta será a burguesia industrial Jamais, entretanto, será plenamente hegemônica devido à dimensão do aparelho estatal e, portanto, ao poder da tecnoburocracia estatal Por outro lado, o poder das empresas multinacionais e do capital bancário internacional não devem ser esquecidos.

O auge dessa aliança da burguesia com a tecnoburocracia estatal e com os interesses estrangeiros, que foi adequadamente chamada de "tripé", ocorreu no período 1964-74. A exclusão radical dos trabalhadores no pacto social e a montagem de uma superestrutura política autoritária permitiram que o processo de acumulação de capital voltasse a se acelerar, principalmente no setor moderno e oligopolista da economia, formado pelas grandes empresas públicas e privadas, nacionais e multinacionais, às custas de um forte processo de concentração de renda. Garantia-se, assim, através de um Estado autoritário, a extração da mais-valia dos trabalhadores e a marginalização dos frutos do crescimento econômico de uma grande parte da população.

A partir de 1975, em função da crise econômica desencadeada em 1973 com o primeiro choque do petróleo e em função da derrota do "governo nas eleições majoritárias para o Senado, em novembro de 1974, a aliança capitalista-tecnoburocrática entra em colapso e tem início aquele processo dialético já referido entre a "abertura" e a redemocratização.

É preciso entender, entretanto, que esse colapso jamais foi completo ou radical A aliança básica continuou. Perdeu sua nitidez, entretanto, na medida em que tanto a grande e a média burguesia, quanto as classes médias tecnoburocráticas se dividiam em seu próprio seio. Perdeu também a nitidez porque um novo parceiro, que havia sido excluído inteiramente do jogo político em 1964 - os trabalhadores urbanos - volta a ser readmitido.

Essa readmissão dos trabahadores no pacto social brasileiro ocorre por duas vias: pela via eleitoral e partidária e pela via sindical A via eleitoral de participação dos trabalhadores fica clara nas sucessivas eleições em que o seu apoio é decisivo para a vitoria do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e depois, com a redefinição do sistema partidário, para a vitoria dos partidos da oposição. A via sindical ganha força entre 1978 e 1980, quando uma série de greves, principalmente na região do ABÇD (municípios de Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema, pertencentes ao Grande São Paulo), caracterizadas pela mobilização de grande massa de trabalhadores, restabelece em um nível mais alto o poder dos sindicatos. A criação do Partido dos Trabalhadores, com base nas lideranças sindicais novas que surgiram no meio da grande indústria oligopolista e moderna - principalmente a indústria automobilística multinacional - foi o resultado da conjugação da via eleitoral e da via sindical com vistas ao aumento da participação dos trabalhadores no processo politico.

A readmissão dos trabalhadores - como sócios secundários naturalmente - no pacto político foi conseqüência, em primeiro lugar, de sua própria luta e capacidade de organização política, mas também foi resultado do interesse da burguesia, principalmente da burguesia industrial, de firmar novas alianças em substituição à aliança com a alta tecnoburocracia estatal, civil e militar, que a beneficiava economicamente, mas a mantinha sob tutela política.

Para sacudir aquela tutela e tomar-se classe não apenas dominante mas também dirigente, a burguesia necessitava estabelecer novas alianças. A classe média assalariada ou tecnoburocrática, empregada nas grandes empresas industriais privadas e nas atividades terciárias, era o sócio natural! Mas seu número era ainda limitado, de forma que uma certa aliança também com os trabalhadores industriais era importante.

Essa aliança ê firmada de maneira muito vaga e imprecisa em 1977. Constitui-se então o "pacto social democrático de 1977", que tinha como objetivo básico o restabelecimento da democracia no país. Mas além desse objetivo comum, que interessava a todos, o pacto tinha duas cláusulas adicionais: a burguesia admitia a necessidade de uma moderada redistribuição da renda e os trabalhadores comprometiam-se a não radicalizar, ou seja, a não colocar em questão o regime capitalista.

Esse pacto, embora tenha sofrido sérios arranhões devido às greves de 1978 a 1980, mantém-se provavelmente até hoje. Não implica a reprodução do velho populismo, na medida em que não há uma explícita subordinação política dos trabalhadores à burguesia em nome do desenvolvimento econômico ou do nacionalisma As partes conservam uma ampla margem de autonomia. Mas implica uma mudança significativa no regime político.

De fato, enquanto em termos econômico-sociais, o Brasil continua uma formação social mista, dominantemente capitalista mas crescentemente estatal e Uma economia subdesenvolvida embora industrializada, no plano político deixa de prevalecer no país um regime tipicamente autoritária Desde aproximadamente 1977 o que existe no Brasil é um regime políticocontraditório: autoritário ao nível do governo e relativamente democrático ao nível da sociedade civil.

III

Esse caráter contraditório do regime político brasileiro está na base da atual crise política, na medida em que revela a "dissintonia" que hoje existe entre o governo e a sociedade civil. Ou, em outras palavras, na medida em que demonstra a falta de legitimidade do governo.

Não temos nem um regime autoritário tecnoburocrático-burguês, nem um regime democrático-burguês, mas um regime de transição eminentemente contradito rio e em crise.

Para que possamos compreender melhor o que está sendo afirmado, alguns conceitos precisam ser sumariamente esclarecidos.

Um regime político será plenamente autoritário não apenas se o governo dispuser de poderes discricionários, mas também se a sociedade civil for ela própria autoritária. Foi o que tivemos no Brasil a partir de 1964 até mear dós dos anos 70.

Entendemos por sociedade civil a dimensão política da base material da sociedade. Nestes termos a sociedade civil distingue-se do povo, porque neste todos os cidadãos são formalmente iguais perante a lei, enquanto na sociedade civil as classes e frações de classe aparecem organizadas e ponderadas de acordo com o poder político e/ou a importância econômica que possuam. A sociedade civil é, portanto, uma expressão do poder real da sociedade.7 7 Ver a respeito: Bobbio, Norberto. O conceito de sociedade civil Rio de Janeiro, Graal, 1982, p. 19-36. (Traduzido do italiano Gramsci e 1ª concezione delia società cIvile. 1967. )

Este conceito de sociedade civil tem óbvias relações com os utilizados por Hegel, Marx e Gramsci, mas deles deve ser distinguida Hegel tem um conceito mais abrangente de sociedade civil e acaba confundindo-a com o Estado; para Marx a sociedade civil corresponde à infraestrutura econômica e social; Gramsci identifica a sociedade civil com o conjunto de relações ideológico-culturais situadas na superestrutura não-estatal Nos termos aqui apresentados, a sociedade civil é um conceito eminentemente político na medida em que se relaciona com o poder real das classes, ao mesmo tempo que está baseado nas relações materiais de produção. Por outro lado, enquanto conceito político serve de base para o poder do e sobre o Estado, mas dele se distingue.

Uma sociedade civil será autoritária na medida em que o poder estiver concentrado exclusivamente nas classes dominantes e especialmente nos altos estratos dessas classes. Foi o que aconteceu no Brasil após 1964, quando o poder se concentrou na burguesia e na alta tecnoburocracia. Será também autoritária na medida em que essas classes dominantes adotem uma atitude autoritária. Mas essa segunda condição é menos significativa, já que é dependente da primeira. Uma sociedade civil excludente, elitista, leva quase necessariamente a classe dominante a adotar atitudes políticas autoritárias.

No Brasil, a partir de 1975-77 ocorreu um processo de democratização interna da sociedade civil na medida em que as classes médias e os trabalhadores passaram a ter um peso político consideravelmente maior. E esse fato foi decisivo para o processo de redemocratização então iniciado. Na medida em que a burguesia rompia parcialmente sua aliança com a alta tecnoburocracia estatal, abria-se espaço político para as classes médias tecnoburocráticas e para os trabalhadores. Em conseqüência, a sociedade civil se democratizava internamente e passava a exigir a democratização do Estado.

A resposta do governo foi o processo de "abertura", ou seja, um procesto controlado de ceder às demandas de democratização, sempre adiando no tempo e limitando na amplitude as concessões realizadas.

Em conseqüência, o processo de democratização interna da| sociedade ocorreu de forma mais rápida e profunda do que o processo de restabelecimento das garantias democráticas. À medida que isto ocorria, surgiu o problema da ilegitimidade do governo. Além de lhe faltar representatividade, ou seja, apoio do povo, do conjunto dos cidadãos, e de possuir uma legalidade muito discutível, já que o seu poder era antes arbitrário do que apoiado em leis, passava agora a faltar ao governo também legitimidade, que é o apoio da sociedade civil.

Ora, a representatividade pode muitas vezes ser dispensada pelos governos que se mantêm no poder. Todos os regimes autoritários são em princípio não-representativos. Legalidade, por sua vez, é um princípio sempre muito relativo. Mas é muito difícil um regime qualquer, autoritário ou democrático, sustentar-se sem legitimidade, sem apoio da sociedade civil. De fato, legitimidade é o vínculo que relaciona e em princípio subordina o governo à sociedade civil. Um governo sem legitimidade, cujo poder deriva dele próprio ou do Estado, do qual o governo é o grupo dirigente, é por definição um governo fraco, instável. O governo de Getúlio Vargas, por exemplo, não se sustentou em 1954, embora tivesse representatividade, porque lhe faltava legitimidade. Na medida em que a sociedade civil é a base real do poder político da sociedade, torna-se difícil manter um regime sem legitimidade.

IV

Exatamente por essa razão, para não perder completemente sua legitimidade, que o governo desde 1975 começou a falar em "distensão" e a partir de 1977 passou a falar' e a praticar a "abertura". Mas ao invés de termos um processo rápido de transição para a democracia, como aconteceu, por exemplo, na Espanha e na Grécia, esta transição está ocorrendo de maneira muito lenta é agora chegou a um impasse.

As causas da lentidão nó processo de redemocratização são provavelmente três.

A primeira causa relaciona-se com o caráter predominantemente autoritário da tecnoburocracia estatal, ao mesmo tempo que define o próprio caráter da "abertura". É preciso admitir que, apesar das crises por que passou, a "abertura" foi até recentemente uma estratégia autoritária, postergadora de redemocratização, bem-sucedida - uma estratégia que estabeleceu os limites tecnoburocráticos da redemocratização. Já que a sociedade civil demandava redemocratização, esta foi concedida, mas a conta-gotas, paulatinamente. De acordo com a terminologia adotada repetidamente pelos membros do governo , que assim confessam seu caráter autoritário e procrastinados "a 'abertura' deve ser lenta, gradual e segura".

Ao mesmo tempo o governo procurava, sob todas às formas, restabelecer seus vínculos com a sociedade civil. Com esse objetivo é interessante observar as mudanças que passaram a ocorrer no PDS, o partido do governo. Ao invés de adotar uma política sistematicamente conservadora e autoritária, muitos de seus líderes passaram a levantar bandeiras liberais e sociais e a manter um comportamento de relativa "oposição" ou independência em relação ao "governo. E o próprio governo passou não só a fazer concessões no plano democrático mas também no plano social, procurando ele próprio reinventar o populismo. Exemplos de medidas nesse sentido, ocorridas principalmente a partir do governo Figueiredo, foram: a nova política salarial inaugurada em 1979, que concedia aumentos reais de salários de 10% mais aumento de produtividade para os salários até três salários mínimos; a lei reduziu para cinco anos o usucapião, procurando com isto contornar a questão dá terra e dos posseiros; o aumento considerável, ainda que muito reduzido em termos absolutos,'de títulos de propriedade distribuídos pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária); o aumento das verbas destinadas à construção de casas efetivamente populares.

Através de medidas como essas no plano social e de medidas democratizantes no plano político, como a eliminação da censura à imprensa, a extinção do Ato nº 5, a anistia e as eleições diretas para governadores dos estados, o governo procurava recuperar sua legitimidade, reduzindo o fosso entre o seu próprio caráter autoritário, que no fundo permanece intacto, e a democratização iriterna da sociedade civil.

O sucesso dessa estratégia razoavelmente bem-sucedida de postergar a democratização através da "abertura", entretanto, só foi possível devido ao caráter ainda basicamente autoritário ou contraditoriamente autoritário da burguesia brasileira.

Esta é a segunda causa da lentidão do processo de redemocratização. Se os empresários fossem decididamente democráticos, é difícil imaginar que a "abertura" pudesse ser tão lenta. Na verdade a burguesia brasileira deu um grande passo no sentido da democracia quando, a partir de 1977, passou a apoiar a redemocratização. Mas isto não significa, em absoluto, que a burguesia seja intrinsecamente democrática, como pretendem seus ideólogos, da mesma forma que ela não é intrinsecamente autoritária, como afirmam seus críticos de esquerda mais radicais.

A burguesia abandonou uma posição rigorosamente autoritária, que manteve entre 1964 e 1977, porque de um lado perdeu o medo da subversão comunista e de outro verificou que a tutela a que estava submetida pela tecnoburocracia no governo não lhe dava mais benefícios econômicos. Nesse momento, e percebendo que a burguesia possuía uma tranqüila hegemonia ideológica, os membros mais representativos e mais conscientes do empresariado, como o Grupo dos 8 em 1978, ligado ao Fórum da Gazeta Mercantil, imaginaram que poderiam alcançar também hegemonia política: tornar-se classe dirigente. Por isso aprofundaram sua inclinação para a democracia.

É preciso, entretanto, não exagerar essa inclinação democrática. O autoritarismo é algo de muito antigo e muito profundo na formação do empresariado brasileiro. Em uma sociedade de classes, em que as diferenças de classes são tão profundas, esse autoritarismo é quase uma decorrência necessária.

Na verdade, os empresários só passam a adotar posições políticas claramente democráticas quando são pressionados pelas classes médias tecnoburocráticas e pelos trabalhadores. Ou, em outras palavras, quando ocorre a democratização interna da sociedade eivo, graças ao êxito das lutas populares. Estudos realizados nos países centrais revelaram claramente este fato. A democracia que hoje existe nesses países foi essencialmente fruto das lutas dos trabalhadores e das classes médias.8 8 Sobre este assunto, a pesquisa histórica definitiva foi realizada por Gore Therbom: The tule of capital and the rise of democracy. New Left Review, 103, May/June 1977. Nesse trabalho Therbom observa: "a democracia burguesa, da mesma forma que sua predecessora ateniense, apareceu inicialmente como uma democracia para os representantes masculinos da classe dominante. . . O segundo estágio da luta pela democracia foi fortemente determinado pela luta da classe trabalhadora e do movimento sindical" (p. 334). A burguesia não é intrinsecamente autoritária, como é, por exemplo, a aristocracia feudal ou o patriciado escravista, mas só se torna democrática se a sociedade civil se democratiza por pressão das classes populares.

Ora, no Brasil, ainda que tenha havido um processo de democratização em termos de sociedade civil, esse processo é ainda limitado. 0 número de trabalhadores marginalizados econômica e politicamente neste país é ainda imenso, principalmente nas regiões mais pobres do Brasil, como o Nordeste. Mas mesmo no estado mais avançado, que é São Paulo, essa marginalização é muito significativa, permitindo à burguesia manter-se relativamente autoritária.

Esse autoritarismo da burguesia tem um outro componente que é a sua dependência econômica em relação ao Estado. Na medida em que o Estado no Brasil tem um grande poder econômico, não apenas através de suas empresas estatais, mas também através de sua capacidade de definir política econômica, o empresariado dele depende e a ele tende a se submeter. Se o Estado é dominado por um governo autoritário, o empresariado tende a também ser autoritário, ou, quando adota,-como vem adotando desde 1975, posições democráticas, estas são ambíguas e limitadas. Conforme observa, nesse sentido, Eli Diniz, referindo-se especificamente i posição dos empresários em relação i redemocratização: "O posicionamento do empresariado como um todo em relação à abertura do regime político tem sido a um tempo oscilante e ambíguo. Esta ambigüidade manifesta-se sobretudo quanto ao alcance do processo de democratização."9 9 Diniz, EU. O empresariado e a nova conjuntura. In: Trindade, Hélgio, org. Brasil em perspectiva; dilemas da abertura política. Porto Alegre. Sulina, 1982. p. 116.

Além disso, existe no Brasil um extraordinário respeito burocrático aos poderes formais do Estado. A idéia de desobediência civil, por exemplo, é praticamente estranha à burguesia. Se o governo detém o poder formal ou legal, é necessário respeitá-lo, ainda que as origens desse poder sejam espúrias.

Em conseqüência desses fatores, o conflito entre a burguesia e a tecnoburocracia jamais chega ao ponto de ruptura total. E a falta de legitimidade do governo não chega a ser absoluta. A burguesia, em grande parte, continua a jogar o jogo do governo e no máximo a personalizar suas divergências, atribuindo os problemas i incompetência dos dirigentes políticos, ao invés de perceber que é o próprio regime militar autoritário que está em questão.

Em 1983, depois que as eleições de novembro de 1982 definiram o novo Colégio Eleitoral, esse fato pode ser observado de duas maneiras. De um lado, uma boa parte do grande empresariado deixou-se envolver na disputa dos "presidenciáveis" do PDS, sem perceber com clareza que a legitimidade perante a sociedade civil de um candidato saído desse colégio estará sempre e irremediavelmente comprometida. Diante da crise econômica sem precedentes, estavam conscientes de que a solução teria que ser, antes de mais nada, política. Só um governo com força derivada da legitimidade poderia enfrentar com êxito os graves problemas presentes. Mas, sem se dar conta da contradição, aqueles empresários continuavam entretidos no "jogo dos presidenciáveis".

O compromisso com o autoritarismo da burguesia, que é um claro limite para a redemocratização, pode ser visto sob um outro ângulo nos acontecimentos da crise econômica de 1983. Depois da maxidesvalorização de fevereiro desse ano, que coroava uma série de desacertos e de desinformações por parte das autoridades econômicas, a indignação dos empresários voltou-se para as pessoas responsáveis. Dessa forma imaginava-se que uma simples troca de ministério resolveria o problema, quando, evidentemente, o problema não estava nas pessoas mas na ilegitimidade do regime militar, que paralisava ou tomava contraditórias e ineficientes as medidas de política econômica tomadas pelos ministros, fossem eles quem fossem.

Os fortes ranços de autoritarismo do empresariado, particularmente do grande empresariado, são portanto um limite burguês fundamental para a democratização. Ao mesmo tempo em que foi o movimento da burguesia em direção à democracia que iniciou o processo, são suas restrições a uma democracia plena que dificultam que a democratização se complete.

V

É preciso, entretanto, assinalar que o autoritarismo presente nas classes dominantes - burguesia e tecnoburocracia - brasileiras propaga-se por toda a sociedade. E dessa forma acaba, através do processo de hegemonia ideológica, atingindo os trabalhadores, especialmente as populações marginalizadas localizadas no setor informal ou para capitalista da economia.

No processo de redemocratização do país é indiscutível que o papel da classe trabalhadora foi importante. A participação dos trabalhadores é decisiva em novembro de 1974, quando ocorre a inesperada vitória do partido de oposição nas eleições então realizadas. Essa vitória, que retirou representatividade do governo e desencadeou o processo de redemocratização, só foi possível graças ao apoio maciço dos trabalhadores ao MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Em seguida, na hita direta em favor da democratização, foi muito importante a participação dos movimentos populares, muitos deles organizados em torno da Igreja católica, que desde os anos 60 passara por uma revolução política profunda.10 10 Estudei este problema em um ensaio escrito em 1969, A revolução política na Igreja publicado domo parte do livro Tecnoburocracia e contestação (Petrópolis, Vozes, 1972) e republicado em As revoluções utópicas (Vozes, 1979). A bibliografia que surgiu depois sobre o assunto é imensa.

Essa participação crescente dos movimentos sociais urbanos levou, entretanto, alguns analistas a propor a idéia de que o processo de redemocratização teria como sua base fundamental os movimentos populares. Trata-se, evidentemente, de um equívoco.

Na verdade, a participação desses movimentos populares em favor da democratização só ocorreu de forma indireta, principalmente nas eleições. Conforme observaram em suas conclusões José Álvaro Moisés e Verena Martinez-Alier, os movimentos sociais urbanos no Brasil, nos anos 70, estudados a partir dos quebra-quebras ocorridos nos trens de subúrbio do Rio de Janeiro, representaram dois fatos: a) "uma clara reação das massas suburbanas diante da deterioração de suas condições de existência"; b)"uma relação antagônica com o Estado" e mais especificamente "contra a gestão dos serviços públicos levada a efeito pelo Estado".11 11 Moisés, José Alvaro S, Martinez-Alier, Verena. Contradições urbanas e movimentos sociais. Rio de Janeiro, Paz e Terra/Cedec, 1977. p.52-5.

Não se fala, portanto, nos estudos empíricos realizados, dos quais este é um excelente exemplo, que os movimentos urbanos fossem dirigidos contra o autoritarismo do Estado. O objetivo desces movimentos era e é muito mais o protesto contra condições materiais de existência geralmente insuportáveis, cuja responsabilidade é atribuída ao Estado, na medida em que este represente as classes dominantes.

Nesse sentido, Ruth Cardoso, examinando as pesquisas que procuram descrever a ação política popular no Brasil, conclui que:

"Os movimentos estudados não são convincentes quanto ao papel democratizador da participação popular, que colocaria em xeque o autoritarismo do Estado. Mostram, pelo contrário, que as várias faces que o Estado apresenta neste diálogo aumentam sua margem de manobra e são capazes de absorver efetivamente algumas das demandas populares."12 12 Cardoso, Ruth C. L. Movimentos sociais urbanos: balanço crítico. In: Velasco e Cruz, Sebastião et alii. Sociedade e politica no Brasil pós-1964. São Paulo, Brasiliense, 1983. p. 224.

Nestes termos, embora os trabalhadores, especialmente aqueles mais marginalizados, não possam ser responsabilizados pela lentidão do processo de democratização, não há dúvida de que, influenciados pela ideologia autoritária dominante, não foram capazes de se constituir em um elemento decisivo para apressar esse processo. Certamente para os trabalhadores industriais organizados essa conclusão deve ser menos negativa. Sua luta pela democratização, através de partidos como o PMDB, e o PT, tem sido muito clara. Mas mesmo entre os trabalhadores organizados as influências autoritárias são profundas e limitam sua ação democratizante.

VI

Uma terceira causa para a lentidão do processo de "abertura" é o caráter conservador das classes dominantes - a burguesia e a tecnoburocracia - brasileiras. Esta terceira causa é, ao mesmo tempo, um limite tecnoburocrático e burguês para a "abertura".

O conservadorismo das classes dominantes no Brasil está diretamente relacionado com o grande fosso existente entre a grande classe média burguesa (médios empresários e rentistas) e a grande classe média tecnoburocrática (administradores e técnicos das organizações públicas e privadas) e a grande massa dos trabalhadores brasileiros.

Observe-se que, neste momento, não me refiro á imensa distância entre a alta burguesia e a alta tecnoburocracia (que com a alta burguesia quase se confunde porque lógo se torna também proprietária) e os trabalhadores. Essa distância tende a ser grande em qualquer país. No Brasil, entretanto, todo o extraordinário processo de acumulação de capital e de concentração de renda desencadeado a partir dos anos 30 teve como conseqüência fundamental criar essa grande camada média burguesa e tecnoburocrática, separando-a da massa de trabalhadores urbanos e rurais. A remuneração dos membros dessa "classe média" burguesa e tecnoburocrática é 10 a 30 vezes maior do que um salário mínimo - salário mínimo esse que em 1980 ainda era recebido por 33,3% da população e que serve de base para a remuneração da grande massa dos trabalhadores manuais brasileiros.

Ora, essa "classe média",, ria verdade constituída da fração numericamente majoritária das duas classes dominantes - a burguesia e a tecnoburocracia - é a base da sociedade civil brasileira. Se adicionarmos a alta burguesia e a alta tecnoburocracia, teremos o total das classes dominantes no país. E essa grande classe dominante, exatamente porque está tão distanciada da classe trabalhadora, é uma classe que além de possuir tendências autoritárias é conservadora. É Uma classe - ou mais precisamente são duas classes - que sabe ser privilegiada e teme perder seus privilégios.

Francisco de Oliveira observou muito precisamente éste fato:

"O que emerge no Brasil pós-milagre é uma sociedade conservadora .. . No exato e simples sentido do termo: tem algo para conservar, as elites, as classes médias, as burguesias, as tecnoburocracias estatais e privadas."13 13 Oliveira, Francisco de. O minueto. Folha de São Paulo, 6 ago. 1983, p. 3.

É claro que o conservadorismo dessa classe não é monolítico. Qualquer generalização a respeito de um conjunto de pessoas ou famílias tão amplo e tão diversificado é necessariamente arriscada e deve ser feita com cautela. Mas é difícil não reconhecer o conservadorismo básico de uma classe rodeada por uma imensa massa de trabalhadores marginalizados ou semi-marginalizados do processo de desenvolvimento ocorrido no país.

Esse conservadorismo se traduz principalmente pelo medo da mudança. Há uma percepção muito generalizada de que, diante da crise econômica e política, mudanças importantes são necessárias. No plano político as mudanças fundamentais são as eleições diretas para a presidência da República e a convocação de uma Assembléia Constituinte. No plano econômico, o rompimento do acordo com o Fundo Monetário Internacional e a declaração da moratória da dívida externa. Há muitos membros das classes médias favoráveis a essas mudanças, mas elas não ocorrem porque a massa dos membros dessas duas classes permanece prudentemente calada, acomodada. Em conseqüência, mudanças não ocorrem ou tendem a ocorrer lentamente: a "abertura" paralisa-se ou caminha no ritmo que os seus dirigentes mais autoritários desejam.

É preciso, entretanto, assinalar que essa atitude conservadora não apenas da alta mas também da média burguesia e da média tecnoburocracia é eminentemente contraditória Porque a base social do processo de redemocratização do país está nessas duas "classes médias". São frações dessas classes aliadas aos setores mais politizados da classe trabalhadora que têm servido de base de sustentação, nos partidos de oposição, na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), na Igreja católica, nas universidades, para o processo de democratização do país.

Na verdade, a existência dessas duas grandes classes médias é, em última análise, a garantia maior que o país tem que caminhar para um regime democrático. E também é o ponto de apoio básico para a resistência da sociedade civil contra as políticas econômicas recessivas que os credores internacionais e o FMI estio impondo ao país.

Temos assim, uma situação duplamente contraditória. De um lado há um descompasso entre uma sociedade civil que se democratiza e o Estado que continua autoritário e sem legitimidade, de outro lado, as mesmas classes que formam a sociedade civil e desejam a democratização conservam fortes traços de autoritarismo e são suficientemente conservadoras para não colocar todo o seu peso político no sentido de restabelecer a plenitude democrática através da convocação de uma Assembléia Constituinte e da realização de eleições diretas.

VII

Esses limites burgueses e tecnoburocráticos ao processo de redemocratização do país permitiram que a "abertura" chegasse, em meados de 1983, a uma situação de impasse. A vitória das oposições, nas eleições de novembro de 1982, embora claríssima, já que obtiveram cerca de 58% dos votos válidos, não foi suficientemente decisiva para impedir que o governo conservasse a maioria no Colégio Eleitoral. Essa vitória teria sido muito maior e teria neutralizado os casuísmos eleitorais do governo, se as classes médias não se tivessem dividido entre o PMDB, que lutava pelo retorno à democracia, e o PDS que representava a manutenção de| um regime semi-autoritário.

Em conseqüência o país se vê hoje perante um impasse político. Necessita de um governo com legitimidade política para enfrentar a crise econômica e, no entanto, tem como perspectiva eleger um novo presidente através de um Colégio Eleitoral sem um mínimo de representatividade e de legitimidade.14 14 Conforme observa Hélio Jaguaribe, "a partir do momento em que o processo de redemocratização teve efetivo êxito e restaurou, em ampla medida, os mecanismos democráticos no sistema político brasileiro, reduzindo significativamente o poder político do sistema militar, o atual Colégio Eleitoral perdeu viabilidade, como instituição política" (A democratização ameaçada. Folha de São Paulo, 9 jul. 1983). Esta falta de legitimidade do governo expressa-se não apenas no seu caráter minoritário em termos eleitorais (falta de representatividade), mas na perda do apoio da maioria da burguesia brasileira. As manifestações insistentes de empresários e das classes médias burguesas e tecnoburocráticas contra o governo não deixam qualquer dúvida a respeito. Por outro lado, o eleitorado nos 10 estados (dos 23 existentes no país) em que a oposição foi vitoriosa não só são mais populosos (58,5% da população), mas também são muito mais ricos. De fato, nos termos de ura estudo realizado por Helival Rios, os 10 estados em que ás oposições foram vitoriosas representam 75,2% da arrecadação do imposto sobre o valor adicionado ICM (imposto de circulação de mercadorias) e 70,5% da arrecadação de tributos federais.15 15 Rios, Helival. Oposições vão governar o "país rico". Folha de São Paulo, 13 mar. 1983. p. 6. Na medida em que o peso econômico tem uma correspondência muito grande na sociedade civil, é fácil verificar o alto grau de ilegitimidade do governo depois das eleições de 1983.

Diante do impasse, a palavra mais em voga na política brasileira, em meados de 1983, era "negociação". Todos percebem que há uma urgente necessidade de negociação, que permita a superação do impasse.

O problema novo nesta negociação, entretanto, é que ela não poderá mais ser a clássica "conciliação de elites" que sempre caracterizou o processo político brasileiro. Não será também um processo democrático amplo, que envolva todo o povo. Mas, dado o grande crescimento da sociedade civil brasileira, essa negociação terá que ocorrer no seu âmbito. Ao invés de uma conciliação de uma pequena elite oligárquica, será necessário agora uma conciliação de uma elite muito ampliada, uma conciliação da sociedade civil brasileira, que inclua a parte mais atuante politicamente da classe trabalhadora.

A rigor não se deveria falar de necessidades de conciliação da sociedade civil, mas de necessidade de definição de um pacto democrático amplo. Em 1977 foi um pacto dessa natureza que serviu de base para o processo de redemocratização parcial do país. Agora a sociedade civil sente mais do que nunca que o restabelecimento da democracia, em um nível mais elevado do que houve no período 1945-69; é essencial para que possa fazer frente à crise econômica. O regime autoritário esgotou todas as suas virtualidades e perdeu toda ã legitimidade. O governo Figueiredo vem sofrendo um processo de deterioração contínua, que a crise econômica se encarrega de agravar.

Na verdade, a sociedade civil já perdeu quase que totalmente as esperanças de que neste governo os problemas econômicos do país possam encontrar alguma solução. A expectativa, entretanto, é de que um novo governo, com mais legitimidade, possa, a partir de 1985, fazer frente â crise econômica. E para isto será necessário um processo amplo de negociação, que, por isso mesmo, se tornou o tema dominante dos debates políticos em 1983.

A legitimidade política é essencial para que p governo possa interferir de maneira positiva na crise econômica não apenas porque esta é extremamente grave mas também porque tem um caráter distributivo básico.

A grande limitação que sofre hoje a economia brasileira é a sua dívida externa, que beira os US$ 90 bilhões. Qualquer que seja apolítica que se adote para fazer frente a essa restrição implicará sempre sacrifícios. Algumas classes ou alguns setores da economia terão que sofrer mais do que os outros. Todo o esforço dos economistas de oposição, quando criticam as políticas económicas ortodoxas que estão sendo adotadas, é o de demonstrar que existem alternativas não recessivas de política econômica. Em outras palavras, o que se pretende é reduzir esses sacrifícios, ao invés de maximizá-los, como está sendo feito atualmente. Esta alternativa existe, mas limitadamente. É possível reduzir os sacrifícios, não eliminá-los. E por isso, o elemento político e distributivo de qualquer política econômica para enfrentar a crise - a dívida externa, a dívida interna, a inflação, a estagflação econômica - será sempre fundamental na presente conjuntura.

Nestas circunstâncias, a negociação política para se chegar a um governo com legitimidade torna-se essencial. De acordo com uma pesquisa publicada na Folha de São Paulo, 76,2% da população paulista considerava que o governo e as oposições deveriam iniciar entendimentos para negociar uma saída para a crise.16 16 Folha de São Paulo, 17 jul. 1983, p. 6. Apesar das deficiências metodológicas da pesquisa, há pouca dúvida de que ela reproduz um sentimento generalizado da sociedade brasileira. Não é por outra razão que a direção nacional do PMDB, ainda que não vendo com clareza com quem negociar na área do governo, tomou uma série de medidas para tornar viável, no nível interno do partido, essa negociação.

Duas dificuldades fundamentais, entretanto, existiam para a negociação. Em primeiro lugar, dadas as profundas divisões existentes no interior do governo - o que, aliás, é típico das crises generalizadas - tomava-se difícil para as oposições definir interlocutores válidos. Os problemas de saúde do presidente da República agravaram essa questão. E em segundo lugar tínhamos, naturalmente, o fato de que o PDS apegava-se ao Colégio Eleitoral para garantir mais seis anos de poder; enquanto a oposição considerava esse colégio essencialmente ilegítimo, o PMDB dispunha-se a negociar, mas colocava como condições novas regras para a escolha do novo governo a mudança na política econômica recessiva e a mudança no Decreto-lei nº 2.045, de 1983, que estabelece que os salários serão corrigidos em 80% do INPC Esse decreto fortemente concentrador de renda, destinado a reduzir a taxa de inflação que nos meses de maio a julho de 1983, anualizados, atingia 239%, foi resultado de uma imposição do Fundo Monetário Internacional, aceita pelo governo, que assim se viu obrigado a abandonar a política salarial favorável aos trabalhadores que adotara desde 1979.

VIII

Resta perguntar se a renegociação é possível. Se, apesar dessas dificuldades, a sociedade civil tem condições de chegar a um acordo mínimo que lhe permita sair do impasse político.

Minha resposta a essa pergunta é, em princípio, positiva. Por duas razoes principais, interdependentes.

Em primeiro lugar, porque a sociedade civil não vem fazendo outra coisa desde que o processo de democratização começou, em torno de 1975, senão negociar. Negociações ocorrem entre o governo e a oposição, entre a burguesia e a tecnoburocracia, entre as classes dominantes e os trabalhadores, entre o governo e a Igreja. Quem observou esse fato com muita clareza foi Bolívar Lamounier, em uma conferência (não escrita) pronunciada na Fundap (Fundação de Administração Pública de São Paulo), em julho de 1983. Se não houvesse essa disposição para a negociação na sociedade brasileira, a oposição não teria jamais participado do jogo eleitoral viciado montado pelo governo. Este, por sua vez, jamais teria feito as "concessões" que afinal tomaram o nome de "abertura".

Em segundo lugar, porque a oposição ao governo não é radical. Está pronta, portanto, para negociar. Na verdade, o PMDB transformou-se em uma clara alternativa de poder no Brasil quando passou a disputar o apoio e a obter a confiança da sociedade civil. Na medida, entretanto, em que o PMDB ia obtendo um certo êxito nessa estratégia - e se tornando de fato uma alternativa de poder a curto prazo - esse partido caminhava para a direita. Sua fusão com o partido de centro PP, Partido Popular, em 1981, e a obtenção de 10 governos estaduais nas eleições de 1982 acentuaram essa tendência. É certo que não perdia suas características de um partido democrático e progressista. Enquanto partido de esquerda, entretanto, apresentava uma postura ideológica muito moderada, caracterizando-se, na melhor das: hipóteses, por uma posição de centro-esquerda, que não. chega sequer a se definir por um projeto social-democrata. Essa tendência para a direita do PMDB pode ser comprovada pelas reações do eleitorado após as eleições. De acordo com pesquisa realizada ha cidade de São Paulo, em agosto de 1983, 195% dos que votaram no PMDB em 1982, votariam agora em um partido claramente mais à esquerda, o PT, enquanto apenas 4,1% passariam para o PDS. Os eleitores de esquerda abandonavam, assim, o PMDB. Em contrapartida os eleitores do PDS migravam principalmente para o PMDB (16,6%) depois das eleições.17 17 Cf. Folha de São Pauto, 4 set. 1983, p. 6.

Essa falta de radicalizações na política brasileira atual e em especial no principal, partido da oposição, o PMDB, é, talvez, a garantia maior de que o processo de democratização afinal continuará e de que se conseguirá eleger um governo com legitimidade no Brasil. É a garantia principal de que uma solução golpista e, portanto, um novo fechamento político não ocorrerá no Brasil. Apesar da crise econômica, que é mais grave do que a de 1963/64, não há perspectivas de um novo golpe militar não apenas porque os militares ainda estão no poder e não têm mais soluções "salvadoras" para o país, como imaginavam ter em 1964, mas também porque, ao contrário do que ocorria em 1963/64, não existe um processo de radicalização política no país.18 18 Philippe Faucher admite a possibilidade de um novo fechamento, mas reconhece a precariedade de uma solução desse tipo: "Não podemos colocar dê lado a possibilidade de um fechamento violento... Esta, entretanto, seria uma solução extremamente precária. Implicaria uma profunda divisão da sociedade brasileira. As Foiças Armadas seriam a instituição atingida em primeiro lugar e mais duramente" (The paradise that never was: the breakdown of the Brazilian authoritarian order. In: Bruneau, Thomas C. & Faucher, Philippe, org. Authoritarian capitalism; Brazil's contemporary economic and political development. Boulder, Colo., Westview Press, 1981. p. 29).

Em síntese, os limites burgueses e tecnoburocráticos à "abertura" ou mais precisamente ao processo de democratização são concretos. A sociedade civil brasileira ainda não é uma sociedade internamente democrática. As classes dominantes que a compõem majoritariamente conservam ainda traços de autoritarismo e de conservadorismo relativamente fortes, embora nas classes médias assalariadas e em setores mais progressistas do empresariado industrial encontremos as bases da provável democratização que acabará no Brasil. O papel dos trabalhadores - eles próprios também vítimas do autoritarismo em muitas ocasiões - na democratização interna da sociedade,civil é ainda limitado, embora tenha crescido. Mas se esses limites e essas contradições ajudam a explicar a lentidão do processo de democratização, não apontam no sentido do restabelecimento da ditadura.

É preciso, entretanto, assinalar que, quando a instituição presidência da República entra em processo de deterioração e esvaziamento no Brasil, temos um sinal seguro de que a crise político-institucional está chegando a um ponto perigoso. Ora, todos os fatos indicavam, em setembro de 1983, após o Presidente Figueiredo haver assumido a presidência, que o país estava chegando próximo desse ponto. Agora não eram mais apenas os ministros ou os tecnoburocratas civis e militares o alvo da crítica e da insatisfação da sociedade, era o próprio presidente da República.

A instituição presidência da República sempre foi muito poderosa no Brasil. Não apenas porque o sistema de governo é presidencialista e o sistema político tem sido quase sempre autoritário, más também porque está na tradição da sociedade brasileira um extraordinário respeito por quem ocupa a presidência da República.

É preciso não confundir o autoritarismo com o prestígio da instituição presidência da República. Embora os dois fenómenos sejam relacionados, é possível termos um sistema político razoavelmente democrático e ao mesmo tempo uma presidência da República forte e respeitada. Porque o presidencialismo não é necessariamente autoritário. Tende a sê-lo, mas nada impede - pelo contrário, tudo favorece - que um presidente da República exerça com grande autoridade e prestígio seu cargo nos quadros da democracia.

Esse prestígio natural ou tradicional da presidência da República traduz-se principalmente no fato de que a sociedade tende sempre,a criticar os subordinados diretos ou indiretos do presidente, mas não o próprio presidente. Este tende a ficar em uma espécie de limbo, como se fosse um árbitro, muito mais do que um ator do processo político.

Até há pouco era exatamente isto o que ocorria no Brasil. Embora ó governo viesse sofrendo uma progressiva perda de legitimidade, agravada pelos resultados das eleições de 1982 e pelo aprofundamento da crise econômica, e embora os ministros ficassem sob pesada crítica da sociedade civil, o presidente era sempre preservado.

Essa situação, entretanto, mudou completamente nos últimos meses. A total incapacidade do presidente da República de se sensibilizar e responder positivamente is manifestações formais e informais da sociedade civil, agravada por sua doença e pela operação cirúrgica a que teve que submeter-se, levaram-no a um total isolamento. A conseqüência disso foi um acelerado processo de desgaste da instituição presidência da República. Não só o presidente passou a ser criticado diretamente, mas começou-se a pedir publicamente a sua renúncia ou até mesmo seu impeachment.

Para contrabalançar esse processo organizaram-se manifestações oficiais, primeiro do PDS, depois dos próprios militares. Mas é claro que essas manifestações artificiais não lograram seu intento: restabelecer o prestígio e o poder da presidência.

Segundo a tradição que se estabeleceu no regime autoritário brasileiro após 1964, cabe ao presidente da República escolher seu sucessor. Insiste-se em repetir essa prática na presente conjuntura, depois de "ampla consulta à sociedade", segundo se anuncia, mas é óbvio que suas probabilidades de êxito são mínimas. O mais provável, caso se mantenha essa idéia, é um desgaste ainda maior do presidente, com graves riscos para o "lento, gradual e seguro" processo de redemocratização.

Nessas circunstâncias, restaria ao presidente uma alternativa para recuperar o prestígio da presidência: abandonar a idéia autoritária de que lhe cabe escolher seu sucessor e adotar a idéia alternativa - esposada pela grande massa da sociedade civil - que seu papel no presente momento é estabelecer as condições constitucionais para que a própria sociedade escolha seus futuros governantes. Nada, entretanto, garante que essa solução venha a ser adotada. E o país permanece assim imerso em uma crise econômica e político-institucional sem precedentes.

* Comunicação apresentada no painel The Brazilian democratic opening durante o XI International Congress of the Latin America Studies Association, realizado na cidade do México, de 29 de setembro a 19 de outubro de 1983.

  • 1 Ver a respeito: Assis, José Carlos de. A chave do tesouro; anatomia dos escândalos financeiros: Brasil 1974-1983. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983.
  • 3 Sobre o assunto, ver: A dialética entre a "abertura" e a redemocratização. In: Desenvolvimento e crise no Brasil 1930-1982. São Pauto, Brasiliense, 1983. cap. 9; O colapso de uma aliança de classes. São Paulo, Brasiliense, 1978;
  • Pacto social ameaçado. Folha de São Paulo, 26 mar. 1981. p. 3;
  • Pacto social e aliança política. Leia Livros, 36:9, jun./jul. 1981.
  • 4 Martins, Luciano. Terra em transe. Folha de São Pauto, 17 jul. 1983. p. 3.
  • 5 Ver, por exemplo, Bolívar Lamounier, para quem, desde 1973, a "abertura foi esposada e de tato iniciada por uma facção da tecnocracia militar - aquela que assumiu o poder com o General Ernesto Geisel e seu governo". (Openning thought elections: will the Brazilian case become a paradigm?, a ser publicado em Government and opposition, outubro de 1983).
  • 6 O notável ensaio de Maria da Conceição Tavares, Natureza e contradições do desenvolvimento financeiro recente (Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1972) deu origem a essa interpretação.
  • 7 Ver a respeito: Bobbio, Norberto. O conceito de sociedade civil Rio de Janeiro, Graal, 1982, p. 19-36. (Traduzido do italiano Gramsci e 1Ş concezione delia società cIvile. 1967.
  • 8 Sobre este assunto, a pesquisa histórica definitiva foi realizada por Gore Therbom: The tule of capital and the rise of democracy. New Left Review, 103, May/June 1977. Nesse trabalho Therbom observa: "a democracia burguesa, da mesma forma que sua predecessora ateniense, apareceu inicialmente como uma democracia para os representantes masculinos da classe dominante. . . O segundo estágio da luta pela democracia foi fortemente determinado pela luta da classe trabalhadora e do movimento sindical" (p. 334).
  • 11 Moisés, José Alvaro S, Martinez-Alier, Verena. Contradições urbanas e movimentos sociais. Rio de Janeiro, Paz e Terra/Cedec, 1977. p.52-5.
  • 13 Oliveira, Francisco de. O minueto. Folha de São Paulo, 6 ago. 1983, p. 3.
  • 14 Conforme observa Hélio Jaguaribe, "a partir do momento em que o processo de redemocratização teve efetivo êxito e restaurou, em ampla medida, os mecanismos democráticos no sistema político brasileiro, reduzindo significativamente o poder político do sistema militar, o atual Colégio Eleitoral perdeu viabilidade, como instituição política" (A democratização ameaçada. Folha de São Paulo, 9 jul. 1983).
  • 15 Rios, Helival. Oposições vão governar o "país rico". Folha de São Paulo, 13 mar. 1983. p. 6.
  • 16Folha de São Paulo, 17 jul. 1983, p. 6.
  • 1
    Ver a respeito: Assis, José Carlos de.
    A chave do tesouro; anatomia dos escândalos financeiros: Brasil 1974-1983. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983.
  • 2
    Cf. Crise do regime.
    Folha de São Paulo, 19 mar. 1983, p. 2. Os seis parágrafos anteriores constituem praticamente a transcrição desse artigo.
  • 3
    Sobre o assunto, ver: A dialética entre a "abertura" e a redemocratização. In:
    Desenvolvimento e crise no Brasil 1930-1982. São Pauto, Brasiliense, 1983. cap. 9;
    O colapso de uma aliança de classes. São Paulo, Brasiliense, 1978; Pacto social ameaçado.
    Folha de São Paulo, 26 mar. 1981. p. 3; Pacto social e aliança política.
    Leia Livros, 36:9, jun./jul. 1981.
  • 4
    Martins, Luciano. Terra em transe.
    Folha de São Pauto, 17 jul. 1983. p. 3.
  • 5
    Ver, por exemplo, Bolívar Lamounier, para quem, desde 1973, a "abertura foi esposada e de tato iniciada por uma facção da tecnocracia militar - aquela que assumiu o poder com o General Ernesto Geisel e seu governo". (Openning thought elections: will the Brazilian case become a paradigm?, a ser publicado em
    Government and opposition, outubro de 1983).
  • 6
    O notável ensaio de Maria da Conceição Tavares, Natureza e contradições do desenvolvimento financeiro recente (
    Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1972) deu origem a essa interpretação.
  • 7
    Ver a respeito: Bobbio, Norberto.
    O conceito de sociedade civil Rio de Janeiro, Graal, 1982, p. 19-36. (Traduzido do italiano
    Gramsci e 1ª concezione delia società cIvile. 1967. )
  • 8
    Sobre este assunto, a pesquisa histórica definitiva foi realizada por Gore Therbom: The tule of capital and the rise of democracy.
    New Left Review, 103, May/June 1977. Nesse trabalho Therbom observa: "a democracia burguesa, da mesma forma que sua predecessora ateniense, apareceu inicialmente como uma democracia para os representantes masculinos da classe dominante. . . O segundo estágio da luta pela democracia foi fortemente determinado pela luta da classe trabalhadora e do movimento sindical" (p. 334).
  • 9
    Diniz, EU. O empresariado e a nova conjuntura. In: Trindade, Hélgio, org.
    Brasil em perspectiva; dilemas da abertura política. Porto Alegre. Sulina, 1982. p. 116.
  • 10
    Estudei este problema em um ensaio escrito em 1969, A revolução política na Igreja publicado domo parte do livro
    Tecnoburocracia e contestação (Petrópolis, Vozes, 1972) e republicado em
    As revoluções utópicas (Vozes, 1979). A bibliografia que surgiu depois sobre o assunto é imensa.
  • 11
    Moisés, José Alvaro S, Martinez-Alier, Verena.
    Contradições urbanas e movimentos sociais. Rio de Janeiro, Paz e Terra/Cedec, 1977. p.52-5.
  • 12
    Cardoso, Ruth C. L. Movimentos sociais urbanos: balanço crítico. In: Velasco e Cruz, Sebastião et alii.
    Sociedade e politica no Brasil pós-1964. São Paulo, Brasiliense, 1983. p. 224.
  • 13
    Oliveira, Francisco de. O minueto.
    Folha de São Paulo, 6 ago. 1983, p. 3.
  • 14
    Conforme observa Hélio Jaguaribe, "a partir do momento em que o processo de redemocratização teve efetivo êxito e restaurou, em ampla medida, os mecanismos democráticos no sistema político brasileiro, reduzindo significativamente o poder político do sistema militar, o atual Colégio Eleitoral perdeu viabilidade, como instituição política" (A democratização ameaçada.
    Folha de São Paulo, 9 jul. 1983).
  • 15
    Rios, Helival. Oposições vão governar o "país rico".
    Folha de São Paulo, 13 mar. 1983. p. 6.
  • 16
    Folha de São Paulo, 17 jul. 1983, p. 6.
  • 17
    Cf.
    Folha de São Pauto, 4 set. 1983, p. 6.
  • 18
    Philippe Faucher admite a possibilidade de um novo fechamento, mas reconhece a precariedade de uma solução desse tipo: "Não podemos colocar dê lado a possibilidade de um fechamento violento... Esta, entretanto, seria uma solução extremamente precária. Implicaria uma profunda divisão da sociedade brasileira. As Foiças Armadas seriam a instituição atingida em primeiro lugar e mais duramente" (The paradise that never was: the breakdown of the Brazilian authoritarian order. In: Bruneau, Thomas C. & Faucher, Philippe, org.
    Authoritarian capitalism; Brazil's contemporary economic and political development. Boulder, Colo., Westview Press, 1981. p. 29).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 1983
    Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: rae@fgv.br