Acessibilidade / Reportar erro

Giannotti, J.A. A universidade em ritmo de barbárie

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Denice Barbara Catani

Professora assistente na Faculdade de Educação da USP

Giannotti, J.A. A universidade em ritmo de barbárie. São Paulo, Brasiliense, 1986. 113p.

Raramente se falou tanto, entre nós, a respeito da "crise da universidade". Os estudantes contestam o ensino que recebem, os professores sentem-se pouco satisfeitos com suas funções e salários e a sociedade faz recair sobre a instituição universitária a expectativa de contribuições decisivas para a solução de seus problemas. Na tentativa de compreender esta situação, pelo menos duas questões se impõem: primeiramente, a de se saber quais são os limites possíveis para a atuação da universidade, numa sociedade como a nossa, e em segundo lugar, a de indagar o que está ocorrendo, de fato, no interior das escolas superiores de modo a permitir que se fale em "crise"

José Arthur Giannotti propõe-se a examinar tais questões, levando em conta suas próprias idéias e anseios com relação à vida universitária, da qual sempre participou, e a sua experiência enquanto membro da comissão que estudou um novo estatuto para a Universidade de São Paulo e do grupo nomeado pelo MEC para formular uma nova política para a educação superior brasileira. Dividido em seis capítulos, A universidade em ritmo de barbárie começa por justificar seu título: o que são os "tempos bárbaros"? Tema do primeiro capítulo, este problema é apresentado a partir das confusões teóricas que pode engendrar, daí a observação do autor: "A barbárie não seria (...) retroceder ao estado dos selvagens, à abolição de qualquer legalidade, mas à dissolução dela, sua transformação em mero expediente de domínio, instrumento adhoc de controle social" (p. 10).

Pergunta-se o autor se o Brasil dos últimos tempos não seria a encarnação perfeita desse estado.

Como se traduz a experiência da universidade em "tempos bárbaros"? "A universidade moderna configura uma enorme máquina, altamente sofisticada e complexa, que engole e produz saberes, sábios e sabidos. Cada aula, cada artigo, cada lição se integra nesse corpo que respira para manter sua longa letargia" (p. 22). Letargia esta, embalada no caso brasileiro pela "carência de tradição, a gigantesca expansão da rede universitária durante a década de 70, finalmente, o peso do autoritarismo dos últimos anos". A partir dessas constatações, o autor propõe-se a localizar origens da "crise" nas características da vida da universidade em nosso país, como, por exemplo, a maneira pela qual esta instituição estabeleceu "um duplo jogo de resistência e convivência com o autoritarismo", nos anos subseqüentes ao golpe. E reconhece o fracasso da universidade brasileira ao colaborar para a estruturação da tradição científica no país formando "bons pesquisadores, competentes e capazes de selecionar áreas estratégicas que lhes permitam aumentar as chances de concorrer com os estrangeiros mais ricos (contribuindo para a organização de) uma infra-estrutura, duma organização, duma segunda natureza apropriada à prática científica" (p. 31).

A questão seguinte, no livro, é a de mostrar como a universidade vem funcionando enquanto escola: por que razões se supõe ser necessário ensinar desde o início "a prática da ciência e treinar para a descoberta"? Será que não se descuida, assim, do propósito de permitir o domínio de vários saberes e técnicas essenciais à invenção? Qual é a suposição a sustentar essa tendência? Para o autor, é importante lembrar a maneira pela qual se têm concebido as relações entre duas das funções da universidade: a docência e a pesquisa, que ele próprio entende possuir pontos de interseção e separação nem sempre bem divisados de modo a orientar a organização dos cursos que preparam pesquisadores e professores.

Um outro aspecto merece atenção: a questão da organização de cursos, a demanda de diplomas e a realidade do mercado de trabalho; as expectativas que recaem sobre a instituição universitária devem ser vistas com cautela, pois "o treinamento se faz tanto na escola, como no local de trabalho. Naquela, cada indivíduo procura obter uma educação formal mínima, dominar técnicas simbólicas e corporais que o tornem flexível e adaptável a uma gama muito ampla de tarefas. Num mundo em que as profissões são muito lábeis, criando-se a todo instante caminhos imprevisíveis, somente o planejador obcecado pode imaginar uma estreita correlação entre a estrutura da universidade e a estrutura do mercado de trabalho" (p. 38).

Uma dimensão crucial da "crise" da universidade, a qualidade do trabalho que ela vem desenvolvendo, é analisada por Giannotti, partindo do fato de que esta tem deixado de lado a verificação do valor da sua própria atividade e produção. Diz ele: "A universidade é o paraíso das classes médias, o lugar por excelência de suas práticas, o terreno onde se articulam seus ideais. Duma maneira muito peculiar combina o fazer e o fazer de conta, tanto a prática do conhecimento, como o conhecimento da prática. Escapando dos procedimentos socialmente objetivos de mensuração, transforma a docência, o aprendizado e a pesquisa numa dança ao mesmo tempo inútil e formadora, vazia e cheia de significados sociais" (p. 46). E é justamente esta questão, da verificação da produção da universidade, que hoje tem sido mais debatida. A maioria dos envolvidos na discussão concorda em que esta verificação não tem sido levada a efeito. As opiniões divergem, no entanto, sobre as formas pelas quais isso deveria ou poderia ocorrer, sem que se exerça um efeito de falsa demonstração de serviços ou um controle ditatorial sobre professores e funcionários, no interior de cada instituto ou escola da universidade. Critérios de avaliação do trabalho universitário têm sido exaustivamente discutidos e há também quem ponha em dúvida a própria exeqüibilidade de uma verificação dessa natureza, que seja significativa (é o caso expresso no artigo do Prof. G. Lebrun Da rentabilidade, publicado pela Folha de S. Paulo, em 31 de agosto de 1986). Universidade em ritmo de barbárie não chega a discutir todas as implicações dessa proposta.

Temas como a autonomia da universidade, democratização, ensino público e privado e a questão da cultura dependente são objeto de exame pelo autor, que fornece assim, como se ilustrou, um quadro realista das limitações e do alcance da ação da universidade brasileira hoje, fornecendo simultaneamente dados sobre a vida destas instituições e argumentos para que se pense sua transformação nos referenciais da sociedade atual. Todas estas razões e a argúcia com a qual os problemas são analisados tornam, portanto, o livro uma leitura altamente recomendável.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 1986
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rae@fgv.br