Acessibilidade / Reportar erro

Redes organizacionais e estado amplo

ARTIGO

Redes organizacionais e estado amplo* * O autor agradece a Maria Ester de Freitas e Allain Joly, cujos trabalhos finais da disciplina Desenvolvimentos da Teoria das Organizações, por ele administrada, foram sumamente importantes para este artigo.

Fernando Cláudio Prestes Motta

Professor titular no Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da EAESP/FGV

1. INTRODUÇÃO

A teoria organizacional passa por uma evolução a partir do final da década de 60 até nossos dias, que, para determinados fins, pode ter fixado seu marco inicial na obra de Lawrence e Lorsh.1 1 Ver Lawrence, Paul & Lorsh, Jay W. Organization and environment. Cambridge, Harvard University Press, 1967; Lawrence, Paul & Lorsh, Jay W. Developing organizations: diagnosis and action. Massachusetts, Addison-Wesley, 1969.

Esses autores, baseados em suas pesquisas, concluíram que diferentes situações com que se defronta uma empresa podem acarretar variações estruturais e processuais no seu interior.

Suas pesquisas de campo em 10 empresas dos Estados Unidos, nas áreas de containers, alimentos empacotados e plásticos, levaram-nos à construção de um modelo a que chamaram de diferenciação e integração. O fundamental de sua amostra era o fato de que as empresas funcionavam em ambientes dotados de características muito diversas.

O trabalho de Lawrence e Lorsh tem como marco teórico o modelo do sistema aberto, que por si já implica a noção de eqüifinalidade, isto é, de que não existem maneiras certas únicas para a administração e a organização de atividades. Assim sendo, sua orientação vol tou-se para as características organizacionais exigidas de acordo com a operação da empresa num ambiente dotado de certas especificidades. A idéia central é que diferentes exigências ambientais implicam num determinado nível de diferenciação entre os vários grupos internos à empresa. Tal diferenciação refere-se, antes de mais nada, às características que cada grupo deve assumir para tornar-se capaz de um de sempenho eficaz nas suas transações com setores diferenciados do ambiente total da empresa. Assim, parte-se da verificação de que para cada setor da empresa há um setor mais relevante do ambiente total. Há setores da organização que transacionam com setores ambientais nos quais o nível de certeza quanto às informações que obtém é alto. Outros transacionam com setores ambientais nos quais o nível de certeza quanto às informações é mais baixo. Decorre disso que há casos de empresas que operam em ambientes onde há uma certa homogeneidade no nível de certeza quanto às informações advindas de seus vários setores. Dessa forma, seguindo o modelo de Lawrence e Lorsh, é possível que mercado, tecnologia e ciência possam ser semelhantemente estáveis ou ainda se melhantemente dinâmicos. Por sua vez, é possível que haja uma situação diversa, em que varie o nível de certeza entre os setores ambientais e, portanto, haja disparidade em seu dinamismo ou estabilidade.

No primeiro, caso, a relativa homogeneidade ambiental exige da empresa uma certa semelhança no que diz respeito à estrutura, às práticas administrativas e à organização dos membros em suas diversas unidades. No segundo caso, a exigência é de uma maior diferenciação nessas dimensões, o que termina geralmente também por implicar diferenças nas formas de pensar, nos valores e nos comportamentos dos membros. Assim, haveria tipos de personalidade mais adequados a níveis maiores ou menores de certeza.

Considerada, pois, a diferenciação interna como algo que decorre de exigências ambientais, surge também a necessidade de se considerar o nível de integração interna que as mesmas exigências acabam implicando. Os autores assumem a existência de uma forte relação entre diferenciação e integração, no que se refere ao fato de que quando a diferenciação exigida é alta, a integração é mais difícil e complexa do que quando é baixa, si tuação em que os meios de integração podem ser mais simples e tradicionais.Dessa forma, nos casos em que as estruturas, as práticas administrativas e as orientações dos membros são muito diversas, surge a necessidade de desenvolvimento de sistemas de coordenação, que podem incluir coordenadores individuais, comitês interdepartamentais ou até unidades departamentais integradoras. Quando, ao contrário, existe uma maior uniformidade nas dimensões referidas, a hierarquia tradicional pode ser suficiente para a integração. O modelo de diferenciação e integração implica que muitas organizações trabalhem internamente em níveis de rigidez ou flexibilidade estrutural, processual e comportamental diversos, enquanto outras trabalhem em níveis uniformes, o que implica níveis de diferenciação e integração adequados às exigências ambientais. Nas pesquisas de Lawrence e Lorsh nas indústrias norte-americanas de containers, plásticos e alimentos empacotados, ficou patente que enquanto as empresas bem-sucedidas do primeiro tipo de produtos tendiam a uma alta homogeneidade, as do segundo tendiam a uma alta heterogeneidade, caracterizando-se as do terceiro como intermediárias, o que levava a diferentes configurações de diferenciação e de integração internas. Outra variável considerada foi a estrutura de poder interno a essas organizações, que refletia o fato de que havia sempre um subsistema líder que transacionava com o setor ambiental mais relevante ou vital para a organização como um todo. Dessa forma, pesquisa e desenvolvimento apareciam como subsistema líder quando o ambiente científico surgia como o mais relevante; vendas lideravam quando o ambiente mercadológico assumia essa condição e, finalmente, produção liderava quando o setor ambiental da tecnologia era o mais vital.

Para alguns estudiosos da teoria organizacional, o trabalho de Lawrence e Lorsh constitui o final de uma primeira etapa da aplicação do modelo do sistema aberto . Os anos 70 e o início dos anos 80 revelariam uma tendência diversa, chamada sistema aberto - agente social.2 2 Ver Peter, Thomas J. & Waterman Robert H. In search of excellence. New York, Harper & Row, 1982.

James March e Karl Weick seriam autores significativos dessa fase, que procurariam suplantar a noção de agente racional, substituindo-a pela de agente social. Suas idéias estariam comprometidas com o pressuposto de que ambientes se tornam mais e mais turbulentos, ou seja, mais e mais incertos.

A visão do ambiente das organizações é a do império da desordem, o que levaria a considerar os participantes da organização em toda a sua complexidade de agentes sociais dotados de contradições, absurdos, idiossincrasias, forças e fraquezas. O entendimento da complexidade organizacional implicaria a percepção do dinamismo das forças internas, inclusive dos meios e fins de organização, e das forças ambientais externas.3 3 Ver Scott, W. Richard. Theoretical perspectives. In: Meyer, Marshall W. et alii. Environments and organizations. São Francisco, Jossey-Bass, 1978. Isto, por sua vez, levaria à proposta da redução radical ou mesmo do fim do formalismo nas organizações e da colocação no centro dos problemas organizacionais da questão da mudança e da iniciativa individual.

A teoria das organizações, aprisionada desde o início do século pelas metáforas militares, precisa, segundo Weick, abandoná-las para pensar com autonomia e inteligência os problemas colocados pela administração atual, deixando de lado os antigos procedimentos baseados na disciplina e no controle militares. Tanto para Weick quanto para March, o novo modelo proposto incorpora traços tidos tradicionalmente na conta de irracionais nos meios empresariais e organizacionais em geral, parecendo ameaçadores para os executivos formados na velha tradição.

A proposta é a de uma flexibilidade maior nas estruturas, nos processos e nas orientações organizacionais, flexibilidade esta que implica o deslocamento das metáforas militares para metáforas novas vindas do iatismo, da fantasia, das estações espaciais, dos esgotos, das tribos selvagens, etc; que pressupõem a mudança continuada e a adaptabilidade.4 4 Ver March, James G. The technology of foolishness. In: Leavitt, Harold; Pondy, Louis R. &Bojie, David M. ed. Readings in managerial psychology. Chicago, University of Chicago Press, 1980; March, James G.&Olsen, JohanP./4m6/ guity and choice in organizations. Bergen, Universitets Forlaget, 1976; Weick, Karl. The social psychology of organizing. Massachusetts, Addison-Wesley, 1979; e Weick, Karl W. Educational organizations as loosely coupled systems. Administrative Science Quarterly, Ithaca, 21 (1) 1976.

Não há nessas visões nenhuma ruptura com a abordagem sistêmica tradicional. A novidade está especialmente na importância dada à dimensão simbólica, à cultura organizacional e no papel conferido ao administrador, enquanto seu modelador e delineador, e seus desenvolvimentos. Dessa forma, a criação e a manutenção de valores compartilhados aparecem como condição de êxito da organização, algo que Marx Pages e seus colaboradores analisaram criticamente em L 'emprise de 1'organisation, fruto de pesquisa na sucursal francesa de uma grande empresa multinacional.5 5 Ver Pages, Max et alii. L'emprisede I'organisation. Paris, Presses Universitaires de France, 1979.

Um número muito grande de trabalhos na área organizacional envolve-se, assim, com a problemática da cultura organizacional nessa década de 80,6 6 Ver, por exemplo, Bolman, Lee & Deal, Terence. Modern approaches to understanding and managing orgnizations. Sá Francisco, Jossey-Bass, 1985; Schein, Edgard. Organizational culture and leadership, San Francisco, Jossey-Bass, 1985; e Smircich, Linda, Studying organizations and cultures. In: Morgan, Garethed. Beyond method: strategies for social research. London, Sege, 1983. o que talvez se relacione com as exigências da automação (ou seja, dos sistemas integrados de produção, do gigantismo organizacional), com as realidades e mitos da empresa japonesa, com o alto nível de conflito social na sociedade contemporânea, bem como as demandas de cooptação e as crises de legitimidade das empresas capitalistas.

De um modo geral, podemos afirmar que o modelo do sistema aberto permitiu à teoria organizacional pensar não apenas a questão da integração e diferenciação a nível de uma única organização, mas também a das relações entre organizações no capitalismo avançado, da mesma forma que os estudos sobre cultura organizacional, ao tratarem do nível simbólico nas instituições burocráticas, refletem a necessidade de modos de interpretação da realidade e de comportamentos mais uniformes nesse estágio do sistema econômico que vivenciamos.

Entendo que isto fica muito claro na tendência metodológica que prevalece nos Estados Unidos nesta década, a análise de redes sociais aplicada a organizações, que se volta não para a questão da otimização de uma organização, mas para a otimização de uma determinada população de organizações. Tal tendência caminha pari passu com a idéia de aplicar à sociedade como um todo as idéias da chamada teoria X, que divulga no Ocidente aspectos talvez mitificados da realidade japonesa.7 7 Boa parte dessa introdução baseia-se em Motta, Fernando C. Prestes. Teoria das organizações: evolução e crítica. São Paulo, Pioneira, 1986, 35-40.

Meu objetivo aqui é explorar a hipótese de que a análise de redes sociais aplicada às organizações, ou seja, o próprio tratamento de redes organizacionais, reflete, no plano ideológico, a hegemonia do Estado Amplo no capitalismo avançado, razão pela qual tratarei de expor algo a respeito da análise de redes e da questão do Estado Amplo.

2. AS REDES ORGANIZACIONAIS

A análise de redes sociais é aplicada a diversos níveis de complexidade social, coerentemente com as tradições da sociologia funcionalista norte-americana. Na pesquisa antropológica, Edward J. Jay define uma rede como a "totalidade de todas as unidades conectadas por um certo tipo de relacionamento" ,8 8 Jay, Edward J. The concepts of "field" and "network" in anthropological research. Man, 64:138. In: Aldrich, Howard & Wheten, David A. Organizations-sets, action-sets and networks: making the most of simplicity. In: Nystrom, Paul C. & Starbuck, William H., ed. Handbook of organization design. London, Oxford University Press, 1981. definição bastante geral para aplicar-se a vários níveis de fenômenos. Partindo dessa definição, Aldrich e Wheten irão aplicar a construção de uma rede pelo encontro "das ligações entre todas as organizações numa população em estudo, sem que seja levado em conta o modo pelo qual a população está organizada em conjuntos de organizações ou conjuntos de ação. Dado um sistema dotado de limites, os investigadores identificam todas as ligações entre os elementos na população no interior desses limites".9 9 Aldrich, Howard & Wheten, David A. Organizations-sets, action-sets, action-sets and networks: making the most of simplicity, op. cit. p. 387.

Na verdade, o uso da análise de redes não é novo no estudo das organizações. Entretanto, sua aplicação mais efetiva tornou-se possível com o advento dos computadores de segunda geração, que tornaram mais fácil a utilização de modelos complexos e sofisticados na análise de redes onde os agentes sociais ou atores são muitos. Assim, muitos estudiosos das organizações como Bacharach e Lawler, Tichy, Pfef fer e Perrow têm adotado uma abordagem de análise de redes em trabalhos teóricos. Porém, a pesquisa empírica é escassa, embora haja trabalhos recentes, da década de 80 que utilizam essa metodologia, como de Bojea e Whetten; Tichy, Tushmann e Frombrun; e Van de Ven e Ferry, conforme nos relata Reed Nelson.10 10 Ver Nelson, Reed. O uso da análise de redes sociais no estudo das estruturas organizacionais. Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 24 (2): 150, out-dez. 1984.

De qualquer forma, a acreditar no que Perrow parece sugerir, "as descobertas não são muito diferentes daquelas que a análise convencional pode prever com menor esforço".11 11 Perrow, Charles. Complex organizations: a critical essay. ed Illinois, Scott Foresman, 1979. p. 226; e ver para as demais considerações do parágrafo, do mesmo autor, La théorie des organisations dans une société d'organisations. In: Francine, Séguin-Bernard&Chanlat, Jean-François. L'analyse des organisations, une anthologie sociologique. 1.1 : Les théories de l'organisation. St. Jean-sur Richelieu, Prefontaine, 1983. p.461-71. Na realidade, os modos de coordenação atuais ainda são responsáveis pelo êxito da maior parte das organizações, mesmo quando se trata de modos de coordenação informal, sem que seus administradores precisem recorrer a um instrumental muito elaborado como o oferecido pela análise de redes sociais. Apesar disso, a análise de redes sociais e as técnicas quantitativas a ela associadas parecem ser, de fato, muito ulilizadas nos Estados Unidos. Para Marcus, a análise das redes sociais aplicada às organizações é o estudo das conexões entre elas, dada uma organização focal. Dessa forma, é possível a observação da freqüência das comunicações entre elas, bem como da influência exercida pela organização focal sobre as demais, e das várias correlações entre variáveis de interesse. A amplitude pretendida pela análise leva também a comparações entre unidades, organizações e sociedades diversas, em termos de uma configuração total assumida.12 12 Ver Marcus, Philip M. Redes sociais e organizações complexas. Revista Brasileira de Administração da Educação, Porto Alegre, 2 (2): 84-5, jul/dez. 1984. É importante observar que a análise permite evidenciar a distribuição desigual de poder no interior da rede, o domínio de algumas organizações sobre outras, através do controle de informações e recursos, ou ainda o fato de as organizações dominantes definirem canais de comunicação, transferirem recursos e estabelecerem padrões de ação para outras unidades constitucionais da rede. Para Stern, a unidade de análise é a totalidade da rede, a partir da hipótese de que as relações entre os atores são passíveis de representação por uma série de laços.

A rede constitui-se, portanto, das unidades organizacionais e das ligações que existem entre elas. Para Stern, as características estruturais correntes são tão responsáveis pela atividade de uma rede quanto o desenvolvimento histórico das ligações existentes entre as organizações integrantes, razão pela qual advoga uma perspectiva histórica na análise de redes, o que de fato, é incomum.13 13 Ver Stern, Robert. The development of an interorganizational control network: the case of lntercolegiate Athletics. In: Administrative Science Quarterly, Ithaca, Cornell University, v. 24, June 1979.

De uma forma geral, parte-se sempre de uma organização focal à qual as demais aparecem conectadas e, a partir disso, estudam-se esses tipos de conexão. Para a investigação das unidades locais, o parâmetro mais utilizado é o da centralidade. Esse parâmetro é, em geral, "avaliado através da menor distância para se alcançarem as outras, ou pelo menor número de conexões".14 14 Ver Marcus, Philip, op. cit. p. 88. Isto significa que quanto menor for a distância entre a unidade focal e as demais, maior a integração da rede. As ligações referem-se ao caráter ou natureza das conexões existentes entre as unidades que compõem a rede. São essas ligações que a análise investiga. Elas podem ser firmes e estreitas, ou difusas, frouxas e folgadas, sendo, em geral, definidas em termos do grau em que as ocorrências em um elemento da rede são sentidas pelos demais. As ligações difusas, frouxas ou folgadas referem-se a mudanças em um elemento que não se correlacionam de forma perfeita com mudanças em outros elementos. Tais ligações permitem maior autonomia, isto é, atendimento às condições locais sem ameaça na estabilidade.15 15 Ver Stern, Robert N. op. cit.

Aldrich salienta que uma rede de organizações assume o máximo de estabilidade "quando as relações entre as organizações são de caráter múltiplo, mais do que voltadas para um único propósito, cada relação dual é altamente estável, e as relações instáveis têm pouco, se têm algum, efeito sobre as outras relações (...) Uma rede na qual as relações inter-organizacionais são relativamente independentes através de pares de organizações e, por definição, um sistema de acoplamento frouxo, e há muitas razões para se esperar que a maioria das redes caia nessa categoria".16 16 Aldrich, Howard E. Organizations and evironments. Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1979. p 333.

Essa noção de acoplamento frouxo é utilizada por Karl Weick, quando estuda as instituições educacionais e, de certa forma, está na base de toda a teoria organizacional convencional contemporânea. Entretanto, a teoria assume que redes montadas na dependência apenas de ligações frouxas tendem a apresentar uma fragilidade grande, o que, em certos casos, significa que relações informais não podem prescindir de relações formais.

O grande problema que se coloca para as redes organizacionais é o de sua coordenação. Há redes nas quais se dá uma coordenação horizontal, outras em que se dá uma coordenação vertical e outras, ainda, em que a coordenação é diagonal ou multidirecional. Através da coordenação, é exercido o controle e ocorre a distribuição de recursos.

Nos casos em que a coordenação é horizontal, ocorre uma baixa autoridade e dominação, o que significa relação mais igualitária e maior autonomia para os agentes. Entretanto, por força de interesses próprios, tal autonomia pode ser trocada por recursos. A coordenação horizontal é caracterizada pela negociação, na ausência de um árbitro para distribuir o fluxo de recursos e informações como ocorre na coordenação vertical, o que pode levar a custos mais altos nas transações.

As várias organizações que constituem uma rede não precisam necessariamente estabelecer ou manter relações simétricas, embora as relações bilaterais impliquem maior estabilidade do conjunto. Tal estabilidade pode ser observada em termos de consistência interna e possibilidade de crescimento, da mesma forma que na relação com as intervenções externas e na capacidade de resposta às demandas ambientais.

De acordo com Aldrich,"desconsiderando-se o efeito das intervenções externas, a estabilidade interna de uma rede depende de quatro fatores: duplicação e multiplicidade nas relações entre duas organizações ou conjuntos de ações; a probabilidade de falência de uma ligação e o impacto que a falência de uma ligação tem na probabilidade da falência de outras".17 17 Id. Ibid. p. 332.

Há uma hierarquia entre as organizações que constituem uma rede. Há aquelas que são dominantes ou que têm um status mais elevado. São essas organizações que, em larga medida, controlam o fluxo de comunicações e as fontes de recursos, principalmente mediante ligações estreitas ou firmes. Assim, tanto a integração vertical quanto a integração horizontal são formas de garantir uma posição privilegiada nessa hierarquia.

3. ESTADO AMPLO

No capitalismo não há antagonismo entre concorrência e integração. As organizações capitalistas são simultaneamente concorrenciais e integradas. A inter-relação das unidades econômicas caracteriza esse sistema econômico desde suas origens, passando por todas as fases de sua existência, de modo que se pode afirmar que o desenvolvimento do capitalismo é o desenvolvimento dessa inter-relação, nos termos da análise feita por João Bernardo, na qual me baseio nesse tópico.

O capitalismo sempre pressupõe uma pluralidade de organizações econômicas reciprocamente relacionadas. Tal inter-relacionamento tem sua base definida em termos das condições gerais de produção. João Bernardo procura deixar claro que, ao se referir às condições gerais de produção, não entende produção num sentido técnico, mas sim num sentido social, isto é, a produção é vista como uma relação social complexa e contraditória, que se materializa na tecnologia. Dessa forma, as condições gerais de produção não se limitam ao que, em geral, se chama infra-estrutura, mas constituem a base do funcionamento total das unidades econômicas em relações recíprocas.

Da mesma forma, chama a atenção para o fato de que cada condição geral de produção depende de outras condições gerais de produção. Assim, as organizações que constituem condições gerais de produção são passíveis de apresentar um duplo aspecto. Como base do inter-relacionamento das unidades econômicas, revelam seu comportamento de condições gerais de produção (CGP) e, enquanto empresas, que decorrem de outras condições gerais de produção (CGP), comportam-se como tais, ou seja, como unidades de produção última (UPU).18 18 Ver Bernardo, João. Gestores, Estado e capitalismo de Estado. In: Ensaio. São Paulo, 14:88 1985. As observações feitas sobre o Estado Amplo baseiam-se neste artigo.

"Assim, as UPU e as CGP distinguem-se porque o comportamento que caracteriza as primeiras é exclusivamente de UPU e o das segundas é simultaneamente de UPU e de CGP".19 19 Id. ibid. p. 88.

Existem diversos tipos de condições gerais de produção. Há aquelas que dão conta da existência e da reprodução física do proletariado, como a infra-estrutura sanitária, os hospitais, as creches, etc. Há aquelas que tratam da realização social da relação entre dominantes e dominados, como a preparação e a reciclagem da força de trabalho, a repressão, o policiamento, etc. Há aquelas que garantem a existência física das empresas, como as redes de produção e distribuição de energia e as redes de transporte. Há aquelas que tratam do prosseguimento do processo de trabalho, como a veiculação, centralização e armazenamento de informação, e a informática é a principal condição geral de produção desse tipo, bem como as universidades, os laboratórios e os centros de pesquisa. Há aquelas que se voltam para a existência física de um mercado para os produtos, uma vez que todos aqueles produtos, cujo consumo não é direto, implicam a construção e a manutenção de instalações. Há, ainda, as condições gerais de produção que asseguram a existência social de um mercado para os produtos, das quais as mais importantes são os organismos de redistribuição de rendimentos voltados para um certo tipo de consumo, como a poupança, a publicidade, etc20 20 Id. ibid. p. 88 e 89.

Ainda para João Bernardo, enquanto as unidades de produção última, particularizadas e que consubstanciam mesmo a particularização final do processo geral de produção supõem uma propriedade de forma particular, as condições gerais de produção, de função integradora, pressupõem a forma de propriedade comum.21 21 Ver Bernardo, João. Marx critico de Marx. Porto, Afrontamento, 1977; v.3, p. 125.

"A dominância das condições gerais ou das unidades últimas, em cada forma de realização do capitalismo, determina o tipo generalizado de propriedade e, se a dominância das condições gerais de produção for muito acentuada, a generalização da forma de propriedade delas decorrente tornar-se-á altamente expansiva e todas as unidades de produção última ficarão sujeitas ao sistema da propriedade comum. Se os gestores aparecem como agentes sociais da propriedade comum, é porque decorrem das condições gerais de produção".22 22 Id. ibid. p. 125.

Essa análise torna claro que as condições gerais de produção definem o campo de existência dos tecnoburocratas em primeira instância, bem como esclarece o conceito de "monopólio do Estado capitalista", aplicado a formações como a soviética, na quais, como afirma Mare Paillet, "a revolução tecnoburocrática modificou o circuito e a repartição da mais-valia, uma vez produzida. Ela deu novos senhores à indústria. Ela não tocou as modalidades de produção. Assim, a condição operária foi mantida em seu nível mais essencial, que é o modo pelo qual os proletários buscam sua subsistência: vendendo sua força de trabalho contra um salário. A permanência das estruturas de produção é um aspecto essencial da exploração de classe".23 23 Paillet, Marc. Marx contre Marx la société tecnobureaucratique. Paris, Denoel/Gonthier, 1971. 60.

De qualquer forma, voltando à identificação das condições gerais de produção, é preciso ter em mente que o que João Bernardo faz não é uma tipologia de organizações, mas uma divisão de funções. Uma mesma organização pode assim desempenhar mais de uma dessas funções, como as instituições escolares, que tanto podem habilitar e moralizar a mão-de-obra, quanto produzir informações gerenciais.

É importante considerar que, enquanto base do inter-relacionamento das unidades econômicas, as condições gerais de produção garantem que o desenvolvimento global da produtividade e a realização da mais-valia re lativa se processem plenamente. Em cada formação so cial há, em um dado momento histórico, certas condi ções gerais de produção que aparecem como centrais. Seu bloqueio, por alguma razão, resulta em deseconomias para as empresas e em estagnação geral da produ tividade, precipitando uma crise. É dessa forma que as condições gerais de produção significam a condição tecnológica de um dado sistema capitalista integrado.

É, de resto, a inter-relação das unidades econômicas concorrenciais, característica do capitalismo, que serve de base para a compreensão do fenômeno tecnoburocrático, no que se refere à definição da tecnoburocracia enquanto classe social, um dos temas mais polêmicos do século XX. Enquanto que a burguesia pode ser definida em termos do funcionamento de uma empresa como unidade em isolamento, a definição da tecnoburocracia deve partir do funcionamento de uma unidade econômica, seja ela pública ou privada, enquanto unidade em relação com o processo econômico global.

Tal relação, como coloca João Bernardo, ocorre tanto em nível da organização material dos processos produtivos, quanto em nível da organização do mercado de trabalho, dessa última função encarregando-se os tecnoburocratas que dirigem os sindicatos burocratizados. Assim definidas, burguesia e tecnoburocracia aparecem como classes capitalistas, a última aparecendo como aquela classe que, na visão de Makhaiski, não passou desapercebida de Marx, como querem muitos, e "que eliminaria os plutócratas, elementos arcaicos, freio a um desenvolvimento maior e melhor da produção (...)"24 24 Makhaishi, Jan Waclaw. Le socialisme des intellectuels. Paris, Seuil, 1979., p. 16 e 17. Essa classe, cuja existência deve-se às unidades econômicas em inter-relação, sustenta uma forma de propriedade que é coletiva à sua globalidade, o que implica que o lugar de cada tecnoburocrata na distribuição da mais-valia passa por sua relação com os aparelhos de poder.

Se é verdade que, em função de seu caráter mais particularizado, as unidades de produção última constituíram o campo privilegiado de existência da burguesia, é preciso considerar a separação crescente entre propriedade e controle e o fato de que nenhuma empresa pode existir, a não ser em relação às condições gerais de produção, constituindo, portanto, estas unidades econômicas também um campo privilegiado de existência de tecnoburocracia. Além disso, é importante lembrar que existem empresas que se incluem nas condições gerais de produção, nas quais a classe burguesa tem uma posição subordinada.25 25 Ver Bernardo, João. Gestores, Estado e capitalismo de Estado, op. cit. p. 89 e 90.

A evolução histórica amplia e reforça esses campos sociais, da mesma forma que os limita. A evolução capitalista tem-se caracterizado por uma integração crescente dos processos econômicos, embora haja recuos episódicos nessa tendência. Como mostra João Bernardo, estamos diante de uma lei de desenvolvimento que decorre dos seus mecanismos estruturais básicos, que implicam a recuperação pelo sistema das reivindicações que surgem nas lutas operárias, através da inauguração de novos ciclos de mais-valia relativa, que pressupõem o inter-relacionamento cada vez maior das unidades econômicas, que é exigido pelo aumento da produtivi dade em qualquer uma delas.

"O processo mais econômico que se oferece ao capital consiste em atuar sobre o primeiro termo da relação da mais-valia. O proletário, ao reduzir o tempo de traba lho que despende, age sobre o segundo termo dessa re lação. A resposta do capitalista incide no primeiro ter mo, pela diminuição do tempo de trabalho incorpora do na força de trabalho. Isso significa que o capitalista procura tornar mais produtivos os processos de fabri co de bens consumidos pelos trabalhadores. Não pode fazê-lo, porém, sem aumentar também a produtivida de no fabrico das máquinas que irão produzir aqueles bens. E assim por diante. Em conclusão, ao agir sobre o primeiro termo da relação da mais-valia, em resposta à luta operária, o capitalista desencadeia um mecanismo global de aumento da produtividade de que se estende a toda a economia. É este o processo de desenvolvimento da mais-valia relativa. O desencadear de uma luta e a resposta imediata do capitalista definem, assim, um ciclo de mais-valia relativa..."26 26 Bernardo, João. A autonomia nas lutas operárias. In: Bruno, Lúcia & Saccardo, Cleusa, og. Organização, trabalho e tecnologia. São Paulo, Atlas, 1986. p. 104-105.

Dessa forma, em cada estágio do capitalismo, as unidades econômicas estão mais integradas, em termos da economia global, do que no estágio anterior, quando as condições são de maior isolamento. Essa verdadeira sucessão de estágios de inter-relacionamento das unidades econômicas reforça a integração das empresas nos mecanismos globais da economia, tornando a tecnoburocracia das unidades de produção última mais e mais importante com relação à burguesia. Além disso, como também indica João Bernardo, reduz o grau de particularização de funcionamento das condições gerais de produção, diminuindo a importância da burguesia nesse campo.

Tais processos podem levar a burguesia a ser eliminada, o que não implica, como lembrava já James Burnham, "que todos os seus membros individuais e suas famílias desapareçam. Alguns deles podem ser encontrados, talvez proeminentemente encontrados, metamorfoseados econômica e socialmente, nas fileiras da nova classe dirigente";27 27 Burnham James, The managerial révolution. Bloomington, Indiana University Press, 1960. p. 70. mas a burguesia pode também tornar-se circunscrita às pequenas e médias empresas, marginalizada por um processo de afastamento da produção e conversão em classe rentista, ou uma combinação das duas últimas possibilidades.

O que esse tipo de análise indica é que as classes sociais não existem senão em luta e que mesmo duas classes capitalistas não fogem à regra, ou seja, a aliança burguesia-tecnoburocracia oculta um movimento histórico em que a trajetória ascendente da segunda implica a trajetória descendente da primeira, bem como mostra a diversidade dos campos de origem da tecnoburocracia, que se desenvolve a partir das unidades de produção última e das condições gerais de produção, e em cada um desses tipos de unidades econômicas, a partir de aspectos variados de suas múltiplas articulações.

Segundo João Bernardo, é ainda importante ter em mente, para a compreensão da diversidade dos campos de origem da tecnoburocracia, a que chama classe dos gestores, que a divisão investimentos estatais e investimentos particulares não se sobrepõe necessariamente à divisão condições gerais de produção e unidades de produção última. As primeiras têm sido um campo privilegiado dos investimentos estatais, mas também há investimentos particulares nesse setor. Pode, assim, ocorrer que o aparelho tradicional de Estado confira aos burgueses, que se encarregam das condições gerais de produção, alguns de seus poderes de soberania, como por exemplo, a aquisição dos terrenos necessários à sua instalação. Também são numerosos os casos em que o Estado e não apenas os burgueses detém unidades de produção última.

Nos estágios iniciais do capitalismo, o isolamento das unidades econômicas era maior, dada a baixa integração do processo econômico global, o que fazia com que os campos de existência dos gestores fossem mais dispersos. Isto não significa que não existissem enquanto classe, mas sim que não se comportavam enquanto classe unificada. João Bernardo vê o período mais importante do início dessa unificação como provavelmente o dos anos 1914al918.A partir de sua unificação, a diversidade de seus campos de origem passa a constituir um fator decisivo de ampliação de sua área de poder.28 28 Ver Bernardo, João. Gestores, Estado e capitalismo de Estado, op. cit. p. 91-92. Tal fato torna-se mais imediatamente compreensível quando consideramos a questão da complexidade das formas de Estado.

As diversas formas de Estado que o Ocidente conheceu tenderam para o Estado regulador, modalidade intrinsecamente relacionada com o estágio do capitalismo, a que geralmente chamam capitalista monopolista de Estado, quando alguns dos processos e setores mais estratégicos para a vida social, como a automação, a energia nuclear, a comunicação de massa, a informática, etc, localizam-se nos grandes oligopólios ou no próprio Estado, fazendo com que o controle social esteja cada vez mais nas mãos da tecnoburocracia privada ou pública.29 29 Ver Lenoir, Ives. La technocratie française. Paris, Pauvert, 1977. De um modo geral, quanto mais forte o poder dessa tecnoburocracia, maior a importância dada à formação do consenso, o que leva Negri a pensar que quanto menor consenso, menos controle; que quanto menos controle, menor legitimidade; e que quanto menos legitimidade, menor poder para os dirigentes e maior poder para a sociedade deverá haver.30 30 Ver Negri, Antonio. La classe ouvrière contre l'État. Paris Galilée, 1978. p. 286; ver também Motta, Fernando C. Prestes . Organização e poder: empresa, Estado e escola. São Paulo, Atlas, 1976. p. 135.

Entretanto, estamos habituados a pensar no Estado de uma forma única, geralmente como poder legislativo, executivo e judiciário, forma esta a que João Bernardo chama Estado Restrito, que foi a instituição responsável pela coordenação ou ainda pela articulação das diversas unidades econômicas em épocas em que elas ainda podiam ser tidas como relativamente isoladas. Assim, quanto mais fragmentado fosse o funcionamento das várias empresas, maior a importância da instituição articuladora, isto é, do Estado Restrito.

As funções do Estado Restrito são de coordenação das diversas unidades econômicas num processo integrado. Já foi dito que o campo da existência da tecnoburocracia se define como resultante do funcionamento das unidades econômicas em relação com o processo econômico global. Assim, o Estado Restrito, em sua função coordenadora, constitui um dos campos de existência dessa tecnoburocracia. É bem verdade que ele pode subordinar-se aos interesses sociais da burguesia, na medida em que essa seja a classe dirigente no sistema capitalista global, mas, de qualquer forma, a execução de suas funções está em mãos dos tecnoburocratas.

Quando, porém, definimos o Estado como o aparelho de poder das classes dominantes, ele ultrapassa em muito os limites do Estado Restrito. A extorsão da mais-valia apóia-se, desde os períodos iniciais do sistema capitalista, num outro aparelho de poder a que João Bernardo chama Estado Amplo, que, na realidade, é tão amplo quanto o são as classes dominantes.

Deve-se considerar que no interior da empresa o capitalista é legislador. Trata-se de um quarto poder que os teóricos dos três poderes clássicos desconsideram. Esse poder refere-se à organização da mão-de-obra, à imposição da disciplina fabril e precisa ser considerado, quando se pensa mais amplamente a questão do Estado.

Todos os mecanismos que, no interior das unidades econômicas, garantem às classes dominantes a extorsão da mais-valia, constituem o Estado Amplo. Dessa forma, as classes sociais ocupadas com o funcionamento desse Estado Amplo são exatamente aquelas cujo campo de existência está em cada unidade econômica, seja ela uma unidade de produção última, seja ela uma condição geral de produção. No momento atual do capitalismo internacional, as funções do Estado Restrito são executadas por tecnoburocratas, enquanto as funções do Estado Amplo podem tanto estar a cargo da tecnoburocracia quanto da burguesia. Todavia, quanto mais a economia se integra e mais se unifica a classe tecnoburocrática, mais importante se torna sua participação no Estado Amplo.31 31 Ver Bernardo, João. Gestores, Estado e capitalismo de Estado, op. cit. p.135.

As lutas operárias têm sido dirigidas contra o Estado Amplo. A resposta a essa luta tem sido a integração de novas instituições ao Estado Amplo, como os grandes sindicatos ou os partidos políticos ditos de vanguarda, que têm um papel disciplinador e organizador da força de trabalho, reproduzindo amplamente o capitalismo, muito mais que constituindo uma ameaça de ruptura.

Enquanto o Estado Restrito se define sempre em função dos problemas internos das classes dominantes, organizando-se de forma centralizada na ditadura ou dispersa na democracia, segundo as formas de acumulação do capital, o Estado Amplo define-se na relação entre classes dominantes e dominadas. Assim, no processo econômico global, Estado Amplo e Estado Restrito estão inter-relacionados, como um dos aspectos da relação entre a extorsão da mais-valia e sua distribuição. João Bernardo chama a atenção, contudo, para o fato de não haver nenhuma conjugação preferencial de dadas formas organizacionais do Estado Restrito com dadas formas organizacionais do Estado Amplo. Assim, enquanto o primeiro pode apresentar-se democrático, o segundo pode ser altamente repressivo, num modelo de acumulação dispersa de capital. De modo inverso, o Estado Restrito pode ser ditatorial e o Estado Amplo relativamente permissivo. Finalmente, tanto o Estado Restrito como o Amplo podem ser, respectivamente, democrático e relativamente permissivo; ou ditatorial e repressivo.

As relações entre Estado Restrito e Estado Amplo, em termos de capitalismo internacional, obedecem a algumas etapas históricas. Assim, o século XIX foi uma época em que as unidades econômicas funcionaram em um grau elevado de participação, o Estado Amplo apresentando-se muito fragmentado e o Estado Restrito assumindo uma grande importância. Trata-se de uma fase em que os campos de existência da tecnoburocracianãose encontravam unificados e o Estado Restrito era local exclusivo das classes dominantes, que tinham não só o monopólio do sufrágio quanto o da elegibilidade.

Já a passagem para o século XX assiste ao desenvolvimento das lutas sociais e à aceleração dos ciclos de mais-valia relativa. O capital se concentra e progride a integração das unidades econômicas, com a conseqüente tendência para a unificação dos campos de existência da tecnoburocracia. A clareza dos limites do Estado Restrito torna-se menor e sua esfera de ação se restringe, enquanto que certas funções de coordenação econômica são assumidas pelo Estado Amplo. É uma época de democratização do Estado Restrito, no qual, entretanto, se desenvolvem mecanismos que tornam menos decisiva a ação de sua parte eleita, isto é, a administração pública deixa de se constituir em simples auxiliar burocrático do poder legislativo e do executivo, adquirindo uma autonomia crescente. De fato, são setores do Estado Restrito que passam para o Estado Amplo.

A I Guerra Mundial levou, em diversos países, a uma aceleração muito rápida desse processo e, entre eles, a Rússia parece ter sido aquele que, como salienta Bernardo, criou de forma mais radical as condições institucionais para a etapa seguinte, que se esboça naquilo que podemos mais propriamente chamar de século XX, em consonância com a periodização feita por Polanyi, com objetivos diversos.32 32 Polanyi, Karl. The great transformation. New York, Rinehart, 1974.

No século XX, a inter-relação das unidades econômicas torna-se tão estreita que a importância econômica do Estado Restrito decresce substancialmente, no sentido de que a coordenação do processo econômico global passa a ser realizada diretamente ao nível da direção das grandes empresas. Ao mesmo tempo, a unificação dos campos de existência da tecnoburocracia rompe a precisão dos limites do Estado Restrito, fundindo-se os tecnoburocratas do Estado Restrito com os das condições gerais de produção e das unidades de produção última.

De modo geral, quanto mais o Estado Restrito se democratiza em termos de sufrágio, mais seus órgãos cooptados pelo Estado Amplo se autonomizam, destacando-se de seus setores mais tradicionais. Dá-se, portanto, como analisa João Bernardo, um esvaziamento de poderes do Estado Restrito, resultante da limitação de sua capacidade de ação e da cisão de suas instituições. O processo econômico global passa, assim, a ser hegemonicamente coordenado pelo Estado Amplo, que articula os tecnoburocratas das grandes empresas, os tecnoburocratas dos sindicatos que gerem a força de trabalho e os tecnoburocratas dos setores que o Estado Amplo coopta do Estado Restrito. Trata-se de um sistema de poder que corresponde à hegemonia do Estado Amplo com relação ao Estado Restrito33 33 Ver Bernardo, João. Gestores, Estado e capitalismo de Estado, op. cit. 93-97. e que, pelo menos tendencialmente, parece indicar a hegemonia tecnoburocrática.

Esse processo tem no desenvolvimento das empresas multinacionais um elemento decisivo, já que os aparelhos de poder nelas consubstanciados não encontram correspondência nos organismos do Estado Restrito, onde as fronteiras nacionais constituem um elemento fundamental,34 34 Ver Bruno, Lúcia. Gestores: prática de uma classe no vácuo de uma teoria, In: Bruno, Lúcia & Saccardo Cleusa, org. Organização, trabalho e tecnologia, op. cit. p. 140. o que significa que o Estado Amplo deve ser pensado em termos da internacionalização da economia.

4. CONCLUSÃO

O Estado Amplo é um sistema informal de organização, na medida em que, mesmo sendo a sede do poder, não há uma expressão jurídica que o traduza. Sua hegemonia caracteriza o capitalismo em todos os países atualmente existentes. Aqueles países de descolonização recente como os da África, Sudeste Asiático e Polinésia integraram-se diretamente nesse estágio, sem reproduzir a evolução histórica dos atuais países desenvolvidos.

Essa hegemonia varia em sua configuração, em termos de três grandes grupos. Os dois primeiros referem-se aos países desenvolvidos. Nos países da OCDE, como os Estados Unidos, Canadá, Japão, Grã-Bretanha, França, Alemanha Ocidental, Itália, etc; ela não levou à assimilação completa dos aparelhos do Estado Restrito, que subsistem apesar de sua importância muito reduzida.

Nos países do Comecon, como a União Soviética e os demais da Europa Oriental, o centro de poder de Estado começou por afirmar-se no Estado Restrito, movendo-se em direção ao Estado Amplo, que assimilou de tal forma o primeiro que não são hoje distinguíveis, no que se refere ao exercício do poder. Nesses países, o Estado Restrito aparece como face publicitária de seu regime e o marxismo-leninismo como discurso legitimador.

Nos países do chamado Terceiro Mundo, a importância central das importações de capital exige um grau elevado de centralização na acumulação de capital. O Estado Restrito pode, por essa razão, parecer muito forte . Entretanto, o que de fato ocorre é a autonomização das instituições econômicas e administrativas no interior do Estado Restrito, num esvaziamento de seu poder. Essas instituições destacam-se do Estado Restrito, articulando-se às grandes empresas nacionais e multinacionais que compõem o Estado Amplo. Portanto, nesses países, a forma assumida pela hegemonia do Estado Amplo é a de uma articulação entre instituições saídas do Estado Restrito, as grandes empresas, principalmente as multinacionais e, em vários casos, também os sindicatos burocratizados.

Abstraindo-se, porém, dessas configurações assumidas pela hegemonia do Estado Amplo enquanto fenômeno mundial, é preciso considerar que nas etapas descritas desse processo as lutas operárias vão se reorientando, dirigindo-se progressivamente contra o Estado Amplo. Isto pode levar à crise do populismo e daqueles partidos marxistas-leninistas cujos dirigentes se orientam para a reorganização do Estado Restrito.

Um outro fato importante perceptível em alguns países é o surgimento de uma quarta etapa, depois da crise econômica de 1974. Nesses países, a burguesia, numericamente considerável, brada pela limitação da intervenção econômica do Estado e pressiona pela privatização das empresas públicas. Isto que aparentemente pode sugerir uma vitória sobre a tecnoburocracia, de fato não o é, já que o que a burguesia está fazendo é ajudar a derrubar o Estado Restrito e favorecer a hegemonia do Estado Amplo, tornando-se paulatinamente uma classe tutelada pela tecnoburocracia internacional.35 35 Ver Bernardo, João. Gestores, Estado e capitalismo de Estado, op. cit. p. 97-98.

Também já foi dito que, no processo de integração econômica crescente que leva à hegemonia do Estado Amplo , a derrota de determinadas formas de luta operária traduz-se em medidas capitalistas de aumento da produtividade e, portanto, em maior integração das unidades econômicas, dada a sua interdependência. O processo caracteriza-se, pois, por uma série de ciclos de raais-valia relativa. As diversas teorias das organizações refletem esses ciclos como sua expressão ideológica.36 36 ld. ibid.p. 95. É assim que deve ser vista a seqüência que vai do taylorismo mais explícito às novas versões assumidas pela abordagem sistêmica ou à teoria z.

Da mesma forma, a análise de redes aplicadas às organizações, com todos os seus conceitos de centralidade, ligações frouxas e estreitas e assim por diante, sua ênfase sobre populações de organizações e não-organizações particularizadas sugere uma teoria política do Estado Amplo como expressão ideológica de sua hegemonia.

Deve-se notar que, aparentemente, a análise de redes sociais aplicada às organizações"traz em si a ambigüidade básica do processo ideológico, que consiste no seguinte: vincula-se ela às determinações sociais reais, enquanto técnica (...), e afasta-se dessas determinações sociais reais, compondo-se num universo sistemático organizado, refletindo deformadamenteo real, enquanto ideologia".37 37 Tragtenberg, Maurício. Burocracia e ideologia. São Paulo, Ática, 1974. p 89.

Entretanto, o que aqui foi dito é fruto de uma especulação sobre dois referenciais teóricos diversos, baseada em um conhecimento ainda muito incipiente da análise de redes sociais aplicada às organizações e que uma pesquisa de maior fôlego poderá confirmar, desenvolver ou refutar.

  • 1 Ver Lawrence, Paul & Lorsh, Jay W. Organization and environment. Cambridge, Harvard University Press, 1967;
  • Lawrence, Paul & Lorsh, Jay W. Developing organizations: diagnosis and action. Massachusetts, Addison-Wesley, 1969.
  • 4 Ver March, James G. The technology of foolishness. In: Leavitt, Harold; Pondy, Louis R. &Bojie, David M. ed. Readings in managerial psychology. Chicago, University of Chicago Press, 1980; March, James G.&Olsen, JohanP./4m6/guity and choice in organizations. Bergen, Universitets Forlaget, 1976;
  • Weick, Karl. The social psychology of organizing. Massachusetts, Addison-Wesley, 1979;
  • e Weick, Karl W. Educational organizations as loosely coupled systems. Administrative Science Quarterly, Ithaca, 21 (1) 1976.
  • 6 Ver, por exemplo, Bolman, Lee & Deal, Terence. Modern approaches to understanding and managing orgnizations. Sá Francisco, Jossey-Bass, 1985; Schein, Edgard. Organizational culture and leadership, San Francisco, Jossey-Bass, 1985;
  • 8 Jay, Edward J. The concepts of "field" and "network" in anthropological research. Man, 64:138.
  • 11 Perrow, Charles. Complex organizations: a critical essay. ed Illinois, Scott Foresman, 1979. p. 226;
  • 16 Aldrich, Howard E. Organizations and evironments. Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1979. p 333.
  • 23 Paillet, Marc. Marx contre Marx la société tecnobureaucratique. Paris, Denoel/Gonthier, 1971. 60.
  • 24 Makhaishi, Jan Waclaw. Le socialisme des intellectuels. Paris, Seuil, 1979., p. 16 e 17.
  • 27 Burnham James, The managerial révolution. Bloomington, Indiana University Press, 1960. p. 70.
  • 29 Ver Lenoir, Ives. La technocratie française. Paris, Pauvert, 1977.
  • 30 Ver Negri, Antonio. La classe ouvrière contre l'État. Paris Galilée, 1978. p. 286; ver também Motta, Fernando C. Prestes . Organização e poder: empresa, Estado e escola. São Paulo, Atlas, 1976. p. 135.
  • 32 Polanyi, Karl. The great transformation. New York, Rinehart, 1974.
  • 37 Tragtenberg, Maurício. Burocracia e ideologia. São Paulo, Ática, 1974. p 89.
  • *
    O autor agradece a Maria Ester de Freitas e Allain Joly, cujos trabalhos finais da disciplina Desenvolvimentos da Teoria das Organizações, por ele administrada, foram sumamente importantes para este artigo.
  • 1
    Ver Lawrence, Paul & Lorsh, Jay W.
    Organization and environment. Cambridge, Harvard University Press, 1967; Lawrence, Paul & Lorsh, Jay W.
    Developing organizations: diagnosis and action. Massachusetts, Addison-Wesley, 1969.
  • 2
    Ver Peter, Thomas J. & Waterman Robert H.
    In search of excellence. New York, Harper & Row, 1982.
  • 3
    Ver Scott, W. Richard. Theoretical perspectives. In: Meyer, Marshall W. et alii.
    Environments and organizations. São Francisco, Jossey-Bass, 1978.
  • 4
    Ver March, James G. The technology of foolishness. In: Leavitt, Harold; Pondy, Louis R. &Bojie, David M. ed.
    Readings in managerial psychology. Chicago, University of Chicago Press, 1980; March, James G.&Olsen, JohanP./4m6/
    guity and choice in organizations. Bergen, Universitets Forlaget, 1976; Weick, Karl.
    The social psychology of organizing. Massachusetts, Addison-Wesley, 1979; e Weick, Karl W. Educational organizations as loosely coupled systems.
    Administrative Science Quarterly, Ithaca, 21 (1) 1976.
  • 5
    Ver Pages, Max et alii.
    L'emprisede I'organisation. Paris, Presses Universitaires de France, 1979.
  • 6
    Ver, por exemplo, Bolman, Lee & Deal, Terence.
    Modern approaches to understanding and managing orgnizations. Sá Francisco, Jossey-Bass, 1985; Schein, Edgard.
    Organizational culture and leadership, San Francisco, Jossey-Bass, 1985; e Smircich, Linda, Studying organizations and cultures. In: Morgan, Garethed. Beyond method: strategies for social research. London, Sege, 1983.
  • 7
    Boa parte dessa introdução baseia-se em Motta, Fernando C. Prestes.
    Teoria das organizações: evolução e crítica. São Paulo, Pioneira, 1986, 35-40.
  • 8
    Jay, Edward J. The concepts of "field" and "network" in anthropological research.
    Man, 64:138. In: Aldrich, Howard & Wheten, David A. Organizations-sets, action-sets and networks: making the most of simplicity. In: Nystrom, Paul C. & Starbuck, William H., ed.
    Handbook of organization design. London, Oxford University Press, 1981.
  • 9
    Aldrich, Howard & Wheten, David A. Organizations-sets, action-sets, action-sets and networks: making the most of simplicity, op. cit. p. 387.
  • 10
    Ver Nelson, Reed. O uso da análise de redes sociais no estudo das estruturas organizacionais.
    Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 24 (2): 150, out-dez. 1984.
  • 11
    Perrow, Charles.
    Complex organizations: a critical essay. ed Illinois, Scott Foresman, 1979. p. 226; e ver para as demais considerações do parágrafo, do mesmo autor, La théorie des organisations dans une société d'organisations. In: Francine, Séguin-Bernard&Chanlat, Jean-François.
    L'analyse des organisations, une anthologie sociologique. 1.1 : Les théories de l'organisation. St. Jean-sur Richelieu, Prefontaine, 1983. p.461-71.
  • 12
    Ver Marcus, Philip M. Redes sociais e organizações complexas.
    Revista Brasileira de Administração da Educação, Porto Alegre, 2 (2): 84-5, jul/dez. 1984.
  • 13
    Ver Stern, Robert. The development of an interorganizational control network: the case of lntercolegiate Athletics. In: Administrative Science Quarterly, Ithaca, Cornell University, v. 24, June 1979.
  • 14
    Ver Marcus, Philip, op. cit. p. 88.
  • 15
    Ver Stern, Robert N. op. cit.
  • 16
    Aldrich, Howard E.
    Organizations and evironments. Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1979. p 333.
  • 17
    Id. Ibid. p. 332.
  • 18
    Ver Bernardo, João. Gestores, Estado e capitalismo de Estado. In:
    Ensaio. São Paulo, 14:88 1985. As observações feitas sobre o Estado Amplo baseiam-se neste artigo.
  • 19
    Id. ibid. p. 88.
  • 20
    Id. ibid. p. 88 e 89.
  • 21
    Ver Bernardo, João.
    Marx critico de Marx. Porto, Afrontamento, 1977; v.3, p. 125.
  • 22
    Id. ibid. p. 125.
  • 23
    Paillet, Marc.
    Marx contre Marx la société tecnobureaucratique. Paris, Denoel/Gonthier, 1971. 60.
  • 24
    Makhaishi, Jan Waclaw.
    Le socialisme des intellectuels. Paris, Seuil, 1979., p. 16 e 17.
  • 25
    Ver Bernardo, João. Gestores, Estado e capitalismo de Estado, op. cit. p. 89 e 90.
  • 26
    Bernardo, João. A autonomia nas lutas operárias. In: Bruno, Lúcia & Saccardo, Cleusa, og.
    Organização, trabalho e tecnologia. São Paulo, Atlas, 1986. p. 104-105.
  • 27
    Burnham James,
    The managerial révolution. Bloomington, Indiana University Press, 1960. p. 70.
  • 28
    Ver Bernardo, João. Gestores, Estado e capitalismo de Estado, op. cit. p. 91-92.
  • 29
    Ver Lenoir, Ives.
    La technocratie française. Paris, Pauvert, 1977.
  • 30
    Ver Negri, Antonio.
    La classe ouvrière contre l'État. Paris Galilée, 1978. p. 286; ver também Motta, Fernando C. Prestes .
    Organização e poder: empresa, Estado e escola. São Paulo, Atlas, 1976. p. 135.
  • 31
    Ver Bernardo, João. Gestores, Estado e capitalismo de Estado, op. cit. p.135.
  • 32
    Polanyi, Karl.
    The great transformation. New York, Rinehart, 1974.
  • 33
    Ver Bernardo, João. Gestores, Estado e capitalismo de Estado, op. cit. 93-97.
  • 34
    Ver Bruno, Lúcia. Gestores: prática de uma classe no vácuo de uma teoria, In: Bruno, Lúcia & Saccardo Cleusa, org.
    Organização, trabalho e tecnologia, op. cit. p. 140.
  • 35
    Ver Bernardo, João. Gestores, Estado e capitalismo de Estado, op. cit. p. 97-98.
  • 36
    ld. ibid.p. 95.
  • 37
    Tragtenberg, Maurício.
    Burocracia e ideologia. São Paulo, Ática, 1974. p 89.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 1987
    Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: rae@fgv.br