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Economia política da qualidade

PENSATA

Economia política da qualidade

José Eli da Veiga

Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo - São Paulo - SP, Brasil

O desenvolvimento da sociedade brasileira foi muito mais intenso nos últimos trinta anos do que em qualquer período anterior. O inverso ocorreu com o crescimento de sua economia, medido pelo aumento do PIB per capita. Por mais de um século (1870-1980) essa economia foi campeã de crescimento entre as dez maiores do mundo. Ultimamente só não foi a lanterninha por causa da persistente estagnação japonesa. Ou seja, nos últimos trinta anos houve muito mais desenvolvimento com muito menos crescimento.

Tal contraste merece a atenção de quem continua a supor que o desenvolvimento seja diretamente proporcional ao aumento do PIB per capita, para nem mencionar a terrível crença de que desenvolvimento seja mero sinônimo de crescimento econômico. Se assim fosse, nos últimos três decênios, teria sido forçosamente pífio o desenvolvimento da sociedade brasileira.

No entanto, isso nada tem de paradoxal para quem sabe que o desenvolvimento de uma sociedade depende é de como ela aproveita os benefícios de seu desempenho econômico para expandir e distribuir oportunidades de acesso a bens como: liberdades cívicas, saúde, educação, emprego decente etc. Ainda mais para quem já entendeu também que o desenvolvimento terá pernas curtas se a natureza for demasiadamente agredida pela expansão da economia, que é um subsistema altamente dependente da conservação da biosfera. Daí porque qualquer avaliação razoável da prosperidade tenderá a exigir não somente uma medida de desempenho econômico que supere as anacrônicas e obsoletas medidas de produto bruto (seja ele interno ou nacional, PIB ou PNB). Exigirá também a utilização simultânea de mais dois indicadores: um sobre a qualidade de vida viabilizada pelo desempenho econômico, e outro sobre a sustentabilidade ambiental desse processo.

NOVA MENSURAÇÃO

A medida de desempenho econômico que tenderá a substituir o PIB será a da "renda real líquida disponível por domicílio", algo que ainda nem pode ser bem calculado pelas mais sofisticadas agências de estatísticas dos países centrais. Essa foi uma das principais recomendações do relatório produzido pela Comissão Stiglitz-Sen-Fitoussi (2009), que já parece ter sido bem aceito pela OCDE.

Na França já se presta muita atenção em diversos indicadores bem similares da evolução do "poder de compra da renda disponível". Isto é, o que efetivamente resta a famílias ou indivíduos após suas despesas obrigatórias relativas ao fisco, previdência, seguros etc. É muito frequente que haja forte discrepância na evolução desse poder de compra e do PIB. Em 2008, por exemplo, o "poder de compra da renda disponível bruta por unidade de consumo" caiu (-0,4%), enquanto o PIB aumentava (+0,2%). Em 2009, ocorreu o inverso: o primeiro aumentou 0,8% apesar de séria queda do PIB (-2,6%).1 1 www.insee.fr.

Além de apontar a necessidade de medir o desempenho econômico olhando para renda e consumo, em vez de olhar para a produção, também serão imprescindíveis novas medidas de qualidade de vida e de sustentabilidade ambiental.2 2 Explicações mais detalhadas e contextualizadas sobre as recomendações do relatório da Comissão Stiglitz-Sen-Fitoussi estão no quarto capítulo do livro Mundo em transe (2009). Medidas subjetivas de bem-estar fornecem informações-chave sobre a qualidade de vida das pessoas. Por isso, as agências de estatística precisarão pesquisar as avaliações que as pessoas fazem de sua vida, suas experiências hedônicas e prioridades. Além disso, a qualidade de vida também depende, é claro, das condições objetivas e das oportunidades. Terão de melhorar as mensurações de oito dimensões cruciais: saúde, educação, atividades pessoais, voz política, conexões sociais, condições ambientais e insegurança (pessoal e econômica).

As desigualdades também precisarão ser avaliadas de forma bem abrangente para todas essas oito dimensões. E deverão ser concebidos levantamentos de forma a avaliar as ligações entre as várias dimensões da qualidade de vida de cada pessoa, sobretudo para a elaboração de políticas em cada área. Enfim, as agências de estatística terão que prover as informações necessárias para que as diversas dimensões da qualidade de vida possam ser agregadas, permitindo a construção de diferentes índices, compostos ou sintéticos.

Já a avaliação da sustentabilidade requer um pequeno conjunto bem escolhido de indicadores, diferente dos que podem avaliar a qualidade de vida e o desempenho econômico. Característica fundamental dos componentes desse conjunto deve ser a possibilidade de interpretá-los como variações de estoques e não de fluxos. Algum índice monetário de sustentabilidade até poderá fazer parte disso, mas deverá permanecer exclusivamente focado na dimensão estritamente econômica da sustentabilidade. Os aspectos ambientais da sustentabilidade exigem acompanhamento específico por indicadores físicos. E é particularmente necessário um claro indicador da aproximação de níveis perigosos de danos ambientais (como os que estão associados à mudança climática, p. ex.).

Sustentabilidade

Seja qual for a preferência que se tenha por algum dos inúmeros sentidos que possa ser atribuído ao vocábulo "sustentabilidade", é inevitável que ele evoque o futuro. A responsabilidade de não fazer hoje o que possa prejudicar ou inviabilizar o amanhã. Em sua versão mais popularizada, esse dilema (ou desafio) é focado no atendimento das necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações de fazerem o mesmo.

Entretanto, as sociedades humanas, atuais ou futuras, continuarão atribuindo muito valor a coisas que não podem ser consideradas "necessidades". E também é difícil imaginar que possa se manifestar com facilidade esse tipo de solidariedade intergeracional, se no presente ela não se manifesta sequer em favor dos seres humanos que estão sofrendo as atrocidades das guerras, da miséria, da fome, ou da falta de acesso à água potável. Por isso, o mais fácil é rejeitar todo discurso sobre sustentabilidade, taxando-o de ilusionismo retórico.

Todavia, há exemplos históricos de manifestações sociais de altruísmo, mesmo que sejam infinitamente mais escassos do que seu inverso. O exemplo mais próximo talvez seja o do processo que levou ao fim da escravidão. Por isso, não pode ser rechaçada a ideia de que aumente a preocupação moral dos atuais adultos com as condições de vida que poderão ter seus netos ou bisnetos. Mesmo que não cheguem a se comover com a parte mais séria da questão, pois é a própria existência de gerações pós-bisnetos que está sendo posta em dúvida pela ciência. O que está em jogo, quando se fala de sustentabilidade, é a capacidade adquirida pela espécie humana de encurtar seu prazo de validade ao acelerar o inevitável processo de sua própria extinção.

Não é outra coisa que impõe a obrigação de conservar ecossistemas. Há uma dezena de problemas ambientais que precisarão ser enfrentados, e que costumam ser classificados ou hierarquizados de várias maneiras. No entanto, sempre ocuparão o topo de qualquer lista três questões essenciais: clima, água e biodiversidade. E há um simples critério que imediatamente os distingue. Alguns - como a poluição dos rios, por exemplo - podem ser revertidos, e suas consequências tendem a ser mitigadas com o enriquecimento das sociedades. Outros - como a ruptura climática - são de dificílimo manejo, mesmo na hipótese de que possa surgir prioritária e efetiva ação conjunta da comunidade internacional. Além disso, um sério aquecimento global terá forte impacto negativo sobre muitos ecossistemas, reduzindo, e até anulando, ganhos obtidos por práticas de conservação da biodiversidade, de gestão dos recursos hídricos ou de adequada produção alimentar.

Então, sob o prisma histórico do processo de desenvolvimento, não é possível pensar em muitas reversões de danos ambientais se não for enfrentada concomitantemente a questão climática. Seja no âmbito dos vários tipos de poluição, das reciclagens, dos usos de produtos tóxicos, do manejo do lixo, do controle de espécies exóticas ou da conservação dos solos e da proteção de hábitats. Todas essas conquistas poderiam se mostrar irrisórias caso não viessem acompanhadas de contenção da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, provocada principalmente pelo uso e abuso de fontes fósseis de energia. E de adaptação a uma talvez inevitável nova realidade climática.

Essa é a razão da primazia do aquecimento global. Não há rumo para o desenvolvimento sustentável que não comece pela transição energética que permitirá a superação da atual dependência das fontes fósseis. O oposto seria continuar a esbanjar recursos crescentemente escassos, desestimulando simultaneamente incipientes inovações no âmbito das energias ditas renováveis e imprescindíveis pesquisas de base sobre novas fontes.

Crescimento: quantidade versus qualidade

"Acelerar o crescimento" não é, portanto, aquela panaceia tão frequente nos discursos políticos de representantes do governo, da oposição, de sindicatos patronais e trabalhistas, diuturnamente reproduzidos pela mídia. Nenhum deles reconhece que o maior desafio para países como o Brasil passou a ser muito mais qualitativo que quantitativo. Não atinaram para a influência que exerce a qualidade do crescimento"3 3 "A qualidade do crescimento" foi tema de relatório do Banco Mundial em 2000: ver Thomas e outros (2002). sobre o "estilo de desenvolvimento"4 4 Os "estilos de desenvolvimento" foram intensamente debatidos pela Cepal desde meados dos anos 1970: ver Pinto (1982), Sunkel e Gligo (1980), e Sunkel (1981). . No fundo continuam mesmo a sonhar com uma economia em "marcha forçada"5 5 "Economia em marcha forçada" foi a expressão que caracterizou a dita "estratégia de 1974" do II PND: ver Castro e Souza (1985). .

O que há dez anos fez o Banco Mundial chamar a atenção para a qualidade do crescimento foi uma tripla constatação: a) nem tudo melhora com o aumento da renda per capita, b) as coisas que melhoram nunca o fazem na mesma proporção; c) e nem é inevitável que a qualidade de vida realmente melhore. A depender da sociedade, uma mesma velocidade de crescimento econômico costuma gerar diversos graus de avanços em cerca de dez áreas cruciais: educação, saúde, lacuna de gênero, liberdades civis e políticas, redução da pobreza, redução das desigualdades, participação dos cidadãos nas decisões afetas à sua vida, combate à corrupção, qualidade ambiental e sustentabilidade.

Como mostra o relatório sobre a qualidade do crescimento (Thomas e outros, 2002), o Banco Mundial notou que quase todas essas dimensões melhoraram muito no estado indiano do Kerala, apesar de suas taxas de aumento da renda per capita terem sido muito inferiores às de outros estados e países. Se todos os estados indianos tivessem a elasticidade da redução da pobreza de Kerala, por exemplo, a Índia haveria triplicado a queda de sua população na pobreza.6 6 Fenômeno recentemente confirmado no Brasil: de 1995 a 2008 houve maior redução de pobres e miseráveis nas regiões como menores crescimentos do PIB per capita: Sul e Sudeste. Cf. "Comunicados do IPEA nº 58 "Dimensão, evolução e projeção da pobreza por região e por estado no Brasil", 13 de julho de 2010. A experiência da Coreia do Sul ilustra a importância de se investir eficientemente em educação básica. Da mesma forma, o Chile ilumina a possibilidade de abertura equilibrada com gerenciamento de risco e proteção social. E a Costa Rica é um caso emblemático de proteção ambiental.

Os processos desses quatro países indicam que a ênfase na qualidade do crescimento é triplamente essencial. Primeiro, porque promove diretamente o bem-estar ao influenciar o acesso e a distribuição mais uniforme ao trio virtuoso formado pela educação, saúde e qualidade ambiental. Segundo, porque o compasso do crescimento tende a ser menos volátil quando os aspectos qualitativos são priorizados. Onde as taxas de crescimento são muito instáveis, os impactos negativos são especialmente pronunciados para os pobres. Terceiro, porque se evita a frequente tentação de subsidiar o capital físico, ou de superexplorar recursos humanos e naturais, na ânsia de se promover a aceleração do crescimento. Por isso, o relatório chega a evocar a existência de uma "economia política de quantidade versus qualidade" (Thomas e outros, 2002, p. 185).

Havia sido bem diferente a reflexão de economistas e sociólogos da Cepal que, trinta anos antes, propuseram a noção de "estilos de desenvolvimento". Por mais criativa que tenha sido essa imagem de que o processo de desenvolvimento tem necessariamente diversos "estilos", não foram realmente elucidativos os esforços cepalinos de caracterizá-los. Um bom exemplo está no simplório esboço de tipologia usado por Aníbal Pinto (1982, p. 46), no qual os estilos resultam de combinações entre três dicotomias: desigual-igualitarista, consumista-desenvolvimentista, e dependente-autonomista.

Todavia, é fundamental a observação de Sunkel e Gligo (1980, p. 62) de que a perspectiva ambiental nessa discussão levou inevitavelmente a que fosse posta em dúvida uma série de "crenças derivadas da ideologia do crescimento econômico que haviam prevalecido nos decênios anteriores". Tornaram-se assim problemáticas:

a) a confiança no crescimento econômico exponencial e ilimitado;

b) a possibilidade de sustentar a longo prazo um estilo de desenvolvimento baseado na exportação de recursos naturais;

c) a conduta orientada a acumular o máximo de bens materiais de consumo;

d) as vantagens da concentração urbana;

e) a fé indiscriminada no progresso da ciência e tecnologia e em sua capacidade de artificializar de forma irrestrita a natureza;

f) a possibilidade de compatibilizar os elevados níveis de consumo dos países industriais e dos grupos de alta renda dos países subdesenvolvidos, com a obtenção de níveis de consumo similares para as grandes maiorias.

Desnecessário ir mais longe para afirmar que essas duas abordagens - qualidade do crescimento e estilo de desenvolvimento - desaconselham todo voluntarismo na direção de uma economia em marcha forçada. Ainda mais no atual contexto brasileiro, em que específicas circunstâncias macroeconômicas também limitam ambições de se turbinar o PIB a uma taxa de crescimento anual que ultrapasse o patamar dos 5%.

Crescer melhor

No Brasil, além de as poupanças totais domésticas serem historicamente baixas, a situação se agravou em 2008-2009 porque os estímulos que ampliaram o consumo foram de natureza fiscal, reduzindo assim as próprias poupanças do setor público. Ou seja, as elevações na taxa de investimento não têm sido seguidas de elevações nas poupanças totais domésticas, requerendo mais poupanças externas obtidas mediante déficit nas contas correntes.

Como enfatizam Pastore e outros (2010), déficits persistentes nas contas correntes elevam o passivo externo, depreciam o câmbio real, limitando depois de algum tempo a absorção da poupança externa, e impedindo taxas de investimento mais elevadas, o que impõe limite ao crescimento. A acumulação de passivos externos impede a continuidade de déficits elevados nas contas correntes por causa dos custos que tal passivo inevitavelmente acarreta. Custos na forma de juros, se o passivo externo for acumulado como dívida, ou na forma de lucro remetido, se acumulado como investimentos.

É sob esse prisma que precisa ser encarada a bandeira de "crescer mais e melhor", lema da agenda que o setor industrial está propondo aos candidatos à presidência da República. Não tanto por sua ambição quantitativa de "dobrar a renda per capita a cada 15 anos", o que exigiria que a expansão anual do PIB fosse ligeiramente mais alta que o mencionado patamar dos 5%. Mas, sobretudo, pela inadiável necessidade de que sejam entendidas e assimiladas as implicações da dimensão qualitativa contida nessa ambição de que o Brasil precisa "crescer melhor" (CNI, 2010).

Essa agenda, que certamente reflete o que há de mais maduro na percepção do empresariado industrial sobre o rumo do desenvolvimento nacional,7 7 Sua elaboração começou em novembro de 2009 com a aplicação de um questionário eletrônico a 1.300 organizações empresariais para a identificação das prioridades do setor. Mais de 1.500 empresários participaram do num processo que culminou no IV Encontro Nacional da Indústria, do qual saíram dois documentos - "Carta da indústria" e "Prioridades e recomendações para 2011-2014" - que especificaram diretrizes já contidas no "Mapa estratégico da indústria 2007-2015". E antes que a diretoria da confederação validasse as propostas e recomendações da atual agenda, elas haviam sido discutidas em Conselhos Temáticos, com subsequente decisão do Fórum Nacional da Indústria (FNI) sobre a orientação estratégica. contêm cinco grandes diretivas, ou cinco "áreas principais" sobre as quais "deve agir a "estratégia" proposta pela indústria: a) integração do mercado doméstico; b) internacionalização; c) inovação; d) projetos propulsores; e) economia de baixo carbono (CNI, 2010, p. 23-24).

Não é estranha essa formulação segundo a qual uma "estratégia" deveria "agir sobre" algumas "áreas principais"? Será que tanta ambiguidade semântica não poderia ser justamente indício da ausência de uma verdadeira estratégia? Para que se chegasse a uma estratégia, não teria sido necessário estabelecer relações hierárquicas entre as cinco "áreas" escolhidas? Tais dúvidas levam necessariamente a uma pergunta bem mais simples e básica: afinal, o que é estratégia?

Estratégia

O emprego do termo "estratégia" é quase sempre muito ingênuo. Quase todos os seus usuários consideram estratégica qualquer atividade que articule fins a meios. Ou, de forma ainda mais simplória, qualquer procedimento que vise a um objetivo. A banalização foi tão longe que qualquer fenômeno de longo prazo é qualificado de estratégico.

São dois os problemas cognitivos presentes em todos esses abusos. O menos grave é a profunda "amnésia da gênese", como dizia o sociólogo Pierre Bourdieu. O termo vem do grego strategía, e resulta da junção da palavra stratos, que quer dizer "exército" ou "força armada", com a palavra agein, que significa "conduzir". Talvez seja por isso que só entre militares continue a existir consenso em torno de uma definição do seguinte tipo: estratégia é o conjunto de operações intelectuais e físicas requeridas para que se conceba, prepare e conduza, em ambiente de conflito, toda atividade coletiva com objetivo bem determinado.

O segundo problema é bem mais danoso, pois decorre de amplo desconhecimento das controvérsias que surgiram, em quase meio século de ensino da disciplina "planejamento estratégico", entre as mais conceituadas escolas de administração de empresas do mundo. É incomum que se fale do assunto com a consciência de que cinco sentidos da palavra estratégia precisariam estar simultaneamente assumidos. E raríssimo que a abordagem adotada seja explicitamente apresentada como uma entre dez linhas analíticas concorrentes.

A melhor fonte sobre essa dezena de abordagens do planejamento estratégico está no monumental balanço feito por Mintzberg e outros (2000). Talvez não haja melhor "roteiro pela selva do planejamento estratégico", como diz seu subtítulo. Todavia, dez anos depois de publicação tão decisiva, parece que está prestes a ruir toda essa dezena de escolas de pensamento, devido à extrema fragilidade de seus alicerces comuns. E a melhor maneira de entender tamanha ameaça de desabamento é estudar casos concretos sobre os processos decisórios que levam à consolidação de alguma das opções disponíveis.

Nas experiências concretas de sucesso, não costuma ocorrer escolha, aposta, ou compromisso com uma determinada estratégia. O mais comum é a adoção de um portfólio de opções congruentes com a aspiração de que a empresa se torne a empresa líder em determinado ramo. E tudo isso numa conjuntura em que ninguém pode afirmar com segurança qual das opções será a mais vantajosa. Sem tentar prever o futuro, as empresas de sucesso são as que assumem internamente um leque de planos de negócio que espelha o processo competitivo que ocorre lá fora.

Em vez de adotar uma linha estratégica que a melhor análise de cenários poderia indicar como garantia de duradoura vantagem competitiva, a empresa estimula um processo evolutivo no qual são as forças de mercado que indicam quais das opções deveriam ser selecionadas ou extintas. Uma experiência que subverte todas as maneiras convencionais de se conceber o planejamento estratégico, pois em lugar de pregar alguma escolha seguida de compromisso, ela impõe quatro grandes constatações.

A primeira, mais geral, é que a criação de um contexto favorável à emergência da melhor opção passa pela adoção de um portfólio de experimentos que só será razoável se os envolvidos tiverem bom conhecimento da situação, além de partilharem a mesma aspiração. A segunda é que os condutores, ou líderes, precisam prestar muita atenção nas possibilidades de diferenciação de planos de negócio. A terceira é que a organização precisa criar um mecanismo de seleção que realmente espelhe seu respectivo mercado. E a quarta é a imprescindível necessidade de um processo que amplifique os melhores planos enquanto elimina os piores.

Além de radicalmente contrária aos pressupostos comuns das dez escolas de pensamento que se debatem na selva do planejamento estratégico, essa nova abordagem é fortemente inspirada na moderna teoria sintética da evolução darwiniana. Proposta que está detalhada no nono capítulo do livro The Origin of Wealth, de Eric D. Beinhocker (Harvard, 2006). Uma obra que, além de fundamental para quem se interessa por assuntos estratégicos, tem ambição ainda mais vasta, já que pretende fazer com que se entenda a economia como um sistema evolutivoNessa perspectiva, as cinco "áreas principais" sobre as quais deveria "agir a estratégia industrial brasileira", segundo a CNI, podem ser entendidas como as grandes opções disponíveis. Esse é o leque que deve ser assumido, sem que nem mesmo a melhor análise de cenários possa orientar alguma escolha prévia, muito menos compromisso. Trata-se, ao contrário, de estimular um processo evolutivo no qual as opções a serem selecionadas serão indicadas por complexo processo histórico global. Ou seja, de nada adiantaria querer argumentar neste momento em favor de se assumir desde já a prioridade da "ênfase na inovação" voltada à "transição para a economia de baixo carbono", em vez de "foco nos grandes projetos", "inserção no mercado internacional" ou "aproveitamento do tamanho do mercado brasileiro".

O mesmo não se aplica, contudo, à necessidade de identificar com clareza os fatores que se opõem à emergência de um contexto largamente favorável ao processo seletivo. Não poderá haver sucesso se os principais envolvidos não tiverem bom conhecimento da situação; se os líderes não prestarem muita atenção nas possibilidades de diferenciação; se não surgir um mecanismo de seleção que realmente espelhe o momento histórico; e se não houver uma dinâmica que amplifique os melhores planos enquanto elimina os piores.

Por isso, o que mais determinará a qualidade do crescimento, assim como sua pesada influência sobre o estilo de desenvolvimento, pouco tem a ver com a parte da plataforma da CNI que tenta definir a "estratégia". Ela surge depois, na parte consagrada à formulação de uma "agenda para a competitividade" que elenca 268 propostas sobre uma dúzia de gravíssimos problemas: infraestrutura, comércio exterior, micro e pequena empresa, educação, tributação e gasto público, meio ambiente, financiamento, burocracia, relações do trabalho, inovação, segurança jurídica e macroeconomia.

Educação científica

A parte educacional dessa "agenda para a competitividade" mostra séria incoerência com a necessidade de "ênfase da inovação nas empresas", terceira das cinco "áreas estratégicas". Apesar de insistir na questão da qualidade da educação, e de fazer trinta propostas bem pertinentes, nada revela preocupação com a falta de educação científica. E, no entanto, o centro do argumento "estratégico", que aparece 120 páginas antes, é da precariedade da formação de cientistas e engenheiros.

O principal é forjar "cabeças bem preparadas", pois elas é que são favorecidas pela sorte, dizia Louis Pasteur. Nessa perspectiva, nada poderá ser mais decisivo que uma efetiva prioridade ao ensino de ciências desde o ensino básico. Ensinar a raciocinar cientificamente, promover a curiosidade e a paixão pelo conhecimento de forma maciça, rompendo com a representação social que existe das ciências como um saber de acesso muito difícil e patrimônio de poucos.

Tanto quanto a educação artística não pretende que todos sejam músicos, pintores ou escritores, a educação científica e tecnológica não pretende que todos os cidadãos sejam capazes de construir metrô ou rodoanel. Mas deve garantir que todos tenham condições de entender e influir no processo decisório sobre seus trajetos, sobre as funções sociais que devem cumprir, além de transportar com eficiência, e sobre os impactos ambientais que precisarão ser mitigados e compensados. Sem fortalecimento da capacidade dos leigos de compreender o linguajar dos peritos, será impossível gerenciar as consequências socioambientais de suas opções técnicas.

O Brasil precisa mudar o patamar de seu sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I). Há maturidade na comunidade científica e tecnológica, além de percepção crescente na comunidade empresarial, sobre a necessidade de se investir em inovação, o que, em princípio, cria condições para que realmente surja um plano de desenvolvimento ambicioso e realista. Seria de se esperar, então, que a educação científica fosse colocada no topo das prioridades. E que isso causasse saudável choque em elites que com muito atraso se deram conta da importância da educação. É urgente que também percebam que nada pode ser mais crucial do que a introdução ao conhecimento científico desde o ensino básico. No entanto, a longa agenda elaborada pela CNI é, infelizmente, um claro sinal de que isso ainda não ocorre.

Baixo carbono

A segunda séria deficiência dessa plataforma da CNI é a maneira como aborda a questão da sustentabilidade ambiental. Começa muito bem ao propor a seguinte rima: "Mudança de filosofia: do conflito para a parceria". A CNI está certa em afirmar que no Brasil "dá-se uma prioridade exagerada à imposição de custos e regulações, reduzindo-se o foco na parceria desejável e necessária entre poder público e indústria para a concretização do desenvolvimento sustentável".

No entanto, de suas cinco prioridades para o meio ambiente, também escancaram incoerência com o que antes foi apresentado como a quinta "área estratégica": a transição para a economia de baixo carbono.

As cinco prioridades são: clareza nos processos de licenciamento ambiental; aprovação da política nacional de resíduos sólidos; revisão do Código Florestal;8 8 A ideia de revisar o Código Florestal era bastante razoável, mas, infelizmente, tornou-se "um tiro pela culatra", como fica bem claro em Lewinsohn e outros (2010). maior efetividade na gestão de recursos hídricos; e pagamento por serviços ambientais. Nenhuma delas voltada para iniciativas que reduzam a intensidade energética e a intensidade do carbono do Brasil urbano, ao mesmo tempo que estarão sendo minimizados desmatamentos e queimadas (e talvez também as emissões de metano da pecuária).

Essa incoerência entre o que é considerado "estratégico" e o que aparece nas vinte iniciativas elencadas no tópico ambiental da "agenda de competitividade" é outro sintoma do atraso que vitima o empresariado industrial brasileiro. Isto é, continua a prevalecer a concepção de que a exigência de sustentabilidade ambiental é muito mais estorvo que oportunidade. Embora se possa ler na página 43 que "as mudanças do clima representam uma oportunidade para o desenvolvimento nacional", não há absolutamente nada que decorra de tal afirmação nas vinte reivindicações listadas na parte ambiental da agenda de competitividade (p. 197-204). Nem mesmo alguma menção à necessidade de se criarem polos de crescimento limpo para abrir a porta à sustentabilidade do desenvolvimento. Em suma, basta evocar o recente relatório da Unctad (2010) para que se possa avaliar o tamanho do mencionado atraso. Mais ainda se a concepção da CNI for comparada às ideias contidas em Besserman Vianna e outros (2009), ou em Abramovay (2010).

CONCLUSÃO

A proposta de "crescer mais e melhor" da CNI derrapa justamente em dois temas cruciais: educação e sustentabilidade ambiental. Nem é necessário, portanto, que se avance para outros, como: saúde, emprego, lacuna de gênero, liberdades civis e políticas, redução da pobreza, redução das desigualdades, participação dos cidadãos nas decisões afetas às suas vidas, ou corrupção. Está claro o quanto o "mais" continua a prevalecer sobre o "melhor" para as elites industriais brasileiras.

Pior: a agenda da CNI acaba por fazer uma tremenda confusão entre meios e fins. Como é possível imaginar que o desenvolvimento (seja ele sustentável ou não) possa ser visto como um dos meios de um processo cuja finalidade seria o aumento da renda? Chega ser até difícil de acreditar que alguém possa cometer tamanha inversão lógica. E a única explicação para esse fenômeno é evidentemente o avassalador efeito do fetiche do crescimento. Algo que torna apenas retórica a ideia de "crescer melhor", pois permanece esmagadora a ideia de "crescer mais".

De resto, a reflexão da CNI também precisará incorporar a visão que tem sido chamada de "ecologia industrial". Mas seria exigir demais que sua agenda de 2010 já estivesse em sintonia com tais pesquisas de fronteira.

No plano geral, é muito importante lembrar que o surgimento de novos negócios e novos mercados será infinitamente mais alavancado por instituições que regulem e encareçam as emissões de gases de efeito estufa, e pelas consequentes restrições à utilização de fósseis. O que explica o apoio das mais modernas elites empresariais globais às políticas de mitigação, inicialmente hesitante, em seguida muito firme, e agora marcada pela perplexidade provocada pela reversão de expectativas sobre o desempenho das principais economias.

Nada disso invalida a ideia de que o combate ao aquecimento global tenha caráter eminentemente ético. Afinal, como já foi dito, o que está em jogo é o perigo de que decisões imprudentes contribuam para acelerar ainda mais o processo de extinção da espécie humana. Mas permite que um programa estratégico de desenvolvimento sustentável seja pragmático, pois fundamentado nas tendências já observáveis de transição para o que vem sendo chamado de "economia de baixo carbono". É claro que a economia global também poderia ser impulsionada por nova onda bélico-tecnológica. Mas, além de indesejável, esse é um cenário que tornaria simplesmente sem sentido qualquer reflexão sobre o rumo ao desenvolvimento sustentável.

Não menos importante é entender a simetria que existe entre as poucas dezenas de sociedades "centrais" e a da centena de "periféricas", assim como a complexidade da situação intermediária que prevalece na "semiperiferia", principalmente entre os países chamados de "emergentes", "em ascensão" ou do "novo segundo mundo". Contrastes que obviamente impõem sérias diferenças nas opções abertas a cada um desses grupos geopolíticos sobre suas perspectivas de desenvolvimento, "sustentável" ou não. Enquanto nos países centrais se começa a debater a tese da "prosperidade sem crescimento", os periféricos precisam é começar a crescer. E nos emergentes, como o Brasil, a questão central é da qualidade do crescimento.

NOTAS

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  • BEINHOCKER, E. D. The Origin of Wealth. Boston: Harvard Business School Press, 2006.
  • BESSERMAN VIANNA, S; VEIGA, J. E; ABRANCHES, S. A sustentabilidade do Brasil. In: GAMBIAGI, F; BARROS O. (Orgs) Brasil pós-crise: agenda para a próxima década. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
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  • 1
  • 2
    Explicações mais detalhadas e contextualizadas sobre as recomendações do relatório da Comissão Stiglitz-Sen-Fitoussi estão no quarto capítulo do livro
    Mundo em transe (2009).
  • 3
    "A qualidade do crescimento" foi tema de relatório do Banco Mundial em 2000: ver Thomas e outros (2002).
  • 4
    Os "estilos de desenvolvimento" foram intensamente debatidos pela Cepal desde meados dos anos 1970: ver Pinto (1982), Sunkel e Gligo (1980), e Sunkel (1981).
  • 5
    "Economia em marcha forçada" foi a expressão que caracterizou a dita "estratégia de 1974" do II PND: ver Castro e Souza (1985).
  • 6
    Fenômeno recentemente confirmado no Brasil: de 1995 a 2008 houve maior redução de pobres e miseráveis nas regiões como menores crescimentos do PIB
    per capita: Sul e Sudeste. Cf. "Comunicados do IPEA nº 58 "Dimensão, evolução e projeção da pobreza por região e por estado no Brasil", 13 de julho de 2010.
  • 7
    Sua elaboração começou em novembro de 2009 com a aplicação de um questionário eletrônico a 1.300 organizações empresariais para a identificação das prioridades do setor. Mais de 1.500 empresários participaram do num processo que culminou no IV Encontro Nacional da Indústria, do qual saíram dois documentos - "Carta da indústria" e "Prioridades e recomendações para 2011-2014" - que especificaram diretrizes já contidas no "Mapa estratégico da indústria 2007-2015". E antes que a diretoria da confederação validasse as propostas e recomendações da atual agenda, elas haviam sido discutidas em Conselhos Temáticos, com subsequente decisão do Fórum Nacional da Indústria (FNI) sobre a orientação estratégica.
  • 8
    A ideia de revisar o Código Florestal era bastante razoável, mas, infelizmente, tornou-se "um tiro pela culatra", como fica bem claro em Lewinsohn e outros (2010).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2010
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