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(Des)fetichização do produtivismo acadêmico: desafios para o trabalhador-pesquisador

(Des)fetichización del productivismo académico: retos para el trabajador-investigador

Resumos

O trabalhador-pesquisador reclama fazer mais do que quer ou pode. Critica, porém acata. Análises sobre produtivismo acadêmico responsabilizam, não sem razão, organismos internacionais e nacionais e o sistema vigente. Observam-se, no entanto, mudanças escassas e resignação. Examinamos neste trabalho como se estruturou, a partir do século XIX, a complexa engenharia social que comanda o mundo, com a sobreposição de processos históricos de longa duração e decisivos no Ocidente. Destaca-se o surgimento das ciências humanas e sociais e seus compromissos cedo selados com governos e homens de negócio. A eleição de Educação, Ciência e Tecnologia como centrais para promover progresso econômico e social reduziram a Universidade, predominantemente, à executora e refém, não autônoma. Enquanto é o capital que precisa do conhecimento gerado pelos trabalhadores-pesquisadores para reproduzir-se, estes vivenciam a intensificação e alienação do seu trabalho; tal dependência aponta para o desafio de exercer seu poder.

Produtivismo acadêmico; trabalhador-pesquisador; economia; ciências humanas e sociais; história de longa duração


El trabajador-investigador protesta de hacer más de lo que quiere o puede.Critica,pero acata.Análisis sobre el productivismo académico responsabilizan, no sin razón, organismos internacionales y nacionales y el sistema vigente. Se observan, sin embargo, pocos cambios y resignación. Examinamos en este trabajo como se ha estructurado, desde el siglo XIX, la complexa ingeniaría social que comanda el mundo, con la imbricación de los procesos históricos de larga duración y decisivos en el Occidente. Se destaca el surgimiento de las ciencias humanas y sociales y sus compromisos a la corta sellados con gobiernos y empresarios. La elección de Educación, Ciencia y Tecnología como claves para promover progreso económico y social han reducido la Universidad, predominantemente, a ejecutora y rehén, no autónoma. Mientras que es el capital que necesita del conocimiento generado por los trabajadores-investigadores para reproducirse, eses han vivenciado la intensificación y alienación de su trabajo; tal dependencia apunta para el reto de ejercer su poder.

Productivismo académico; trabajador-investigador; Economía; Ciencias humanas y sociales; historias de larga duración


Worker-researchers complain that they have to do more than they want or can. They criticize, but stick with it. Analyses of academic productivity hold international and Brazilian organisms (such as CAPES) and the current system responsible; and not without reason. But the results are scant changes and resignation. In this work we examine how, starting in the 19th century, the complex 'social engineering' that commands the world with its overlapping of long-lasting historical processes was structured. The rise of human and social sciences and the commitments they sealed with governments and business men early on is emphasized. The election of Education, Science and Technology as central to promoting economic and social progress reduced the University, predominantly to the role of executor (thinking itself to be autonomous, it is a hostage).While it is capital that needs the knowledge generated by the worker-researchers to reproduce itself, the latter experience the intensification and alienation of their work; such dependence points to the challenge of exercising their power.

Academic productivity; worker-researcher; economics; human and social sciences; long-lasting history


ARTIGOS

ARTIGO CONVIDADO

(Des)fetichização do produtivismo acadêmico: desafios para o trabalhador-pesquisador

(De)fetishization of academic productivity: challenges for the worker-researcher

(Des)fetichización del productivismo académico: retos para el trabajador-investigador

Ana Maria Netto MachadoI; Lucídio BianchettiII

IProfessora do Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade do Planalto Catarinense - Lages - SC, Brasil laborescrita@gmail.com

IIProfessor do Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina - Florianópolis - SC, Brasil lucidio.bianchetti@pq.cnpq.br

RESUMO

O trabalhador-pesquisador reclama fazer mais do que quer ou pode. Critica, porém acata. Análises sobre produtivismo acadêmico responsabilizam, não sem razão, organismos internacionais e nacionais e o sistema vigente. Observam-se, no entanto, mudanças escassas e resignação. Examinamos neste trabalho como se estruturou, a partir do século XIX, a complexa engenharia social que comanda o mundo, com a sobreposição de processos históricos de longa duração e decisivos no Ocidente. Destaca-se o surgimento das ciências humanas e sociais e seus compromissos cedo selados com governos e homens de negócio. A eleição de Educação, Ciência e Tecnologia como centrais para promover progresso econômico e social reduziram a Universidade, predominantemente, à executora e refém, não autônoma. Enquanto é o capital que precisa do conhecimento gerado pelos trabalhadores-pesquisadores para reproduzir-se, estes vivenciam a intensificação e alienação do seu trabalho; tal dependência aponta para o desafio de exercer seu poder.

Palavras-chave: Produtivismo acadêmico, trabalhador-pesquisador, economia, ciências humanas e sociais, história de longa duração.

ABSTRACT

Worker-researchers complain that they have to do more than they want or can. They criticize, but stick with it. Analyses of academic productivity hold international and Brazilian organisms (such as CAPES) and the current system responsible; and not without reason. But the results are scant changes and resignation. In this work we examine how, starting in the 19th century, the complex 'social engineering' that commands the world with its overlapping of long-lasting historical processes was structured. The rise of human and social sciences and the commitments they sealed with governments and business men early on is emphasized. The election of Education, Science and Technology as central to promoting economic and social progress reduced the University, predominantly to the role of executor (thinking itself to be autonomous, it is a hostage).While it is capital that needs the knowledge generated by the worker-researchers to reproduce itself, the latter experience the intensification and alienation of their work; such dependence points to the challenge of exercising their power.

Keywords: Academic productivity, worker-researcher, economics, human and social sciences, long-lasting history

RESUMEN

El trabajador-investigador protesta de hacer más de lo que quiere o puede.Critica,pero acata.Análisis sobre el productivismo académico responsabilizan, no sin razón, organismos internacionales y nacionales y el sistema vigente. Se observan, sin embargo, pocos cambios y resignación. Examinamos en este trabajo como se ha estructurado, desde el siglo XIX, la complexa ingeniaría social que comanda el mundo, con la imbricación de los procesos históricos de larga duración y decisivos en el Occidente. Se destaca el surgimiento de las ciencias humanas y sociales y sus compromisos a la corta sellados con gobiernos y empresarios. La elección de Educación, Ciencia y Tecnología como claves para promover progreso económico y social han reducido la Universidad, predominantemente, a ejecutora y rehén, no autónoma. Mientras que es el capital que necesita del conocimiento generado por los trabajadores-investigadores para reproducirse, eses han vivenciado la intensificación y alienación de su trabajo; tal dependencia apunta para el reto de ejercer su poder.

Palabras clave: Productivismo académico, trabajador-investigador, Economía, Ciencias humanas y sociales, historias de larga duración.

PRODUTIVISMO ACADÊMICO EM TELA: O QUE JÁ SABEMOS TANTO...

Em textos anteriores tratamos do quanto nós, pesquisadores brasileiros envolvidos na pós-graduação (PG) stricto sensu, somos "Reféns da Produtividade..." e defrontados com o "Publicar ou Morrer?!" (BIANCHETTI, MACHADO, 2007). Neles, analisamos o contexto e os impactos das mudanças nas políticas de PG sobre a qualidade das produções e a saúde dos pesquisadores. Sguissardi e Silva Jr. (2009) investigaram as condições dos pesquisadores nas universidades federais e os efeitos do chamado "produtivismo acadêmico"; De Meis e outros (2003) abordaram os riscos à saúde da carreira do pesquisador, explorando elementos antropológicos na análise da PG; a Revista do ANDES, Universidade e Sociedade (a. XVII, n. 41, jan./2008: www.andes.org.br), dedicou número especial à temática da "Produção versus Produtivismo e precarização do trabalho" e a da ADUSP (n. 45, out./2009: www.adusp.org.br), sessão inteira à questão; Duarte Jr. (2010), incluiu capítulo corrosivo em sua obra, designando os textos resultantes de indução produtivista como "rotten papers" (papéis podres semelhantes aos causadores da recente crise financeira mundial). Poderíamos ampliar a lista de produções voltadas ao problema na última década, reveladora da sua gravidade e do interesse despertado.

Compõe o inventário dos riscos longa lista de sintomas, associados a exigências que se sobrepõem umas às outras - de maneira que nem deuses dotados de ubiquidade poderiam satisfazer - pressão e colesterol altos, infartos, tendinites, solicitações contraditórias, imperiosa presença em vários lugares distintos e distantes ao mesmo tempo (parcialmente viabilizados pela tecnologia). Problemas de memória, relatórios, avaliação de artigos para periódicos, eventos e editais, trabalhos para congressos, palestras, conferências, apresentações, aulas na graduação e PG, supervisões; viagens, busca de financiamento; gestão de contas bancárias, reuniões, orientações; escrita, leituras, coleta Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Lattes... Enfim... Custo do trabalho vivo não contabilizado, recurso à força de trabalho, degradação de amplo espectro. Vivemos a cooptação dos intelectuais pela máquina burocrática da avaliação e fomento (RIQUELME, 2008; JANTSCH, 2010), tornamo-nos misto de semideuses, masoquistas e burocratas?!

"POR QUE AFINAL FAZEMOS MAIS DO QUE QUEREMOS E MAIS DO QUE PODEMOS?"

Bourdieu (1976, p. 31) formulou a pergunta há mais de 20 anos. Pesquisadores buscam responder, analisando, por diversos ângulos, o inventário acima: 1) em uma perspectiva de história recente, recuperando episódios-estopim da configuração instalada nas universidades brasileiras (na PG, sobretudo), com forte crítica aos procedimentos regulatórios adotados pela CAPES, imputando a responsabilidade última a agentes externos e à compulsória inserção na globalização; 2) em abordagens sobre mudanças nas políticas nacionais (e internacionais) para a educação superior (e para ciência e tecnologia), amiúde discutindo a polarização entre universidade pública versus universidade privada, em defesa da primeira.

Em suma, o produtivismo acadêmico vem sendo pesquisado, denunciado, causa desconforto e provoca piadas. Em voz uníssona, nas abordagens nacionais e internacionais, o capitalismo está no banco dos réus - cada vez mais adjetivado: "capitalismo acadêmico" (SLAUGHTER e RHOADES, 2004; PARASKEVA, 2009).

O quanto essas análises obedecem à ótica do moralismo e justificam culpabilizar o governo/CAPES, permanecendo longe de compreender o "cipoal" de elementos históricos, sociais, institucionais, pessoais envolvidos - como diria o lendário Leonel Brizola? Faltaria às explicações poder heurístico para promover mudanças? Admitamos que, apesar de tanta crítica, a acomodação paira entre pesquisadores, as queixas minguaram (alguma ironia com efeito catártico - como tragédia grega - faz parte do cotidiano, entre pares, acompanhando o "bom dia" a cada infindável jornada trabalhada). O assunto se esgota, restando humilhante resignação, carregada como fardo típico do ofício: o trabalho retoma o seu sentido etimológico de tripallium. Surgem prêmios de consolação: comemorar a escalada ascendente do Brasil nos rankings internacionais de produção científica; orgulhar-se das descobertas e invenções da ciência brasileira na mídia de todo o dia. Finalmente, a categoria trabalhador-pesquisador tem prestígio.

Apesar do esforço por compreender/controlar os determinantes da realidade compartilhada, continuamos presos na "cumplicidade impensada, préreflexiva, incorporada pelas formas de seleção e classificação", maneiras como se processa a "adesão dos agentes sociais [neste caso, pesquisadores] à ordem estabelecida", como refere Valle (2007, p. 127), inspirando-se em Bourdieu. Velhas antinomias com efeito paralisante podem ser esclarecidas a partir de sua noção de conhecimento praxiológico. Este

[...] busca superar um dilema clássico do pensamento sociológico, alicerçado nas discordâncias entre duas perspectivas de investigação empírica, consideradas inconciliáveis: o subjetivismo (pressupõe a possibilidade de apreensão imediata da existência vivida do outro e entende que essa apreensão se constitui num modo mais ou menos apropriado de conhecimento do mundo social) e o objetivismo (pressupõe uma ruptura com a experiência imediata, o que implica colocar entre parênteses a primeira experiência do mundo social e elucidar as estruturas e os princípios, inacessíveis a toda apreensão imediata, sobre os quais repousa essa experiência). (VALLE, 2007, p. 120)

Consideradas tais categorias, predominaria a subjetivista? Para sair dela e compreender o vivenciado, recorremos a Eric Hobsbawm, Immanuel Wallerstein, Norbert Elias e ao latino-americano Ariel Langer, autores que analisam processos históricos chamados de longa duração, ou amplos processos civilizatórios que vêm interagindo, há vários séculos, resultando tão complexos e emaranhados que é difícil discernir seus intrincados elementos, levando em conta a totalidade.

VOLTAR AO PASSADO PARA COMPREENDER O PRESENTE

Interessa-nos explorar como foram sendo construídas as relações entre universidade, ciência, governos e economia (indústria/empresas), os compromissos que foram sendo selados entre algumas dessas instâncias em alguns momentos históricos decisivos - às vezes de grande envergadura, como as revoluções industrial e francesa, e outros pontuais, como um ato de Presidente - muitas vezes sem que alguns dos setores envolvidos fossem chamados a firmar tais compromissos ou sem que tenham tomado consciência deles.

Como leitmotiv da discussão, problematizamos algumas temáticas/conceitos, caros à universidade, como autonomia institucional e liberdade acadêmica (FLICKINGER, 2003; WEBER, 1989), em confronto com noções como "interesse-desinteresse", no intuito de desconstruir mitos acadêmicos (SCHWARTZMAN, 2008; COMTE-SPONVILLE, 2005) vindos da tradição erudita que não passam de senso comum, embora permaneçam nos discursos acadêmicos como "intocáveis". Fazer distinções, diminuir imprecisões e eliminar confusões conceituais, dentro dos limites do artigo, é o que pretendemos.

PERSPECTIVA ECONÔMICA, POLÍTICA OU SOCIOCULTURAL? VER O MUNDO E A HISTÓRIA A PARTIR DE APENAS UMA DELAS... É INSUFICIENTE!

Wallerstein (2006) propôs-se a fazer a crítica à ciência social do século XIX, mas confessa que ela ficou inacabada, porque ainda não fomos capazes

[...] de descobrir um meio de sobrepujar o mais resistente (e ilusório) legado da ciência social do século XIX - a divisão da análise social em três arenas, três lógicas, três "níveis": o econômico, o político e o sociocultural. Essa trindade está postada no meio do caminho, em granito, bloqueando nosso avanço intelectual (p. 12).

Continua na mesma página: "talvez seja imperativo que o mundo mude um pouco mais antes de os estudiosos poderem teorizar sobre ele de maneira proveitosa". A advertência aos intelectuais dá pistas sobre a inoperância de nossas explicações sobre o produtivismo; fortemente ancoradas na visão de uma das esferas, enraízam-se nas problemáticas típicas da tradição erudita europeia, transpostas para uma realidade de país colonizado que fomos/somos e articulam de maneira insuficiente as três arenas. Desde cada uma delas, as visões sobre um mesmo acontecimento podem ser tão distintas e distantes, que pontos de contato sejam de difícil apreensão. Setorizadas e inco mpletas, as análises apresentam fraco impacto sobre a realidade que desejam esclarecer e transformar.

Estudos produzidos desde dentro das universidades só muito recentemente começam a considerar movimentos/tendências dos setores produtivos empresariais (as conexões existem, encobertas). Fazê-las aparecer é, afirma Bourdieu (1976), serviço que a sociologia pode prestar aos dominados: desmascarar os mecanismos de dominação dissimulados sob o emprego de instrumentos "legítimos".

INTERESSES COMO PONTOS DE COMPROMISSO ENTRE ECONOMIA, POLÍTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS: QUEM SE INTERESSA POR QUEM?

Um caminho possível para revelar conexões despercebidas é rastrear, na história, de que maneiras a universidade veio a tornar-se alvo do interesse do capital (LANGER, 2008). E de que formas órgãos governamentais (como a CAPES) se tornaram mediadores e porta-vozes desses interesses, traduzindo-os em demandas e transmitindo-as às universidades como exigências ou ingerência exógena, logo interpretadas (na universidade) como confisco da autonomia e da liberdade acadêmicas?

Um percurso rápido sobre tema tão complexo e sobredeterminado envolve riscos que assumimos a fim de: 1) articular elementos esparsos que ajudem a compreender o problema do excesso de trabalho que mal suportamos; 2) provocar a comunidade de pares para a tomada de consciência de seu papel, seu poder e, também, a alienação em que vivemos como "nova" categoria de trabalhadores.

Langer (2008) situa o primeiro enlace entre economia, governo, ciência e universidade no final da Segunda Guerra Mundial, quando se estabelece uma nova ordem econômica e o então Presidente dos EUA, F. D. Roosevelt, solicita ao seu escritório de pesquisa e desenvolvimento científico investir em pesquisa básica nas universidades para que "logo se espalhe pela economia em forma de aplicações tecnológicas" (p. 23, tradução nossa). Seria a primeira tentativa de planejamento público explícito do sistema científico de um país: "a planificação da educação, da ciência e da tecnologia se encontra no coração do planejamento da reprodução do capital" (LANGER, 2008, p. 23, tradução nossa). Ao longo das décadas de 1960 e 1970 investe-se em estudos, criam-se conceitos, teorias e consensos (no âmbito político e também acadêmico) sobre o potencial dessas três dimensões para gerar riqueza e bem-estar social, e também como estratégia para os países/regiões se tornarem competitivos economicamente. Começa-se também a pensar que tipo de relação deve estabelecer-se entre educação, ciência e tecnologia. É interessante indagar aqui: quem começa a pensar?

Nas décadas seguintes, tornar-se-á consenso mundial que a educação das populações e o conhecimento científico (capacidade de gerar novos conhecimentos e transformá-los em inovação tecnológica) são centrais para as economias nacionais, porque responsáveis pelo crescimento e desenvolvimento econômico e social. Nesse contexto, surge o conceito de capital humano, que correlaciona a elevação da educação à da renda; garantiu o prêmio Nobel de Economia a Schultz e Becker (1979; 1992).

Conforme Langer (2008), na década de 1970 a sociologia interessa-se pelo estudo do conhecimento, e Daniel Bell concebe a ideia de sociedade pós-industrial, na qual ciência e técnica incidem na estrutura da sociedade, modificando-a (daí resulta a expressão "sociedade do conhecimento", popularizada por Drucker e Toffler). Progressivamente, a tríade (educação, ciência e tecnologia) passa a ser considerada problema dos Estados, que a promovem com investimentos volumosos, sem precedentes. Esse panorama descrito por Langer deflagra acontecimentos em nível dos governos e fóruns intergovernamentais. Nesses processos, as universidades tiveram escassa participação, apesar de recair sobre elas boa parte da execução das decisões (na educação, formação de cientistas e produção científica).

ENQUANTO OS GOVERNOS INCLUÍAM EM SUA PAUTA O PROTAGONISMO DAS UNIVERSIDADES, OS DOCENTES CONTINUAVAM A MINISTRAR ENSINO E FORMAÇÃO

Desde a instituição da universidade (brasileira), essa realidade foi percebida por apenas alguns intelectuais envolvidos em esferas governamentais (seriam os intelectuais orgânicos de Gramsci?). Para os docentes, o panorama era outro, pois a universidade estava, em geral, desconectada dos problemas que os governos queriam resolver e para os quais concebiam/implementavam estratégias a fim de realizar as transformações planejadas em instâncias de cúpula mundial.

Em 1945, o Brasil tinha apenas cinco universidades e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a CAPES estavam sendo criados (1951), com funções diferentes das atuais. Inicialmente, a CAPES, concebida e coordenada por Anísio Teixeira, visava "erradicar" professores não titulados atuando em universidades (o País carecia de professores para o ensino superior; doutorados eram obtidos no exterior e a finalidade da PG não era a pes-quisa). A universidade brasileira, tardia, é do século XX (a USP é de 1934), voltada para a elite e forjada no modelo de formação profissional (napoleônico). As pesquisas estavam mais a cargo de Institutos do que de universidades (MACHADO e ALVES, 2011).

Será a partir da organização do sistema de PG, com os Planos Nacionais de PG, em pleno regime militar, que a pesquisa será introduzida nas universidades como atribuição. Apesar do tripé ensino, pesquisa e extensão constar na lei 5540/68 (cf. FÁVERO, 1977), levou décadas para ser incorporado, tão forte era a tradição de ensino das escolas profissionais que, se associando, deram origem às universidades. As histórias da pesquisa e da PG no Brasil são distintas e não podem ser confundidas.

DOCENTES SÃO SURPREENDIDOS PELA CAPES! DE FORMADORES DE PROFESSORES A FORMADORES DE PESQUISADORES!

As universidades brasileiras exerciam sua função de formação profissional superior das elites (ensino) quando, subitamente, formar professores para o ensino superior deixou de ser prioritário (meta considerada alcançada): Mestrados e Doutorados passariam a formar pesquisadores (KUENZER, MORAES, 2005), em ritmo administrado. Essa concepção de universidade, inspirada no modelo humboldtiano (HUMBOLDT, 1997; MACHADO e MENDES, 2009), aportou de cima para baixo, impactando especialmente o segmento capaz de pesquisar e formar pesquisadores, gerando perplexidade, resistência, aceitação e adesão acrítica, havendo pouca clareza, entre professores, sobre seu sentido, sua justificativa e necessidade. O terreno não foi preparado para a implementação dessas mudanças na época em que se fizeram sentir nas universidades: meados de 1990. Dessa forma, o contingente da PG foi convocado a cumprir novas metas que a universidade não tinha planejado. Dispositivos de controle, premiação e punição foram implementados, transformando a indução em camisa de força. Resultados rapidamente fizeram-se sentir em termos quantitativos. A performance espetacular em tempo recorde, entretanto, com números visíveis internacionalmente (2% da produção mundial de papers), orgulho das autoridades educacionais, só muito recentemente começou a ter resultados em termos das aplicações que se esperavam da pesquisa nas universidades.

ENQUANTO NA EUROPA A PESQUISA CONTRIBUÍA DIRETAMENTE COM A INDÚSTRIA EM PROL DO "PROGRESSO", NA AMÉRICA LATINA AS PESQUISAS ERAM POUCAS E RARAMENTE CONECTADAS COM PROBLEMAS A RESOLVER...

... fossem eles relativos a questões sociais ou empresariais. Herrera (apud LANGER, 2008, p. 49, tradução nossa) afirma:

Nos países adiantados, de fato, a maior parte da inovação e desenvolvimento acontece com relação aos temas que direta ou indiretamente estão conectados com seus objetivos nacionais, sejam eles de defesa, de progresso social, de prestígio etc. O progresso científico se reflete de forma imediata em sua indústria, sua tecnologia agrícola e, em geral, no contínuo incremento da produção. Na América Latina, ao contrário, a maior parte da pesquisa científica que é efetuada guarda pouquíssima relação com os problemas básicos da região. Esta falta de correspondência entre os objetivos da pesquisa científica e das necessidades da sociedade é uma característica típica do subdesenvolvimento ainda mais importante que a escassez de pesquisas e é, também, suficientemente conhecida para não ser necessário prová-la.

A afirmação tem quatro décadas e continua válida. A aproximação/articulação entre ciência (universidade) e indústria (empresa) esteve presente na Europa desde os primórdios da revolução industrial, em meio ao esplendor do Iluminismo, afirma Hobsbawm (2010), com quem retrocedemos no tempo para ampliar a explanação de Langer. Este mostrou que os consensos relativos à tríade educação, ciência e tecnologia foram construídos fora das universidades, mas trazidos para seu interior por intermédio dos governos, assessorados pelos organismos internacionais (BM, FMI, OMC, OCDE, UNESCO, CEPAL etc.). Daí a surpresa dos docentes com as mudanças irradiadas pela CAPES em meados de 1990, que se fizeram sentir inicialmente pelo controle do tempo de titulação (dois anos para mestrado e quatro para doutorado): a esteira de produção tinha sido implantada e os intelectuais-operários passaram a viver no regime do tempo de urgência (CUNHA; LAUDARES, 2009).

Cabe indagar: como foram convencidos os governos de que o melhor caminho para o crescimento econômico e a geração de bem-estar social era a fórmula: "educação aliada à produção de conhecimento científico"? Por trás do avanço dessas teses nos consensos mundiais, esteve, e ainda está, nos bastidores, o interesse dos setores produtivos (empresariais), dissimulados entre nobres metas humanitárias (PARASKEVA, 2009), resultando na mercadorização da educação e da pesquisa.

Nem novo nem recente, o interesse das empresas pelo conhecimento científico estava presente no final do século XVIII, quando a ciência já produzia para a indústria nascente (Europa), no decorrer da revolução industrial, como mostra Hobsbawm (2010, p. 47):

As ciências, ainda não divididas pelo academicismo do século XIX em uma ciência "pura" superior e uma outra "aplicada" inferior, dedicavam-se à solução de problemas produtivos, e os mais surpreendentes avanços da década de 1780 foram na química, que era por tradição muito intimamente ligada à prática de laboratório e às necessidades da indústria. A grande

Enciclopédia de Diderot e d'Alambert

não era simplesmente um compêndio do pensamento político e social progressista, mas do progresso científico e tecnológico. Pois, de fato, o "iluminismo", a convicção no progresso do conhecimento humano, na racionalidade, na riqueza e no controle sobre a natureza - de que estava profundamente imbuído o século XVIII - derivou sua força primordialmente do evidente progresso da produção, do comércio e da racionalidade econômica e científica que se acreditava estar associada a ambos.

Essa citação revela o quanto os processos históricos se interpenetram numa complexa tessitura que facilita entender como chegamos à situação atual. O que consideramos, em geral, como nobre movimento erudito e cultural, o Iluminismo, está perpassado por uma série de outros processos, mais ou menos contemporâneos acontecidos na Europa, resultando em alianças entre ciência e interesses financeiros da época, desmascarando a difundida ideia de ciência como busca desinteressada da verdade, concepção sustentada, mais do que nada, por construções míticas (SCHWARTZMAN, 2008; BOURDIEU, 1976).

Hobsbawm (2010), ao analisar as condições que tornaram possível a revolução industrial na Inglaterra, afirma que, na época, "a política já estava engatada no lucro" (p. 64). E mesmo que as exigências específicas dos homens de negócios pudessem

[...] encontrar a resistência de outros interesses estabelecidos [...], os proprietários rurais haviam de erguer uma última barreira para impedir o avanço da mentalidade industrial entre 1795 e 1846. No geral, todavia, o dinheiro não só falava como governava. Tudo que os industriais precisavam para serem aceitos entre os governantes da sociedade era de bastante dinheiro.

Diante dessas considerações, não é difícil entender "quem" convenceu os governos das nações sobre o papel estratégico da tríade educação, ciência e tecnologia, e a necessidade de, a todo custo, fazê-la funcionar a favor dos interesses mercantis. Havia, entretanto, um obstáculo: era preciso convencer os intelectuais, amantes do conhecimento e preparados para análises críticas, de maneira que o trabalho daqueles cuja formação chegara a patamares avançados pudesse, também, ser colocado a serviço da economia de mercado. Ao atrelar a ideia de crescimento econômico ao bem-estar social, como se um implicasse direta e automaticamente no outro, os argumentos foram sendo desenvolvidos, carregados de contradições. A partir da aceitação dessa premissa amplamente difundida, com respaldo nas teorias econômicas, o caminho estava aberto para aquilo que o setor empresarial precisava: incrementar suas possibilidades de acumulação, acelerando pesquisas que gerassem inovação e aumentassem a competitividade, prometendo, em um futuro "certo", redistribuição (CAILLÉ, 2007) e benefícios sociais. Por meio de estratégias do scientific management (VINOKUR, SIGMAN, 2010) e sob a égide do "culto da urgência" (AUBERT, 2003), a CAPES, conduzida por nossos pares e apoiada por outros organismos financiadores, vem conseguindo realizar as metas "universais", cujo comando último e mão invisível vêm de longe.

Em 2009, ocorreu em Paris (UNESCO) a Conferência Mundial de Educação Superior (CMES2009), na qual testemunhamos o quanto atores que protagonizam tais discussões internacionais integram um circuito diferente do acadêmico-universitário; tais lideranças vão sendo legitimadas (BOURDIEU, 1976) por dispositivos legais da democracia, que pretendem garantir a representação dos anseios da população. As decisões tomadas nesses fóruns "legítimos", de cúpulas, acabarão implementadas localmente, nos diferentes países e suas microrregiões. As universidades, no seu segmento de pesquisa, viraram reféns do capital e os pesquisadores a mais nova categoria de trabalhadores explorados, sem necessidade de fábricas nem de esteiras mecânicas nem de cartões de ponto.

Para muitos estudiosos, a aproximação entre universidade e empresa é problemática (DAGNINO, 2010) e vem sendo combatida/criticada. O que não impede que venha se realizando, com a cumplicidade e a colaboração dos pesquisadores, apesar de contrariados. Um dos argumentos para essa restrição funda-se em que a universidade estaria abandonando a sua identidade e seus fins tradicionais de "busca desinteressada da verdade", curvando-se aos interesses do capital, representado concretamente pelo setor empresarial. O que não deixa de ser verdadeiro em muitos aspectos, mas tampouco deixa de ser falacioso em outros.

O NASCIMENTO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS - DE COMO GANHAM ASCENDÊNCIA SOBRE OS GOVERNOS E TERMINAM CÚMPLICES DO CAPITAL

Conforme Wallerstein (2006), as universidades europeias, por volta de 1789, eram ainda poucas, estavam ritualmente moribundas e não eram propriamente centros intelectuais; elas continuavam organizadas nas quatro clássicas faculdades: teologia, filosofia, direito e medicina. Elias (2006, p. 187) explicita que, nos séculos XVII e XVIII:

O acúmulo de conhecimento sobre os seres humanos disponível na sociedade era tão pequeno que se podia satisfazer a curiosidade sobre os problemas sociais que se apresentavam, em vários aspectos, apenas por meio do exercício solitário do pensamento ou da aplicação das ideias gerais a respeito de Deus e do mundo.

Essa era uma tarefa para os filósofos. No final do século XIX, porém, novas cátedras começaram a se organizar em associações não universitárias, nacionais ou internacionais (WALLERSTEIN, 2006), e vai institucionalizar-se a ciência social, dentro da estrutura tradicional da universidade europeia, um investimento social nunca antes ocorrido. Essa institucionalização fez-se necessária porque, nessa época, se questiona a eternidade das coisas (teocentrismo versus antropocentrismo) que até então vigorava. Após a Revolução Francesa, o poder dos soberanos, do clero e dos ministros para controlar "os caminhos da sociedade ou até para saber para onde se estava indo" (ELIAS, 2006, p. 188) vai se dissipando, pois as mudanças sociais mostram-se determinadas por forças anônimas e não mais resultado das "boas" ideias, intenções ou planos dos governantes.

Os detentores do poder das sociedades tradicionais deixaram de ser considerados fonte suprema das leis, que se mostravam claramente dependentes de regras desconhecidas: "implícita, senão explicitamente, a ideia de um mundo governado por leis naturais autônomas foi um golpe contra a autoridade estabelecida" (ELIAS, 2006, p. 175). Wallerstein (2006) menciona a aceitação, a partir dessa conjuntura, do que chama de "mudança normal".

O conceito de sociedade como algo distinto do Estado tem aí seu início (ELIAS, 2006). Se a sociedade tem leis que não dependem daquelas que o governante estabelece, passa a ser importante, para governar, conhecer essas leis. É nesse contexto de perda de certezas e fragilidade da autoridade/poder, que as ciências sociais ascendem e se tornam centrais, pois a evidência da "inadequação dos modos tradicionais de abordagem dos fenômenos sociais se instala", criando-se "uma demanda por especialistas que pudessem desenvolver uma maneira de descrevê-los semelhante a que se tinha construído para os eventos naturais" (ELIAS, 2006, p. 117). Especialistas assessorando a elaboração de programas de governo tornam-se prática corrente, seja para o progresso, admitido pelos marxistas, seja para manter ou restaurar o status quo, como desejavam os conservadores (WALLERSTEIN, 2006). Nesse contexto, a filosofia política cede passagem à filosofia econômica, e uma nova divisão do trabalho intelectual vai refletir o triunfo da ideologia liberal (idem).

Wallerstein considera três novas instituições essenciais nesse processo de aceitação da mudança como normal: 1) as ideologias (conservadorismo, liberalismo e marxismo, à época), 2) as ciências exatas e 3) os movimentos sociais. Cada ideologia, de certa forma, propunha uma abordagem da "mudança normal":

A ideologia envolvia o argumento de que o pilar do processo social era a delimitação cuidadosa de três esferas da atividade: as vinculadas com o mercado, as relacionadas com o Estado e as de cunho "pessoal". Esta última categoria era primordialmente residual, enfeixando todas as atividades não associadas imediatamente ao Estado nem ao mercado. Em sua definição positiva, tinha que ver com atividades da "vida cotidiana" - a família, a "comunidade", o "mundo inferior" das atividades "desviantes" etc. (WALLERS-TEIN, 2006, p. 28-29).

Essas três esferas (mercado, Estado e "pessoais") serão nomeadas, respectivamente, economia, ciência política e ciências sociais. Consideramos essa passagem fundamental para nossa discussão sobre o produtivismo acadêmico, porque fornece a chave que articula os mecanismos de mercado ao mundo intelectual acadêmico. Na sequência, Wallerstein (2006, p. 29) dá transparência à cumplicidade entre as ciências sociais, a política de Estado e a economia:

O impulso empirista, e de base nacional, das novas "disciplinas" tornou-se uma maneira de circunscrever o estudo da mudança social que a tornasse mais útil às políticas do Estado, que fizesse dela um apoio a essas últimas bem como menos subversiva no tocante às novas verdades. Tratava-se no entanto de um estudo do mundo "real" fundado no pressuposto de que não se poderia derivar dedutivamente o conhecimento de compreensões metafísicas de um mundo imutável. A aceitação novecentista da normalidade da mudança continha a ideia de que mudança só era normal para as nações civilizadas, e que, portanto, cabia a estas últimas impor essa mudança ao recalcitrante outro mundo.[...] A ciência social podia desempenhar um papel aí, como forma de descrição de costumes imutáveis, criando assim condições para que se compreendesse como se podia fazer esse outro mundo alcançar a "civilização". O estudo dos povos "primitivos" sem escrita tornou-se o domínio da antropologia. O estudo dos povos "petrificados" com escrita (a China, a Índia, o mundo árabe) tornouse o domínio do orientalismo. Para cada campo, o estudo acadêmico enfatizava os elementos imutáveis, mas era acompanhado por um domínio aplicado, em larga medida extrauniversitário, de engenharia social. (WALLERSTEIN, 2006, p. 30).

Podemos entender que essa engenharia social é atualmente composta pelos organismos internacionais supracitados, seus diagnósticos que se transformam em prognósticos e seus "mapeamentos que são, de fato, prescrições. Os governos das diferentes nações têm abdicado de sua soberania, apoiando-se nessas orientações para tomar decisões que os afastam das necessidades dos povos que representam. Assim, também por circuitos extrauniversitários, invisíveis desde a universidade, foram gestadas as diretrizes que surpreenderam os integrantes da PG, como vimos com Langer.

DIANTE DAS INCURSÕES REALIZADAS, QUE ALTERNATIVAS RESTAM AOS PESQUISADORES?

A universidade do século XXI, por ter atravessado quase um milênio, mantém uma ambiguidade constitutiva e problemática; tem dificuldades para equacionar a influência da tradição erudita (perpassada pela herança da cosmo-visão/poder da Igreja) com a participação do mundo da ciência contemporânea, afastada da especulação filosófica e interessada em descobrir soluções para problemas de sobrevivência da natureza, aí incluído o humano. Ambos os "corações" pulsam dentro da universidade e inclusive combatem um ao outro. A co-habitação dos modelos napoleônico (formação profissional originalmente para a elite, e hoje educação de massa) e humboldtiano (centrado na pesquisa) assegura ambas as vertentes, cuja síntese não dá mostras de realizar-se, devido a interesses tão conflitantes quanto antagônicos.

Fato é que a universidade ficou à margem daquilo que historicamente se previa como seu papel; por exemplo, assessorar governos (HUMBOLDT, 1997), função exercida contemporaneamente como "engenharia social" (WALLERSTEIN, 2006). Aos pesquisadores, resta integrar a força-tarefa da máquina científica e produzir, alienados do exercício da crítica e excluídos das decisões que controlam a ciência, a universidade, seu próprio cotidiano e a humanidade. O produtivismo acadêmico, na materialidade do paper, foi erigido a fetiche-mercadoriaconhecimento (TREIN, RODRIGUES, 2010) e, em ritmo de Tempos Modernos, transformou os intelectuais em estressados, medicados, eficientes operários de alto padrão, seres "sem tempo" para a principal atribuição: analisar com rigor crítico a complexidade dos processos em curso (naturais ou sociais), possibilitando descortinar a lógica subjacente que comanda o espetáculo da história.

Longe estamos da missão do intelectual comprometido, cuja responsabilidade é tentar "dizer a verdade e denunciar mentiras" (Chomsky, 2006, p. 373), pois, marcados pela história, "os intelectuais sintonizam com as características de cada época [...] a sociedade manifesta maior ou menor sensibilidade diante de certos valores, prioriza ou secundariza certas necessidades etc.".

Quais valores e necessidades a universidade pode, deve e deseja priorizar? Afinal, qual é o interesse da universidade? A "busca desinteressada" de outrora perdeu validade; mostraram Schwartzman e Bourdieu que ela não passa de mito; interesses e compromissos movem o mundo.

Frigotto (1994) pode servir-nos de bússola ao mostrar que o progresso técnico e o avanço do conhecimento despertam interesse e servem a finalidades antagônicas, "por confrontar de um lado as necessidades de reprodução do capital e de outro as múltiplas necessidades humanas" (p. 36). Nesse sentido

[...] a questão não é de se negar o progresso técnico, o avanço do conhecimento, os processos educativos e de qualificação ou simplesmente fixar-se no plano das perspectivas da resistência nem de se identificar nas novas demandas dos

homens de negócio

uma postura dominantemente maquiavélica ou, efetivamente uma preocupação humanitária, mas de disputar concretamente o controle hegemônico do progresso técnico, do avanço do conhecimento e da qualificação, arrancá-los da esfera privada e da lógica da exclusão e submetê-los ao controle democrático da esfera pública para potenciar a satisfação das necessidades humanas.

Essa afirmação revela um equívoco estratégico (ou ingenuidade) cometido pelos acadêmicos ao resistir a declarar seu interesse e a servir a ele. Ao pretender não ter interesse nenhum, os pesquisadores e a própria universidade se tornaram literalmente reféns do capital. A cooperação universidade-empresa, para a inovação e o desenvolvimento, com a finalidade de construir riqueza não é em si um malefício.

A questão é: a quem legitimamente pertencem as descobertas e inovações decorrentes do trabalho dos pesquisadores? São necessários dispositivos (políticas públicas) que impeçam as empresas de se apropriarem da força de trabalho dos intelectuais e, especialmente, de seus resultados, deles extraindo mais valia, o que caracteriza a subsunção da universidade à empresa, e descaracteriza a vocação da primeira. Afinal, a produção econômica e social deve ser apropriada de maneira irrestrita e não ser cativa ou privilégio dos poderosos da sociedade. Caso patentes de descobertas e inovações fossem custeadas por empresários, mas seus royalties garantidos aos pesquisadores e universidades que os abrigam, os lucros realimentariam a ciência, ao invés de contribuírem para a acumulação de capital privado. O que impede aos pesquisadores encampar essa luta justa, em favor da humanidade?

Caberia ao intelectual ser porta-voz dos "sem-voz", daqueles com escassa cultura, não por isso sem-direitos? Trata-se da dimensão política da ciência (SCHWARTZMAN, 2008) que o pesquisador não deveria ignorar, dado o esclarecimento alcançado. Recolocamos em pauta a responsabilidade ética de lutar pela restauração da autonomia da política com relação à economia e aliar-se à promoção do conjunto da humanidade, o que implica repensar os órgãos de avaliação/financiamento da pesquisa (CAPES), tendo outros parâmetros e balizamentos, distintos dos hegemônicos.

No atual estado de coisas, a ciência está subsumida ao mercado e seus ditames. Os pesquisadores, entretanto, têm poder, pois é do resultado de seu trabalho que depende a possibilidade de incremento da competitividade e ampliação de mais valia etc. É de perguntar-se o que resultaria se, coletivamente, os intelectuais convergissem e desenvolvessem estratégias para garantir o controle do processo e dos resultados do seu trabalho? Continuariam eles, e a universidade, tão heterônomos?

Seria ingenuidade desconhecer o alerta de Mészáros (2006, p. 263): "nenhuma sociedade pode perdurar sem seu sistema próprio de educação". Se o sistema capitalista foi capaz, no desenrolar dos processos históricos, de se apropriar dos sistemas educativo e científico, não esqueçamos a fórmula de Bourdieu: "o que a história fez, a história pode desfazer" (apud VALLE, 2007, p. 128). A situação que vivenciamos foi historicamente construída e, assim, o espaço da praxis (ação-reflexão) está aberto: qual a justificativa para não nos engajarmos na transformação das formas aviltantes que assumiu o gerenciamento acadêmico-científico (WATERS, 2006), atentando contra a dignidade dos intelectuais e das populações?

O que não é plausível é "a retirada dos intelectuais" (FOLLARI, 2006, p. 348, tradução nossa), que

estão impelidos pelo movimento que deviam ser capazes de descrever, explicar e - quando necessário - criticar. Em vez de fazer a conscientização sistemática da situação para tomar iniciativa frente à inércia histórica que está desaparecendo com os intelectuais, eles têm de participar de seu próprio apagão e, então, aparecem como impotentes para afastarem-se das coordenadas hegemônicas da situação criada pelo capitalismo globalizado.

Podemos recuperar a potência dos pesquisadores e convidar ao empoderamento, pois o que esperar da classe trabalhadora - "manual" ou "intelectual" (Gramsci, 1989) - se assistimos a tal "apagão" dos intelectuais? Berman (1988) recupera Marx, para nivelar intelectuais e assalariados. Marx

está tentando fazer-nos ver a cultura moderna como parte da indústria moderna. Arte, ciências físicas, teoria social (como a do próprio Marx), tudo isso são modos de produção; a burguesia controla os meios de produção na cultura, como em todo o mais, e quem quer que pretenda criar deve operar em sua órbita de poder. [...] Assim eles (os intelectuais) só escreverão livros, pintarão quadros, descobrirão leis físicas ou históricas, salvarão vidas, se alguém munido de capital estiver disposto a remunerá-los. Mas as pressões da sociedade burguesa são tão fortes que ninguém os remunerará sem o correspondente retorno - isto é, sem que seu trabalho não colabore, de algum modo para "incrementar o capital" (BER-MAN, 1988, p. 113-4).

A passagem sugere determinismo. Os pesquisadores, entretanto, estão em posição favorável para equilibrar as forças, uma vez que é o capital que precisa deles para perpetuar seus propósitos. E "eles", neste caso, somos nós! A teoria da alienação aplica-se a nosso ofício. E como ela já foi desvendada, torna-se imperioso conhecê-la e ultrapassar o estágio de ser alienado e ter alienado o processo e os resultados do nosso trabalho.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 2011
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