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A empresa não é uma árvore

NOTAS E COMENTÁRIOS

A empresa não é uma árvore

Carlos Eduardo de Senna Figueiredo

Chefe de departamento em Furnas Centrais Elétricas S.A

A estrutura da gerência superior de uma empresa, como é vista nos organogramas típicos, está ilustrada na figura 1. Nela estão indicados G, o gerente principal ou presidente executivo, três subordinados principais ou diretores, designados por G1, G2 e G3, cada um dos últimos chefiando também outros três subordinados. Este exemplo inclui 13 funcionários na administração superior. Embora, na realidade, a estrutura de comando e distribuição de responsabilidade empresarial não opere estritamente dessa forma, ela é fortemente influenciada por redes desse feitio.


Esse tipo especial de rede, que define a forma dominante de organização das nossas principais instituições, é a árvore. A árvore é uma rede simples; para os matemáticos, árvore significa qualquer rede conexa que tenha tantos ramos quantos são os vértices menos um. A figura 2 mostra uma árvore com 10 ramos e 11 vértices ou nós.


Essa classe de rede não é encontrada somente nos organogramas das empresas. Em A city is not a tree, Christopher Alexander1 1 Alexander, Christopher. A city is not a tree. The Architectural Forum, 1965. mostra como as cidades naturais (as que se criaram de um modo mais ou menos espontâneo ao longo de muitos anos, por exemplo, Rio de Janeiro, Liverpool, Paris) mantêm a riqueza, a humanidade e a variedade de correntes vitais superpostas, em contraste com as cidades artificiais (criadas deliberadamente por urbanistas e arquitetos, por exemplo, Brasília e as New Towns inglesas), nas quais a vida é fragmentada, dissociada, insatisfatória e desprovida da trama vital que o tempo sabe espargir. A razão do fracasso, segundo Alexander, é a seguinte: o princípio ordenador que distingue a cidade artificial da cidade natural é que a primeira é organizada como uma árvore. Nela, não há complexidade estrutural, suas unidades não se superpõem, cada uma delas é separada das unidades adjacentes. Sem um múltiplo tecido de conexão entre as partes, a vida urbana se fragmenta, fragmentam-se as atividades sociais, fragmenta-se a consciência dos cidadãos, e a felicidade se torna um hábito inalcançável.

A empresa é uma árvore? Por hipótese, suponhamos que sim e, para explorar uma das conseqüências dessa afirmação, consideremos o processo de tomada de uma decisão importante, como descreve Stafford Beer2 2 Beer, Stafford. Brain of the firm. Allen Lane, The Penguin Press, 1972. em Brain of the firm. Em face de um problema, e em obediência ao organograma, G convoca G1 , G2 e G3 para explicar a situação e instrui cada um deles para voltar mais tarde trazendo a sua opinião, independentemente dos outros dois. G1, por sua vez, chama A, B e C, seus subordinados imediatos, a quem diz exatamente o que o presidente lhe disse e determina o mesmo procedimento: G1 quer ouvi-los isoladamente e, só depois das três audiências, formar uma opinião. Mais tarde, A volta com a sua visão do problema, B faz o mesmo, e assim por diante, o ritual se desenrola conforme a instrução dada. À primeira vista, essa empresa está bem organizada e bem defendida contra os conchavos empapados de boatos que parecem aturdir as decisões de muitas empresas, mas esse argumento desconhece a circunstância de que os homens nâo são infalíveis.

Vejamos A. Ele faz todo o possível para dar o conselho correto, discute exaustivamente com os seus subordinados, mas - a rigor - ele só conhece 1/9 da situação. Além disso, A tem a característica de se enganar eventualmente, o que não o distingue do resto da espécie humana. Para quantificar o exemplo, digamos que, em média, ele dá a opinião correta 70% das vezes. Pelo mesmo motivo, suponhamos que G1, em posição mais sênior, esteja correto nas suas decisões na proporção 8:10, e mesmo G, embora à frente da empresa, não desconheça a imperfeição, e que erre em 10% das suas decisões. Suponhamos ainda, para compreender o exemplo, que nesse caso a resposta correta de G é "sim", e vejamos as implicações desse cenário decisório. Como A acerta sete vezes em 10, terá a probabilidade 0,7 de acertar agora. A mesma coisa ocorre com B e C e, como foram proibidos de comparar as suas respostas, a assessoria de cada um é independente das dos outros. G1, mais cauteloso, não dirá "sim" como resposta ao problema, a menos que A, B e C também o digam. G1 pretende que os três subordinados estejam certos, independentemente uns dos outros, e ao mesmo tempo. A probabilidade de que isso aconteça é multiplicativa: 0,7 x 0,7 x 0,7. Segundo essa regra de decisão, coerente com a estrutura funcional em árvore, G1 tem a chance de 0,343 de ouvir a opinião correta. Por sua vez, e devido às imprecisões do seu julgamento, G1 passará a opção correta a G com probabilidade 0,343 x 0,8 = 0,274. G2 e G3 fazem o mesmo, com igual probabilidade de sucesso. Enfim, do ponto de vista de G, que também adota esse procedimento protocolar e recebe isoladamente cada um dos três diretores, o processo já está minado de erros. E como G não aprovará o plano salvo se G1, G2 e G3, todos os três, o aprovarem, a probabilidade de que a opção correta seja tomada é o cubo daquele valor, ou seja, 0,02. O próprio presidente acerta com probabilidade 0,9, o que nos leva ao seguinte resultado: o chefe da empresa fará menos de duas decisões corretas em cada centena. A isso foi levado pelo protocolo e o acatamento estrito aos ditames da rede organizacional.

É razoável concluir que a empresa não é uma árvore, caso contrário não seria viável. Os organogramas não retratam fielmente o funcionamento da firma, não ilustram as redes de comunicação e de atividades informais, ignoram o entrosamento engendrado por fora da rede de trabalho formal. Essas ligações, invisíveis no organograma, compensam a rigidez da estrutura em árvore e superam a impossibilidade de operar daquele jeito. A estrutura real de funcionamento da empresa, geralmente dificultada pela formal, corresponde a outro tipo de rede, mais complexa do que a árvore, e que em matemática se chama semi-retículo. A figura 3 ilustra um exemplo.


Nessa rede, um vértice de qualquer nível pode estar ligado a diversos vértices de níveis superiores, ao invés de vincular-se apenas a um deles, como no caso anterior. Pode-se objetar que essa malha não serve numa organização convencional - afinal, se alguém tem dois ou três chefes, a qual deles obedecer? No entanto, se invertermos o sentido do desenho e tivermos decisões fluindo para cima, o semi-retículo se mostra conveniente e viabiliza um meio flexível e eficiente para administrar a superposição de atividades diferentes. Nada obriga essa estrutura a estar confinada ao trabalho. As ligações entre o emprego e a comunidade (por exemplo, acerca dos problemas de contaminação ambiental) podem ser tratadas por grupos mistos de representantes da empresa e dos bairros; como as decisões já não carregam o lastro de duas organizações em árvores distantes (cada uma de um lado, perseguindo objetivos próprios), os problemas se submetem mais facilmente à solução. E ficam mais próximos do controle público direto.3 3 Rosenhead, Jonathan. Networks for control or self management. The Listener, 31 Aug. 1972.

As organizações convencionais sentem a impossibilidade de operar como árvores e procuram superar a deficiência formando grupos de decisão ad hoc, equipes de composição fugaz, em resposta às necessidades geradas em função dos problemas. O contexto em que as empresas modernas estão imersas é de tal turbulência que se torna forçoso concertar essas equipes variáveis, capazes de aglutinar provisoriamente um conjunto de áreas e especialistas de conhecimento diverso. A função de coordenação promove essa aglutinação e representa, nos dias que correm, o trânsito de um paradigma organizacional a outro: da árvore ao semi-retículo.

Voltando às deduções de Alexander, em sua descrição de uma cidade natural, articulada em semi-retículo: "Consideremos, por exemplo, a Universidade de Cambridge. Em determinados pontos, a Trinity Street quase não se distingue fisicamente do Trinity College. Um pedestre que atravessa a rua praticamente forma parte do College. Os edifícios que margeiam a rua têm, no térreo, lojas, bares e bancos, e, acima, alojamentos para os estudantes. Em muitos casos, a trama dos edifícios modernos se mistura com a trama dos velhos prédios universitários, de modo que um não pode ser alterado sem que se altere o outro. Há sempre muitos sistemas de atividade nos quais a vida universitária e a vida urbana se superpõem: as horas mortas nos bares e cafés, os cinemas, o passeio pela rua. Em alguns casos, toda uma faculdade está ativamente relacionada com a vida dos habitantes da cidade (a escola de medicina e o hospital clínico, por exemplo). Em Cambridge, uma cidade natural, onde universidade e cidade cresceram juntas, as unidades físicas se entrelaçam porque são os resíduos físicos, de sistemas de cidades e de sistemas de universidades que se superpõem." A figura 4 resume a superposição e a rede resultante.


Para o caso da empresa, enquanto sistema organizado e com propósito, a natureza orgânica sugere, mais uma vez e com nitidez, uma valiosa analogia. O centro de decisões do corpo humano, a área geradora de propósitos, se localiza na cabeça, no córtex cerebal. Os neurônios são elementos de decisão individual, que recebem uma variedade de estímulos e "tomam uma decisão" equivalente a dizer "sim" ou "não" (os axônios disparam ou não); nessa missão são muito menos confiáveis do que os gerentes do exemplo anterior, pois sofrem as vicissitudes de qualquer mudança de atividade bioquímica: o vinho que o gerente bebe no almoço altera totalmente o umbral de disparo de milhões de neurônios distribuídos no córtex, de maneira ainda desconhecida (embora já se tenha proposto que a função de transferência de um neurônio é uma equação diferencial do oitavo grau, em que todas as variáveis estão sujeitas a tênues mudanças na escala dos microssegundos). Pior, já se estimou que cerca de 100 mil neurônios estouram como fusíveis diariamente no cérebro. Eles queimam simplesmente, deixam de operar, e não são substituídos (comparados com essas células decisórias, os gerentes da firma estão em posição mais confortável). Finalmente, na velhice, terminamos nos valendo de 2/3 dos neurônios com que viemos equipados. A cibernética destaca que o cérebro maneja esses problemas exatamente como faz a empresa: os neurônios não trabalham independentemente; eles se reforçam mutuamente numa intricada rede de interações. Não funcionam como árvore, funcionam como semi-retículo.4 4 McCulloch, Warren. A heterarchy of values determined by the topology of nervous nets. Bull. Math. Biophysics, 7, 1945.

O leitor poderá calcular a nova probabilidade de G errar, quando o exemplo ilustrado na figura 1 for enriquecido com ligações entre todos os administradores. Verá que essa probabilidade se reduz dramaticamente, e perceberá como a natureza obtém resultados precisos mediante componentes falíveis. Chegará também, por força da analogia entre essas estruturas dinâmicas, a outras conclusões, por exemplo: numa organização, o chefe deve ser um colega primus inter pares - num grupo que inclui subordinados, e o princípio "a cada funcionário, um chefe" só vale em casos excepcionais, pois o protocolo não deve interditar a múltipla interação através do grupo. Redundância de comando potencial, flexibilidade, informação rápida e selecionada são alguns corolários diretos desses princípios. Uma árvore não dá esses frutos.

  • 1 Alexander, Christopher. A city is not a tree. The Architectural Forum, 1965.
  • 2 Beer, Stafford. Brain of the firm. Allen Lane, The Penguin Press, 1972.
  • 3 Rosenhead, Jonathan. Networks for control or self management. The Listener, 31 Aug. 1972.
  • 4 McCulloch, Warren. A heterarchy of values determined by the topology of nervous nets. Bull. Math. Biophysics, 7, 1945.
  • 1
    Alexander, Christopher. A city is not a tree.
    The Architectural Forum, 1965.
  • 2
    Beer, Stafford.
    Brain of the firm. Allen Lane, The Penguin Press, 1972.
  • 3
    Rosenhead, Jonathan. Networks for control or self management.
    The Listener, 31 Aug. 1972.
  • 4
    McCulloch, Warren. A heterarchy of values determined by the topology of nervous nets.
    Bull. Math. Biophysics, 7, 1945.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 1985
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