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A "nova" riqueza e a gestão dos recursos produtivos

ARTIGO

A "nova" riqueza e a gestão dos recursos produtivos* * Conferencia proferida no V Congresso Paulista de Admi nistração de Recursos Humanos, Palácio das Convenções do Parque Anhembi, 27a30jul. 1986, São Paulo, SP; e no V Congresso Brasileiro de Treinamento e Desenvolvimento, Minas Centro, 24 a 27 de ago. 1986, Belo Horizonte, MG.

Ramon Moreira Garcia

Professor titular no Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da EAESP/FGV

1. INTRODUÇÃO: "ORDEM PATRIMONIAL" E O CONCEITO DE RIQUEZA SOCIAL

Houve época em que a produção dos bens e serviços necessários à manutenção da vida humana procediam, na sua grande maioria,das atividades agrícolas. Nesses tempos, a vida transcorria dentro de uma ordem tradicional, e a produção se fazia segundo critérios predominantemente patrimoniais. De um lado, encontravam-se os "grão-senhores", pessoas ilustres, de boa linhagem familiar, de grande poder pessoal, cujos direitos decorriam de princípios quase divinos, e, de outro lado, um grande contingente de "pessoas servis", cuja existência se restringia à condição de um "objeto natural", da mesma maneira que a terra, as plantas e os animais. Perguntando-se a um"grão-senhor" de quantos trabalhadores dispunha, a resposta vinha rápida e fácil. "Eu tenho uns 20, 30, ou 50 braços." Braços! Assim é que eram chamados aqueles que, na época, contribuíam significativamente para a formação da riqueza social. Restringia-se, desse modo, a importante participação desse grupo social a uma simples característica física ou muscular, a qual deveria agregar-se, mecanicamente, aos processos produtivos.

Essa desqualificação do ato produtivo, e dos agentes que intervinham na produção, cumpria, entretanto, um papel ideológico muito importante: ajudava a ocultar os verdadeiros fundamentos da "ordem patrimonial". Em todos os tempos, o ato de produção, bem como o trabalho executivo em seu interior, foi sempre um"fato social total". Esse conceito, atribuído a Mauss, nos diz que a produção e o trabalho não são apenas constituídos de dimensões materiais, propriamente econômicas, mas são dotados, também, de dimensões simbólicas; diria políticas, éticas, estéticas, e, até - por que não? - religiosas.

Nessa perspectiva, a caracterização de uma" ordem de coisas" é considerada incompleta, portanto, falsa, quando definida apenas em função das contribuições materiais que se fazem à riqueza social. Ao lado da produção de um ccínjunto de bens ou serviços, "produz-se", também, uma "totalidade social", constituída por hábitos, costumes, instituições, etc. que ajudam a pôr em movimento a própria vida, imprimir significado à existência humana e assegurar a realização do trabalho produtivo. Assim, ao mesmo tempo em que se produzia a riqueza social, edificava-se uma "cultura patrimonial" de múltiplas dimensões, no seio da qual a produção material e o trabalho humano adquiriam pleno significado.

Portanto, as"grandes fazendas", dos primeiros tempos, além de delimitarem o espaço material no qual a produção se processava, eram também uma poderosa instituição política e uma "expressão cultural" da maior importância. Junto com os produtos agrícolas, eram "produzidos", também, a "casa-grande"; hábitos e costumes sociais; símbolos de prestígio e poder; a"senzala" e as demais condições para a subsistência dos "braços".

É nesse sentido que se pode afirmar que, para a época, as bases patrimoniais asseguradas pela produção agrícola eram consideradas mais importantes do que os recursos financeiros, obtidos com a venda de um produto qualquer. Desse modo, era mais importante o controle da terra, da descendência familiar, do poder político e do prestígio grupai, que a atividade econômica, estrito senso. Assim, definiá-se riqueza social mais pelos seus elementos patrimoniais do que pelo seu conteúdo econômico propriamente dito.

Em poucas palavras, ser rico era ter patrimônio. Ou melhor, a produção de determinado produto era julgada importante à medida que contribuísse para a manutenção de um conjunto de símbolos de prestígio grupai e de poder pessoal, ao mesmo tempo que assegurasse a existência de algumas instituições materiais e sociais, sem as quais não seria possível a atividade produtiva.

É nessa perspectiva que deve ser entendida, dentro da "ordem patrimonial", a gestão dos recursos produtivos e, particularmente, a gestão dos recursos humanos ligados à produção. A mediação necessária, a ser realizada pelos gestores, entre os "grão-senhores", de um lado, e os "braços", de outro, se fazia dentro de um universo simbólico particular e segundo os ditames das instituições sociais da época. E, dentro desse universo de significações, essa função resumia-se uma simples "capatazia". O"gestor" de recursos humanos da época o "capataz". A ele cabia transformar-se no veículo através do qual eram sinalizados o poder pessoal e o prestígio político do seu patrão e, através disso, consolidar os vínculos necessários à manutenção das bases sociais do poder patrimonial. Como as desigualdades sociais eram de caráter pessoal, bem delimitadas, bem visíveis e auto-evidentes, as funções desempenhadas pelos capatazes assumiam também um caráter pessoal. Cabia a eles assegurar que as "regras do jogo" fossem cumpridas e as distâncias sociais fossem mantidas em sua plena visibilidade. Nesses termos, os atributos de um bom capataz eram: lealdade irrestrita à figura do patrão, coragem pessoal, pulso forte, firmeza e energia.

Dentro da "ordem patrimonial", as atividades comerciais e a produção de manufaturas tinham um caráter limitado e subsidiário. A atividade mercantil de vulto, quando ocorria, estava predominantemente ligada à exportação de produtos agrícolas. As atividades mercantis de pequena monta, voltadas para o consumo, existiam de modo irregular e incipiente. Constituíam verdadeiros enclaves, dotados de relativa independência em relação à atividade produtiva geral, e tinham algumas atribuições que não afetavam em nada os elementos fundamentais da produção econômica e da ordem social vigente.

As manufaturas, por sua vez, também constituíam verdadeiros enclaves, pois eram conduzidas, nos campos, por famílias bem conhecidas ou pequenas comunidades bem definidas e, nas cidades, predominavam as corporações de ofício, autolimitadas e fortemente controladas por leis e costumes que restringiam o seu funcionamento.

No seu início, a produção de manufaturas e as trocas comerciais se faziam em torno de alguns produtos destinados à gratificação da vida simbólica, à sinalização do prestígio social, e à consolidação do poder pessoal, ao invés da satisfação das necessidades de sobrevivência material da sociedade, o que nos diz que esses enclaves econômicos estabeleciam com a ordem produtiva geral um vínculo de natureza contraditória. De um lado, atendiam a ordem patrimonial naquilo que ela queria - a gratificação simbólica. Deoutro lado, edificavam, pouco a pouco, uma verdadeira autonomia e uma crescente diferenciação. Esta diferenciação exigia a rearticulação dos recursos produtivos segundo uma lógica distinta; implicava a modificação do significado de produção e de trabalho, ao mesmo tempo que, progressivamente, introduzia uma nova legitimidade - um novo estatuto de existência.

Em verdade, esses enclaves econômicos, pelo fato de delimitarem um espaço dotado de uma distinta racionalidade, foram as primeiras sementes de uma "grande transformação" que viria por acontecer. Ao seu início, no entanto, o núcleo dessa "nova" racionalidade baseava-se no "cálculo de conseqüências", indispensáveis ao desempenho das atividades mercantis ou fabris, ainda que conduzidas em bases incipientes.

A gestão dos recursos produtivos dentro dos enclaves ainda tinha a feição de uma "capatazia qualificada"; os vínculos com o poder patrimonial eram não só necessários, como indispensáveis. Porém, a diferenciação requerida pelas duas atividades produtivas demandava um qualificado grau de sagacidade e de diligência pessoal que faltava às atividades patrimoniais.

Produzir algo com seu próprio esforço, circular mercadorias ou pôr as mãos em dinheiro era algo desprezível para o "grão-senhor". Não eram atividades importantes. O considerado importante para a ordem vigente era o controle das bases patrimoniais da riqueza social. Aquelas atividades eram toleradas, uma vez que gratificavam os "grão-senhores", mas não eram valorizadas, nem tão pouco consideradas um perigo à estabilidade da ordem patrimonial.

2. A EMERGÊNCIA DA "ORDEM UTILITÁRIA" E O CONCEITO DE RIQUEZA SOCIAL

Karl Polanyi, no seu magnífico livro A grande transformação, descreve, com grande riqueza de detalhes, o processo de emancipação das atividades comerciais da ordem tradicional. Mostra como a atividade econômica, antes subordinada ao poder político e à autoridade social, "destaca-se" destes e passa as constituir uma esfera de significação própria. Processo, sem dúvida, muito rico e complexo, que não caberia a nós, aqui, reproduzir.1 1 Ver Polanyi, Karl. A grande transformação. Rio de Janeiro, 1980.

Entretanto, para que a nossa discussão sobre a gestão dos recursos produtivos tenha uma certa continuidade, diria apenas que, à medida que as atividades comerciais começam a se libertar da tutela patrimonial, o sentido geral das coisas se altera. Mudam os significados mais profundos relativos à vida, à produção, ao trabalho e à dinâmica dos valores associados à riqueza social.

O poder político, bem como a força das instituições materiais e sociais, que antes procediam de uma condição pessoal, encontram um novo depositário fiel. Transferem-se das pessoas para a lógica das transações comerciais, as quais têm lugar no interior de uma entidade cada vez mais onipresente e onisciente - o mercado. O cálculo de conseqüências (vale dizer, a razão instrumental), cada vez mais necessário, conduz ao aparecimento de uma nova ordem, um novo estatuto de existência - a "ordem utilitária".

Dentro da "ordem utilitária", os conceitos mais fundamentais relativos à produção, ao trabalho e à riqueza social alteram-se e tornam-se dependentes da circulação de mercadorias. Em poucas palavras: ser rico agora significa estar de posse de um conj unto de elementos materiais e simbólicos que permitam a circulação rápida e segura de mercadorias.

Do mesmo modo que antes, a nova ordem imprimia a sua marca." Produzia" uma nova"totalidade social". Criava as "cidades-porto" (fora e dentro de nosso país), modificando a função, a forma e o tamanho das cidades tradicionais; mudavaos hábitos e os costumes, e lançava as bases de uma profunda transformação cultural. Transformação cultural que levou as pessoas a adotarem uma nova visão-de-mundo e, fundamentalmente, a uma distinta maneira de autovalorizar-se. A estrutura social não apresentava mais a simplicidade, definição e clareza da ordem anterior. Tornara-se mais complexa pela entrada em ação de novos protagonistas e, sobretudo, pela mudança das "regras do jogo", que passava de um poder baseado nas pessoas para um novo poder, mais dinâmico e mais flexível, mediado pelo fluxo das mercadorias.

Como antes, a "ordem utilitária" era ambígua e contraditória, o mundo simbólico ocultava o verdadeiro significado que presidia a organização da sua base material.

As conquistas simbólicas eram amplas e profundas. Retomavam-se os grandes ideais da humanidade; a filosofia, as artes e as ciências floresciam. As forças produtivas achavam-se em franca expansão. A liberdade, a igualdade e a fraternidade afirmava-se como valores supremos, ao mesmo tempo em que, no plano ideológico, o poder do indivíduo era reafirmado e louvado por todos. Mas, à medida que se verificavam essas transformações, outras, que ocorriam, simultaneamente, pareciam negar-lhe o estatuto de uma existência plena e verdadeira.

A emergência do mercado, enquanto uma entidade cada vez mais presente na vida das pessoas, introduzia a sua lógica, e, junto com ela, um conjunto de circunstâncias que negavam o ideário de igualdade e de verdadeira liberdade individual, sobretudo, em face dainterveniência de mecanismos de regulação automática, objetivos e impessoais. Muitos chegaram mesmo a falar em "tirania do mercado".

A gestão dos recursos produtivos dentro da "ordem utilitária" refletia essa contradição, debatia-se entre duas culturas conflitantes: uma que valorizava a justiça social e as conquistas da humanidade, e a outra que enfatizava a prosperidade econômica e a livre iniciativa. Essa contradição atingia amplos setores da sociedade, onde o debate se polarizava em torno de questões como: governo ou mercado livre, comunidade ou liberdade individual.

O conflito entre essas duas culturas é um dos principais responsáveis pelas profundas transformações que ajudariam a constituir a ordem espiritual e material que vivemos atualmente. Não se trata aqui de descrevê-la em detalhes. Queremos apenas, com essa rápida regressão histórica, situar a temática da gestão dos recursos produtivos (particularmente a gestão dos recursos humanos), e realizar uma apreensão de significados que nos permita efetuar uma síntese capaz de vislumbrar possíveis propostas de evolução.

3. A EMERGÊNCIA DO "SISTEMA DE PRODUÇÃO EM MASSA DE PRODUTOS PADRONIZADOS"

Robert B. Reich, no seu inteligente livro A próxima fronteira americana, chama a primeira cultura de cívica. A cultura cívica, segundo o autor, tem uma visão-de-mundo baseada na comunidade e na cidadania.

"Sua preocupação com a participação democráticae divisão da riqueza tem origem na convicção de que tais compromissos enriquecem a vida e confirmam a interdependência das vidas individuais. O motivo do lucro é um anátema para essa visão, uma vez que, aparentemente, dá ao egoísmo precedência sobre o bem comum.

A busca do lucro não pode ser a única norma de comportamento, sustenta essa visão, portanto, neste caso, não haveria uma distinção clara entre a empresa produtiva e o roubo, entre comércio voluntário e a coerção. O medo e a cobiça sem controle destruiriam o tecido da comunidade."2 2 Reich, Robert B. A próxima fronteira americana. Record, 1983. p. 14-5.

A segunda cultura foi chamada por Reich de empresarial. A cultura empresarial, segundo o autor, "... possui uma visão moral própria - a da responsabilidade e liberdade individual. Segundo essa visão, o mercado oferece um princípio organizador superior à sociedade, porquanto promove o bem comum, ao mesmo tempo que preserva a autonomia individual. O mercado recompensa a iniciativa, na medida em que ela contribui para o bem-estar dos demais (...). O coletivismo é anátema para essa visão porque aparentemente desencoraja (as iniciativas) e confia, em vez disso, em incentivos mais intrusivos e menos eficientes, tais como coerção, compaixão ou patriotismo. Tal sociedade, segundo a visão moral da cultura dos negócios, resultaria em menos prosperidade e menos liberdade".3 3 Id. ibid. p. 15.

Essa contradição entre as duas culturas se manteve até os dias de hoje, quando, então, passou a haver uma significativa predominância da chamada cultura dos negócios. Antes disso, entretanto, havia um nítido equilíbrio ou uma relativa alternância entre as duas culturas que assim competiam pela hegemonia ideológica. A gestão dos recursos produtivos (e dos recursos humanos) se fazia conforme a ênfase da época.

Em tempos da cultura cívica, os temas de importância eram relacionados, predominantemente, às formas de governo, às políticas públicas e à eficácia da administração pública, tais como: as questões institucionais relativas à distribuição de renda; à alimentação de populações carentes; à igualdade de oportunidades; ao emprego/desemprego; à qualidade de vida urbana; ao transporte das populações; ao bem-estar social e à segurança pública; à participação popular; aos comitês de cidadãos; à educação pública e ao desenvolvimento cívico institucional; e às questões políticas e institucionais, relativas ao desenvolvimento auto-sustentado.

Em tempos de cultura empresarial, os temas de importância eram relacionados, predominantemente, com o volume de investimentos; com a produtividade e o crescimento econômico; com o controle da inflação e as conseqüências econômicas do desemprego; e, também, com a balança de pagamentos no comércio internacional. Em uma cronologia que faz sentido para a sociedade americana (e também para as demais, realizadas algumas modificações), Reich nos diz que a cultura dos negócios predominou na década de 1880, "época em que as técnicas de produção em massa começaram a transformar a relação entre administradores e trabalhadores, e nascia a sociedade anônima moderna". Declina, em seguida, na passagem do século, em virtude da insensibilidade da cultura dos negócios para assumir as responsabilidades sociais advindas do grande tamanho das empresas. No plano cívico, tal incompreensão ge rou um movimento progressista que resultou num conjunto de conquistas populares: legislação antitruste, criação da Comissão Federal do Comércio, leis que re gulamentavam horas e condições de trabalho, e leis que defendiam os consumidores contra medicamentos e produtos de alimentação perigosos ao consumo.4 4 Id. ibid. p. 19.

A cultura dos negócios, diz Reich,"recobrou forças na década de 1920, época em que as empresas estabelecem com o governo um trabalho cooperativo nas"juntas de indústrias de Guerra", readquirindo, através dessa associação, a credibilidade pública. Seu prestígio cai logo em seguida, em virtude de reivindicações não atendidas e que partiram dos trabalhadores e do público consumidor em geral. Esta situação permanece até a década de 1950 e princípios da de 1960, quando a cultura empresarial assume mais uma vez a sua hegemonia. "As políticas fiscal e monetária do governo asseguravam, aparentemente, o crescimento econômico, e os americanos desfrutavam a prosperidade que empresas e governo, trabalhando juntos, pareciam prometer.5 5 Id. ibid. p. 19-20.

Do mesmo modo que os Estados Unidos, os países da Europa (com exceção da Grã-Bretanha) e, mais tarde, muitas outras nações, tiveram a sua evolução econômica animada pelos conflitos existentes entre essas duas culturas ou "totalidades sociais". Enquanto os Estados Unidos fizeram seu desenvolvimento mobilizando recursos e expandindo as fronteiras econômicas por dentre espaços quase vazios, as demais nações realizaram a sua transformação através de um movimento de rearticulação dos enclaves produtivos, mercantis e fabris, que existiam no interior da ordem feudal ou patrimonial. "Para elas", diz Reich, "o progresso econômico foi, por necessidade, menos uma questão de mobilizar recursos do que transformar a sociedade - desmantelar e reestruturar a ordem social existente".6 6 Id. ibid. p. 26-7. * N. do A. Associação de corporações de operários, artesãos, etc.

Mais cedo ou mais tarde, as demais nações, que embarcaram na via do desenvolvimento industrial, foram obrigadas a compreender (dentro das suas condições sociais específicas e segundo o seu momento histórico próprio) os vínculos existentes entre cultura cívica e cultura dos negócios. "Seus governos foram os instrumentos com os quais as nascentes classes médias de comerciantes e industriais lutaram para remover as incrustações do feudalismo - as rígidas estruturas de privilégios econômicos, posição na sociedade e tradição, que bloqueavam a mudança econômica. A industrialização nesses países ocorreu mais tarde e foi mais penosa, com freqüência mais violenta, do que na América. Seus mercados nacionais, além disso, eram menores, e velhas guildas de ofícios retardavam a mudança econômica, com o resultado de que a produção em massa nunca lançou raízes tão fortes nessas nações como nos Estados Unidos."7 7 Id. ibid. p. 27.

O clímax desse processo de transformação resultou, tanto nos Estados Unidos, como nas demais nações, em uma "totalidade social" inteiramente distinta das das suas predecessoras. Os alicerces dessa nova realidade ou a base material de sua organização apoiava-se no "sistema de produção em massa de produtos padronizados". O núcleo dessa totalidade, contudo, o sentido mais profundo de sua organização, exibia, também, como a anterior, uma natureza contraditória: o mundo simbólico e sua base material se reforçavam ou se contradiziam segundo determinadas circunstâncias particulares. Este sentido estava relacionado a um processo de criação do valor - material e simbólico - intimamente ligado à produção da riqueza social. Só que, agora, o conceito de riqueza era distinto; não se tratava apenas de circular mercadorias como antes. Tratava-se de produzir mercadorias com seus conhecidos valores de uso e troca, e mais, com aquilo que Baudrillard chamou de "valor-signo".8 8 Baudrillard, Jean. À sombra das maiorias silenciosas, São Paulo, Brasiliense, 1985. 39-40.

Antigamente, diz Baudrillard, "bastava ao capital produzir mercadorias, o consumo sendo mera conseqüência. Hoje, é preciso produzir os consumidores, é preciso produzir a própria demanda e essa produção é infinitamente mais custosa do que as das mercadorias (...). A demanda de objetos e de serviços sempre pode ser produzida artificialmente, a um preço elevado, mas acessível, o sistema já o demonstrou", diz o autor. "O desejo de sentido, quando falta, o desejo de realidade, quando se faz ausente em todas as partes, não podem ser plenamente satisfeitos e são um abismo definitivo".9 9 Id. ibid. 26-7.

O novo sistema de produção em massa deveria, assim, ser capaz não só de produzir grandes massas de produtos e serviços para serem consumidos por grandes massas de pessoas, como, também, ser capaz de transformar essas mesmas pessoas em grandes massas de consumidores.

Segundo Baudrillard, o consumo das massas "nunca teve imediatamente nenhuma relação (talvez nunca tenha) com as necessidades. Elas fizeram do consumo uma dimensão de status e de prestígio, de promessa inútil ou de simulação (...). É"pelo valor/signoe pelo jogo desenfreado do valor/ signo (...)", que sempre ultrapassa o valor de uso e é bem diferente do valor de troca, que se dá o consumo das massas.10 10 Id. ibid. p. 39-40

Assim, o sistema de produção em massa, a par de suas distintas características materiais de produção, introduziu a lógica (ou falta de lógica, como quer Baudrillard) das grandes massas. Modelou, inicialmente seu meio empresarial de origem e, em seguida, impregnou com o seu nexo (ou falta de nexo) o meio social mais amplo. As nações do mundo aceitaram-na e reproduziram-na porque ela constituía a própria definição de riqueza social que acabava de se instalar.

Passo a passo, as sociedades nacionais estruturaram-se em torno do nexo (ou falta de nexo) concedido por esse processo de produção. A visão de mundo surgida da nova forma de produzir, a um só tempo material e simbólica, modelou não só as empresas, mas também todas as demais organizações complexas e instituições da sociedade: os governos, os sindicatos, os perfis profissionais e, acima de tudo, a maneira peculiar como as pessoas vieram a se auto valorizar.11 11 Ver Riech, Robert B. op. cit. p. 35, 65.

4. A "SOCIEDADE DE CONSUMO", A RIQUEZA SOCIAL E A GESTÃO DOS RECURSOS PRODUTIVOS

Em seu famoso livro dos fins de século XVIII, A riqueza das nações, Adam Smith afirmava que"o consumo é o único fim objetivo da produção".12 12 Apud Naisbitt, John. Megatendências. São Paulo, livros Abril/Círculo do Livro, 1983. p. 175.

É dele também a famosa idéia de que o fornecimento de um produto, como a carne, por exemplo, não dependia da benevolência ou do altruísmo do açougueiro, mas do interesse pessoal dele em obter ganhos financeiros.

Adam Smith atribuía essa motivação pessoal a uma característica, chamada por ele de "propensão à troca" (propencity to barter), a qual, segundo ele, fazia parte da própria natureza humana.

Adam Smith, que presenciava as transformações profundas que se operavam na Inglaterra do seu tempo, com esta explicação destorcia as circunstâncias históricas reais. Atribuía aos seres humanos uma característica própria dos sistemas econômicos ou das leis do mercado . Em verdade, a grande transf ormação operada pela "ordem utilitária" temosentido oposto. A razão, que antes era uma qualidade inerente aos seres humanos, passava a ser um atributo dos sistemas econômicos. Transformara-se de razão substantiva em razão instrumental. O convívio social, que antes se organizava em torno de características humanas ou pessoais, progressivamente se transfere para a chamada"ordem objetiva das coisas" (das leis econômicas, do mercado, etc). É justamente essa"ordem objetiva das coisas" que passa a ser o veículo privilegiado para a realização de quaisquer transformações. Não são mais as pessoas os agentes da história e os seres inteligentes da transformação. São os sistemas, que, doravante, passam a ser "inteligentes" e "capazes", através da "autodinâmica das suas contradições objetivas", de realizar as transformações sociais requeridas. São os sistemas que são dotados de razão instrumental e de uma "propensão a troca", e não as pessoas, como queria Adam Smith.

No início, como vimos, essa troca resumia-se a uma simples movimentação de produtos visando a atender determinadas necessidades. A riqueza social estava associada, predominantemente, à produção de valores de uso. Mais tarde, essa troca passou a assegurar a manutenção de um conjunto de elementos materiais e simbólicos ligados aos mecanismos de mercado. Esta troca precisava, agora, "sustentar" um conjunto de pessoas, instalações, equipamentos, serviços, processos e idéias, ligados aos mecanismos de mercado. A riqueza social, nessas circunstâncias, estava associada, predominantemente, à produção de valores de troca.

Contudo, Baudrillard nos asseverou que, com o advento das sociedades de massas, a riqueza social estaria associada, predominantemente, à produção de valores simbólicos, verdadeiros ou falsos. Nessa perspectiva, não se trata apenas de ajudar a manutenção ou reprodução do aparato de mercado. Trata-se de internalizar a sua própria lógica (ou falta de), através da incorporação dos seus próprios símbolos. Trata-se de produzir a própria demanda; produzir os consumidores. Trata-se de as pessoas, elas próprias, virarem mercadorias. Nesse sentido, a "propensão à troca" passaria a ser, realmente, uma característica dos indivíduos, como inicialmente queria Adam Smith, e não mais um atributo dos sistemas de mercado.

O advento dessa realidade social tem implicações muito profundas que não iremos abordar. Baudrillard fala no fim das relações sociais; no fim da economia e das instituições políticas como as conhecemos hoje.13 13 Baudrillard, Jean. op. cit. Em uma outra perspectiva, David Riesman descreve, em um livro de grande repercussão, o fenômeno das "multidões solitárias".14 14 Riesman, David. A multidão solitária. São Paulo, Perspec tiva. 1971. Jacques EIIul, analisa, em detalhes, o que chama o "novo" proletário.15 15 Ellul, Jacques. Mudar de revolução. Rio de Janeiro, Rocco 1985. Os nomes podem ser diversos, mas a preocupação é uma só: tentar demonstrar que as sociedades de massas constituem uma "totalidade social" inteiramente distinta.

Nessa nova ordem, ser rico significa incorporar, materialmente e espiritualmente, os símbolos característicos, verdadeiros ou falsos, dos objetivos de maior fascinação. Internalizar o "poder dos objetivos".

Em resumo, abordamos, ao longo de nossas discussões, três formas de riqueza social: a típica das sociedades tradicionais, que chamamos de "patrimoniaP'; a típica das sociedades mercantis (ou capitalistas, na sua fase inicial), que chamamos de "utilitária"; e a típica das sociedades de massas, que chamamos de "simbólica". Qual dessas três formas de riqueza estamos ajudando a construir, enquanto profissionais, ou tentando adquirir, enquanto seres individuais?

Antes que comecemos a responder a essas perguntas, convém que se reflita um pouco mais sobre o que poderia constituir a síntese fundamental que estamos tentando realizar.

Vimos que a "ordem utilitária" se forma no interior da própria "totalidade patrimonial". A princípio, enquanto enclaves incipientes ou "sementesdo futuro". Esses enclaves, posteriormente, se articulam e se desenvolvem, criando, por esse intermédio, uma nova realidade. A "totalidade patrimonial" não desaparece, só que adquire um estatuto de existência que não é mais hegemônico; integra-se à totalidade maior de maneira complementar e subsidiária. Em síntese, partimos de um todo diferenciado e estruturado que se reorganiza em um novo todo, também diferenciado e estruturado, só que em novas bases. Essa visão da evolução histórica é distinta daquela de inspiração hegeliana, que vê um todo indiferenciado e inestruturado, portanto abstrato, transformando-se noutro todo abstrato, indiferenciado e inestruturado.16 16 Ver Garcia, R.M. Tecnologia apropriada: amiga ou inimiga oculta (artigo a ser publicado). Tudo se passa como se, subitamente e de modo misterioso, todas as árvores de uma determinada floresta, por exemplo, fossem substituídas completamente por outras árvores de uma espécie distinta, e cuja origem fosse inteiramente desconhecida. Dentro da nossa visão, diferentes "coletividades de árvores" coexistem de modo diferenciado e estruturado, estabelecendo uma certa organização entre elas. Nessa organização, pode haver um certo equilíbrio entre os grupos, ou uma certa coletividade pode imprimir as suas características principais a todo o conjunto de árvores. Como assinalamos, essa organização jamais constitui uma estruturação mecânica de partes. Por conseguinte, existem contradições entre os diferentes grupos e, também, dentro deles.

Se a transformação das"totalidades sociais" não se faz pela "superação" de um todo por outro, como quer Hegel, mas pela reorganização dessa totalidade, que se torna capaz de articular as pré-existentes em novo reordenamento, eis aí a chave do nosso raciocínio e a síntese que buscávamos. Repetindo: as transformações se fazem pela reorganização de totalidades complexas, diferenciadas e contraditórias, em outras totalidades também complexas, diferenciadas e contraditórias. Quais seriam, portanto, a importância, o significado, e a conseqüência dessa distinta maneira de ver as coisas?

Em primeiro lugar, assumir a pluralidade é uma situação objetiva e real. Ela é econômica, social e política. É bem verdade que a sociedade industrial de massas imprimiu a sua lógica, mas esta sempre conviveu com os interesses patrimoniais ligados à agricultura tradicional e com os interesses utilitários dos vários setores mercantis. As sociedades homogêneas e monocráticas só existem nos livros-textos de economia e nas simplificações absurdas de alguns auto-intitulados cientistas sociais. Norberto Bobbio, com a sua costumeira propriedade, nos diz que o pluralismo das sociedades modernas" (...) não é uma invenção dos católicos ou dos comunistas, mas uma realidade que os católicos e os comunistas, e inclusive os que não são nem católicos nem comunistas, procuram interpretar, cada um a seu modo, e da qual procuram prever a evolução (para não ficar atrás) ou a involução (para apresentar-lhe remédio)".17 17 Bobbio, Norberto. O futuro dademocracia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. p. 59.

Em segundo lugar, em face disto, a noção de riqueza social também é plural. Não se verifica a existência isolada de uma única forma de riqueza. Cada grupamento social e cada atividade econômica produz o seu tipo particular de riqueza social. Em outras palavras: o tipo "mais desenvolvido" de riqueza que é a "simbólica" precisa coexistir com a riqueza "utilitária" e "patrimonial". Assim, a riqueza gerada pelas chamadas "indústrias do conhecimento" coexiste com a riqueza gerada pela indústria convencional, pelo comércio ou pela agricultura tradicional.

Em terceiro lugar, o ato de produção e consumo também é plural. Em um único produto (ou compra isolada) ou em distintos produtos (ou formas distintas de compra), estão contidos os valores de uso, de troca e simbólicos. Ao se produzir ou se adquirir uma simples camisa, os três valores podem estar aí contidos: atende-se a uma necessidade, consciente ou inconsciente, de proteção (valor de uso); prestigia-se um Shopping Center da moda (valor de troca); e incorpora-se um estilo de descontração jovem (valor simbólico). É óbvio que a generalização do hábito de se adquirirem griffes famosas é uma indicação de que o valor simbólico está exercendo uma influência talvez exagerada. Mas, por outro lado, ninguém iria adquirir uma camisa, por mais famosa que fosse a sua marca, que não atendesse, minimamente, aos outros dois requisitos de valor.

Em quarto lugar, na perspectiva da pluralidade, certas noções fundamentais sobre a evolução econômica e histórica de nosso país deverão ser modificadas. Precisamos urgentemente de uma abordagem multilinear e diferenciada, capaz de apreender as distintas configurações, que expressariam as relações existentes (atuais e possíveis) entre diferentes setores da economia como, por exemplo: setor "tradicional", "moderno", "pós-moderno" e "alternativo". Noções genéricas como sociedade capitalista e modo de produção capitalista precisarão ser objetivadas em situações particulares, sociais e históricas, bem delimitadas. Em realidade, esses termos genéricos sugerem uma perspectiva histórica conservadora (de origem hegeliana), pois a um todo indiferenciado e abstrato sucederá um outro todo também indiferenciado e abstrato. Cruzam-se os braços à espera de que a atual totalidade social na qual vivemos seja substituída por uma outra totalidade abstrata que sairá não se sabe de onde.

Em quinto lugar, a teoria e prática da administração deverão ser revistas. Como bem demonstrou Reich, a administração, tal como a vemos e praticamos hoje, é um produto do sistema de produção em massa de produtos padronizados. Nos países céntricos e pós-industriais, essa administração, como assinala o autor, teve o seu fim por volta de 1970.18 18 Reich, Robert B. op. cit. p. 143.

"A imaginação administrativa", diz Reich, "inventou instituições estáveis, cuidadosamente projetadas para encorajar certos tipos de comportamento e voltadas para a consecução eficiente de fins claros e especificados (...). Em sua base, a administração implica novo entendimento sobre a maneira como as instituições deveriam ser organizadas. E o modelo que inspirou essa organização foi a máquina aerodinâmica, fabricada de acordo com critérios de precisão, destituída de partes supérfluas."

"A imaginação administrativa", porém, refletia muito mais do que um simples modismo estético. A forma gerencial de instituição era a estrutura mais eficiente para organizar o desempenho de um conjunto integrado de tarefas simples, repetitivas. Administradores preocupavam-se exclusivamente com a busca eficiente da produtividade, como se esperava que fizessem e pela qual eram recompensados. O código profissional dos administradores assentava-se no ideal de eficiência, e as empresas onde trabalhavam e as pessoas que controlavam eram vistas como agentes para a consecução desse ideal.

"A ciência da administração, transformada num cânone de princípios aplicados por administradores profissionais, determinou, por meio século, a forma das organizações americanas" (...). "A ciência da administração oferecia um conjunto de princípios para o controle de grandes organizações - princípios aparentemente tão universais e imutáveis como as leis da física."19 19 Id. ibid. p. 77,78.

Essa visão das coisas, própria daquilo que Reich chamou "era da administração", teve o seu início nos Estados Unidos, por volta de 1920, tendo seu ciclo se esgotado por volta de 1970, como assinalamos anteriormente. Em verdade, dentro do nosso paradigma plural de ver as coisas - o todo estruturado e diferenciado - "a era da administração" não deixou de existir. Perdeu apenas a sua hegemonia. Cedeu lugar para os setores chamados "pós-industriais", os "sistemas flexíveis de produção", ligados, predominantemente, aos setores de produtos de precisão, produtos sob medida, e produtos de alta densidade tecnológica.20 20 Ver Reich, Robert B. op. cit. p. 155, 156, 157. Não houve, no caso, a superação de um todo por outro. A"totalidade social" sofreu, então, uma significativa reorganização.

Em nosso país, os problemas administrativos são bem mais diversificados e complexos do que os encontrados nos Estados Unidos. O sistema de produção em massa não causou, em nosso país, o mesmo impacto de estruturação econômica, e não exerceu a mesma influência uniformizadora sobre as instituições sociais como aquela que ocorreu nos Estados Unidos. Todos nós sabemos que, no conjunto de nossa sociedade ou de nossos setores produtivos, ainda sobrevivem "totalidades sociais" ou "culturas específicas" de épocas anteriores. Mesmo dentro dos setores industriais mais avançados da nossa economia, ainda se observa a sobrevivência de hábitos culturais de épocas passadas, o que significa que o administrador brasileiro é, ao mesmo tempo, um capataz (qualificado ou não), um gestor utilitário, um administrador profissional, um manipulador de símbolos e, para alguns, um imaginativo empreendedor.

Em nosso país, faz-se obrigatório realizar, por conseguinte, uma distinção qualitativa da administração. Vis lumbramos, pelo menos, três tipos distintos de teorias e práticas administrativas:

1. Administração como força estruturante ou como processo estratégico de emancipação. É a administração imaginativa e empreendedora, aquela praticada pelos enclaves dinâmicos de uma sociedade qualquer. As atividades mercantis e fabris desempenhadas no interior de uma ordem patrimonial tinham essa vocação. Quando se recorre à história, é que se percebe o notável grau de compromisso existencial assumido por esses grupos emergentes com a transformação social. Administrar nessa perspectiva implica delimitar e gerir um"campo de possibilidades", antecipando, assim, a construção do "todo ausente", que ainda não se realizou, mas que, pela sua própria ausência, anuncia a força de sua inevitável presença.

2. Administração como prática profissional ou processo técnico de operações, visando à obtenção da eficácia e eficiência organizacionais. É a administração voltada para o controle dos recursos produtivos, materiais e humanos. É a administração dos livros-textos e/ou manuais técnicos sobre gerência. Tem a pretensão de constituir um corpo de conhecimentos e de regras de ação de caráter científico, à semelhança dos princípios universais e imutáveis das ciências físicas e naturais.

3. Administração como ideologia. É a administração voltada para a manipulação simbólica e para o controle social. Constitui, não rigorosamente, uma "metafísica", mas, propriamente, uma "parafísica" ou "(...) a ciência das soluções imaginárias, ciência da simulação e da hipersimulação de um mundo exato, verdadeiro, objetivo..."21 21 Baudrillard, Jean. op. cit. p. 31.

É a ciência delirante capaz de incorporar, através de simulações, contrafações e inversões, os elementos significantes das teorias revolucionárias as mais diversas. É a ciência que descobriu a"alma humana" e se utiliza dos seus mecanismos de fuga, de defesas e compensações psicológicas para reforçar as imagens desgastadas de um ideário revolucionário inteiramente falsificado. Não é por coincidência que certas versões de um marxismo de direita, positivista, sejam tão populares nas escolas de economia e de administração do país.

Agora, talvez, pudéssemos tentar responder à pergunta formulada anteriormente. Que tipo de riqueza queremos construir, enquanto profissionais, ou obter, enquanto pessoas?

Tal resposta implicaria, evidentemente, esclarecer uma outra questão: que tipo de administração gostaríamos de praticar ou poderíamos fazê-lo?

Para que estas perguntas sejam respondidas haverá necessidade de discutirmos um pouco mais sobre a pluralidade brasileira, tentando caracterizar os seus distintos sistemas de produção.

5. BREVE CARACTERIZAÇÃO DOS SISTEMAS PRODUTIVOS NACIONAIS

Guerreiro Ramos, em trabalho realizado para a Universidade Federal de Santa Catarina, tenta uma classificação dos múltiplos sistemas de produção em nosso país, deixando o leitor avisado de que o resultado obtido deve ser considerado apenas uma "exploração preliminar" e seu rigor tipológico ainda grandemente precário.22 22 Guerreiro Ramos, A. Considerações sobre o modelo alocativo do governo brasileiro. Cadernos do Curso de pós-graduação em Administração, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, p. 30, 1980.

Além de formas extremas como os monopólios estatais, o autor vê a economia brasileira constituída dos seguintes sistemas de produção:23 23 Id. ibid. p. 31,32.

1. Sistema oligopolizado de produção (ou sistema de planejamento).

"É composto de empresas que se dedicam à produção de bens ou prestação de serviços de alta sofisticação técnica ou mercadológica. Tais empresas dominam amplamente o mercado em que atuam, e são essencialmente cosmopolitas, pois estão funcionalmente articuladas (quando não subordinadas) a empresas e instituições que operam nos centros mais desenvolvidos."24 24 Id. ibid. p. 31.

2. Sistema de produção de relativa competitividade

"Composto de empresas que atuam em ambiente competitivo, aproximando-as dos modelos clássicos da economia de mercado. Predominantemente (embora não exclusivamente), é representado por empresas médias e pequenas."25 25 Id. ibid. p. 31.

3. Sistema fronteiriço

"Composto de organizações que se encontram em uma das duas situações extremas: ou adquirem certas características que as aproximam dos oligopólios (como é o caso de empresas regionais, com dominante participação nos mercados que atuam), ou, ao contrário, estão sendo alijadas do mercado por força de fatores tecnológicos ou mercadológicos, como é o caso de empresas tradicionais que não resistem às inovações tecnológicas e mercadológicas a que estão crescentemente expostas pela internacionalização progressiva da economia brasileira."26 26 Id. ibid. p. 31, 32.

4. Sistema quase-formal de microprodução

Compõe um conjunto de empreendimentos em que "... certos aspectos da lógica inerente à teoria de mercado se aplicam, embora de forma flexível, instável e episódica. O artesão, o profissional liberal, o "empreiteiro" de serviços de construção civil ou reparos, o intermediário de negócios que age eventualmente, o biscateiro, são exemplos desta categoria".27 27 Id. ibid. p. 32.

Sistemas conviviais e comunitários de produção "Incluem a associação de pequenos grupos humanos (entre os quais, por exemplo, a família) para a produção de bens de serviços. É o caso, por exemplo, da comunidade social/ religiosa, da vizinhança que organiza pequenas creches, da prestação de serviços comunitários, de certos tipos de cooperativas, da pequena agricultura de hortigranjeiros, ou do armazém familiar das regiões isoladas".28 28 Id. ibid. p. 32.

Como se pode perceber, o sistema produtivo brasileiro apresenta uma pluralidade extremamente rica e complexa.

Essa complexidade se vê agravada pelo ordenamento politicamente assimétrico do comércio internacional que acaba privilegiando particularmente o setor oligopolizado da economia, oque, sistematicamente, acaba provocando a desqualificação material e simbólica dos demais setores produtivos, notadamente aqueles que têm um caráter tipicamente nacional. As empresas multinacionais que operam no setor oligopolizado da economia, diz Guerreiro Ramos, "(...) são capazes de criar ou alterar significativamente padrões de comportamento e consumo",29 29 Id. ibid. p. 31. e, se não adequadamente reguladas, podem provocar impactos e reflexos sociais altamente negativos. Portanto, mais do que uma presença econômica marcante, essas empresas oligopolizadas constituem uma "totalidade social" (da mesma maneira que as suas predecessoras) que, além da função produtiva, apresenta as características de uma poderosa instituição política e de um "espaço cultural" da maior importância.

É sobretudo através dessas dimensões ideológicas que as empresas oligopolizadas exercem o seu fascínio e impõem a sua lógica. A maioria dàs teorias econômicas e administrativas, ao ignorarem a pluralidade, tornam-se subservientes de um raciocínio padronizado e desqualificador, e terminam por render as suas homenagens a uma conjunto de preceitos nitidamente apologéticos. A despeito do glamour que procuram ostentar, essas teorias são "provincianas", uma vez que desconsideram o universo total dos setores produtivos. Para os economistas e administradores convencionais (tanto do Ocidente quanto do Oriente), tudo aquilo que se realiza fora do setor oligopolizado é irrelevante. Não são atividades produtivas pertinentes, nem tampouco se as poderia considerar trabalho produtivo. São por eles chamadas "espaços de reprodução" ou"de consumo improdutivo".

No caso brasileiro, em face da evolução histórica do nosso país e da presença marcante do estado na economia, não seria correto aceitar esses pontos de vista. O poder do setor oligopolizado não deve ser atribuído apenas à sua indiscutível, contudo relativa, força econômica. Quando se procura avaliar a verdadeira posição das empresas oligopolizadas dentro de uma perspectiva plural de riqueza, o que se verifica é um decréscimo significativo da sua pretensa importância econômica.

Em termos estatísticos, as empresas do setor oligopolizado não chegam a constituir 1% do número total dos empreendimentos produtivos (considerando-se empresas, associações civis e instituições do Estado). E, também, não chegam a empregar 20% do contingente total dos trabalhadores.30 30 Ver Hurber, Joseph. Quem deve mudar todas as coisas: as alternativas do movimento alternativo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985. p. 49. Mas, dirão alguns, elas produzem cerca de 70% da riqueza gerada pela economia. Só que a riqueza social aí considerada é aquela definida segundo os critérios cognitivos e simbólicos estabelecidos pelo próprio setor oligopolizado. Ao adotar-se uma definição plural de riqueza social, a contribuição deste setor pode ser estimada em menos de 30%.31 31 Id. ibid. p. 47, 48.

Este é o grande mito que precisava ser revisto. As suas causas são múltiplas e profundas. Algumas são difíceis de se identificar. Outras são muito evidentes, como a presença massacrante desse setor nos veículos de comunicação de massa e a distorção cognitiva que daí resulta.

Se me perguntassem agora qual o papel que deveria exercer um administrador de recursos produtivos, responderia: para que setor da economia? E com que perspectiva de administração? Empreendedora? Técnico-profissional? Ou ideológica?

É preciso deixar claro que não estamos negando a real contribuição do setor oligopolizado para a edificação da riqueza nacional. Também é necessário deixar claro que não estamos propondo nenhuma regressão histórica. Estamos, isto sim, procurando situar a verdadeira importância do setor oligopolizado em face do conjunto dos demais setores produtivos. Afinal de contas, cada um dos mencionados setores pode ser gerido segundo uma perspectiva empreendedora, o que vale dizer que a nossa visão da transformação económico-social é, como procuramos demonstrar, diferenciada e multilinear.

Se imaginássemos uma matriz, onde as linhas fossem constituídas pelos setores produtivos descritos (do oligopolizado aos convivíais e comunitários), e as colunas, as distintas perspectivas de administração (empreendedora, técnico-profissional, ideológica), o espaço representado pelo encontro dessas linhas e colunas constituiria campos de atuação específicos para a gestão dos recursos produtivos. Estamos, assim, definindo, de um modo plural, os distintos papéis que poderiam ser desempenhados pelos administradores de um modo geral, e, principalmente, por aqueles interessados no desenvolvimento dos recursos humanos.

Como sou daqueles que acreditam que a história é um processo aberto a múltiplas possibilidades, convido-os a ocuparem o lugar que merecem dentro dessa matriz - a exercerem o tipo de administração que lhes convém ou com o qual se sintam mais à vontade.

Não obstante, a despeito da posição escolhida, gostaria de que refletissem sobre a seguinte afirmação de Gandhi: os pobres, os marginalizados, e os destituídos do mundo não podem ser ajudados pela produção em massa, mas tão-somente pela produção exercida pelas massas.

  • 2 Reich, Robert B. A próxima fronteira americana. Record, 1983. p. 14-5.
  • 8 Baudrillard, Jean. À sombra das maiorias silenciosas, São Paulo, Brasiliense, 1985. 39-40.
  • 14 Riesman, David. A multidão solitária. São Paulo, Perspec tiva. 1971.
  • 15 Ellul, Jacques. Mudar de revolução. Rio de Janeiro, Rocco 1985.
  • 17 Bobbio, Norberto. O futuro dademocracia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. p. 59.
  • 22 Guerreiro Ramos, A. Considerações sobre o modelo alocativo do governo brasileiro. Cadernos do Curso de pós-graduação em Administração, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, p. 30, 1980.
  • *
    Conferencia proferida no V Congresso Paulista de Admi nistração de Recursos Humanos, Palácio das Convenções do Parque Anhembi, 27a30jul. 1986, São Paulo, SP; e no V Congresso Brasileiro de Treinamento e Desenvolvimento, Minas Centro, 24 a 27 de ago. 1986, Belo Horizonte, MG.
  • 1
    Ver Polanyi, Karl.
    A grande transformação. Rio de Janeiro, 1980.
  • 2
    Reich, Robert B.
    A próxima fronteira americana. Record, 1983. p. 14-5.
  • 3
    Id. ibid. p. 15.
  • 4
    Id. ibid. p. 19.
  • 5
    Id. ibid. p. 19-20.
  • 6
    Id. ibid. p. 26-7.
    * N. do A. Associação de corporações de operários, artesãos, etc.
  • 7
    Id. ibid. p. 27.
  • 8
    Baudrillard, Jean.
    À sombra das maiorias silenciosas, São Paulo, Brasiliense, 1985. 39-40.
  • 9
    Id. ibid. 26-7.
  • 10
    Id. ibid. p. 39-40
  • 11
    Ver Riech, Robert B. op. cit. p. 35, 65.
  • 12
    Apud Naisbitt, John.
    Megatendências. São Paulo, livros Abril/Círculo do Livro, 1983. p. 175.
  • 13
    Baudrillard, Jean. op. cit.
  • 14
    Riesman, David.
    A multidão solitária. São Paulo, Perspec tiva. 1971.
  • 15
    Ellul, Jacques.
    Mudar de revolução. Rio de Janeiro, Rocco 1985.
  • 16
    Ver Garcia, R.M. Tecnologia apropriada: amiga ou inimiga oculta (artigo a ser publicado).
  • 17
    Bobbio, Norberto.
    O futuro dademocracia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. p. 59.
  • 18
    Reich, Robert B. op. cit. p. 143.
  • 19
    Id. ibid. p. 77,78.
  • 20
    Ver Reich, Robert B. op. cit. p. 155, 156, 157.
  • 21
    Baudrillard, Jean. op. cit. p. 31.
  • 22
    Guerreiro Ramos, A. Considerações sobre o modelo alocativo do governo brasileiro.
    Cadernos do Curso de pós-graduação em Administração, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, p. 30, 1980.
  • 23
    Id. ibid. p. 31,32.
  • 24
    Id. ibid. p. 31.
  • 25
    Id. ibid. p. 31.
  • 26
    Id. ibid. p. 31, 32.
  • 27
    Id. ibid. p. 32.
  • 28
    Id. ibid. p. 32.
  • 29
    Id. ibid. p. 31.
  • 30
    Ver Hurber, Joseph. Quem deve mudar todas as coisas: as alternativas do movimento alternativo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985. p. 49.
  • 31
    Id. ibid. p. 47, 48.
  • Publication Dates

    • Publication in this collection
      20 June 2013
    • Date of issue
      June 1987
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