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Organizações: vínculo e imagem

ARTIGO

Organizações: vínculo e imagem

Fernando C. Prestes Motta

Professor Titular do Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da EAESP/FGV

RESUMO

A questão inicial, quando se estudam psicanaliticamente as organizações, parece ser a dos laços que unem os indivíduos à organização, laços estes que não podem ser vistos apenas como materiais ou morais, ideológicos ou sócio-econômicos, mas, sobretudo, de natureza psicológica. A organização modela os impulsos e os sistemas de defesa individuais, que, por seu turno, nela criam raízes.

Palavras-chave: Organização, inconsciente, imagem.

ABSTRACT

The first point in the psychoanalytical study of organizations seems to be the question of the linking pins that tie people and organization. These linking pins cannot be seen just as material, moral, ideologycal or socioeconomical ones. Above all, they have a psychological nature. The organization shapes the individual impulses and defense systems which, in turn, root in its body.

Key words: Organization, unconscions, image.

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O homem é um ser que deseja e que, na relação social, desde cedo aprende a manifestar-se de forma diversa da pura expressão de seu desejo. Existe uma instância que faz com que o desejo seja reprimido, ou que seja canalizado para um outro objeto; trata-se de um poder, trata-se do exercício de uma dominação. Na concepção de Freud esse poder associa-se a determinadas fontes. Na sociedade primitiva, simbolizava-se pelos "totens", que exerciam sobre os indivíduos um poder restritivo, impondo-lhes seus tabus. É bastante possível, que estas sejam as formas mais arcaicas de proibição e de regulamentação dos comportamentos individuais. De uma forma ou de outra, tais regulamentações estão presentes em todas as sociedades, o que leva Freud a afirmar que "a liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização"1 1 . FREUD, Sigmund. O Malestar na Civilização. São Paulo, E.S.B., vol. XXI, IMAGO, 1974, p. 45. .

No tempo e no espaço, diferentes formas de dominação podem ser reconhecidas. Há formas em que as instituições religiosas desempenham o papel de fonte central do poder, como nas teocracias egípcia, inca, ou bizantina; há outras onde a força física, representada pelo pelourinho e pelos grilhões, exerce-se soberana, como nos regimes escravagistas da América colonial. A organização moderna é uma outra forma de dominação e de seu exercício. Como coloca Marcuse, todo o mundo aparece como material de uma administração total. Assim, não se trata de imputar uma "natureza" repressiva à técnica; trata-se é de constatar que se insiste em conservar formas de trabalho que não são mais socialmente necessárias, formas em que se recalca o desejo em benefício da produção, criando-se necessidades artificiais com os mesmos objetivos2 2 . Vide MARCUSE, Herbert. One Dimensional Man. Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society. Boston, Beacon Press, 1966; e MARCUSE, Herbert. O Fim da Utopia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, I969, pp. 13-23. .

A empresa insere-se, do ponto de vista psicanalítico, no mesmo movimento que cria o Estado e todas as instituições. "Passamos então do tempo primordial (o grande tempo regido pela repetição infinita dos mesmos atos e pensamentos), da horda, conduzida por um tirano onipotente, caracterizado pela recusa do amor e pelo manejo da força, ao tempo da história tornada possível por esta primeira infração da ordem, que foi a decisão unânime do crime. Passamos de um mundo de relações de força a um mundo de relações de alianças e de solidariedade (mesmo se estas permanecem frágeis), de um estado de natureza a um Estado de direito, onde a lei é encarnada por aquele que apresentava em vida o arbítrio total. Esta criação do social é acompanhada (precedida/seguida) pela expressão de sentimentos complexos: amor, veneração, amizade, culpa. O nascimento do grupo é inconcebível sem o surgimento correlativo de sentimentos"3 3 . ENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao Estado Psicanálise do Vínculo Social. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990, p. 34. .

E isto que faz com que de fato não haja diferença significativa entre psicologia individual e psicologia social. Desde sempre "o outro intervém com muita regularidade como modelo, objeto, apoio e adversário."4 4 . FREUD, Sigmund. "Psychologie des foules et analyse du moi". In: Essais de Psychanalyse. Paris, Petite Bibliotèque Payot, nova tradução, p.123. Vide também ENRIQUEZ, Eugène. Op. cit, p.51. "O que mantém unidos todos os indivíduos de um grupo, de uma multidão ou de organizações estáveis como a Igreja ou o Exército são laços de natureza libidinal, redutíveis finalmente a uma sexualidade sublimada"5 5 . MEZAN, Renato. Freud Pensador da Cultura. São Paulo, Editora Brasiliense, 1986, p.451. .

Essas organizações mais ou menos estáveis só podem ser, portanto, entendidas através de certos mecanismos que estão presentes nas relações interpessoais, e que a psicanálise, em todas as suas vertentes tem explorado bastante desde os escritos de Freud. Assim, categorias como projeção, introjeção, identificação, imaginário e recalcamento são essenciais para tornar inteligível a cena organizacional. Da mesma forma, tratando-se de seres humanos, a categoria do imaginário vem fornecer um indiscutível apoio à tarefa de desvendar o mistério encerrado pelas instituições, em busca da construção de um mundo mais livre e humanamente produtivo.

A análise psicanalítica das organizações tem se beneficiado de várias fontes. Entre elas, os estudos de Max Pages e de Eugène Enriquez têm tido uma divulgação considerável nos meios brasileiros ligados à administração. Em larga medida, eles nos auxiliarão no decorrer deste artigo, na medida em que nos fornecem subsídios importantes para o tratamento de questões como a dominação do inconsciente, o papel do imaginário, a instabilidade do Ego único e o papel do recalcamento. Na parte final do artigo, a visão que Pages e seu grupo exibem em L'Emprise de l'organisation estará bastante presente. Ali, eles introduzem a diferença entre a empresa hipermoderna, padrão organizativo das multinacionais contemporâneas, e as demais empresas6 6 . Vide PAGES, Max; GAULEJAC, Vincent de.; BONETTI, Michael & DESCENDRE, Daniel. L'Emprise de l'organisation. Paris, Presses Universitaires de France, 1979. Vide ENRIQUEZ, Eugène. "Imaginário Social, recalcamento e repressão nas organizações". Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro nºs 36/37, jan-junho, I974. .

Nas organizações hipermodernas, a organização é o grande símbolo do poder, que não se personaliza em donos ou chefes. A separação é benvinda, já que uma diferença sutil, mas fundamental, existe, no que se refere ao objeto da ação do Ego individual. Quando existe a personalização, predomina a "castração" pelo pai, no sentido freudiano. Quando não, trata-se de uma identificação de tipo materno, o que certamente implica em conseqüências diversas. Para se ter uma noção da diferença, convém pensar na frase de Anna Freud: "Um certo menino costumava ter acessos de entusiasmo militar sempre que havia ocasião para manifestação de ansiedade de castração: envergava um uniforme e equipava-se com uma espada de brinquedo e outras armas. Depois de o observar em várias ocasiões, deduzi que transferia a ansiedade para o seu oposto, isto é, para a agressividade..."7 7 . FREUD, Anna. O Ego e os Mecanismo de Defesa. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1978, p.34. .

De fato, essa separação já havia sido anteriormente apontada por Freud, quando colocou, "...teremos de nos interessar, acima de tudo, pela distinção existente entre os grupos que possuem um líder e os grupos sem líder. Teremos de considerar se os grupos com líderes talvez não sejam os mais primitivos e completos, se nos outros uma idéia, uma abstração, não podem tomar o lugar do líder (estado de coisas para o qual os grupos religiosos, com seu chefe invisível, constituem uma etapa transitória". Freud ainda se questiona "se uma tendência comum, um desejo, em que certo número de pessoas tenha uma parte, não poderá, da mesma maneira, servir de sucedâneo"8 8 . FREUD, Sigmund. "Psychologie des foules et Analyse du moi". Op cit., pp.161-62 .

A questão inicial, quando se estudam psicanaliticamente as organizações, parece ser a dos laços que unem os indivíduos à organização, laços estes que não podem ser vistos apenas como materiais ou morais, ideológicos ou sócio-econômicos, mas, sobretudo, de natureza psicológica. A organização modela os impulsos e os sistemas de defesa individuais, que, por seu turno, nela criam raízes. Assim ocorrendo, a organização é perpetuada pelo indivíduo, tanto por motivos racionais, quanto por motivos de ordem mais profunda, que passam despercebidos no nível da consciência. A tendência da organização é tornar-se fonte de angústia e prazer. É este um dos aspectos mais notáveis de seu poder, sua capacidade de influenciar o inconsciente. E essa face da dominação organizativa que se tentará melhor explorar a seguir. E uma forma de olhar uma "outra cena", onde a arena da dominação é o próprio subconsciente.

Para tanto, é necessário entender que a vida social se revela aos indivíduos, de forma se melhante ao que se passa num palco, o que para o analista organizacional significa o palco da realidade. Trata-se, portanto, de cada um perceber os mecanismos que estão em operação e os papéis a assumir, para poder, ou achar o seu lugar no sistema social, ou achar a lei que rege o funcionamento do conjunto. Na organização, os fatos se passam como se a vida fosse apreendida e controlada de modo semelhante ao que ocorre no mundo da natureza.

Naturalizando-se assim as relações sociais, o indivíduo, em qualquer organização, seja ela prestadora de serviços ou produtora de bens, seja ainda uma entidade filantrópica, prendese à teia de controle, que, via docilização, lhe diminui o potencial contestador e político, canalizando sua energia para a produção, isto é, para suas metas finais. Tal teia pauta-se nesse processo por mecanismos repetitivos que se expressam, mormente, na organização do espaço, na distribuição do tempo e nos processos de avaliação9 9 . Vide FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, Nascimento da Prisão. São Paulo, Vozes, 1977, pp. 227-48. . O operário ou funcionário deverá então realizar suas tarefas seguindo normas e métodos previamente definidos, tanto quanto o militante que repetirá de forma quase mecânica os dogmas do partido político, que lhe foram inculcados nos seminários de formação, tudo se passando como se essa fosse "a ordem das coisas"..., que não convém questionar...

Todavia, implícita na teia do poder está a malha fina da luta pelo reconhecimento, já que a consciência de-si nasce basicamente do desejo, e, mais especificamente, do desejo de ser desejado, isto é, do desejo de reconhecimento. É sendo reconhecido pelos outros que existimos. Como a organização não reproduz a situação extremada do senhor e do escravo, é possível a cada um encontrar no interior da distribuição de papéis, os elementos para o seu reasseguramento. Trata-se de uma batalha limitada, onde se coloca numa posição central a questão do "Ego imaginário". De fato, o Ego é constituído a partir de uma imagem espelhada. Só podemos ver-nos porque outros olhos nos vêem e falam de e para nós. No início, o Ego constitui-se como "instância imaginária".

Enquanto "instância imaginária", o Ego remete diretamente à globalidade dos modelos imaginários do sujeito. Porém, sendo o Ego também o objeto de investimento dos outros, torna-se, ao mesmo tempo, sujeito de unidade e de despedaçamento. A fala dos outros constitui assim, a um só tempo, o objeto como unidade e como divisão. O primeiro momento da visão é de um mundo sem unidade, onde o indivíduo se crê dono de sua ação, na medida em que acredita no que vê. Entretanto, as imagens que vê encobrem sua divisão, e é assim que cai numa armadilha. Decorre daí também a importância da própria voz, visto que falar é constituir os outros na própria visão, não os escutando naquilo que remete à divisão. A fantasia do Ego único é pois a resposta à realidade da divisão do sujeito proposta por outros, tanto quanto à fantasia da desintegração a ela associada. E essa fixação do Ego enquanto instância imaginária, que irá favorecer a formação do Ego ideal.

Para entender como se dá a formação desse Ego ideal, é preciso voltar à problemática da procura da identidade, o que em princípio corresponde à afirmação de uma unidade compacta e do temor da desintegração. É nessa problemática que as organizações parecem lançar os indivíduos. De fato, toda organização se apresenta como o locus, onde cada qual irá tentar a realização de seus projetos e desejos. De modo especial, a organização, nas sociedades contemporâneas, irá se colocar como o único lugar onde essa tentativa pode ocorrer. É assim que os indivíduos tendem a ver como impossível sua vida psicológica e social sem a inserção nas organizações. E tal inserção ocorrerá sempre em termos de um papel e de um status razoavelmente formalizado que lhe serão atribuídos. Isso ocorrerá na empresa, no exército, na universidade, na administração pública tanto ou mais ainda do que ocorreu na família. Desde muito cedo, o indivíduo luta pela identidade e pelo reconhecimento nas instituições, como se cumprisse uma espécie de destino...

A organização, no seu cotidiano, está sempre a chamar para a luta, a luta que significa provar a própria existência, instaurando, dessa forma, as regras da luta pela sobre vivência. Assim, tudo será definido de modo a permitir, e mesmo favorecer, a expressão do Ego ideal e para dar a impressão fantasiosa do Ego sólido e uno. As regras do jogo serão dadas pelas estruturas de trabalho, com suas funções definidas, estabelecendo procedimentos que definirão a forma pela qual será lícito, para cada um, jogar. Sabe-se, assim, o que é ser responsável, o que é ter consciência profissional, o que é senso de dever, o que é ser sério e trabalhador. São imagens que permitem a coerência das condutas coletivas, levando, de forma secundária, os indivíduos a se comportarem de maneira uniforme e previsível e livre das interrogações próprias e dos demais.

Configura-se de forma mais geral uma situação de duplo aprisionamento. Os indivíduos, membros das organizações, acham-se prisioneiros das estruturas organizativas do trabalho e, também, de sua própria conduta. Não há alternativa para o dever de mostrarem saber o que dizem, fazerem o que devem e serem perseverantes em suas ações. Nunca devem e nunca podem perder a "pose"; devem dar provas da coerência e persistência de seus pensamentos. E esse comportamento mascarado, cheio de símbolos, que Victor Thompson chama de "dramaturgia"10 10 . Vide THOMPSON, Victor. Moderna Organização. Rio de Janeiro, USAID, 1967. , e que, na realidade, orienta-se para a preservação da identidade social e para o bom funcionamento das organizações, bom funcionamento entendido como produtivo e econômico. A dramaturgia visa a ocultar o grande medo da desintegração e as fantasias destrutivas que podem ocorrer.

Num sentido mais profundo, o nosso consciente nos aprisiona com muita facilidade. O que nos parece racional, muitas vezes, não é mais do que uma forma assumida pelo inconsciente. O que fazemos, o que dizemos, podem dar conta da estrutura mais profunda de nossa psique. Todos nós aprendemos a moderar e controlar nossos impulsos para viver em harmonia com os outros, sendo, assim, inconsciente e cultura duas faces de uma mesma moeda, formas oculta e manifesta do processo de repressão e recalcamento que acompanha o desenvolvimento da socialização humana11 11 . Vide MORGAN, Gareth. Imagens of Organization. Londres, Sage, 1989. .

Face à ameaça, o indivíduo procurará desenvolver uma auto-imagem onipotente, instaurando essa onipotência na realidade. Instaura-se um cenário de tentativa de criação de uma relação dual, onde o outro aparece não como portador de desejos, mas como instrumento da satisfação do sujeito. Cada um irá procurar provocar formas de identificação nos demais, de maneira que podemos olhar cada um dos demais, como outros e nós mesmos; é o imaginário enquanto logro que triunfa, é o primado quase absoluto da relação "eu-isto" a que se refere Martin Buber12 12 . Vide BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo, Cortez e Moraes, 1979. , à espera da descolonização necessária do mundo da vida, dominado pelo sistema, no quadro da teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas13 13 . Vide HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action. II Vols., Londres, Heineman, 1984. .

O imaginário cega aqueles que se deixam apanhar pela armadilha. É o poder que se apega à própria imagem. De tanto haver desejado evitar a divisão, o indivíduo cria um mundo hostil e incompreensível, voa para além ou aquém da realidade. Todavia, o choque só pode ocorrer em momentos críticos. De modo geral, as pessoas revelam-se incapazes de se libertar e de questionar aqueles que incorporam à sua própria imagem. "Não sentimos inclinação por algo porque consideramos que é bom; ao contrário, consideramos algo bom, porque sentimos inclinação por ele"14 14 . SPINOZA, Benedictus de. "Etica", III. In: DELEUZE, Gilles. Spinoza: Filosofia Practica, Barcelona, Tusquets Editores, 1981 (capa). .

Entretanto, não se deve crer que aqueles que se submetem não tiram partido de sua entrega incondicional. Seu amor à organização ou às pessoas-chave conduz reciprocamente ao delas com relação a si-próprias. Sua castração é o pagamento pela proteção contra perigos eminentes que a cercam. É claro, sua castração permite ainda que castrem ou que manifestem seu poder. Seu Ego imaginário busca e encontra satisfação para seus desejos.

No entanto, essa identificação é impossível para todos. E preciso que o poder na sua forma mais transparente, isto é, nua e crua, se exerça sobre alguns e, destes, poder-se-á tirar até mesmo sua condição de homens, como no caso da escravidão ou dos campos de extermínio nazistas, a relação "eu-isto" transformando-se ou traduzindo-se na forma de exploração por excelência.

Todavia, as organizações não são blocos monolíticos. Qualquer organização se constrói como combinação de grupos sociais distintos, cujos rumos poderão ser semelhantes ou contraditórios. Na organização, nem todos recalcam seu desejo. Os que instauram a relação "eu-isto", ou seja, a relação de submissão, irão institucionalizá-la. Assim, o Superego da organização, isto é, seu conjunto de valores e interdições, tornar-se-á, também, o Superego de seus agentes sociais. A organização tornar-se-á, a um só tempo, ideal do Ego, ou seja, objeto de amor, e Superego, instância punitiva. Os agentes a colocarão no lugar de seu próprio ideal do Ego, na tentativa de realizar seu Ego ideal. Assim, ela exercerá uma ação de recalcamento e ocultamento, na medida em que:

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1) recusa considerar as pulsões, salvo, de alguns de seus agentes, colaborando na construção de um logro imaginário, instituindo e generalizando o discurso do outro como referência;

2) institui uma linguagem, cuja função é canalizar desejos individuais para o trabalho eficaz e eficiente, num investimento produtivo profissional;

3) define a divisão dos agentes no espaço e no tempo, reduzindo os indivíduos a intérpretes de papéis previamente definidos, cujo desempenho lhes é designado;

4) e introduz no sistema pré-consciente-consciente, as representações que irão tomar o lugar das representações recalcadas, isto é, chefe, empresa, divisão, organograma e filosofia da organização, tomando o lugar de desejo.

Enquanto instituinte, o recalcamento cria, com o imaginário e a estrutura dos ideais e das relações, uma situação de alienação social, que se expressa em mecanismos de divisão e separação. A alienação exprime a situação em que os atores sociais não podem falar em seu próprio nome, não têm o domínio do seu próprio destino, não são incluídos no processo de decisão, mas são falados pelos outros e vivem sob o reino da heteronomia. É, sobretudo, nos fenômenos de divisão e separação que operam em três níveis, que podemos observar a alienação. São os seguintes esses níveis:

a) A distinção dirigente-dirigido

Como se acredita que seja impossível que todos decidam sobre tudo, a referida distinção é quase sempre definida como uma conseqüência de um dado de uma natureza humana, organizacional ou social. Geralmente se diz que ela exprime diferenças de saber, competência e habilidade, justificando-se pelo serviço ao bom funcionamento da organização. Dirigem os que sabem que podem pensar; os outros, não sabendo pensar, devem contentar-se em executar, e em executar bem. De fato, essa distinção permite a institucionalização da relação de submissão, mascarada de autoridade legítima e necessária. Por outra, ela visa a ocultar a luta pelo reconhecimento que se passa na organização, bem como seu resultado, ou seja, a vitória daqueles que de fato possuem a organização, mediante sua transformação em objeto ideal, e que canalizam os investimentos individuais no trabalho, promovendo um imaginário mistificador.

b) A divisão de trabalho

Toda e qualquer organização acaba por estabelecer uma divisão técnica do trabalho, que é vista como responsável pela sua sobrevivência, crescimento e bom funcionamento.

As várias divisões existentes, as separações e as combinações entre homens e meios de produção, entre os agentes e os produtos de seu trabalho, entre cada agente e sua função - isto é, a única maneira certa taylorista de se realizar o trabalho - inauguram um universo no qual o trabalho desemboca na produção de bens e relações que não remetem a um processo de criação, mas, ao contrário, submetem o agente e o definem tão somente como homem da organização, em um verdadeiro estrangulamento de seus desejos, que ele nem mesmo chega a formular. Para que fosse possível um processo criativo, o trabalho teria que ser a expressão contraditória do sujeito dividido e de sua dinâmica interior. Seria preciso haver uma incógnita, um oceano a navegar, um território a descobrir ou a desbravar. Todavia, a organização não apenas exige que se faça o que já está previsto, nas condições de tempo e trabalho permitidas, como exige ainda que ninguém possa fazer ou vir a fazer qualquer outra coisa.

c) A palavra

Na organização, as palavras fluem em liberdade vigiada. O discurso é fragmentado. Temos o direito de nos pronunciar apenas sobre os assuntos definidos como da nossa competência. É necessário tratar de problemas precisos e circunscritos, de modo que apareçam divididos pelo contexto em que se colocam. A palavra livre, criadora, é objeto de desconfiança. Nos últimos vinte anos, principalmente, talvez na esteira dos acontecimentos de 1968, começou-se a perceber que a supressão de toda e qualquer palavra espontânea leva à inércia, à acomodação, nos comportamentos e nas estruturas que já não se adaptam ao mundo exterior, aos "ambientes turbulentos" da teoria dos sistemas abertos. Cinética, brain-storming etc... são algumas tentativas de recuperar a palavra espontânea, mantendo, contudo, a vigilância, pois a palavra realmente livre emerge da fantasia, introduzindo a surpresa e o questionamento onde todos viviam de certeza.

Essas três divisões, ao mesmo tempo, expressam e mascaram a presença do imaginário como logro. Enquanto a distinção dirigente-dirigido expressa a autoridade, ocultando o poder, a divisão de trabalho expressa a necessidade de uma estrutura de relações estáveis, mascarando a alienação e a reificação na organização; a palavra, em Uberdade vigiada, expressa a capacidade de tratar os problemas numa determinada rede de comunicações, mascarando o bloqueio da palavra livre, criadora. Em síntese, pode-se afirmar que o recalcamento nas organizações cria a ordem e a lei, através de um sistema de proibições. Ele cria a possibilidade de relações imaginárias estabilizadas de acordo com determinado código jurídico comportamental, do qual ninguém escapa. E esse processo que se dá na gênese da alienação social, e na medida em que toda organização age como instância recalcante, toda organização, em certo grau ao menos, implica em alienação social. Porém, a partir do momento em que convivemos na organização, um certo tipo de alienação identificante se instituiu, pois alienação também significa reconhecimento do outro ou dos outros, aceitação do ser falado pelo ou pelos outros, evitando a queda na loucura de onipotência. Assim, a vida organizacional, trazendo um certo grau de alienação, também permite ao indivíduo, de alguma forma, realizar-se. O recalcamento funda uma mentira que sempre tem o efeito de mascarar, sem que essa máscara não possa ser um dia retirada e a verdadeira face redescoberta. É exatamente nisso que o recalcamento difere da repressão.

Com o recalcamento, fica preservada a possibilidade do erro, uma vez que é possível perceber as falhas da linguagem, o quase dito, o implícito. E possível perceber a mentira da linguagem, os deslocamentos dos significantes e de sua significação. A linguagem cria um desvio estrutural entre o que é dito e o que é feito, um fosso entre discurso e prática. É diante desse gap que o desejo insuhiinte pode falar, desde que ele se evidencie, o que é sempre uma possibilidade virtual. Assim, paradoxalmente, o recalcamento é o que impede e o que favorece a tomada de consciência. A repressão pode ocorrer, e freqüentemente ocorre, quando a organização se vê realmente ameaçada. Talvez, por essa ratzão, não se possa efetivamente transformar a organização burocrática, mas seja necessário de fato superá-la, através da criação de formatos organizativos que emerjam das relações sociais instituintes15 15 . Vide ENRIQUEZ, Eugène. "Imaginário social, recalcamento e repressão nas organizações". Op.cit. .

Quando a organização aparece como muito grande e poderosa, como é o caso da maior parte das multinacionais, ela assume o caráter tanto de fornecedora de satisfação quanto de sanção. Dinheiro, trabalho e status vêm da organização. Essas organizações geralmente levam a cabo uma política de recursos humanos baseada na individualização dos problemas, de modo a impedir as reações coletivas. Frente a essa política, o indivíduo apresenta-se isolado.

Numa situação como essa, é bastante provável que o agente sinta a organização como extremamente ameaçadora. Ele se vê fraco e tende a experimentar fortes angústias de destruição, bem como fortes impulsos agressivos contra a organização ameaçadora. Vive, então, uma relação de dependência de cunho infantil que faz lembrar aquela experimentada pela criança em relação a seus pais e, especialmente, em relação à sua mãe. Pagès e seus colaboradores sugeriram que as relações inconscientes do indivíduo com a grande organização, que chamaram de hipermoderma, são do tipo arcaico e de ordem mais materna que paterna. Entretanto, o poder da organização em relação a seus membros é bem maior que o dos pais e, sobretudo, o indivíduo se encontra bem menos capaz de influenciar a organização, do que a criança, de influenciar seus pais.

O desejo agressivo de onipotência que muitas pessoas desenvolvem é, com freqüência, uma defesa contra a angústia e a agressividade. Normalmente, na grande empresa, esse desejo é projetado na organização, com a qual o indivíduo se identifica. Como resultado, a pessoa desenvolve a imagem de um Ego grandioso. E o seu ideal do Ego, que oculta a imagem do Ego pequeno e fraco. Em termos de transferência, trata-se de uma operação de fusão com a mãe agressiva, de uma identificação com o agressor. Constrói-se dessa forma uma organização imaginária que soma às características da organização real, aquelas projetadas.

A relação assim desenvolvida é profundamente ambígua. A organização é amada e odiada a um só tempo. Ela é objeto de identificação e amor, fonte de prazer e de energia. O indivíduo torna-se dependente. Ele precisa da organização, não apenas em termos de sobrevivência material, mas também em termos de sua identidade. Prazer e angústia, ou melhor, prazer vivido antecipadamente e angústia definem as relações entre indivíduo e organização. Trata-se, de qualquer forma, de um prazer agressivo, do prazer que se sente ao se identificar com o poder da organização, e que se expressa no domínio do outro, do próprio trabalho e numa incessante auto-superação; um prazer dotado de intenso componente sadomasoquista.

O prazer também tem lugar na fusão amorosa experimentada. O objeto do amor é a organização em si. E como se uma identidade autônoma e muito poderosa, com sua filosofia, seus princípios suas políticas, suas normas, regras e símbolos fosse incorporada no indivíduo. A organização torna-se mais estável na sua reprodução, menos sujeita aos azares das relações interpessoais, mantendo um controle cada vez maior sobre seus membros. Como a organização é uma abstração, é uma categoria de membros que amplia cada vez mais o seu controle sobre os demais, que de resto, aspiram pertencer um dia a essa categoria.

Da organização convencional para a organização hipermoderna, há uma mudança no que se refere ao objeto de investimento amoroso e à própria natureza da relação amorosa. A razão da conformidade não é mais a obediência nem o medo da castração, mas o amor, a perseguição do sucesso para obtenção do amor organizacional maternal e o medo angustiado da perda desse amor, via marginalização, perda de espaço, papéis, ser "colocado na geladeira"...

A origem do prazer e da angústia é apenas uma, e está no poder que tem a organização de levar os indivíduos a identificarem-se com ela, unindo assim uma máquina de prazer a uma máquina de angústia. O sistema é conflitante: baseia-se na oposição contínua entre a procura do prazer agressivo e na angústia de morte reprimida. E um sistema fechado, onde um termo leva ao outro, é inacessível o objeto de prazer e sua procura é carregada de angústia. Assim, quanto mais se julga alcançalo, subindo hierarquicamente, por exemplo, mais se reforça a angústia, pois os objetivos atingidos não satisfazem. De modo inverso, a angústia leva ao prazer agressivo, que lhe serve de defesa. Dessa forma, a pessoa que se sente ameaçada, apenas buscará uma nova promoção. E nesse sentido que muitos membros das chamadas organizações hipermodernas estão condenados a vencer16 16 . Vide B0NETTI, Michel & GAULEJAC, Vincent de. "Condamnés à Réussir". Sociologie du Travail, Paris, Dunod, (4), Especial, "Les Cadres: places et destins", Vingtquatrième année, out/nov/dez, 1982. Vide também PAGES, Max et alii. Op. cit. .

De modo muito conciso e esclarecedor, Habermas coloca que, enquanto a pressão da realidade apresentar-se esmagadora, a organização do Ego é fraca, de modo que a renúncia pulsional só pode ser promovida pelas forças do afeto. A espécie humana encontra soluções coletivas para o problema da defesa, semelhantes às soluções neuróticas do indivíduo. As mesmas configurações que impelem o indivíduo à neurose, são responsáveis pela criação de instituições pela sociedade. O que caracteriza as instituições é sua semelhança com as formas patológicas. Da mesma forma que a compulsão institucional externa leva a uma reprodução relativamente rígida de um comportamento uniforme, que fica isento de crítica17 17 . Vide HABERMAS, Jürgen. Knowledgement and Human Interests. Londres, Heinemann, 1972, p. 276. .

Nos casos em que o chefe tem pouca importância, e é posto de lado se não se integra como um participante comum, a organização torna-se o objeto pulsional por excelência. A organização é tudo, ela pode tudo, ela homogeiniza e uniformiza. Surge assim como uma deusa-mãe a ser adorada, algo como uma nova Medéia que devora aqueles que não se rendem à sua vontade absoluta. Do ponto de vista do participante, ela surge assim, ao mesmo tempo, como aquela que nutre e devora...18 18 . Vide ANZIEU, Didier. Le Groupe et l'Inconscient. L'Imaginaire groupai. Paris, Dunod, 1984, p.97.

  • 1. FREUD, Sigmund. O Malestar na Civilização. São Paulo, E.S.B., vol. XXI, IMAGO, 1974, p. 45.
  • 2. Vide MARCUSE, Herbert. One Dimensional Man. Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society. Boston, Beacon Press, 1966;
  • 3. ENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao Estado Psicanálise do Vínculo Social. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990, p. 34.
  • 5. MEZAN, Renato. Freud Pensador da Cultura. São Paulo, Editora Brasiliense, 1986, p.451.
  • 7. FREUD, Anna. O Ego e os Mecanismo de Defesa. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1978, p.34.
  • 9. Vide FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, Nascimento da Prisão. São Paulo, Vozes, 1977, pp. 227-48.
  • 10. Vide THOMPSON, Victor. Moderna Organização. Rio de Janeiro, USAID, 1967.
  • 11. Vide MORGAN, Gareth. Imagens of Organization. Londres, Sage, 1989.
  • 12. Vide BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo, Cortez e Moraes, 1979.
  • 13. Vide HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action. II Vols., Londres, Heineman, 1984.
  • 17. Vide HABERMAS, Jürgen. Knowledgement and Human Interests. Londres, Heinemann, 1972, p. 276.
  • 18. Vide ANZIEU, Didier. Le Groupe et l'Inconscient. L'Imaginaire groupai. Paris, Dunod, 1984, p.97.
  • 1
    . FREUD, Sigmund.
    O Malestar na Civilização. São Paulo, E.S.B., vol. XXI, IMAGO, 1974, p. 45.
  • 2
    . Vide MARCUSE, Herbert.
    One Dimensional Man. Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society. Boston, Beacon Press, 1966; e MARCUSE, Herbert.
    O Fim da Utopia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, I969, pp. 13-23.
  • 3
    . ENRIQUEZ, Eugène.
    Da Horda ao Estado Psicanálise do Vínculo Social. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990, p. 34.
  • 4
    . FREUD, Sigmund. "Psychologie des foules et analyse du moi". In:
    Essais de Psychanalyse. Paris, Petite Bibliotèque Payot, nova tradução, p.123. Vide também ENRIQUEZ, Eugène. Op. cit, p.51.
  • 5
    . MEZAN, Renato.
    Freud Pensador da Cultura. São Paulo, Editora Brasiliense, 1986, p.451.
  • 6
    . Vide PAGES, Max; GAULEJAC, Vincent de.; BONETTI, Michael & DESCENDRE, Daniel.
    L'Emprise de l'organisation. Paris, Presses Universitaires de France, 1979. Vide ENRIQUEZ, Eugène. "Imaginário Social, recalcamento e repressão nas organizações".
    Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro nºs 36/37, jan-junho, I974.
  • 7
    . FREUD, Anna.
    O Ego e os Mecanismo de Defesa. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1978, p.34.
  • 8
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  • 9
    . Vide FOUCAULT, Michel.
    Vigiar e Punir, Nascimento da Prisão. São Paulo, Vozes, 1977, pp. 227-48.
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    . Vide THOMPSON, Victor.
    Moderna Organização. Rio de Janeiro, USAID, 1967.
  • 11
    . Vide MORGAN, Gareth.
    Imagens of Organization. Londres, Sage, 1989.
  • 12
    . Vide BUBER, Martin.
    Eu e Tu. São Paulo, Cortez e Moraes, 1979.
  • 13
    . Vide HABERMAS, Jürgen.
    The Theory of Communicative Action. II Vols., Londres, Heineman, 1984.
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    Spinoza: Filosofia Practica, Barcelona, Tusquets Editores, 1981 (capa).
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    . Vide ENRIQUEZ, Eugène. "Imaginário social, recalcamento e repressão nas organizações". Op.cit.
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    . Vide B0NETTI, Michel & GAULEJAC, Vincent de. "Condamnés à Réussir".
    Sociologie du Travail, Paris, Dunod, (4), Especial, "Les Cadres: places et destins", Vingtquatrième année, out/nov/dez, 1982. Vide também PAGES, Max et alii. Op. cit.
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    . Vide HABERMAS, Jürgen.
    Knowledgement and Human Interests. Londres, Heinemann, 1972, p. 276.
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    . Vide ANZIEU, Didier.
    Le Groupe et l'Inconscient. L'Imaginaire groupai. Paris, Dunod, 1984, p.97.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1991
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