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Democracia, estado social e reforma gerencial

PENSATA

Democracia, estado social e reforma gerencial

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Professor Emérito da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas - São Paulo - SP, Brasil

Democracia, Estado Social e Reforma Gerencial são instituições dialeticamente inter-relacionadas. Após a Segunda Guerra Mundial, a democracia permitiu que os trabalhadores e as classes médias aumentassem suas demandas por serviços sociais, transformando o Estado Democrático Liberal em Estado Democrático Social - uma forma de Estado na qual o consumo coletivo relativamente igualitário é importante. Este, por sua vez, implicou um aumento considerável do tamanho da despesa pública e, em consequência, tornou-se claro que a administração burocrática, que se propunha apenas a tornar a ação do Estado efetiva, não era eficiente. A Reforma Gerencial que emergiu a partir dos anos 1980 foi uma resposta à demanda por maior eficiência na oferta de serviços públicos para o consumo coletivo e serviu para legitimar o Estado Social.

Desde os meus primeiros trabalhos (BRESSER-PEREIRA, 1998; 2000) sobre a Reforma Gerencial do Estado tenho afirmado que esta ocorreu devido ao grande crescimento do aparelho do Estado a partir da Segunda Guerra Mundial. Comparativamente, enquanto no Estado Liberal do século XIX a carga tributária estava em torno de 5% do PIB, no Estado Democrático Social do final do século XX essa medida já alcança cerca de 40% nos países desenvolvidos.

Essa transição da administração burocrática para a gerencial que ocorre a partir de meados dos anos 1980 foi uma resposta à necessidade de maior eficiência, ou menor custo, dos novos serviços sociais e científicos que o Estado passara a exercer. Neste trabalho, completo essa análise para dizer que o inverso é também verdadeiro: a administração pública gerencial é um fator de legitimação política do Estado Social e, dessa forma, neutraliza a tentativa neoliberal de reduzir os serviços sociais e científicos prestados pelo Estado.

O ESTADO SOCIAL

Os quatro objetivos políticos que sur-gem com a formação do Estado moderno são a liberdade, a riqueza ou o bem-estar econômico, a justiça social e a proteção da natureza. Esses objetivos, que se somaram ao da segurança, que já caracterizava o Estado antigo, correspondem às quatro ideologias que nasceram com a Revolução Capitalista. Assim, a liberdade individual corresponderá ao liberalismo; a riqueza ou o crescimento econômico, ao nacionalismo; a justiça social, ao socialismo; e a proteção da natureza, ao ambientalismo. Esses objetivos e as respectivas ideologias são em grande parte reforçadores uns dos outros, mas não são plenamente compatíveis. Por isso, as sociedades democráticas são pragmáticas, veem-nos de maneira moderada ou razoável e podem assim assumir os necessários compromissos que viabilizam sua realização combinada.

Para realizar esses objetivos, o Estado se desdobra, historicamente, em dois: Estado como regime político ou como sistema constitucional-legal e Estado como administração pública ou como organização que garante o sistema constitucional-legal. No mundo contemporâneo, o Estado como regime político assumiu a forma de Estado Democrático Social, e como organização, a de Estado Gerencial. Governar é fazer os compromissos para alcançar a maioria, é definir as leis e políticas públicas, é tomar decisões estratégicas voltadas para o interesse público e nacional -é aperfeiçoar e garantir o Estado enquanto regime político. Mas governar é também administrar a organização do Estado, é escolher os principais responsáveis por sua implantação, é detalhar e colocar em prática as leis e políticas, é aperfeiçoar constantemente o aparelho do Estado de forma a operar os serviços públicos com qualidade e eficiência -é tornar o Estado, Estado Gerencial.

No século XIX, enquanto sistema constitucional-legal ou regime político, o Estado nos países ricos correspondia a uma democracia de elites - também chamada de schumpeteriana - o Estado Liberal Democrático. A transição do Estado Liberal para o Democrático avançou nos países mais desenvolvidos na virada do século XX, na medida em que o último requisito para uma democracia formal se materializava (o sufrágio universal).

Em meados do século XX, tem início uma democracia de opinião pública na qual os eleitores aumentam seu interesse pela política, as pesquisas de opinião pública passam a auferir suas preferências e um número crescente de organizações de advocacia política começa a intervir no processo de formulação e implantação de leis e políticas públicas. Esse maior ativismo político dos eleitores leva a um aumento da demanda social e, em consequência, ao aumento dos serviços sociais e científicos do Estado, que passa a assumir funções novas na proteção do trabalho e do trabalhador.

Ocorre então a transição de uma forma para outra de democracia e o Estado Democrático Liberal se trans-forma no Estado Democrático Social. Enquanto na democracia de elites estas detêm suficiente poder para não se deixarem influenciar pelos eleitores enquanto governam, na democracia de opinião pública os sindicatos de trabalhadores e os partidos sociaisdemocratas se fortalecem e as elites políticas são constantemente obrigadas a auscultar uma opinião pública constituída por eleitores com demandas políticas.

Nessa nova forma de Estado, haverá um aumento indireto de salários através, de um lado, de leis trabalhistas protegendo os trabalhadores, e, de outro, da forte ampliação dos serviços sociais e científicos proporcionados pelo Estado. O Estado Social que se torna dominante nos países desenvolvidos após a Segunda Guerra Mundial foi resultado desse compromisso ao bus-car, com razoável êxito, os cinco objetivos do Estado - segurança, liberdade, bem-estar econômico, justiça social e proteção da natureza - no quadro dos regimes democráticos.

A IDEOLOGIA NEOLIBERAL

Como reação a esse Estado Social, surge nos anos 1970 uma onda ideológica liberal radical - o neoliberalismo. Através de reformas orientadas para o mercado, o neoliberalismo ganha força nas duas décadas seguintes e busca mudar a natureza do Estado enquanto instituição constitucional-legal.

Essa ideologia pregava a manutenção do objetivo da segurança, deu absoluta precedência à liberdade e subordinou os outros três objetivos ao liberalismo econômico ao promover a diminuição do tamanho do Estado. Dessa maneira, propunha a transformação das duas formas que o Estado havia assumido nos 50 anos anteriores - o Estado Social, nos países desenvolvidos, e o Estado Desenvolvimentista nos países em desenvolvimento - em seus principais adversários.

Ao atacar o Estado Social, o neoliberalismo estava explicitamente procurando reduzir o tamanho e as funções sociais do Estado, com o objetivo implícito de enfraquecê-lo. A tese neoliberal repetia o individualismo metodológico neoclássico, segundo o qual apenas pequenos grupos têm efetiva capacidade de ação coletiva. Negava, assim, ao Estado sua capacidade principal - a de ser instrumento dessa ação. Procurava voltar ao tempo do Estado Liberal do século XIX - um Estado não democrático no qual a burguesia tinha um poder maior do que tem hoje no Estado Democrático. No Estado Liberal se garantiam os direitos civis, mas não os sociais, e nem mesmo os políticos; como se opunha ao sufrágio universal, não havia democracia.

Tratava-se de uma reação aos novos problemas enfrentados pelo sistema capitalista central nessa década: a redução da taxa de crescimento dos EUA e da Grã-Bretanha e a diminuição da taxa de lucro das empresas. As causas desses dois fenômenos, ambas relacionadas com o maior poder alcançado pelos sindicatos nos anos 1960, foram o aumento dos salários reais diretos e indiretos acima do aumento da produtividade e o aumento dos salários indiretos expressos tanto em direitos trabalhistas quanto na ampliação dos serviços sociais do Estado.

A ofensiva neoliberal reproduzia a clássica luta de classes - nesse caso, a iniciativa partindo dos ricos - ao mesmo tempo em que traduzia a necessidade do capitalismo de restabelecer as taxas de lucros. As duas classes dirigentes - a capitalista ou burguesa e a profissional ou tecnoburocrática - buscavam aumentar seus rendimentos, respectivamente os lucros e juros dos empresários e rentistas, e os ordenados e bônus dos altos profissionais que controlam o conhecimento técnico, organizacional e comunicativo. Isto ficou claro, por exemplo, com a redução da progressividade do imposto de renda ocorrida em quase todos os países a partir da ofensiva neoliberal.

O Estado, na área econômica e social, não é, como supõem os neoliberais, apenas uma espécie de mal necessário em contraposição a um bem em si mesmo que é o mercado. Historicamente, é o instrumento por excelência de ação coletiva da nação. É o instrumento que cada sociedade nacional usa para alcançar seus cinco objetivos políticos. É a institui-ção maior de qualquer sociedade. É a instituição cujo papel é de regular e coordenar com autoridade as ações sociais de todos os tipos. É a instituição que, no plano econômico, regula uma outra instituição-mecanismo de concorrência - o mercado - na coordenação da produção e da distribuição de renda. As sociedades continuam a contar fundamentalmente com o Estado para alcançar seus objetivos políticos, enquanto contam com o mercado para promover a alocação eficiente dos recursos de forma a lograr o desenvolvimento econômico, mas, mesmo para isso, sabem que precisam do Estado para corrigir as falhas do mercado e promover a acumulação de capital e o progresso técnico e científico.

A ideologia neoliberal alcançou seu auge no início dos anos 1990 com o colapso da União Soviética e está em decadência desde o início dos anos 2000. Essa crise, que se traduz na diminuição da hegemonia ideológica da grande potência que divulgou as ideias neoliberais - os EUA - decorre, de um lado, do fracasso das reformas neoliberais em alcançar o desenvolvimento econômico na América Latina e na África, onde elas foram mais insistentemente adotadas; de outro, da derrota dos EUA na guerra do Iraque.

Os sintomas dessa decadência são as eleições de candidatos nacionalistas e de esquerda na América Latina e o fracasso em destruir ou mesmo reduzir o Estado Social nos países ricos. Mesmo nos EUA e na Inglaterra, que foram o berço do neoliberalismo, a redução do Estado não aconteceu.

Qual a razão desse fracasso? O neoliberalismo, que soçobrou com a crise financeira global de 2008, não logrou convencer os cidadãos das antigas (e também das novas) democracias a abandonar ou a colocar em segundo plano o objetivo atribuído ao Estado de garantir seus direitos sociais. De 1980 para cá, ainda que a flexibilização dos contratos de trabalho tenha provocado alguma diminuição nas leis de proteção trabalhista, os trabalhadores, em compensação, obtiveram maior garantia quanto à obtenção de auxílio desemprego, lograram o aumento dos serviços sociais do Estado, principalmente os de saúde, e atribuíram ao Estado Social uma nova missão: proteger o meio ambiente. Em consequência, as despesas sociais e científicas do Estado aumentaram, ao invés de diminuírem.

REFORMA GERENCIAL

Em meio a essa onda ideológica neoliberal, surgiu na Grã-Bretanha, na segunda metade dos anos 1980, a Re-forma Gerencial do Estado - a segunda grande reforma do aparelho do Estado moderno, também chamada de Reforma da Gestão Pública. Inspirava-se nas estratégias de gestão das empresas privadas, e sua teoria foi chamada de Nova Gestão Pública; ou seja, uma série de ideias desenvolvidas a partir do final dos anos 1980 que buscavam tornar os administradores públicos mais autônomos e responsáveis, e as agências executoras dos serviços sociais mais descentralizadas.

A administração pública burocrática era apropriada para o Estado Liberal do século XIX e se limitava a exercer as funções de polícia e justiça; nesse período, a carga tributária só aumentava em momentos de guerra. No Estado Democrático Liberal, o tamanho do Estado era pequeno e a administração pública burocrática continua a se aplicar. Com o grande aumento do tamanho do Estado, foi se tornando clara a ineficiência da administração pública burocrática.

A Reforma Gerencial surge como consequência administrativa da consolidação do Estado Social e ao mesmo tempo como instrumento e fator fundamental de sua legitimação. O Estado Social só pôde ser pensado e em seguida estabelecido porque a administração pública burocrática proporcionava um mínimo de eficiência que o tornava economicamente viável. Entretanto, na medida em que avançam as reformas sociais, foi ficando claro que esse mínimo era insuficiente. O aumento do custo dos serviços do Estado impôs a adoção da Reforma Gerencial. Essa imposição, porém, não era apenas fiscal, mas também política. Para que o Estado Social se mantivesse legitimado em face da ofensiva neoliberal era necessário tornar suas ações substancialmente mais eficientes. Era necessário proceder à Reforma Gerencial.

O Estado Social implica tornar coletiva ou pública a oferta dos serviços de educação, saúde e previdência social; e tornar coletivo, ao invés de individual, seu consumo. Para que esses serviços gratuitos e iguais para todos fossem viáveis, era preciso que o Estado fosse capaz de oferecê-los de forma não apenas efetiva, mas também eficiente. A administração burocrática já se havia revelado efetiva; tornou-se, entretanto, claro que, na medida em que a dimensão dos serviços sociais do Estado aumentava, a efetividade não era suficiente. Era preciso controlar o custo dos serviços realizados diretamente por servidores públicos estatutários que se revelavam altos demais.

Esses custos refletiam não apenas o maior volume dos serviços, mas também a ineficiência neles embutida devido à rigidez da administração burocrática. A ineficiência da administração pública burocrática tornava-se uma ameaça para a legitimidade do Estado Social e, em consequência, abria espaço para o ataque da ideologia neoliberal.

A ideologia neoliberal afirmava que a oferta e o consumo privado eram intrinsecamente mais eficientes do que a oferta pública e o consumo coletivo. Entretanto, não obstante a grande pressão da hegemonia neoliberal na época, a sociedade continuava a demandar os serviços públicos - continuava a preferir o consumo coletivo que se traduzia em serviços sociais e científicos gratuitos ou quase-gratuitos, e continuava a apoiar um sistema de previdência social estatal garantidor de uma renda básica.

A tese neoliberal de que o consumo público poderia ser substituído com vantagem pelo privado não foi aceita pela sociedade. A demanda continuada dos cidadãos por consumo coletivo não deixou dúvidas. Não bastava, entretanto, argumentar a favor do Estado Social a partir apenas dessa demanda. Era preciso também mudar as condições de oferta dos serviços, era preciso mostrar que o Estado estava usando bem os recursos dos impostos, que os contribuintes não estavam "jogando dinheiro bom em cima de dinheiro ruim" - uma frase típica dos oponentes do Estado Social.

A Reforma Gerencial foi a resposta a esse desafio ao modificar a forma de administrar a oferta dos serviços. Ela (1) torna os gerentes dos serviços responsáveis por resultados, ao invés de obrigados a seguir regulamentos rígidos; (2) premia os servidores por bons resultados e os pune pelos maus; (3) realiza serviços que envolvem poder de Estado através de agências executivas e reguladoras; e - o que é mais importante - (4) mantém o consumo coletivo e gratuito, mas transfere a oferta dos serviços sociais e científicos para organizações sociais, ou seja, para provedores públicos não estatais que recebem recursos do Estado e são controlados através de contrato de gestão. Através dessas quatro características - principalmente da última - o poder público garante os direitos sociais, mas transfere sua provisão ou oferta para organizações quase estatais que são as organizações sociais.

Como surgiam em um momento em que a ideologia neoliberal ganhava espaço, e em um país com um governo neoliberal, as novas ideias foram etiquetadas como neoliberais. Dependendo de seu autor, de fato eram. Na verdade, a Reforma Gerencial é compatível tanto com governos de esquerda quanto de direita, mas ao tornar eficientes os serviços sociais e científicos prestados pelo Estado, ela legitima politicamente o Estado Social.

A adoção da Reforma Gerencial por partidos políticos independentemente de sua cor ideológica não é surpreendente, porque é a segunda reforma histórica do aparelho do Estado moderno. Essa Reforma ocorreu para dar conta de um Estado Social muito maior em termos de número de funcionários e de despesa pública. Ela partia dos avanços logrados pela primeira, mas seu objetivo não era mais somente tornar a ação do Estado mais efetiva, mas também torná-la eficiente na área social e científica, nas quais se emprega um grande número trabalhadores em atividades não exclusivas de Estado.

Como se trata de uma reforma necessária quando o Estado se transforma num Estado Social e, do ponto de vista administrativo, deixa de ser o Estado Burocrático para ser o Estado Gerencial, sua implantação é uma questão de tempo e de qualidade. Cada país ou se adianta em realizá-la, ou fica para trás e arca com os custos do atraso; ou a implanta com competência, ou de forma equivocada e confusa.

EXPERIÊNCIAS DE IMPLANTAÇÃO DA REFORMA GERENCIAL

A legitimação do Estado Social pela Reforma Gerencial pode ser observada em um sem-número de casos. Um exemplo é o que ocorreu na Grã-Bretanha - laboratório da ideologia neoliberal durante o governo de Margareth Thatcher, ao mesmo tempo país em que se originou a Reforma Gerencial. Tony Blair chegou ao governo em 1997, depois de quase 20 anos de governos neoliberais. Ainda que os trabalhistas criticassem a Reforma no tempo em que estavam na oposição, quando chegaram ao governo a mantiveram e a aprofundaram. Ao mesmo tempo, aumentaram a carga tributária para melhorar a qualidade dos serviços de saúde e educação. Tornaram, assim, a administração desses serviços mais eficiente, e esse foi um argumento fundamental usado por Blair para legitimar sua política social que aumentava o tamanho do Estado ao elevar a despesa pública e a carga tributária. Margareth Thatcher não logrou extinguir o Estado Social; o máximo que conseguiu foi não aumentar a carga tributária. Tony Blair mudou a direção e avançou mais no caminho do Estado Social aumentando o con-sumo coletivo de serviços sociais, enquanto procurava transferir a oferta desses serviços para entidades públicas de direito privado. Nesse caso, a Reforma Gerencial foi essencial para que o Estado Social pudesse ser assim fortalecido.

Quando, em 1995, a Reforma Gerencial foi lançada no Brasil, ela também foi criticada como sendo neoliberal. Hoje, porém, essas acusações estão quase esquecidas tanto na Europa quanto no Brasil, porque ficou claro que sua consequência primeira foi fortalecer o próprio Estado e não enfraquecê-lo como almejavam os neoliberais. O equívoco de vincular a Reforma Gerencial de 1995 com o neoliberalismo foi evidenciado pelo fato de as diretrizes básicas do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado continuarem a ser implantadas no nível federal e em muitos Estados e municípios, independentemente da orientação política dos respectivos governos.

Uma característica central da Reforma Gerencial brasileira foi a distinção entre atividades exclusivas do Estado, que envolvem poder de Estado, e as atividades não exclusivas que devem ser realizadas por organizações públicas não estatais. Essas organizações sociais garantem uma flexibilidade e uma eficiência administrativa maiores. Os resultados alcançados pelos novos hospitais do Estado de São Paulo, todos constituídos sob a forma de organizações sociais, são definitivos a respeito.

Duas outras experiências significativas no Brasil merecem destaque: uma no governo FHC, com o SUS, e a outra no governo Lula, com o Programa Bolsa Família. Quando começou o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, o Sistema Único de Saúde, criado pela Constituição de 1988 para garantir o direito universal aos serviços de saúde, estava em crise. Não se havia ainda logrado estabelecer um sistema de financiamento para o SUS, e os hospitais envolvidos ofereciam serviços deficientes e se envolviam com frequência em denúncias de corrupção. A norma que regulava os serviços não dava conta do problema.

Entretanto, ao final de 1996, começou uma grande reforma gerencial do SUS com base na Norma Operacional Básica (NOB) 96, ao mesmo tempo em que se definiam fontes de financiamento para os serviços. Hoje, o SUS é um sistema universal de saúde que atende a um direito básico da cidadania com qualidade razoavelmente boa e custo muito baixo (menos de R$ 2 por habitante-dia). O segredo está, de um lado, na grande mobilização que ocorreu para a definição e implantação do SUS, e no controle social exercido pelos cidadãos em sua decorrência, e, de outro, na forma de administração gerencial, distinguindo a oferta da procura de serviços e dando aos municípios um papel muito maior em contratar os hospitais que prestam os serviços.

Fenômeno semelhante está ocorrendo com a Bolsa Família no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Inicialmente, a ideia era a de distribuir cestas básicas em um programa denominado Fome Zero. Entretanto, logo se verificou que esse programa estava mal formulado e mal administrado. Optou-se, então, por unificar e administrar gerencialmente as diversas bolsas em dinheiro e espécie que existiam até então, dar a todas o nome de Bolsa Família e aumentar consideravelmente sua abrangência. O resultado foi positivo. Enquanto o programa Fome Zero havia sido objeto de críticas permanentes, a Bolsa Família revelou-se efetiva em atender a um custo baixo os realmente pobres. Existe, sem dúvida, a crítica de que esse programa não estimula o trabalho e é focado, ao invés de universal. É indiscutível, porém, que os recursos públicos estão sendo usados de modo eficiente e atendem de forma efetiva as famílias socialmente excluídas.

Embora os representantes do Partido dos Trabalhadores enquanto estavam na oposição fossem críticos da Reforma Gerencial, o governo Lula vem adotando muitos dos seus princípios. O emprego de técnicas gerenciais na administração da Bolsa Família e na reforma da Previdência, assim como a exigência do Ministério da Educação de que as universidades federais que adotam o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) elaborem planos estratégicos, são duas demonstrações desse fato.

CONCLUSÃO

Temos, assim, entre o Estado Social e a Reforma Gerencial uma relação dialética: a constituição de um Estado que também é chamado de Estado do Bem-Estar, ao implicar um grande aumento da organização estatal, exige que sua gestão seja mais eficiente; por sua vez, a Reforma Gerencial resultante, ao contribuir para essa maior eficiência ou redução de custos, tem um papel importante na legitimação das ações do Estado, visando oferecer serviços de consumo coletivo que, por sua natureza, são mais igualitários do que os serviços pagos individualmente pelos atendidos.

A Reforma Gerencial nasceu da pressão por maior eficiência ou menores custos que se seguiu à transformação do Estado Democrático Liberal em Estado Democrático Social. Por outro lado, ao significar, do ponto de vista administrativo, a transição do Estado Burocrático para o Estado Gerencial, revelou-se um instrumento fundamental das sociedades modernas para neutralizar a ideologia neoliberal que buscava diminuir o tamanho do Estado na medida em que, ao tornar mais eficiente (embora jamais tão eficiente quanto gostaríamos) a provisão dos serviços sociais públicos ou coletivos, legitima o próprio Estado Social, e garante seu aprofundamento futuro.

  • BRESSER-PEREIRA, L. C. Da administração pública burocrática à gerencial. In: BRESSER-PEREIRA, L. C; SPINK, P. (Org) Reforma do Estado e administração pública gerencial Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1998.
  • BRESSER-PEREIRA, L. C. State reform in the 1990s, logic and control mechanisms. In: BURLAMAQUI, L; CASTRO, A. C; CHANG, H.-J. (Eds) Institutions and the role of the State Cheltenham: Edward Elgar, 2000. v. 1, p. 175-219.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2010
  • Data do Fascículo
    Mar 2010
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