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O investimento estrangeiro na URSS

NOTAS E COMENTÁRIOS

O investimento estrangeiro na URSS

Lenina Pomeranz

Professora doutora na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP) e pesquisadora sobre a economia soviética

RESUMO

Este texto faz uma análise sucinta da instalação de joint-ventures na URSS entre 1987 e 1988, com base na relação dos seus registros no Ministério das Finanças da URSS. Descreve o objetivo das autoridades soviéticas ao instituir a legislação específica e analisa os seus primeiros resultados.

Palavras-chave: URSS, joint-ventures.

ABSTRACT

This paper summarizes the first results of the soviet policy concerning the establishment of joint-ventures with foreign capital in the USSR through 1987-1988. The data utilized in the analysis is the roll of joint-ventures registered at the Ministry of Finances of the USSR.

Key words: USSR, joint-ventures.

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Um dos aspectos da reestruturação da economia soviética pouco conhecidos é o de sua abertura para o exterior, particularmente para o mundo capitalista. Desde janeiro de 1987, vige uma legislação específica que flexibiliza as relações econômicas com o exterior e regulamenta a criação de empresas mistas, joint-ventures, com capital estrangeiro no país. De início bastante restrivas, as normas contempladas nessa legislação foram ajustadas por novo decreto do Conselho de Ministros, de 2 de dezembro de 1988, de maneira a eliminar os problemas e obstáculos que se apresentaram à implantação desses empreendimentos(1 1 . Sobre as mudanças feitas na legislação, consulte-se artigo de Fábio de Souza Coutinho, na Folha de São Paulo de 15.03.89. )

O objetivo deste texto é fazer um rápido balanço dos resultados alcançados, utilizando as informações de que se dispõe na Faculdade de Economia e Administração da USP, já como um primeiro esforço para o estabelecimento de um Centro de Estudos sobre a Economia Soviética. Essas informações foram extraídas da relação de registros de empresas mistas no Ministério das Finanças da URSS, publicada em números sucessivos do semanário Ekonomitcheskaia Gazeta. Infelizmente, um hiato nesta série, que não se conseguiu cobrir, entre os números 48 e 51 do referido jornal, elimina das considerações 51 registros. De toda maneira, cobrem-se os demais 137, que constituem uma amostra bastante representativa do universo das 188 empresas registradas até 29 de dezembro de 1988.

O investimento total dessas 137 empresas soma 1.594,47 milhões de rublos e se distribui conforme indicado no quadro 1. Pelos seus dados, verifica-se que a grande maioria dos investimentos apresenta um volume de investimentos inferior a dois milhões de rublos. Isso se explicaria pelo desconhecimento por parte do investidor estrangeiro, tanto do mercado como das condições de funcionamento de suas empresas na URSS, o que lhe aconselharia uma prudência inicial.


Esta explicação encontra algum respaldo também na dispersão geográfica dos projetos: a tabulação feita indica uma relação de 29 países de origem do capital estrangeiro, entre os quais somente seis do bloco socialista (cinco do Leste europeu e um da Coréia do Norte). O maior número de projetos por área geográfica é observado na Finlândia (22), na Alemanha Federal (22), na Itália (13), nos USA (9), na Grã-Bretanha (8) e na Áustria (8).

O receio inicial, porém, não impediu o surgimento de projetos de monta, nem o crescimento do interesse por eles em um certo número de países. Observa-se, pelos dados do quadro 2, que, não obstante a dispersão geográfica assinalada, o volume de investimentos concentra-se em alguns poucos países. E de se destacar dentre eles a França, onde apenas dois projetos (de seis registrados) somam 987 milhões de rublos. Um deles, o maior, no valor de 947 milhões de rublos, é constituído por um consórcio de empresas de hotelaria e bancos e soma 43,16% do capital da empresa mista IRIS, de Moscou, para tratamento microcirúrgico ocular. O outro, no valor de 40 milhões de rublos, destina-se à comercialização de descobertas científicas e à cooperação internacional entre centros de investigação cosmonáutica. Foi anunciado mais recentemente, por B.Kamentsev, presidente da Comissão Estatal de Economia Exterior(2 2 . Vnechnaia Torgovlia (Com. Exterior) nº 2,1989. O valor do investimento foi fornecido por I. Latin, chefe do Escritório de Representação Comercial da URSS em São Paulo. ) e, portanto, não considerado no quadro 2, um projeto petroquímico na Sibéria Ocidental, constituído por capital americano, japonês e italiano, num montante de investimento superior a 15 bilhões US$.


Com esta informação complementar, e pelo exame do quadro 2, pode-se concluir que os grandes investimentos são realizados primordialmente pelos principais países capitalistas.

A distribuição dos investimentos se faz em praticamente todos os ramos de produção industrial e bastante no setor de prestação de serviços, particularmente no de treinamento de pessoal, marketing, assistência à informática e atendimento turístico.

Face ao quadro apresentado, cabem algumas perguntas. A primeira delas concerne ao julgamento que fazem as próprias autoridades soviéticas a respeito do grau de alcance dos seus objetivos. Segundo I.LIvanov, vice-presidente da Comissão Estatal de Economia Exterior do Conselho de Ministros da URSS(3 3 . JOINT-VENTURES. Primeiros resultados e perspectivas. In: Revista Kommunist, nº 12, 1988. (Em língua russa). ), a criação das joint-venture s persegue quatro objetivos interligados: obtenção de tecnologia avançada e experiência gerencial; maior satisfação da demanda por produtos deficitários no mercado interno; utilização de recursos materiais e financeiros adicionais para investimento; e desenvolvimento da base exportadora do país.

No que diz respeito ao primeiro objetivo, o nível tecnológico das empresas criadas seria bastante diferenciado, não se restringindo à desejada tecnologia mais avançada(4 4 . A análise de Ivanov refere-se somente às primeiras 70 empresas registradas. ). A causa básica disso, segundo ele, seria a falta de iniciativa das empresas soviéticas na proposição dos investimentos que interessam ao país, não influindo, assim, no direcionamento dos mesmos. Para solucionar o problema, já teriam sido identificados 320 projetos que podem ser abertos ao capital estrangeiro no território soviético, nos anos 1989-1990 e nos anos compreendidos no 13º Plano Quinquenal (1991-1995). São projetos que refletem a prioridade de investimentos de desenvolvimento na URSS, entre os quais se encontram: 60 na agro-indústria, 60 na indústria químico-florestal, 50 na área social, 48 na indústria de máquinas e equipamentos e 33 em complexos industriais.

Quanto aos demais objetivos, aparentemente de menor importância, o balanço é bastante preliminar, destacando apenas alguns resultados pontuais e apontando perspectivas para o futuro. Na base desses resultados, estariam - embora isso não seja explicitamente dito - as resistências internas à política de formação das empresas mistas com países capitalistas, resistências essas de natureza ideológica e de incompreensão do novo quadro de relações internacionais, no qual desponta a integração produtiva como substituto e complemento às relações comerciais. A análise refere-se também à participação da URSS em joint-ventures fora do território soviético e adentra por uma discussão de categorias de economia-política, utilizada para defesa da política adotada,sem relevância para os objetivos deste trabalho.

Mas, de uma maneira geral, haveria problemas e obstáculos de natureza operacional, impedindo melhores resultados na atração do capital estrangeiro. Alguns deles foram enfrentados no novo decreto do Conselho de Ministros sobre este assunto, tais como a exigência de participação majoritária soviética no capital da empresa e a de que a direção da empresa fosse confiada aos sócios soviéticos. Ambas exigências foram eliminadas, acrescentando-se, no referido decreto, uma série de novos incentivos: entre outros, acordos para redução eventual de tarifas alfandegárias para insumos e equipamentos utilizados por essas empresas, possibilidade de redução do imposto sobre remessa de lucros, dilatação do período de isenção dos impostos sobre o lucro e concessão de autorização para os funcionários estrangeiros pagarem os seus dispêndios correntes (aluguel, por exemplo) em rublos; o que evade a remessa regular de divisas para o pagamento dos seus salários.

O problema que resta é o da exigência de autosuprimento de divisas para cobertura dos dispêndios com importação e remessa de lucros, obrigando as joint-ventures a destinarem parte de sua produção à exportação. Para as empresas interessadas no mercado soviético, este é um grande problema. Os argumentos utilizados por Ivanov para justificar a manutenção dessa exigência ou a sua substituição por um sistema de barter através do qual a remessa dos lucros seria feita não em divisas, mas através de exportação de produtos soviéticos em volume equivalente, não são convincentes. Segundo ele, se as empresas trabalhassem só para o mercado interno, elas obteriam as suas divisas à custa do esforço do Estado, e não do seu próprio; e se perderia o critério objetivo do mercado internacional para julgamento da qualidade dos produtos produzidos pelas empresas consorciadas. Na realidade, a questão se prende à insuficiência de divisas do país, relacionada não só com o baixo nível de seu comércio externo (em 1987, o valor de suas exportações somou 68,14 bilhões de rublos, para uma renda nacional de 599,6 bilhões de rublos, i.é, 11,36%) como com o fato de a maior parte desse comércio realizar-se com países socialistas, não supridores de divisas utilizáveis no mercado internacional não socialista. (Em 1987, as exportações para os países socialistas representaram 64,86% do total das exportações). Por sua vez, o saldo da balança comercial com os países capitalistas avançados apresentou-se deficitário em 1985 e 1986, tendo-se tornado positivo em 1987, graças a uma substantiva redução das importações(5 5 . Os dados sobre as exportações e sobre a Renda Nacional são do anuário estatístico Norodnoe Choziaistvo SSSR v 1987g (Economia Nacional da URSS em 1987), editado pelo Comitê Estatal de Estatística da URSS, através da Ed.Financi i Statistiki, Moscou, 1988. Cabe observar que o conceito de Renda Nacional, conforme calculado na URSS, não inclui o setor Serviços. ).

De qualquer forma, as modificações e incentivos contemplados no decreto de 2 de dezembro passado indicam a disposição das autoridades econômicas de eliminar e/ou reduzir os obstáculos que se antepõem à implementação de sua política de abertura para o exterior, particularmente à criação de joint-ventures.

A outra pergunta que cabe responder é relativa à disposição de investimento do exterior. Os dados alinhados referem-se aos dois primeiros anos de vigência da legislação que autoriza a criação e regulamenta o funcionamento das joint-ventures (1987 e 1988). São, portanto, anteriores ao novo decreto. Por isso, não se pode concluir que a participação minoritária do sócio estrangeiro seja deliberada, muito embora Ivanov, em seu artigo anteriormente referido, indique que essa participação, no total dos investimentos realizados (70 por ele analisados) não ultrapasse um terço. Este fato, associado ao baixo nível dos investimentos por empresa e à sua dispersão geográfica, pode indicar uma disposição de "experimentar para ver o que dá", uma disposição de "sentir o mercado" e conhecer as oportunidades, bem como as reais condições de operação da empresa. Há, contudo, grandes projetos, montados com empresas dos países capitalistas mais avançados, alguns com apoio de grandes bancos internacionais de primeira linha, que se instalaram em áreas indiscutivelmente carentes desse tipo de investimento e/ou em áreas em que podem aproveitar, vantajosamente, a tecnologia específica soviética ou as suas matérias-primas. E o caso dos investimentos italianos e alemães voltados à produção de equipamento e complementos /partes para a indústria de bens de consumo (alimentação, calçados, peles); dos investimentos franceses na microcirurgia ocular (técnica desenvolvida pelo Prof. Feodorov) e comercialização dos conhecimentos da cosmonáutica; e do anunciado projeto petroquímico na Sibéria Ocidental para aproveitamento do gás natural e do petróleo daquela região. Esses projetos indicariam um maior conhecimento da real situação e perspectivas da economia soviética, que proporcionaria vantagens suficientes para incorrer nos riscos relacionados com as incertezas sobre os rumos da perestroika.

Por outro lado, a existência de 320 propostas de projetos para oferecimento ao capital estrangeiro, em áreas consideradas prioritárias para o desenvolvimento do país, substitui, de forma "planejada", a necessidade de avaliação do mercado. E a evolução política mais recente, associada às reformas constitucionais e à realização das eleições para o Congresso de Deputados, se não permite ainda concluir por uma vitória definitiva da direção imprimida às reformas econômicas, pelo menos indica reais possibilidades de seu fortalecimento. O que torna mais viável a admissão de riscos pelas empresas investidoras. Portanto, ainda que sobre os primeiros e frágeis resultados, pode-se prever um crescimento do investimento estrangeiro na URSS. Para isso contribuem não somente os fatores acima alinhados, como ainda o fato, sumamente importante, de que essa abertura da URSS para o exterior se dá em um momento de ajustamento da economia internacional e de formação dos grandes blocos econômicos, aos quais não é indiferente a agregação de um mercado de 280 milhões de habitantes com poder de compra e uma insuficiência geral de oferta e de divisas.

Finalmente, a última pergunta a ser respondida diz respeito às possibilidades do Brasil nesse cenário. O nosso país ocupa, por ora, uma posição muito discreta de investimento, com dois projetos: um de produção de sucos de frutas e outro de produção de jeans, em território soviético. Foi anunciada, recentemente, a associação de capital entre brasileiros, argentinos e soviéticos, para instalação de uma churrascaria em Moscou. E há informações da constituição de outra empresa mista, de capital soviético e brasileiro, para engarrafamento de vodca no Brasil e sua comercialização nos mercados brasileiro e latino-americano. De acordo com entrevista feita com Iuri Latin, chefe da Representação Comercial Soviética em São Paulo, esteve no Brasil, em meados de março de 1989, uma delegação econômica soviética, com, representantes de ministérios republicanos de comércio exterior, agro-indústria, da indústria de alimentação e da indústria leve, interessados na aquisição e/ou eventual associação em joint-ventures para produção de complexos industriais e de equipamentos para esses setores. Segundo ele, possibilidades de negócios há. O grande problema para a sua consecução estaria na formulação de barters que viabilizassem a exportação brasileira ou a remessa dos lucros do capital brasileiro eventualmente investido na URSS.

Em alguns setores, este problema não parece tão sério, segundo indicações que se têm. Por outro lado, existem, já funcionando, em Moscou, duas trading companies brasileiras; e mais uma está se instalando, disposta a se consolidar no mercado soviético.

NOTA: Este texto já estava escrito, quando Abel G. Aganbegian, um dos mais importantes economistas soviéticos, diretor da Academia de Ciências da URSS, visitou o Brasil, a convite das universidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasilia, com o apoio da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-URSS e do BANESPA.

Em uma de suas reuniões com empresários em São Paulo, ele anunciou que, como resultado das modificações introduzidas na regulamentação de formação de empresas mistas na URSS, foram registradas 300 novas empresas, entre janeiro e abril deste ano, enquanto pedidos de registro de outras mil estavam sendo examinados. Parte desses empreendimentos estariam utilizando os incentivos oferecidos para instalação nas duas zonas especiais de comércio recentemente criadas, uma perto de Leningrado e outra na parte norte-oriental da União Soviética. Para contornar a questão das divisas para remessa de lucros e cobertura dos dispêndios com a importação dessas empresas, está em estudos uma proposta feita por empreendedores e financistas internacionais para o estabelecimento de câmbio duplo nas zonas especiais de comércio, até que se solucione a questão da conversibilidade do rublo. Há ainda a solução encontrada por um consórcio de grandes empresas americanas, que estabeleceram um sistema de compensação de câmbio entre elas, de maneira a gerar, ao nível do consórcio, o montante requerido de divisas para fazer face às suas necessidades.

Quanto às perspectivas de negócios do Brasil, há que se acrescentar a informação também obtida durante a estada de Aganbegian no país, de que o BANESPA prepara-se para instalar uma agência em Moscou, não estando afastada a hipótese de constituição de uma empresa mista brasileiro-soviética com participação do Banco, para intermediação de negócioces do Brasil na URSS e vice-versa; negócios esses relacionados com a instalação, na URSS, de empresas mistas de capital brasileiro-soviético, especialmente.

  • 1
    . Sobre as mudanças feitas na legislação, consulte-se artigo de Fábio de Souza Coutinho, na
    Folha de São Paulo de 15.03.89.
  • 2
    .
    Vnechnaia Torgovlia (Com. Exterior) nº 2,1989. O valor do investimento foi fornecido por I. Latin, chefe do Escritório de Representação Comercial da URSS em São Paulo.
  • 3
    . JOINT-VENTURES. Primeiros resultados e perspectivas. In:
    Revista Kommunist, nº 12, 1988. (Em língua russa).
  • 4
    . A análise de Ivanov refere-se somente às primeiras 70 empresas registradas.
  • 5
    . Os dados sobre as exportações e sobre a Renda Nacional são do anuário estatístico
    Norodnoe Choziaistvo SSSR v 1987g (Economia Nacional da URSS em 1987), editado pelo Comitê Estatal de Estatística da URSS, através da
    Ed.Financi i Statistiki, Moscou, 1988. Cabe observar que o conceito de Renda Nacional, conforme calculado na URSS, não inclui o setor Serviços.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1989
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