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A introdução de ideologias gerenciais no Brasil

ARTIGO

A introdução de ideologias gerenciais no Brasil

Maria Valéria Junho Pena* * A autora agradece a Monica Renai sua colaboração quanto à organização do material relativo aos empresários

Professora no Instituto de Economia Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro

1. INTRODUÇÃO

Desde a instalação das primeiras unidades fabris no Brasil, no final da primeira metade do século XIX, os empresários expressavam preocupações sobre a organização de trabalhadores e do trabalho no recinto de suas indústrias. Inicialmente, essas preocupações centravam-se no receio das conseqüências para a ordem pública da reunião de grande número de pessoas pobres, compelidas a colaborarem com seu trabalho e conjuntamente submetidas às mesmas desumanas condições de existência. O receio de explosões e revoltas que pudessem surgir - de resto acirrado com a notícia dos movimentos revolucionários europeus de 1848 - fez com que alguns industriais optassem por localizar seus negócios na periferia dos centros urbanos, longe de ambientes "receptivos à voz de homens malevolentes e ambiciosos que perturbam a ordem pública" (Stein, 1979, p. 68-9). Fez, ao mesmo tempo, que o bom comportamento e a docilidade fossem as características mais valorizadas no operário - mais que sua produtividade - e se constituíssem, na época, nos únicos atributos merecedores de retribuição. De fato, como relata Stein, o pagamento generalizado a toda força de trabalho não era, então, a norma: trabalhadores recebiam casa, comida e uma bonificação anual em troca de bom comportamento (Stein, 1979). Inicialmente, pois, o controle das inquietações operárias foi procurado através de mecanismos que organizassem rigidamente sua vida, não apenas no trabalho, mas sobretudo no descanso. Trabalhadores dormindo e vivendo entre máquinas e em galpões no recinto das fábricas e, posteriormente, em vilas operárias, com um cotidiano duramente regulamentado, são fatos conhecidos; em grande medida constituíam respostas que os empresários davam a seus medos e ansiedades diante de protestos potenciais.

Verdade é que uma linguagem de bom samaritano acompanhava o rígido controle de trabalhadores e de uma vida privada cuja concretude lhes era sempre negada; "certamente não há empreendimento mais humanitário e filantrópico do que proporcionar emprego pormenorizado e permanente para essa grande e crescente parcela da população". Assim, pois, era que a utilização de crianças como força de trabalho dominante justificava-se como empreendimento benemérito "em alguns anos de vida útil numa idade em que seu caráter está em formação e os hábitos regulares da diligência podem ser adquiridos" (relatório da Cia. Brazil Industrial, apud Stein, 1979, p. 66-7). A concessão de fogões, louça, colchões e travesseiros para que operários vivessem entre máquinas; os cursos de corte e costura ministrados a meninas após incontáveis horas de trabalho; a regulamentação da vida familiar, do corpo e da sexualidade pelas milícias das empresas, tudo isso, se de um lado fixava a força de trabalho nas fábricas, de outro procurava cimentar bases de um trabalhador novo, portador de uma nova ética; a família monogâmica, a sexualidade mecanizada, a abstinência de bebidas e do lazer, o trabalho transformado em fetiche. Acima de tudo uma classe operária bem comportada.

As primeiras décadas da industrialização brasileira presenciaram iniciativas empresariais destinadas a controlar a vida social de seus trabalhadores - uma forma preliminar do seu controle político; o início do século XX, por sua vez, assistiu à emergência de uma nova ordem de questões que se tornaria sistemática: a sucessiva ênfase, na fala empresarial, da necessidade de organizar o trabalho, dando-lhe racionalidade.

De maneira geral, a linguagem do industrialismo é a da eficiência. Embora sobre esse fato estejam todos de acordo, dois diferentes significados vêm sendo conferidos a essa evidência. Em primeiro lugar, o controle do trabalho e sua crescente burocratização são partes do processo geral de racionalização das sociedades contemporâneas. Em segundo, o discurso sobre a racionalização é entendido como uma forma de comunicação entre classes sociais distintas. Aqui, a busca de princípios ordenadores do trabalho, especificamente referidos à autoridade e gerência, tende a ser compreendida como forma justificadora da autoridade dos empregadores e legitimadora da obediência dos empregados. Essas duas formas distintas de abordar o fenômeno da organização, divisão e fragmentação do trabalho contemporâneo são tratadas no item 2 deste texto. Contudo, seu objetivo principal, tomando como pano de fundo tais correntes, é o de discutir a introdução e difusão, no Brasil, de um aparato ideológico destinado a impor a disciplina dentro da fábrica. Essa discussão é realizada no item 3.

Sem que se rejeite a tese da burocratização crescente das instituições organizadoras da vida moderna e, ao mesmo tempo, aceitando-se que o discurso racionalizante seja um discurso autoritário - e não técnico - de controle de classes subordinadas no seu ambiente social e, particularmente, de trabalho, este texto procura definir a especificidade dessas questões no discurso empresarial no Brasil, nos períodos iniciais da industrialização. Argúi-se, aqui, que a discussão sobre a importância da racionalização do trabalho, muito mais que destinada à persuasão dos trabalhadores das vantagens de sua disciplina às regras elaboradas por especialistas, consistiu, de fato, num dos elementos de comunicação dos empresários entre si e através do qual ganhavam consciência de sua posição e de seus interesses. Em outras palavras, pois, pretende-se demonstrar que a discussão dos empresários sobre a racionalidade consistiu numa forma de interação entre grupos dominantes e num instrumento que lhes possibilitou desenvolver e ganhar identidade enquanto classe.

2. RACIONALIZAÇÃO, BUROCRATIZAÇÃO E CONTROLE NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Nos textos de Max Weber, encontra-se com insistência a idéia de que a organização racional do trabalho é parte do desenvolvimento do capitalismo e do processo de racionalização que subjaz a ele: "Em nenhum lugar encontramos a organização empresarial do trabalho como se conhece no Ocidente" (Weber, 1956, p. 265). Contudo, essa capacidade propriamente ocidental e capitalista de organizar racionalmente o trabalho consiste apenas em um dos marcos empíricos do gigantesco processo de racionalização que funda a vida moderna, capitalista e industrial.

Na base dessa racionalização capitalista encontra-se, além da organização disciplinada do trabalho, a possibilidade do uso do cálculo exato e da contabilização de lucros, a incorporação à atividade econômica das ciências da natureza e da técnica, a consolidação de um espaço fabril próprio, separado dos limites domésticos, o desenvolvimento de um direito positivo e o abandono da contemplação mística em troca de um ascetismo ativo e laborioso.

O mundo moderno, tal Weber o compreende, é desprovido de encanto, magia, mística e heróis; negócios e nada além de negócios lhe importam. O fato é que para Weber essa razão progressiva, concretizada na matematização da experiência e na organização universal de um exército de funcionários, metamorfoseia-se na racionalidade econômica capitalista, convertendo-se na precondição de sua rentabilidade (Marcuse, 1971).

Weber, já então - como Michels e Schumpeter mais tarde - postulava uma inexorável burocratização da vida contemporânea e de suas instituições principais, o Estado, os partidos, a empresa. Nessa última, o trabalho racionalmente organizado consistia em uma das faces da burocracia e um instrumento de adequação de meios às finalidades lucrativas do empreendimento.

Weber reconhecia que a separação dos trabalhadores dos elementos da produção é a parte constitutiva do capitalismo. Alheios a seus instrumentos de trabalho, trabalhadores vão reencontrá-los sob ordenamentos burocráticos, garantidores da disciplina na empresa e na qual se espelha a disciplina maior requerida pela vida moderna. Mesmo o socialismo não a negaria, pois "desta separação vital, desta disciplina de fábrica nasce o socialismo contemporâneo" (Marcuse, 1971 p. 134). A burocracia é, novamente, o instrumento que faz, da submissão, disciplina no trabalho.

Um dos traços marcantes da intervenção weberiana na discussão dos fundamentos da sociedade contemporânea reside exatamente em sua postulação do domínio crescente de formas burocráticas de controle social; daí que sua concepção sobre a modernidade resulta, em última análise, na construção de sua teoria sobre a dominação racional/legal/burocrática. Diante dessa última se esmaecem diferenças eventuais surgidas em regimes de propriedade diversos, mesmo porque a burocracia não tem rosto e sim engrenagens e, em suas próprias palavras, tratar-se-ia apenas (e no máximo) de uma "máquina animada" (Weber, 1974, p. 30-1).

A burocracia é o resultado da combinação de dois elementos, vigas de sua eficácia - especialização e treinamento: "Em contraste com estas formas mais velhas (burocracias patrimoniais) a burocracia moderna tem uma característica que torna sua natureza 'à prova de fuga' muito mais explícita: especialização e treinamento racional" (Weber, 1974). Inexorável e à prova de fuga, ela concretiza-se na figura do funcionário proficientemente treinado que comanda e induz à disciplina pela sua assimilação da ciência e da técnica, pela sua familiaridade com métodos contábeis, pela sua identificação aos objetivos (rentabilidade) da empresa, funcionário que "onde venha a predominar, sua força revela-se indestrutível, pois toda organização e, mesmo, satisfação da necessidade mais elementar, foi adaptada ao seu modo de operação" (Weber, 1974). Como finalmente comenta Bendix, "uma burocracia indestrutível de relações de autoridade. Enquanto o 'notável' cumpre o trabalho administrativo com caráter vocacional e honorífico, o sustento econômico do burocrata e sua existência social inteira identificam-se com o aparato administrativo" (Bendix, 1970, p. 402).

Em Weber, pois, e em vários que seguiram suas idéias, discerne-se a proposta da compreensão da introdução de princípios racionais de administração nas empresas fabris como penetração de princípios burocráticos de gestão, cuja lógica maior centrava-se no processo de racionalização do industrialismo contemporâneo. Essas mesmas tendências seriam, poucos anos após, percebidas por Joseph Schumpeter, em contexto diferente; para esse, na substituição do empreendedor pelo burocrata reside o nódulo central da dinâmica capitalista que eventualmente o levaria à sua destruição.

Schumpeter, como Weber, acreditou que o capitalismo é racionalizador: "O processo capitalista racionaliza comportamento e idéias e, assim fazendo, expulsa de nossa mente, conjuntamente com a crença metafísica, idéias místicas e românticas de toda ordem" (Schumpeter, 1976, p. 127). Esse impulso à racionalização remete a duas práticas interconectadas: em primeiro lugar, a exaltação da unidade monetária e sua transformação em unidade contábil, isto é, "um instrumento de cálculos racionais de lucros e custos"; em segundo, uma atitude mental semelhante à da ciência moderna, uma nova maneira de perguntar e responder perguntas, uma racionalização que faz do capitalismo mais que uma atividade econômica. E é nesse sentido que Schumpeter afirma que "não apenas a moderna planta mecanizada e o volume de output que ela produz, não apenas a moderna tecnologia e organização econômica, mas todos os aspectos e resultados da civilização moderna são, direta ou indiretamente, produtos do processo capitalista" (Schumpeter, 1976, p. 125).

O desalento schumpeteriano diante dos rumos da sociedade contemporânea é evidente: não somente alienada, como insinuava Marx, ou reprimida, como pontuava Freud na mesma época, mas também, como queria Weber, sem mística e sem magia, racionalizante e sem heróis.

Marcuse havia colocado que "a industrialização e o capitalismo na obra de Max Weber apresentam-se como questões em dois sentidos: como destino histórico do Ocidente e como destino da Alemanha unificada por Bismarck. Como destino do Ocidente a industrialização e o capitalismo são as realizações decisivas daquela racionalidade ocidental, da idéia da Razão que Max Weber persegue em suas manifestações. Como destino da Alemanha, para Max Weber, industrialização e capitalismo determinam a política do Reich" (Marcuse, 1971, p. 125). Embora Schumpeter compartilhe com Weber a questão do destino histórico do Ocidente, ele via com extremo ceticismo seu desenvolvimento e o que procurava compreender, com perplexidade explícita, era a transformação das forças que lhe deram vitalidade naquelas que condenavam o capitalismo à sua dissolução. Foi com certo pesar que reconheceu que o capitalismo estava datado, não pelas razões keynesianas de um excesso de propensão a poupar, ou pelas razões marxistas de declínio na taxa de acumulação e sim porque, de um lado, ele produz uma mentalidade intelectual e moral hostil a ele próprio e, de outro, pela substituição atrofiante, mas inevitável, do empreendedor pelo burocrata.

A burocratização é parte constitutiva da racionalidade capitalista do empreendimento moderno, "o progresso tecnológico torna-se crescentemente negócio de um time de especialistas treinados" e da função do novo espírito imperante não consta seja inventar qualquer, seja criar condições para que a empresa explore (e, sim) consiste em conseguir que as coisas sejam feitas. Conseqüentemente, o progresso econômico tende a tornar-se despersonalizado e automatizado. A ação individual tende a ser substituída pelo escritório e pelo comitê" (Schumpeter. 1976, p. 132).

Schumpeter percebeu que esse viés burocratizante levaria a que o trabalho fosse disciplinado, hierarquias construídas, atividades decompostas; ele sabia e escreveu que a "visão e personalidade foram expulsas pelo trabalho de escritório especializado e racionalizado" e que tanto o temperamento inovador está contido entre quatro paredes de escritório quanto habilidades e ofícios são destruídos por "mudanças tecnológicas e sociais". A burocratização das atividades produtivas e seu comando por especialistas são o germe de destruição do capitalismo por ele mesmo porque são endêmicos à sua ordem e ao processo de racionalização (e sensaboria) inerente ao seu desenvolvimento e que, mesmo quando inicialmente tendo lhe dado vigor, trar-lhe-ão a morte. De certa forma, pois, e nesse aspecto específico, Schumpeter leva Weber ao seu limite radical.

Uma outra tendência teórica, contudo, pode ser vislumbrada no tratamento das questões relativas à busca de eficiência no trabalho e introdução de métodos racionais de gerência e administração. Essa nova tendência consubstancia-se, por exemplo, na proposta de Braverman contida em seu livro Trabalho e capital monopolista. Nesse texto, embora crescentemente criticado por sua excessiva simplificação, estão contidas algumas proposições esclarecedoras do enfoque que privilegia a imanência da luta de classes no capitalismo como o locus analítico prioritário da compreensão do fenômeno da racionalização gerencial do trabalho moderno.

A preocupação crescente do empreendimento lucrativo com a centralização de comando do capital sobre a organização do trabalho é por Braverman postulada, desde início, como "movimento num meio resistente porque implica o controle de massas refratárias" (Braverman, 1977, p. 68). Para ele, o conceito de controle é o nódulo da questão da organização científica do processo de trabalho contemporâneo: "E o controle é, de fato, o conceito fundamental de todos os sistemas gerenciais, como foi reconhecido explícita ou implicitamente por todos os teóricos da gerência (...) Não era o fato de que a nova ordem fosse 'moderna', ou 'grande', ou 'urbana' que criava a nova situação, mas sim as novas relações sociais que estruturam o processo produtivo e o antagonismo entre aqueles que executam o processo e os que se beneficiam dele, os que administram e os que executam, os que trazem à fábrica sua força de trabalho e os que empreendem extrair dessa força de trabalho a vantagem máxima para o capitalismo" (Braverman, 1977, p. 68-9).

A questão do controle, é verdade, está colocada por todos os envolvidos no debate sobre a organização do trabalho moderno. O que simplificadamente os diferencia está em como o controle é tratado. Um subproduto do processo de racionalização da civilização que se produz concretamente nas oficinas, ou a expressão da vontade política de capitalistas sobre os trabalhadores.

Assim, pois, em um texto sobre eficiência, no qual essa é pensada como o fato mais característico da vida moderna, Daniel Bell reporta-se seguidamente ao problema do controle e, de forma não-inocente, inicia seu argumento sobre a organização do trabalho pelo recurso à prisão panóptica de Jeremy Benthan, na qual "todos os presos passariam a vida em perpétua solidão, sob a vigilância permanente de um guarda, colocado no centro" (Bell, 1980, p. 184). A identificação da fábrica com a prisão, como Bell recorda, era imediatamente realizada pelo pensamento utilitário. Ele o fazia de forma normativa. Bell o faz de forma analítica, tratando a fábrica como um lugar em que o tempo e o esforço são metrificados e sua ordenação imposta mecanicamente. Mas Daniel Bell reconhece que não são apenas razões sociológicas ou políticas que fazem do trabalhador um prisioneiro do cronômetro e da hierarquia, senão a forma com que o capital vem historicamente assegurando seu comando sobre a base técnica na qual opera ou, em suas próprias palaras, trata-se de um fenômeno decorrente de "imperativos peculiares da tecnologia" (Bell, 1980, p. 189).

Mesmo aqueles, pois, que pensam a organização do trabalho racionalizada por uma gerência científica como fenômeno de classe e de constituição do trabalhador coletivo não estão de acordo quanto à sua origem explicativa: hierarquia, controle, segmentação, fragmentação de tarefas, cronometragem são frutos do desenvolvimento tecnológico para alguns e, para outros, da vontade política de controle capitalista e dos requisitos sociológicos de aclimatar a classe trabalhadora ao modo de produção e às formas de exploração endêmicas a ele. A primeira perspectiva está aqui representada pela reflexão de Daniel Bell sobre "eficiência" e os métodos de obtê-la como subprodutos tecnológicos. A segunda perspectiva consubstancia-se no trabalho, sem dúvida estimulante, de Braverman, cuja idéia central - a da desqualificação e degradação do trabalho como forma de "habituação" do trabalhador aos requerimentos políticos de domínio do capital - está realçada de forma inusitadamente esquemática em uma passagem de André Gorz: "a fragmentação infinitesimal de tarefas não é conseqüência de uma tecnologia que se desenvolveu de acordo com suas próprias leis, independentemente de um contexto político e social mas, sim, de uma tecnologia que é desenhada para funcionar como arma na luta de classe, possibilitando que a quantidade de trabalho demandada a cada trabalhador seja 'cientificamente' determinada, de forma a impedir que o trabalhador 'roube' de seu patrão o tempo de fumar um cigarro, ler um jornal ou descansar seu pé por um instante. O trabalho não se fez idiota porque os trabalhadores são idiotas ou porque se pode aumentar o dispêndio eficiente de uma certa quantidade de energia humana transformando-os em idiotas. O trabalho se fez idiota porque os trabalhadores não são confiáveis. Enquanto eles retiverem algum controle sobre seu trabalho, eles são capazes de usá-lo contra seus exploradores" (Gorz, 1978, p. 171).

De forma geral, sem que se esgote a complexidade da literatura a esse respeito, e não obstante o desacordo teórico sobre as relações entre o trabalho e a natureza da sociedade, existe razoável consenso sobre os seguintes pontos:

1. A passagem do sistema manufatureiro para a organização industrial moderna implicou, do ponto de vista do processo de trabalho, fragmentação de tarefas, a progressiva especialização de trabalhadores e, conseqüentemente, redefinição do sentido de sua qualificação.

2. Esse processo significou um crescente controle do capital sobre sua base técnica.

3. A ciência torna-se paulatinamente incorporada à produção.

4. Funções de administração e controle da produção não apenas adquirem realce quanto adquirem independência diante da execução.

5. Ao nível mais genérico, assiste-se a uma ampliação dos modos burocráticos de gestão.

6. Do ponto de vista prático, a burocratização do trabalho implica:

a) perda de significado do tempo entendido como durée: o tempo mecaniza-se, metrificando-se (Taylor);

b) decomposição dos movimentos do ser humano no seu ambiente de trabalho (Gilbreth);

c) hierarquização de tarefas;

d) incorporação da psicologia social como forma de controle das relações de trabalho (Mayo).

7. O trabalho e a civilização tornam-se obssessivos: a ordem é uma forma de compulsão à repetição, pela qual se estabelece, de uma vez por todas quando, onde e como se fará algo, de modo que a dúvida e a hesitação sejam evitadas em todas as circunstâncias semelhantes (Freud).

3. OS EMPRESÁRIOS E A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO NO NASCIMENTO DA ORDEM INDUSTRIAL NO BRASIL

No âmbito da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, constituída em 1827, não era desconhecido o debate sobre requisitos técnicos do trabalho e qualificação do trabalhador para a vida industrial. Embora esse debate tenha sido marginal e travado apenas nas entrelinhas de uma discussão sobre o trabalho agrícola, em 1865 já se podia ler em O Auxiliador da Indústria Nacional que "todas as artes, todos os ofícios têm necessidade do conhecimento das coisas sobre as quais se opera" (apud Carone, 1977, p. 41). Contudo, foi apenas após a fundação do Centro Industrial do Brasil, em 1904, que o debate ganhou corpo.

A idéia que se pretende explorar neste texto é que o debate sobre a organização racional do trabalho teve como personagem inicial, no Brasil, o empresário; o monólogo transformou-se em diálogo, após 1930, com a entrada em cena (nessa peça) do Estado. A forma e a media da encenação deixavam de lado o operariado, mesmo porque, nas condições em que se montava o cenário da industrialização no Brasil, esse tinha muito pouco a acrescentar ao enredo.

De fato, aqui não se conheceu a forma manufatureida de organização do processo de trabalho; o padrão industrial emergente era o da grande indústria e os empresários não enfrentavam nenhum operariado que dispusesse anteriormente de controle significativo sobre o processo de produção. Não existem no país registros de substanciais oposições operárias à introdução de tecnologias novas ou de novos métodos de gerência.

Sob condições de produção fabril e de concentração de grande número de operários no mesmo recinto, erá inevitável que se colocassem problemas da organização da mão-de-obra dentro da empresa. A organização do processo de trabalho nas grandes unidades têxteis que começavam a surgir desde o final do século passado supunha, em primeiro lugar, que trabalhadores aceitassem desempenhar as tarefas que lhes tinham sido destinadas, sem que essa aceitação suscitasse maiores discussões; em segundo lugar, esperava-se que manipulassem os instrumentos de trabalho e matérias-primas com certo cuidado e, finalmente, que obedecessem às ordens de mestres e contramestres quanto à forma específica de desempenhar suas funções. Esse conjunto de disposições por parte do proletariado, relativamente ao seu trabalho, chama por ideologias que justifiquem a autoridade empresarial ou de seus delegados dentro das plantas.

No Brasil, contudo, dadas as condições peculiares de sua industrialização, os protestos operários tendiam a se concentrar nos seus direitos materiais, salários e jornada de trabalho, e a legitimidade de gerentes em gerir, de maneira geral, permanece até hoje inquestionada. Não obstante, desde os primórdios do século assistiu-se a um debate, no interior dos grupos empresariais, a respeito não apenas das melhores formas de administrar um empreendimento, mas, também, sobre justificativas da própria existência de racionalidade na gerência. O argumento que se encaminha neste texto procura compreender essa discussão como uma forma de dar coesão a um grupo social que acabava de se constituir - o empresário industrial - que, paralelamente, legitimava, para a sociedade, o valor social de suas novas atividades. Não por outra razão, pois a questão da administração acompanhava sempre a discussão sobre a riqueza nacional.

"O problema máximo para o futuro dos povos se resume no dilema: produzir ou perecer!

Para produzir, porém, não é mais bastante o trabalho simples, o descuidado, ao Deus dará! Na tremenda luta econômica em que os povos se vão empenhar como reação inevitável à Grande Guerra, que se avultaram nos orçamentos das nações as despesas improdutivas, os que desejarem produzir na acepção econômica da palavra têm de organizar em seus mínimos detalhes o sistema de produção - seja qual for a natureza desta, visando a máxima eficiência na apreciação de todos os elementos."1 1 . Simonsen, Roberto. O trabalho moderno. 1918.

A idéia de riqueza nacional consistia no nódulo justificador e legitimador tanto da atividade industrial, quanto da eficiência na produção.

A indústria como empreendimento destinado ao bem comum era uma concepção que perpassava todo o processo de constituição e consolidação do Centro Industrial. Já nos seus estatutos afirmava-se que:

"Se cada indústria, do ponto de vista técnico, tem seus interesses à parte, há para todos um interesse comum, que cada dia mais se avoluma e que consiste em garantir o consumo inteiro das especialidades que são e devem ser produzidas no pais. Nessa pugna colossal estão atualmente empenhadas todas as nações e nela carecemos também nós, industriais brasileiros, empenhar-nos; mas o primeiro passo a dar nessa obra de verdadeiro patriotismo é fazer convergir todos os esforços para um único ponto, dirigi-los como unidade de pensamento, em obediência a um plano firmemente assentado" (grifo nosso) (Carone, 1977, p. 52).

A defesa da indústria é a defesa da nação. Essa é uma defesa comum a todo empresário, malgrado suas inserções particulares. É na confluência que os industriais ganham coesão e são capazes de elaborar uma linguagem que os identifique como grupo. Em última análise, a busca de sua peculiaridade é o caminho pelo qual construíam sua identidade social. A riqueza nacional funcionava como recurso legitimador de sua historicidade.

Mas a noção de riqueza nacional cumpria também outra função, além da de conferir finalidade utilitária à indústria: em nome dessa riqueza, o trabalho deveria ser racionalizado. Em outras palavras, a indústria somente cumpriria sua razão de ser, a de produzir riqueza, se prevalecessem as regras da administração científica no seu interior; em outras palavras, se, no seu modo de operação, ela fosse eficiente.

John Stuart Mill havia, anos antes, na Inglaterra, advertido que "as relações entre ricos e pobres devem ser apenas parcialmente autoritárias; devem ser amáveis, morais e sentimentais; tutelagem efetiva de um lado, deferência respeitosa e grata de outro. Os ricos devem ser in loco parentis para os pobres, guiando-os e reprimindo-os como se fossem crianças" (Mill, 1965, v. 2, p. 319).

A idéia de que as pessoas pobres eram como crianças e que, como essas, careciam de proteção permeou durante significativo período de tempo o pensamento de industriais no Brasil. Como John Stuart Mill já fizera, Roberto Simonsen, em 1942, afirmaria que "não basta aproveitar a mão-de-obra, tal como esta se apresenta; é mister aperfeiçoá-la, guiá-la, defendê-la contra as agressões de processos defeituosos e insuficientes".2 2 . Roberto Simonsen. Discurso aos engenheiros formandos da Escola de Engenharia Mackenzie. O apelo a esse comportamento paternal fazia-se tanto mais necessário, posto que "não cultivemos a ilusão de uma possível igualdade social e material entre os homens. A hierarquia social que se estabelece em função dos valores individuais nunca poderá desaparecer, em harmonia, aliás, com tudo quanto se observa na natureza".3 3 . Roberto Simonsen. Discurso proferido na Semana da Ação Social no Brasil, setembro de 1942. Cumpria aos industriais, membros dos grupos favorecidos, aliviar a dureza das condições de vida dos operários. Para tanto, contudo, impunha-se o estabelecimento anterior de métodos racionais de produção, de forma a incrementar a riqueza nacional. Somente através desse incremento, trabalhadores poderiam ter diminuída a carga pesada de sua miséria. A organização científica do trabalho, nesse caso, funcionava como meio de elevar a produção, propiciar riqueza e, então, minorar o sofrimento operário.

"Lembrai-vos, porém, que a melhoria das vossas condições, o vosso futuro, o vosso bem-estar, a vossa tranqüilidade só podem repousar no trabalho produtivo e organizado.

O barateamento da produção, em todos os aspectos, precisa e deve ser almejado constantemente no vosso e no nosso interesse.

(...)

Dediquemo-nos, pois, a uma perfeita organização de nossos serviços - onde deverá predominar a disciplina inteligente e consciente, onde imperem os verdadeiros princípios da cooperação cordial entre patrões e operários.

Cuidemos de todos os seus aspectos - desde a execução dos serviços em todos os seus detalhes visando sempre a máxima eficiência, até o exame das condições de conforto e bem-estar dos que trabalham, para que melhor possam produzir.

E os frutos desse modo de atuar conjuntamente todos nós os colheremos. A esfera de nossa ação se distenderá, lucrando até o meio em que vivemos pelos benefícios reflexos que emanarão do grande núcleo de obreiros felizes e organizados que saberemos constituir."4 4 . Simonsen, Roberto. Taylorismo e racionalidade. 1918.

A inspiração taylorista era óbvia, saudavam-se com grande entusiasmo em sucessivas publicações do Centro Industrial do Brasil as inovações que ele trazia quanto à organização do trabalho. Mas, novamente, era Roberto Simonsen que tomava um lugar à frente na campanha para sua introdução: "Há bastante tempo que me domina e preocupa o problema da organização industrial - organização científica, como a denominam os norte-americanos", confessava ele em 1918. No ano seguinte ele afirmava, em discurso de saudação ao presidente da Companhia Construtora de Santos, que "nesse sistema, os fatores tempo, custo, execução e justa paga do trabalho, determinados por métodos científicos, avultam como principais elementos na procura de uma alta eficiência, fim principal que deve almejar (...) o trabalho moderno em todas as suas manifestações".

A preocupação com a gerência científica, por parte de alguns industriais, geralmente era manifestada entre seus pares. Ela aparecia nas reuniões do Centro Industrial, em artigos do Jornal do Comércio, em discursos proferidos em encontros dos próprios industriais. E apenas no interior do processo de formação de uma identidade de classe que ela tem significado e assume características "realistas". A rigor, o tema tinha pouco a ver com a organização da base técnica naquele momento da indústria - um setor cuja importância econômica somente se desvendaria muitos anos após.

Mas havia já, e desde o princípio do século XX, um outro elemento que se fazia presente na constituição de uma consciência burguesa: como atuar diante de um proletariado que tudo fazia prever turbulento? A relação política com o proletariado, então, nunca foi plenamente resolvida e só veio a encontrar a sua solução adequada depois que a decidida intervenção do Estado na questão social rendeu bons frutos.

Trabalhadores fabris claramente não se pronunciavam contra a forma de organização de seu processo de trabalho: suas espasmódicas manifestações se faziam contra a exploração quase absoluta a que estavam submetidos e em geral centravam-se em salários e extensão da jornada. Questões disciplinares quase nunca estiveram em foco, com a notável exceção de protestos e greves femininas contra maus-tratos corporais. Não obstante, o movimento contra os baixos salários e interminável jornada se fez presente e tudo levava a crer em sua intensificação, notadamente a partir de 1917. Nesse momento a questão da "paz social" tornava-se candente entre os industriais e essa não somente era uma questão sobre a qual não se lograva consenso quanto, sobretudo, os dividia do Estado no momento em que esse tomava as primeiras medidas de uma legislação trabalhista. Jorge Street e sua corrente reconhecedora da legitimidade dos sindicatos e associações operárias eram obrigados a assistir ao abandono de companheiros empresários do Centro Industrial do Brasil em protesto contra sua posição; o mesmo Centro Industrial, entretanto, mobilizou-se inteiro contra o projeto sobre acidente de trabalho, do Senador Adolfo Gordo em 1915. Nesse caso, Jorge Street não apenas liderava o Centro como, mais tarde, iria liderar a opinião empresarial contra o Código dos Menores.

Era, pois, complexo e difícil o processo de negociação entre as várias correntes empresariais a respeito da chamada "questão social". E, no seu desenrolar, surgiu, de novo encaminhada por Simonsen, a idéia de procurar resolvê-la através da organização científica do trabalho. Enquanto o Centro Industrial e, posteriormente, o Centro Industrial de Fiação e Tecelagem pronunciavam-se sucessivamente contra as progressivas incursões disciplinadoras do Estado sobre as condições de compra e venda de força de trabalho, afirmando, por exemplo, que a criação do Departamento Nacional do Trabalho "pode ser causa de agitações, dificultando a desejada intensificação do trabalho,"5 5 . Relatório da Diretoria do Centro Industrial do Brasil, 1922. Roberto Simonsen discursava:

"A política da classe trabalhadora tem sido baseada na liberação da produção e na ilimitação de salários; ora, colocando-se os patrões em ponto de vista diametralmente oposto, dá-se o choque de interesses, assim estabelecidos como contrários, resultando na gigantesca luta que estamos presenciado no mundo industrial e que está assumindo gravíssima feição de guerra de classes.

Entretanto, na realidade, esse antigo antagonismo não se justifica, e só se explica por procurarem as duas classes, a todo transe, resultados imediatos, em detrimento dos verdadeiros interesses de toda a sociedade.

De fato, o que o patrão procura é pagar o menos possível por unidade de produção, e o que o operário visa é ser o mais remunerado possível por unidade de tempo; daí a viabilidade em ser obtida a solução harmônica dos interesses das duas classes por investigações científicas das condições reais do trabalho e pela aplicação inteligente das leis econômicas que regem a produção.

(...)

Somente a forma científica de administrar e retribuir o trabalho, em que se beneficiem lealmente as duas classes é que deixará de promover as ações e reações inevitáveis do velho sistema, colocando ambas as partes em íntima cooperação em prol dos seus legítimos interesses" (grifo nosso).6 6 . Roberto Simonsen. Discurso ao presidente da Companhia Construtora de Santos. 1919.

A relação entre a eficiência na produção, o crescimento da riqueza nacional e vantagens pecuniárias para a classe trabalhadora era, por sua vez, e de modo prático, enfatizada pelos industriais Júlio Ottoni, Ildefonso Dutra, Francisco Botelho, Julio Pedrosa, João Ferrer. Esses, em artigo assinado no Jornal do Comércio, em 30 de novembro de 1918, escreviam a partir de sua experiência que "se as fábricas ganharam mais não foi devido à elevação dos preços e sim pela grande intensidade da produção (...) o que (.. .) em conseqüência, deu lugar ao pagamento de salários também extraordinários (...)".

Contudo, se a idéia taylorista da intensificação do trabalho através de métodos da gerência científica do tempo era postulada, também adotaram-se como inspiração alguns princípios fordistas, notadamente aquele que afirmava que "não podereis fazer maior mal a um homem que permitir que folgue nas horas de trabalho". Assim foi que, em nome da racionalidade da produção, ergueram-se protestos empresariais contra a lei de férias e a restrição ao trabalho de crianças e mulheres.

Contra a primeira, argumentava-se que a legislação tratava trabalhadores de forma homogênea, sem aperceber-se de que, na organização do trabalho da moderna indústria, estavam eles segmentados em trabalhadores de escritório e operários. "O empregado de escritório é um intelectual, que trabalha com o cérebro. O operário é um trabalhador braçal, cujo cérebro não despende energias."7 7 . Centro Industrial de Fiação e Tecelagem. São Paulo, jun. 1927. Apud Carone (1977, p. 436). Enquanto o trabalhador de escritório esgotava-se em prazo curto, prosseguia a tese, os músculos e corpo, braços e pernas não se cansam, pois que o cérebro os "aciona à distância". Daí que fosse lógica a concessão de descanso anual aos "intelectuais" mas não aos operários, posto que "é ilógico que o cérebro seja equiparado, na lei, ao não-cerebral - aqueles que nada ou quase nada pedem ao cérebro, a não ser os atos habituais e puramente animais da vida vegetativa."8 8 . Ibid. p. 437. A peroração era acompanhada de um pequeno diagnóstico do que eram os operários na sua relação com o trabalho.

"O operariado brasileiro é pouco eficiente e isso se explica. Ele é um operário ocasional, que muda de profissão diferentes vezes em sua vida (...) O nosso operário não tem amor ao seu ofício, pois que ele não é a finalidade real de sua vida, e não põe no exercício do seu mister aquela alma que o operário europeu, estável, põe no seu.

É ainda pouco destro: a mão se faz em grande parte por hereditariedade e já dissemos que não formamos gerações operárias bem caracterizadas. Pouco destro, ele trabalha com vagar e não conhece aquela febre do trabalho que leva o trabalhador destro a produzir com a intensidade das máquinas."9 9 . Ibid. p. 438.

A partir desse diagnóstico do operário como pouco hábil e moralmente desadaptado à vida fabril; a partir do diagnóstico de seu trabalho como não-cansativo para o cérebro, terminava-se por argüir contra a concessão de férias a ele (mas não ao trabalhador de escritório). Em outras palavras, nas do próprio documento, "o proletariado é, pois, um elemento da coletividade social que as férias estragarão". Nesse sentido, a intervenção de industriais no domínio da organização do trabalho relacionava-se intimamente com sua posição relativamente às medidas de legislação trabalhista. Em nome da eficiência da produção procurava-se produzir um "novo trabalhador", cooperativa e operoso. Qualquer legislação que buscasse garantir-lhe direitos era considerada rompedora do processo de constituição desse novo agente. A argumentação contra a proibição do trabalho noturno distanciou-se apenas levemente da anterior quanto ao ponto central. Embora também reconhecendo que tais restrições consistiam em incentivo à preguiça e peças deseducativas, como no caso da lei de férias, juntou-se, aqui, outro tipo de consideração, diretamente ligada à organização da produção.

"No geral das indústrias existe completa interdependência entre as diferentes seções em trabalho.

Tudo está calculado do simples para o complexo. Uma seção vai servindo à outra, de modo que a matéria-prima bruta vai aos poucos sofrendo transformações sucessivas até que se ultimem todas as operações. Qualquer parada em uma seção repercute na seção que se lhe segue ou na que a precede, formando assim o organismo fabril um todo único.

Não é possível, é mesmo absolutamente impossível trabalhar-se em qualquer seção com parte do pessoal durante seis horas e com o restante em oito horas.

Não é mister ser técnico para compreender esta impossibilidade, pois que a interdependência entre os trabalhadores das diferentes seções existe também para os operadores entre si. Cesse a labuta de uma parte dos operadores de uma determinada seção e pouco depois cessará a labuta dos restantes operadores, pois tudo foi calculado para o trabalho em conjunto e a fusão entre operários e máquinas é estreita."10 10 . Centro das Indústrias de Fiação e Tecelagem. São Paulo, ago. 1927.

Após outubro de 1930, não apenas a reorganização do aparelho de Estado como, sobretudo, a ideologia centralizadora que a presidiu alteraram os caminhos da discussão sobre a organização do trabalho nas fábricas. A racionalização transformou-se num domínio prático e discursivo que contava tanto com o apoio estatal quanto com sua decidida intervenção. Fundaram-se escolas de administração e o ensino técnico passava, na Constituição de 1937, a ser considerado encargo também do Estado, que terminou para regulamentá-lo em 1941. O tom dos empresários, apesar de assustado inicialmente com as medidas na área trabalhista, tornou-se francamente cooperativo com o passar do tempo. Afinal, como dizia Azevedo Amaral, e passaram a acreditar todos:

"(...) quando, logo no início do após-guerra, complexos e extensos problemas econômicos vieram a sobrepujar com sua proeminente significação atual as questões militares que haviam preponderado durante as fases da luta, tornou-se ainda mais evidente que o dinamismo das sociedades contemporâneas necessitava de um órgão de controle que assumisse também a função interventora em múltiplas direções (...).

Muito antes da conflagração de 1914 a experiência da vida industrial já havia sugerido a conveniência da adoção de métodos tendentes a aumentar o rendimento do trabalho e poupar os esforços musculares e, mesmo, mentais, empregados na sua realização. Com a iniciativa de Taylor, começa no terreno prático da organização do trabalho a era da racionalização (...).

Uma vez imposto, pelas lições da experiência da guerra, o valor dos métodos racionalizados na execução de todos os serviços, era inevitável que ocorresse a idéia de estabelecer na ordem econômica e até onde fosse possível, na esfera social, uma coordenação cujos efeitos seriam substituir a desordem ali reinante pela modernização fecunda, que, na prática das atividades produtivas, já dava tão bons resultados (...).

A obra de coordenação econômica e social, cuja inevitabilidade todos passaram a reconhecer como meio de tornar possível uma reconstrução da vida civilizada e o afastamento de perigos sociais, que já se haviam, aliás, tornado catástrofes atuais em alguns países, só podia ser realizada por um instrumento eficaz. Este era o Estado. Pelo desdobramento das funções estatais, pela intervenção do poder público em todas as esferas onde ele se tornasse necessário e mesmo pelas atribuições ao Estado de iniciativas que anteriormente haviam sido consideradas privilégio do empreendimento privado, poder-se-ia realizar o grande trabalho de que literalmente dependia o reerguimento da civilização" (Azevedo Amaral, 1937, p. 12).

4. CONCLUSÃO

O trabalho de cientistas sociais, pelo fato de lidar com relações entre seres humanos, envolve sempre paixão e controvérsia. A discussão sobre o trabalho e os trabalhadores no Brasil foi e provavelmente será sempre, polêmica e emocionada. Meu texto, todavia, trata de um tema que, envolvendo trabalho e trabalhadores, sempre foi, quando o foi, tratado com desinteresse e frieza. A rigor, ele ficou relegado, e ali enregelaram-no, às escolas de administração.

Este texto envolveu-se com um dos aspectos - sua tradução na linguagem empresarial - contido na relação entre trabalhador e seu trabalho. Em outras palavras, procurou-se, aqui, investigar de forma preliminar as razões empresariais que fizeram o trabalho fabril controlado, fragmentado, repetitivo, aborrecido e monótono. Afinal, nesse trabalho, um número substancial de pessoas passa um tempo substancial de suas vidas; pessoas das quais se pode repetir o que sobre elas já observou Aléxis de Tocqueville: "Diariamente ele se torna mais ágil e menos criativo, de forma tal que se pode dele dizer que, à medida que o trabalhador cresce, o ser humano degrada-se."

Vários argumentos teóricos têm sido invocados para a compreensão dessa "degradação": sua inserção no movimento de racionalização e burocratização do mundo moderno; sua condição de subproduto do domínio do capital sobre sua base técnica em momentos de intensificação da concorrência intercapitalista; sua condição de fenômeno político e de dominação burguesa.

Sem negar que qualquer das linhas interpretativas possa responder, em parte, pela compreensão do significado do surgimento, no Brasil, no início do século, de uma linguagem empresarial eficiente, pretendeu-se sugerir outra modalidade de análise. No Brasil, dadas as particularidades conhecidas de seu processo de industrialização, a introdução dessa linguagem não lograva correspondência seja ao desenvolvimento material da indústria, no momento em que se verificou, seja ao padrão de organização e questões mobilizadoras do movimento operário. O texto procurou demonstrar que uma discussão sobre a importância da organização da produção em moldes racionais e científicos ligava-se, mais que tudo, à constituição de uma consciência burguesa. O tema era um dos fios condutores de um debate que jamais extrapolou as fronteiras discursivas dos grupos denominantes: mesmo a admissão do Estado se fez após 1930. Tratava-se muito mais de que racionalizar a produção; tratava-se de racionalizar uma ideologia burguesa industrial. A rigor, a temática, embora relevante em si, tem seu significado ligado, em primeiro lugar, à defesa do industrialismo pela legitimação das atividades industriais como forma de gerar riqueza nacional. Em segundo lugar, apresentava o sentido persuasivo de instrumento de obtenção de paz social no momento turbulento em que, também, se forjava a classe operária e a sua consciência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Stein, Stanley J. Origens e evolução da indústria têxtil no Brasil -1850/1950. Rio de Janeiro, Campus, 1979.
  • *
    A autora agradece a Monica Renai sua colaboração quanto à organização do material relativo aos empresários
  • 1
    . Simonsen, Roberto.
    O trabalho moderno. 1918.
  • 2
    . Roberto Simonsen. Discurso aos engenheiros formandos da Escola de Engenharia Mackenzie.
  • 3
    . Roberto Simonsen. Discurso proferido na Semana da Ação Social no Brasil, setembro de 1942.
  • 4
    . Simonsen, Roberto.
    Taylorismo e racionalidade. 1918.
  • 5
    . Relatório da Diretoria do Centro Industrial do Brasil, 1922.
  • 6
    . Roberto Simonsen. Discurso ao presidente da Companhia Construtora de Santos. 1919.
  • 7
    . Centro Industrial de Fiação e Tecelagem. São Paulo, jun. 1927. Apud Carone (1977, p. 436).
  • 8
    . Ibid. p. 437.
  • 9
    . Ibid. p. 438.
  • 10
    . Centro das Indústrias de Fiação e Tecelagem. São Paulo, ago. 1927.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1985
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