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Os movimentos libertários em questão - A política e a cultura nas memórias de Fernando Gabeira

RESENHAS

Denice Barbara Catani

Professora-Assistente da Faculdade de Educação da Universidade da São Paulo

OS MOVIMENTOS LIBERTÁRIOS EM QUESTÃO - A política e a cultura nas memórias de Fernando Gabeira

Cláudio Novaes Pinto Coelho, Petrópolis, Vozes, 1988,158 páginas.

Após o decreto de anistia (agosto/1979), a volta dos exilados políticos trouxe à cena brasileira a figura polêmica de Fernando Gabeira e este passou a ser constantemente chamado pela imprensa a pronunciar-se sobre sua experiência como guerrilheiro, sua vida de exilado e suas opiniões sobre os mais variados temas da situação do país. Com a publicação de seus livros ele refaz a própria trajetória, de guerrilheiro urbano a integrante de movimentos alternativos, passando por seu rompimento com a esquerda, no exílio, e sua identificação com propostas libertárias.

Os Movimentos Libertários em Questão, de Cláudio Novaes Pinto Coelho, propõe-se a analisar as memórias escritas por Gabeira, entendendo-as como ponto de confluência dos principais processos sociais que estiveram e estia associados a 'propostas libertárias', e que ao ocorrerem no Brasil, introduzem mudanças nos conceitos de cultura e de política. As finalidades mais amplas deste estudo voltam-se para o esclarecimento das idéias e atitudes desenvolvidas no interior dos movimentos de classe média, e que se traduzem na defesa de modos de vida específicos de grupos como mulheres, negros, homossexuais e no combate às relações de poder existentes na sociedade em geral.

Apresentado originalmente como dissertação de mestrado cm Antropologia Social na UNICAMP, o livro não padece dos vícios comuns a este tipo de trabalho - não é tedioso e nem peca pelo academicismo - e exibe virtudes raras na espécie a que pertence, pois é fácil de ser lido e não faz concessões à superficialidade. O estudo toma como ponto de partida a constatação acerca da importância que adquirem nos anos setenta, no Brasil, justamente as lutas sociais que não se caracterizam pelos conflitos de classe, mas que se instauram como decorrência de relações raciais e sexuais onde vigora a discriminação a determinados grupos. Tais movimentos são situados pelo autor como movimentos sociais da classe média» E uma vez que esses movimentos têm por finalidade o combate às relações de poder, o autor adota para nomeá-los o termo libertários, com seu sentido tradicional, desde o uso feito pelos anarquistas.

A fim de compreender as articulações entre os diferentes processos sociais que marcaram o passado recente da sociedade brasileira, de modo a situar o significado da atuação das obras de Gabeira, Cláudio Coelho utiliza-se concomitantemente de investigações ligadas ao referencial antropológico e de trabalhos de crítica literária, o que lhe permite apreender as características dos textos memorialísticos. Dividido em sete capítulos, o livro refaz a trajetória do ex-guerrilheiro mediante a análise dc três de suas produções, quais sejam, O Que É Isso, Companheiro?, O Crepúsculo do Macho e Entradas e Bandeiras. Tais obras narram o passado do militante, sua aproximação com os movimentos libertários e sua tentativa de integração aos mesmos.

Esta análise da trajetória dc Gabeira, concretizada a partir de suas memórias, e com todos os cuidados de que o autor se cerca para ter presente a especificidade dos textos que reavaliam o passado, conduz a esclarecimentos significativos sobre a dinâmica interna dos movimentos libertários, ao mesmo tempo em que acena para uma perspectiva pouco alentadora. A principal marca das utopias libertárias consistia na luta por formas de relacionamento onde não houvesse dominação, e no interior de seus grupos deveriam ser mantidas relações igualitárias. Na verdade o autor mostra que no Brasil, para o período analisado, cada um dos grupos buscava a hegemonia e pretendia apresentar-se como mais revolucionário ou como modelar para as identificações e atuações que os outros grupos deveriam realizar. A experiência de Gabeira com o feminismo demonstra isso.

A leitura de Os Movimentos Libertários em Questão vale por todas essas razões e, mais ainda, enquanto nos dá conta das articulações entre a efervescência da década de 60 e a vivência de um membro dos movimentos guerrilheiros urbanos. Vale ainda para a explicitação das configurações assumidas, na década seguinte, pelas experiências que escolhem a via alternativa do combate aos conflitos de poder nas relações intergrupais e na vida cotidiana.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1989
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