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O sistema japonês de controle de qualidade

NOTAS E COMENTÁRIOS

O sistema japonês de controle de qualidade

José Carlos de Toledo

Professor no Departamento de Engenharia da Produção da Universidade Federal de São Carlos, S.P

Na literatura mais recente da área de administração da produção podem ser encontrados diversos trabalhos fazendo citações sobre o controle de qualidade no Japão; entretanto, de uma maneira geral, estas são superficiais e se limitam apenas a apresentar generalidades, ou mesmo alguns mitos sobre a indústria japonesa. Um estudo mais profundo e criterioso foi realizado por Garvin

O autor inicialmente critica os trabalhos que procuram explicar o desempenho da indústria japonesa, em termos de produtividade e qualidade, a partir de visões estritamente unidimensionais que apresentam respostas genéricas ao nível macro como, por exemplo, o nível de educação, a cultura, o estilo de administração, a política industrial do país, etc. Ou ainda respostas ao nível micro, onde predominantemente atribui-se o sucesso industrial japonês aos Círculos de Controle de Qualidade (CCQ). O autor, em seu trabalho, procura integrar essas duas perspectivas, ou seja, entender como variáveis macro e micro se ajustam, formando um sistema integrado para a qualidade industrial. Com esta perspectiva em mente, realizou uma pesquisa junto a uma indústria japonesa específica, a de aparelhos de ar condicionado. Ela foi eleita por não ser uma indústria de tecnologia de ponta e por não representar um dos produtos carro-chefe da exportação japonesa, como é o caso dos automóveis, televisores e semicondutores. E, portanto, é de se esperar que ela não receba um tratamento prioritário por parte do setor governamental.

Com a perspectiva de buscar explicações para a qualidade da indústria japonesa e de tecer comparações com a indústria americana, foram pesquisadas sete empresas japonesas e 11 empresas americanas do setor, as quais respondem por aproximadamente 90% das exportações no ramo de aparelhos de ar condicionados dos respectivos países.

O desempenho em qualidade das empresas deste se tor foi medido a partir de três parâmetros básicos:

- os índices de rejeição no recebimento de materiais e componentes;

- os índices de falhas internas, ou seja, defeitos observados antes do produto final deixar a fábrica, tanto durante a fabricação como durante a montagem;

- os índices de falhas externas, ou seja, defeitos observados no campo e medidos pelo número de solicitações de reparos ocorridos durante o primeiro ano de uso do produto.

Para cada uma dessas medidas o desempenho das empresas japonesas foi superior às americanas, com taxas médias de falhas das empresas japonesas em alguns parâmetros chegando a ser de 17 a 70 vezes inferiores. Além disso, mesmo a empresa japonesa de pior desempenho teve uma taxa de falhas global menor do que a metade da empresa americana de melhor desempenho.

As empresas japonesas também demonstraram desempenho mais consistente, sendo o sucesso em um dos parâmetros normalmente associado com o sucesso em outros, demonstrando uma estratégia mais integrada em relação aos vários aspectos da administração da qualidade.

No caso particular dessa indústria, algumas suposições tradicionais sobre a estrutura industrial japonesa não se mostraram verdadeiras. A especialização da indústria, ou baixa diversificação das linhas de produtos, que pode permitir uma redução das variabilidades e, conseqüentemente, um maior controle da qualidade através de uma maior estabilidade do processo, não é maior nas empresas japonesas, uma vez que o número de modelos e de componentes, bem como a sazonalidade da produção, foram maiores nas empresas japonesas do que nas americanas, sendo que nas empresas japonesas havia maior estabilidade apenas em termos da mão-de-obra empregada. Além disso, verificou-se que outras suposições também comuns sobre a indústria japonesa, do tipo "relacionamento de longo prazo entre empresas e fornecedores"; "desenvolvimento de fornecedores únicos"; "paralisações freqüentes das linhas de montagem para corrigir problemas de qualidade"; "a inspeção durante o processo é responsabilidade dos trabalhadores da produção, com a redução do número de inspetores", nem sempre correspondiam à realidade dessa indústria japonesa. Observou-se que nestes aspectos coexistiam as mais diversas praticas entre as empresas japonesas, enquanto havia regularidade e aproximação no desempenho em qualidade das mesmas. Essas práticas, portanto, não poderiam ser consideradas como condições necessárias para o desempenho superior em qualidade.

Garvin identifica quatro categorias de fatores, partindo-se de um nível micro para um nível macro, que contribuiriam para o desempenho superior em qualidade da indústria japonesa:

1. controle do processo e administração da produção;

2. políticas, sistemas e assessoria de qualidade;

3. atitudes da administração;

4. políticas governamentais.

Juntos, eles constituiriam um sistema de interseção mútua para a administração da qualidade. Vejamo-los em detalhe:

1. CONTROLE DO PROCESSO E ADMINSTRAÇÃO DA PRODUÇÃO.

Muitas das vantagens em qualidade parecem advir de uma bem-sucedida política t administração e controle do processo produtivo:

- rigorosos limites de controle são estabelecidos usando-se técnicas estatísticas;

- sistemas automatizados d: armazenagem e movimentação de materiais garantem a proteção do produto em processo e na armazenagem;

- programas de manutenção preventiva e também a alocação e treinamento da mão-de-obra recém contratada procuram reduzir tais fontes de variabilidade;

- grande número de inspetores acompanham o processo, analisando os desvios não-esperados;

- participação da mão-de-obra da produção no esforço de controle e melhoria da qualidade (via CCQ);

- extensivo levantamento e compilação de dados sobre o desempenho em qualidade (informações sobre os defeitos são compiladas diariamente e são analisadas suas tendências), os quais são amplamente disseminados por todas as divisões e setores das empresas.

Nas empresas japonesas o tratamento dado às informações sobre defeitos e qualidade é no sentido de detalhar esses dados e repassá-los a cada setor de produção e a cada posto de trabalho, enquanto nos EUA, pelo contrário, o tratamento é no sentido de agregar e resumir tais dados para serem repassados às administrações médias e superiores. Ou seja, enquanto nas empresas japonesas as informações sobre qualidade eram repassadas a cada trabalhador individual, nas empresas americanas o acesso a tais informações era restrito à administração superior.

2. POLÍTICA, SISTEMAS E ASSESSORIA DE QUALIDADE

Pode ser constatado também que enquanto nas empresas americanas os departamentos de controle da qualidade desempenhavam um papel de policial da produção, nas empresas japonesas a responsabilidade final pela qualidade era incorporada pelos próprios trabalhadores da produção, e os departamentos de controle de qualidade desempnenhavam funções principalmente de coordenação, consultoria e de tratamento de informações, processando e interpretando dados sobre a qualidade para a produção e outras áreas da empresa. Os protótipos, as unidade de produção piloto e os produtos acabados também eram testados e analisados muito mais exaustivamente. Enquanto nas empresas americanas os dados sobre falhas internas e falhas externas eram tratados por grupos diferentes - as falhas internas eram tratadas pelo departamento de controle de qualidade e. as externas pela assistência técnica, que era uma subdivisão do departamento de marketing - nas empresas japonesas ambos os dados eram tratados pelo controle da qualidade, permitindo, a partir desta interação, um ganho efetivo em termos de conhecimento e domínio dos problemas da qualidade. Também havia um acompanhamento e feedback contínuo dos defeitos de campo dos produtos vendidos, possibilitando às empresas respostas mais imediatas. Como conseqüência desse esforço mais intenso de controle, e ao contrário do que se propaga, a percentagem da mão-de-obra do controle da qualidade, em relação à mão-de-obra total, era quase o dobro no Japão, (11,6% versus 6,5% nos Estados Unidos), relação esta que na realidade seria ainda maior, pois nas empresas japonesas os inspetores de linha não eram considerados como mão-de-obra do controle de qualidade, mas sim da produção. Deve-se ressaltar ainda que os níveis de automação da produção entre as empresas japonesas e americanas eram bastante próximos, o que torna estes números bastante significativos.

3. ATITUDES DA ADMINISTRAÇÃO

Os projetos da área de qualidade eram privilegiados e considerados prioritários pela administração superior. Os esforços intensivos de inspeção, muitas vezes redundantes, o projeto do produto para uma vida média superior à esperada e exaustivos estudos de pesquisa de mercado eram apoiados pela administração. Ao contrário das empresas americanas, que trabalham com o conceito tradicional de nível ótimo econômico para os investimentos em qualidade, nas empresas japonesas a administração parte do pressuposto de que melhoramentos contínuos na qualidade são não só tecnicamente possíveis, como economicamente desejáveis, sendo que o elemento indutor para a busca de melhorias na qualidade dos produtos nas empresas era a busca de reduções nas taxas de falhas e não dos custos. Apesar de um aparente irracionalidade, esta abordagem mostrou-se mais eficiente, pois, enquanto nas empresas japonesas da indústria estudado o custo total da qualidade (que engloba tanto os custos de controle da qualidade quanto os custos de falhas e perdas) variava em torno de 1,3 % do faturamento, nas empresas americanas este custo variava de 2,8% a 5,8%.

4.POLÍTICA GOVERNAMENTAL

O apoio governamental ao desenvolvimento da qualidade industrial no Japão tem se dado a partir de três frentes.

O Instituto de Padronização Industrial (JIS), vinculado ao Ministério da Indústria e Comércio Internacional (Miti), atua através da definição de normas e padrões e ainda da certificação da qualidade. A diferença em termos de certificação da qualidade é que enquanto nos EUA esta se aplica aos produtos, no Japão ela se aplica principalmente ao processo produtivo.

As empresas também são assessoradas pela Divisão de Engenharia Industrial do Miti, através do acesso a bancos de dados estatísticos sobre a confiabilidade dos diversos componentes e insumos utilizados pelas indústrias e dos produtos acabados.

Os desafios e o prestígio representados pelo Prêmio Deming de Qualidade, oferecido pelo governo japonês às empresas detentoras de rigorosos padrões de qualidade, bem como outros títulos oferecidos às empresas, numa escala crescente de valores como, por exemplo, o All Japan Quality Award, também se constituem em importantes fatores motivacionais controlados pelo governo para o aprimoramento da qualidade.

A lição que se pode tirar deste trabalho é que não existe nenhum segredo único e simples por trás do sucesso da administração da qualidade no Japão; ao contrário, este resulta de um amplo e integrado sistema de políticas, práticas e ações. Assim, as soluções simplistas para a questão da qualidade que são advogadas por consultores industriais aqui no Brasil como, por exemplo, a proliferação de CCQ não poderiam apresentar os mesmos resultados que se pode esperar de uma estratégia ampla e integrada para o problema, como ocorre no Japão. Essas soluções, portanto, devem ser analisadas criticamente.

Embora grande parte das causas da produção de peças e produtos defeituosos resida no processo de trabalho, ou seja, na própria intervenção do operário sobre a matéria-prima, produtos e equipamentos, é necessário um amplo equacionamento do problema da qualidade, que envolva aspectos não só internos mas também externos às empresas, em face dos inúmeros fatores que determinam a qualidade final de um produto. As causas dos problemas da qualidade se encontram amplamente distribuídas, tanto ao nível do sistema social quanto ao nível do sistema técnico da empresa, e não basta cuidar apenas de um ou de outro aspecto para superá-los. Somente os esforços visando garantir a qualidade em todos os níveis da empresa, bem como no seu meio externo, serão eficientes.

Depreende-se ainda da experiência japonesa que os investimentos em qualidade apresentam resultados apenas a médio e longo prazos, e que os mesmos seriam, entretanto, bastante compensadores. O problema da qualidade e os investimentos necessários, portanto, não se coadunariam com uma análise que se preocupasse apenas com retornos a curto prazo.

  • 1 Garvin, D. A. Japanese quality management. Columbia Journal of World Business, 19(3): 3-12, 1984.
  • 1
    e permite esclarecer algumas falsas suposições sobre o controle de qualidade no Japão, bem como identificar os fatores que preponderantemente contribuem para diferenciar a qualidade do produto japonês em relação a outros países.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1986
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