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Culpada ou inocente? comentários de internautas sobre crimes corporativos

¿Culpable o inocente? Comentarios de internautas sobre delitos corporativos

Resumos

Neste artigo, analisamos comentários de internautas postados em notícias sobre crimes corporativos veiculadas na imprensa eletrônica nacional. Concentramos nossa análise em reportagens sobre um tipo específico de crime corporativo, o trabalho escravo, com o objetivo de identificar as concepções em torno do assunto, partindo da análise da dinâmica intertextual entrelaçada na sua produção. Como resultados, evidenciamos temas discursivos, discursos e ideologias imersos nos comentários analisados, sinalizando para a importância de se compreender a produção intertextual sobre a atuação das corporações.

Crime corporativo; ideologia; trabalho escravo; discurso; intertextualidade


En este artículo, analizamos comentarios de internautas posteados en noticias sobre delitos corporativos difundidos en la prensa electrónica nacional. Concentramos nuestro análisis en reportajes sobre un tipo específico de delito corporativo, el trabajo esclavo, con el objetivo de identificar las concepciones en torno del tema, partiendo del análisis de la dinámica intertextual entrelazada en su producción. Como resultados, evidenciamos temas discursivos, discursos e ideologías inmersos en los comentarios analizados, señalando para la importancia de comprenderse la producción intertextual sobre la actuación de las corporaciones.

Delito corporativo; ideología; trabajo esclavo; discurso; intertextualidad


In this paper, we analyze comments from Internet users posted in news about white-collar crime found in the national electronic press. We focused our analysis on reports about a specific type of white-collar crime, slave labor, with the objective of identifying the conceptions surrounding the subject based on a dynamic inter-textual analysis woven in its production. As a result, we observe discourse, speech and ideologies imbedded in the analyzed comments, indicating the importance of understanding inter-textual production about corporate action.

White-collar crime; ideology; slave labor; discourse; intertextuality


ARTIGOS

¿Culpable o inocente? Comentarios de internautas sobre delitos corporativos

Cintia Rodrigues de OliveiraI; Valdir Machado Valadão JúniorII; Rodrigo MirandaIII

IProfessora da Faculdade de Gestão e Negócios, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia - MG,Brasil. cintia@fagen.ufu.br

IIProfessor da Faculdade de Gestão e Negócios, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia - MG,Brasil. valdirjr@ufu.br

IIIProfessor da Faculdade de Gestão e Negócios, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia - MG,Brasil. rodmiranda02@gmail.com

RESUMO

Neste artigo, analisamos comentários de internautas postados em notícias sobre crimes corporativos veiculadas na imprensa eletrônica nacional. Concentramos nossa análise em reportagens sobre um tipo específico de crime corporativo, o trabalho escravo, com o objetivo de identificar as concepções em torno do assunto, partindo da análise da dinâmica intertextual entrelaçada na sua produção. Como resultados, evidenciamos temas discursivos, discursos e ideologias imersos nos comentários analisados, sinalizando para a importância de se compreender a produção intertextual sobre a atuação das corporações.

Palavras-Chave: Crime corporativo, ideologia, trabalho escravo, discurso, intertextualidade.

ABSTRACT

In this paper, we analyze comments from Internet users posted in news about white-collar crime found in the national electronic press. We focused our analysis on reports about a specific type of white-collar crime, slave labor, with the objective of identifying the conceptions surrounding the subject based on a dynamic inter-textual analysis woven in its production. As a result, we observe discourse, speech and ideologies imbedded in the analyzed comments, indicating the importance of understanding inter-textual production about corporate action.

Key Words: White-collar crime, ideology, slave labor, discourse, intertextuality.

RESUMEN

En este artículo, analizamos comentarios de internautas posteados en noticias sobre delitos corporativos difundidos en la prensa electrónica nacional. Concentramos nuestro análisis en reportajes sobre un tipo específico de delito corporativo, el trabajo esclavo, con el objetivo de identificar las concepciones en torno del tema, partiendo del análisis de la dinámica intertextual entrelazada en su producción. Como resultados, evidenciamos temas discursivos, discursos e ideologías inmersos en los comentarios analizados, señalando para la importancia de comprenderse la producción intertextual sobre la actuación de las corporaciones.

Palabras Clave: Delito corporativo, ideología, trabajo esclavo, discurso, intertextualidad.

INTRODUÇÃO

A veiculação de notícias e informações em tempo real e em maior abrangência contribui para trazer à tona questões que incomodam a sociedade em geral e estimula o surgimento de grupos, movimentos e organizações (Greenpeace, Occupy Wall Street, Corporate Crime Reporter, Source Watch, entre outros), visando monitorar e denunciar corporações e governos, em manifestações que tomam proporções geográficas e sociais cada vez maiores. Ainda assim, práticas desse tipo tornaram-se parte do nosso cotidiano, associando as corporações a uma "impressionante quantidade de devastação infligida sobre a vida humana e o meio ambiente" (PEARCE, 1993, p. 135). Diante de acusações e denúncias, as corporações agem de diversas formas, ora defendendo-se, ora negando, amparando-se em um aparato ideológico e servindo-se de discursos que fabricam verdades sobre a sua atuação (BARLEY e KUNDA, 1992; FREITAS, 2000).

Unnever, Benson e Cullen (2008) exploram a discussão da culpabilidade e punição das corporações e seus agentes, ao analisarem a evolução da regulação e legislação criminal dirigida ao mundo corporativo, nos Estados Unidos, que ocorre do seguinte modo: um tipo de escândalo é descoberto; o clamor público demanda uma ação do governo; esse reage, formalizando uma acusação ou criando novas leis e regulações. Dessa questão, emergem outras, como as que orientam esta pesquisa: Quais as concepções da sociedade diante de um crime corporativo noticiado? Como se manifestam os leitores de notícias veiculadas na imprensa acerca da empresa denunciada por conduta criminosa? Ela é culpada ou inocente?

Na produção dos discursos que envolvem as organizações, notícias veiculadas pela imprensa tornam-se um elemento fundamental, por constituírem-se em práticas discursivas do cotidiano que produzem os sentidos sobre os fenômenos sociais (FAIRCLOUGH, 1992; DJIK, 1998). No caso das notícias veiculadas em jornais on-line ou webjornais, os leitores interagem, postando seus comentários, produzindo um texto (discurso) a partir de outros textos (discursos), que são sempre um intertexto em uma cadeia de textos em diálogo (FAIRCLOUGH, 1992). Assim, os comentários postados em notícias sobre corporações são discursos, cujos sentidos são produzidos pela interação social dos atores com outros textos, incluindo-se ideologias, visões de mundo e relações de poder (DJIK, 1998; FAIRCLOUGH, 1992).

Nesta pesquisa, centramos nossa análise em reportagens veiculadas na mídia eletrônica nacional, sobre um tipo específico de crime corporativo, o trabalho escravo, com o objetivo de identificar as concepções presentes em torno desse fenômeno, analisando a dinâmica intertextual entrelaçada com a sua produção. A escolha por esse tipo de crime justifica-se pelas suas dimensões sociais, políticas e pelas suas estatísticas. Em 2005, a Organização Internacional do Trabalho (INTERNATIONAL LABOUR OFFICE, 2007) estimou que cerca de 12,3 milhões de pessoas são forçadas ao trabalho, em todo o mundo; o panorama traçado pela ONG Free The Slaves Americans aponta que, atualmente, 27 milhões de trabalhadores no mundo vivem em condições análogas ao trabalho escravo, gerando 40 bilhões de dólares para as empresas, por ano (REPÓRTER BRASIL, 2012).

Organizamos o texto da seguinte forma: apresentamos, inicialmente, o contexto do domínio ideológico das corporações e dos crimes corporativos; em seguida, introduzimos o modo pelo qual conduzimos a pesquisa e descrevemos a abordagem intertextual adotada para analisar os crimes corporativos em comentários de internautas sobre o trabalho escravo; e, por fim, mostramos os resultados e as considerações finais.

CORPORAÇÕES, IDEOLOGIA NAS CORPORAÇÕES E CRIMES CORPORATIVOS

A corporação como forma de negócios surgiu no século XIX, mais propriamente sob o sistema institucional-legal norte-americano, quando a produção artesanal foi suplantada pelo sistema fabril. As particularidades do novo sistema de produção e a quantidade de capital necessária para construir e operar fábricas impulsionaram a associação de capitais e modificaram os mecanismos de propriedade de empresas, inclusive, no âmbito legal. O modelo de corporação tornou-se o padrão para o grande capital organizar suas empresas (CLINARD e outros, 1979).

A forma moderna de corporação, que Peter Drucker (1993) descreve como a instituição econômica e social que opera negócios em larga escala (big business), em um sistema de livre-iniciativa (free-enterprise), é, para Tragtenberg (2005, p. 16), "uma ideologia neocapitalista, cuja função é a legitimação do status quo como o único e desejável". A maioria das corporações é formada por conglomerados, e, embora todas tenham linhas principais de negócios, adquiriram outras linhas de produtos por meio de fusões e aquisições, tornando-se mais fortes e poderosas na medida em que ficam protegidas contra flutuações dos negócios e têm maior abrangência geográfica, cultural e social, além de maiores lucros (CLINARD e outros, 1979).

Assim, a relação entre o Estado, a sociedade e as corporações, no contexto contemporâneo, adquiriu outras conotações. O interesse de Weber (1991) nas organizações burocráticas e suas formas de dominação abriu caminho para a visão de que o modelo burocrático constitui-se em uma ameaça à liberdade do espírito humano e aos valores da democracia, pois, nesse processo, os controladores e gestores (TRAGTENBERG, 2005) servem-se da racionalização administrativa para subordinar os interesses e o bem-estar das massas.

Inspirado no filósofo e sociólogo grego Nicos Poulantzas, Motta (1981) analisa que as empresas, como um aparelho de Estado, são sistemas cuja função é reproduzir a sociedade de classes, do mesmo modo que as instituições religiosas, militares e educacionais, sendo aquelas de natureza econômica, repressiva e ideológica. Alvesson e Deetz (2000, p. 84) consideram que a Administração e os estudos organizacionais produzem ideologias legitimadoras e reforçadoras das relações sociais e objetivos organizacionais específicos, as quais visam ao "controle cultural-ideológico ao nível do local de trabalho e proporcionam uma aura científica para apoiar a introdução e o uso de técnicas de dominação administrativas".

São vários os estudos (TRAGTENBERG, 1974; 2005; MOTTA, 1981, 1992; BARLEY, MEYER, GASH, 1988; BARLEY e KUNDA, 1992; FREITAS, 2000; FARIA, 2004; entre outros) que discutem a ideologia nas corporações, bem como a forma pela qual ela é criada, reproduzida e transmitida. Wood Jr. e Paula (2006, p. 94), por exemplo, utilizando a denominação de cultura do management para definir "um conjunto de pressupostos compartilhados pelas organizações e, em larga medida, imbuída no tecido social", apontam, entre outros pressupostos: a crença numa sociedade de mercado livre; a visão do indivíduo como autoempreendedor; o culto da excelência como forma de aperfeiçoamento individual e coletivo; o culto de símbolos e figuras emblemáticas, como "palavras de efeito" (inovação, sucesso, excelência) e "gerentes heróis"; a crença em tecnologias gerenciais que permitem racionalizar as atividades organizacionais.

Já Barley, Meyer e Gash (1988) e Barley e Kunda (1992), referindo-se ao mesmo fenômeno, afirmam que, desde 1870 até os dias atuais, surgiram ideologias gerenciais, como melhoria industrial, administração científica, capitalismo do bem-estar e relações humanas, racionalismo sistêmico e cultura organizacional, reforçando o domínio das empresas nas esferas econômica, social e cultural. Essa sucessão de ideologias, acrescida de outras (MOTTA, 1992; FREITAS, 2000; WOOD JR. e PAULA, 2006), incluindo-se nessas o próprio conceito de corporação (TRAGTENBERG, 2005), influencia sobremaneira a vida social, sendo transmitida por meio de mensagens, recursos simbólicos e outras manifestações discursivas.

Para Fairclough (1993), o discurso é uma prática política, haja vista que estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas nas quais essas relações existem; é também, entretanto, uma prática ideológica. As ideologias presentes nas práticas discursivas das corporações obscurecem as reflexões de empregados, consumidores e da sociedade em geral sobre suas ações (ALVESSON; DEETZ, 2000), como os crimes corporativos, que colocam a sociedade em risco. Os crimes corporativos ou business crimes despertaram maior interesse de sociólogos e criminologistas na década de 1930, e, ainda hoje, seu conceito é motivo de controvérsias. Braithwaite e Geis (1982, p. 294), por exemplo, definem crime corporativo como a "conduta de uma corporação ou de indivíduos agindo em benefício de uma corporação, que é prescrito e punível por lei", diferentemente de Baucus e Dworkin (1991, p. 234), pois, para essas autoras, somente podem ser consideradas crime corporativo aquelas "violações da lei criminal em que os tribunais decidiram que a firma cometeu um ato criminal". No campo jurídico, o termo crime é uma categoria legal, referindo-se a um tipo de conduta particular que as instituições reconhecem como criminosa. Para os cientistas sociais (sociólogos e criminologistas), contudo, essa definição não comporta a complexidade do termo, visto que se orientam para a descrição de padrões desse comportamento, suas causas e as atitudes da sociedade diante do crime (PAYNE, 2012).

Alexander e Cohen (1999) e Simpson e Piquero (2002) associam os crimes corporativos ao desempenho anterior da empresa e às pressões e barreiras para esta obter desempenho superior, sendo incentivados pela estrutura, processos e cultura. A escolha das condutas a serem tomadas nas corporações é motivada pelos seus interesses, não importando quais serão suas consequências. No decurso de suas funções, executivos, gerentes e trabalhadores agem e tomam decisões segundo o conjunto de normas, procedimentos, políticas e regulamentos da empresa que os aprisiona, resultando, para esta, em economia de custos. As corporações não querem assumir os custos incorridos pelos crimes corporativos (MOKHIBER, 1995), preferindo adotar práticas que lesam a sociedade em geral (CLINARD e outros, 1979), gerando uma miopia coletiva (CHIKUDATE, 2009). Uma visão sociológica do crime corporativo amplia, assim, a compreensão do comportamento criminal, no âmbito das corporações, o qual não pode ser analisado apenas como um desvio pessoal, e, sim, como um produto das relações entre os membros de determinados sistemas organizacionais.

Para Schrager e Short Jr. (1978), as vítimas dos crimes corporativos são descritas em três categorias: empregados (altos níveis de riscos, condições de trabalho ilegais, exposição a substâncias e condições cujos efeitos potenciais em longo prazo não são conhecidos); consumidores (produtos prejudiciais e perigosos); e o público em geral, que sofre os impactos dos processos e produtos introduzidos no meio ambiente. Um dos tipos de crimes cometidos por corporações com altos custos sociais é o trabalho escravo. A condição análoga à de escravo é definida, pelo Código Penal Brasileiro, como a submissão do empregado "a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto" (INSTITUTO OBSERVATÓRIO SOCIAL, 2004, p. 8). Por trabalho forçado ou escravo, entende - se aquele em que empregadores ou prepostos recorrem à coação física ou moral e privação da liberdade do empregado, sendo comum a retenção de documentos e práticas de servidão baseadas em dívidas contraídas para o consumo, no próprio trabalho, de alimentos, roupas, ferramentas, alojamento e transporte, configurando-se na escravidão por dívida (MARTINS, 1994).

Discordando do termo "condição análoga à de escravo", visto entender que é mesmo escravidão, Martins (1994) discute uma das formas escravistas de relações de trabalho presentes na sociedade capitalista, a escravidão por dívida, como a variação extremada do trabalho assalariado em condições de superexploração do trabalhador, a ponto de comprometer sua sobrevivência. Oferecendo uma compreensão sociológica da persistência e da revitalização do trabalho escravo no Brasil, Martins (1994, p. 2) mostra como a escravidão por dívida, encontrada em diferentes atividades econômicas, constitui-se em uma "prática de empresas cuja lógica econômica, caracteristicamente capitalista e moderna, faz supor que nelas a escravidão seria uma contradição e uma irracionalidade".

Essas práticas, que se configuram como crime, encontraram espaço para crescer, diante da tolerância do público em relação a sua ocorrência. A criminalidade nas ruas, historicamente, recebeu maior atenção por parte dos governos, resultando na adoção de políticas públicas de controle mais punitivas contra o crime. Em relação à criminalidade corporativa, porém, a despeito da onda de escândalos, não foi dirigida a atenção necessária, resultando em uma lacuna (UNNEVER, BENSON, CULLEN, 2008). Conforme Payne (2012), a população em geral considera as ofensas corporativas como sérias apenas quando suas consequências são físicas, substanciais e, relativamente, imediatas. E, ainda, a ambiguidade da opinião pública diante do comportamento corporativo ilegal faz com que a lei também seja ambígua.

Conforme Snider (2000) alerta quanto ao "desaparecimento do crime corporativo", os grupos dominantes (entenda-se interesses capitalistas) e uma elite gerencial (entenda-se executivos de grandes corporações) foram competentes em desenvolver um discurso, ou produzir uma verdade, sobre o que seja crime corporativo, mais compatível com seus interesses. Dessa forma, os crimes cometidos em nome da racionalidade escondem-se atrás de uma suposta fatalidade e, ainda, são cometidos por seres humanos, contra seres humanos, em nome de uma entidade, a corporação.

DESCRIÇÃO DA ESTRATÉGIA DE PESQUISA E ANÁLISE

Nossa pesquisa, de natureza qualitativa, concentra-se nos comentários de internautas sobre notícias de um tipo de crime corporativo veiculadas em jornais eletrônicos nacionais, especificamente, as denúncias contra a Zara, empresa do grupo espanhol Inditex, sobre a utilização de trabalho escravo. Em agosto de 2011, os principais jornais do País noticiaram uma operação de investigação da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo, tendo sido flagrados trabalhadores submetidos a condições de superexploração do trabalho e escravidão por dívida, naquele estado, produzindo peças de roupa para essa marca internacional.

Diante da quantidade considerável de webjornais ou jornais on-line no Brasil, optamos por selecionar as versões eletrônicas de dois grandes jornais do estado onde ocorreram as denúncias: Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. Uma análise de suas versões on-line permitiu verificar a existência de postagens nas notícias veiculadas. Inicialmente, inserimos no sistema de busca da Folha.com a expressão "Zara trabalho escravo", o qual retornou 18 notícias, das quais 17 geraram 715 comentários de internautas (Tabela 1), entre os dias 18 de agosto de 2011 e 30 de dezembro de 2011. Repetimos o procedimento no sistema de busca do Estadão.com.br, o que resultou em 20 notícias, das quais apenas 8 tinham postagens, totalizando 106 comentários (Tabela 2). Assim, o corpus de pesquisa constitui-se dos 821 comentários postados pelos internautas, em 25 notícias, material considerado suficiente para os nossos propósitos.

Os comentários dos internautas têm sido utilizados (EFIMOVA e MOOR, 2005) no campo dos estudos da sociologia, antropologia e comunicação. Nos estudos organizacionais, as postagens de internautas são uma fonte rica para análise, quando se pretende conhecer opiniões e concepções heterogêneas e multifacetadas sobre determinados aspectos relacionados às organizações e gestão. Os internautas são leitores e produtores de textos e, ainda que estejam espalhados por diversos lugares, se entrelaçam em uma rede de interações ricas e heterogêneas. No caso dos webjornais, os leitores interagem entre si, participando da construção da notícia. Conforme Rheingold (1996, p. 156), "não existe uma subcultura on-line única e monolítica, mas antes um ecossistema de subculturas, umas frívolas e outras sérias". Assim, consideramos o internauta como o autor e leitor ideal, ou seja, aquele que é pressuposto pela obra.

As notícias veiculadas na mídia participam da construção de representações de mundo, identidades sociais e, ainda, constroem versões da realidade conforme determinados propósitos (FAIRCLOUGH, 1993; LI, 2009), pois os textos são organizados, produzidos e transformados dentro de um processo de construção ideológica. Dessa forma, as notícias sobre as corporações produzem sentido sobre, entre outros aspectos, o que essas são, o que fazem e como fazem, servindo de fragmento para a composição de outros discursos. Esses, por sua vez, adicionados a outros já existentes, reproduzem e/ou transformam representações sociais, crenças e valores sobre as corporações e o contexto socioeconômico e cultural do qual fazem parte.

Nesta pesquisa, adotamos a intertextualidade, conforme Fairclough (1992), que a define como a propriedade que os textos têm de se constituírem de fragmentos de outros textos, os quais podem ser delimitados, explicitamente ou não, e, ainda, de transformar textos anteriores e reestruturar convenções existentes. Fairclough (1992) propõe a análise intertextual em dois aspectos: (1) intertextualidade manifesta - os textos aos quais o autor recorreu estão explícitos dentro do texto analisado; e (2) intertextualidade constitutiva ou interdiscursividade - os tipos de discurso que entram na sua produção.

Quanto à intertextualidade manifesta, Fairclough (1992) a discute em cinco aspectos: (1) representação do discurso - aquele discurso que é relatado pelo autor, distinguindo-se do discurso indireto por representar, explicitamente, o que o outro disse; (2) pressuposições - proposições tomadas pelo autor do texto como estabelecidas, podendo ter intenção manipulativa ou não; (3) negação - contestação de outros textos, buscando contradizê-los; (4) ironias - disparidade entre um enunciado e o que foi ecoado; e (5) metadiscurso - distanciamento do autor por meio de expressões evasivas, metáforas e outros recursos.

A esses dois tópicos, acrescentamos um terceiro: ideologias manifestas, neste caso, das corporações. Para Fairclough (1993), ideologias são significados ou representações da realidade geradas entre as relações de poder que se manifestam, implicitamente, nas práticas discursivas, em todas as instâncias e contextos sociais, contribuindo para estabelecer, manter e mudar as relações sociais, estando subjacentes à intertextualidade manifesta e discursiva.

Ao considerar o caráter intertextual dos comentários selecionados, procuramos analisá-los focalizando os textos específicos aos quais os internautas recorrem (intertextualidade manifesta), os tipos de discursos (intertextualidade constitutiva) e, por fim, as ideologias. Ressaltamos que, dado o caráter qualitativo da pesquisa, nos preocupamos em identificar os elementos de análise, sem nos deter na sua quantificação.

Para operacionalizar nossa proposta, criamos um arquivo para cada uma das reportagens e seus comentários, aos quais atribuímos um número para sua identificação na notícia (por exemplo, C1.1 refere-se ao comentário 1 da notícia 1). Em seguida, analisamos os comentários, buscando identificar os elementos da análise intertextual, os quais apresentamos na seção a seguir.

INTERTEXTUALIDADE NOS COMENTÁRIOS DE INTERNAUTAS SOBRE UM TIPO DE CRIME CORPORATIVO, O TRABALHO ESCRAVO

Nesta seção, apresentamos os resultados em três aspectos da análise intertextual.

Intertextualidade manifesta: fragmentos

Os comentários de internautas sobre o trabalho escravo são constituídos de fragmentos de outros textos que dialogam entre si. Esses textos expressam as representações de mundo dos internautas sobre o assunto em foco e, tecidos com outros textos, formam a trama do texto, que pode, conforme Fairclough (1993), ser reconhecida pela representação do discurso, pressuposições, metadiscurso, negação e ironias.

A representação do discurso é manifestada por várias vezes nos comentários analisados. O programa A Liga, da Rede Bandeirantes, é citado, em vários comentários, pela realização de duas reportagens sobre o assunto: "Eh Pholha! Tá atrasada! 'A LIGA' mostrou essa matéria ontem, em furo de reportagem, inclusive, cobrindo a ação dos fiscais do trabalho e da receita. Eh jornaleco atrasado sô!" (C39.1) e "Será que se o programa 'A Liga' não tivesse mostrado os trabalhadores, os diretores da tal marca Zara teriam reconhecido o trabalho irregular na confecção?" (C35.1). Os internautas recorrem a outro texto, no caso, o programa televisivo, para comentar a notícia da Folha.com, indicando que o fato já é de seu conhecimento.

Além desse programa, outros discursos são representados, relatando que a prática de trabalho escravo ocorre em outros locais, como é o caso da Associação Brasileira da Indústria Têxtil, cujo endereço eletrônico é mencionado pelo internauta: "No Camboja, os funcionários de uma oficina, que produz peças para a Zara, desmaiaram durante o expediente. O incidente, que aconteceu no dia 25 de julho, atingiu cerca de 100 colaboradores da fábrica. Pode confirmar no site www.abit.com.br" (C12.1), e do Jornal Nacional, da Rede Globo: "De acordo com reportagem de ontem do Jornal Nacional, os bolivianos recebem vinte centavos por peça costurada. Isso é exploração, é escravidão!" (C.78.1), em que o internauta interpreta a exploração do trabalhador como trabalho escravo.

Identificamos, ainda, uma referência a Karl Marx, representada no C10.25: "E ainda dizem que os preceitos do velho Marx estão ultrapassados!", em que o internauta faz referência à exploração do trabalhador pelo capitalista como algo atual, ao contrário de outros textos (não identificados) que apregoam estarem as ideias marxistas ultrapassadas.

O texto religioso também é representado de maneira explícita: "A bíblia FUNDAMENTA a escravidão! Levítico 25:44 E quanto a teu escravo ou a tua escrava que tiveres, serão das nações que estão ao redor de vós; deles comprareis escravos e escravas" (C3.25). Os internautas utilizam, ainda, trechos da notícia para reforçar sua opinião, não sobre o trabalho escravo, mas sobre a ineficiência do sistema, como no caso do C5.12: "é que eles contrataram auditores cegos, surdos e mudos. Por isso não sabiam de nada. Aprenderam rápido com nosso ex" (grifos no original). O comentário ganha a extensão de outros fatos do cenário político nacional, utilizando-se da ironia. Os internautas comentam ironicamente (por exemplo: "Parece que descobriram a pólvora (C1.1)") que esse fato não deveria surpreender a população, pois denúncias sobre trabalho escravo no Brasil são comuns.

Os comentários de internautas sobre as denúncias contra a empresa Zara pela prática de trabalho escravo evidenciam diversas facetas, quando analisados pela intertextualidade (FAIRCLOUGH, 1993). O trabalho escravo objeto de denúncia contra a empresa configura-se na escravidão por dívida (MARTINS, 1994), uma forma contemporânea de escravidão, que também se configura em um tipo de crime corporativo, conforme a visão de diversos autores, como Braithwaite e Geis (1982), para os quais o crime corporativo é a violação "punível por lei".

No comentário C3.3, o internauta relata o discurso de uma entrevistada, para, ao mesmo tempo, fazer uma negação, apontar que o dito da entrevistada é "um absurdo", sugerindo que conhece a definição de trabalho escravo. "Desde quando pagar pouco por muito trabalho é uma definição de trabalho escravo? Foi isto que a Editora de Moda disse e é absurdo" e, ainda, o metadiscurso: "Então, a maioria dos trabalhadores no Brasil, e em outras partes do mundo, é escrava (talvez até alguns dentro da Folha/UOL)!" (C3.3).

Identificamos, nos comentários dos internautas, várias pressuposições, como o desprezo da empresa pelo ocorrido: "Ixe... os caras [Zara] não estão nem aí..." (C3.25) e o trabalho escravo como algo comum nas políticas das empresas espanholas, sendo o lucro "mais importante":

Essa conversa toda para esses espanhoes [sic] é mole para boi dormir. O intuito deles, a visão de America, sempre foi de exploração e colônias [sic]. Eles vão esfriar o assunto até que não se lembrem mais (entenda-se corromper alguns). A politica das empresas desse pais [sic] sempre foi de despreso [sic] pelos Sul Americanos e o mais importante é levar o máximo de lucro, doa a quem doer. Essa cambada deveria levar um belo sermão e serem convidados a se retirar do país (C20.5).

No comentário C23.2, a pressuposição do internauta a respeito das grandes fortunas é de que são conquistadas à custa de exploração do trabalho, e, ainda, relembra um crime praticado, recentemente, por outra empresa.

Sempre atrás de grandes fortunas existem grandes segredos, Sugeiras [sic]. Roubos, desonestidades, trambicagens, manipulações, Mentiras, trapaças, explorações e todo tipo e estilos de ladroagens enriquecimento elícitos [sic]. Que às vezes são coniventes com justiça e poder público... Ou Será que algum se esqueceu da Daslú [sic] (C23.2).

Ao analisar a intertextualidade manifesta nos comentários dos internautas, identificamos fragmentos explícitos de vários outros textos. A representação do discurso de associações, jornais televisivos e eletrônicos, da Bíblia, entre outros, indica que os internautas expressam sua visão de mundo, especificamente, a respeito de um tipo de crime corporativo, o trabalho escravo, com base em outros textos aos quais tiveram acesso, porém esses não são textos de cunho acadêmico.

Ao expressar sua visão de mundo, os internautas utilizam-se da ironia, que, conforme Fairclough (1993), ocorre quando há dissonância entre o significado do texto e o contexto no qual ele está inserido. Quanto ao aspecto da negação, os internautas contestam as notícias, principalmente, quando se referem às ações do Estado. O metadiscurso, que se caracteriza por expressões próprias, de modo que o autor distingue seu próprio texto (FAIRCLOUGH, 1993), foi por nós identificado, várias vezes, quando os internautas apresentam suas conclusões.

Os internautas expressam suas concepções acerca do trabalho escravo, sendo as mais comuns: (a) as multinacionais exploram o trabalhador; (b) o trabalho escravo deve ser combatido pelo Estado; (c) o trabalho escravo é algo comum no Brasil e no mundo; (d) o trabalho escravo é fruto de uma longa história de escravidão.

Intertextualidade constitutiva: temas discursivos

A intertextualidade constitutiva ou interdiscursividade ocorre quando o autor do texto recorre a outros de maneira implícita. Nesta seção, apresentamos os temas discursivos mais recorrentes nos comentários dos internautas, observando que não são os únicos.

Tema 1: O Estado, ineficiente e corrupto, é culpado por as empresas praticarem o trabalho escravo.

Esse é um discurso bastante recorrente. O Estado é o verdadeiro culpado, e não a empresa, pois ele favorece essas práticas ao regulamentar a terceirização.

[...] Acusar estas empresas de trabalho escravo é no mínimo precipitação. [...] O que de fato está errado não é a iniciativa da Zara ou de outras empresas citadas, mas sim a possibilidade que a lei cria com a terceirização. [...] O ESTADO É O VERDADEIRO VILÃO DESTA SITUAÇÃO e olha que sequer citei as tais cooperativas de trabalho (C3.18).

Comentários que condenam a empresa Zara também são comuns, porém o crime cometido pela empresa é produzido em uma rede de agentes, entre empresas e governos, dificultando a sua evitação.

Cadeia nessa empresa ZARA, multinacional da moda escravista, deve ter aprendido com as elites brasileiras escravistas, cadeia nestes empresários corruptos e corruptores dos trabalhadores e dos serviços públicos. [...] Esses capitalistas corruptores são os patrocinadores dos corruptos, pagando propinas para receberem em dobro do ESTADO, gerando corruptos públicos e privados (C2.9).

Tema 2: A população deve boicotar as empresas que utilizam o trabalho escravo e cometem outras práticas abusivas.

Identificamos, em muitos comentários, outros textos implícitos, como o discurso do "consumo consciente".

Vamos ser consumidores conscientes. Não compre nada de empresas que usam trabalho escravo ou infantil. Mostre sua indignação. Rejeite estas marcas. Avise a todos os seus contatos. Divulgue esta notícia. Vamos fazer valer nosso direito. Quem não age direito tem de ser denunciado (C9.1).

Os clientes e consumidores são chamados a reagir, boicotando a marca. O discurso da força do cliente também é evocado: "Vamos dar o exemplo e boicotar essa empresa. Não precisamos esperar a justiça formal. Cada um de nós que boicotar essa empresa, ajudará a mostrar o quanto isso é inaceitável. Justiça maior será a loja fechar as portas por falta de consumidores. Esse poder está nas nossas mãos" (C2.2).

Tema 3: As empresas são "psicopatas sociais", seus lucros são tão altos que compensam qualquer multa.

Esse tema reúne comentários que vão ao encontro da ideia de que os empresários agem para servir aos interesses de acumulação de capital, no mesmo sentido dos argumentos de Motta (1981; 1992), Tragtenberg (2005) e Morgan (1996), quanto ao fato de que as multas são insignificantes perante os lucros auferidos. As corporações ganham personalidade psicopata no C12.14, quando o internauta utiliza textos sobre o capitalismo selvagem, e, no C1.14, o internauta questiona se os "Empresários do Ano no Brasil" se importam com as condições de trabalho de seus empregados.

Multinacionais em geral são psicopatas sociais. Elas pouco se importam com o social. Usam a população desprotegida para chegar por qqer [sic] meio ao lucro. Eles mentem ao dizendo não ter culpa mas esse eh só mais um sintoma de psicopatia. Tao pouco mostram remorsos ou qqer [sic] outro sentimento em relação danos causados ao próximo [sic]. São frutos do capitalismo 'selvagem'. Sabem usar a mídia muito bem para nos fazer acreditar numa falsa democracia. Infelizmente, muitos são iludidos p/ seus falsos valores (C12.14).

Vejam os exemplos dos Empresários do Ano no Brasil, comandam Cadeias enormes, movimentam milhões de mercadorias, empregam milhares de pessoas, mas não abaixam a rentabilidade para melhorar as condições de seus empregados... Pagam salários mínimos. Eles realmente se importam? (C 1.14).

Tema 4: As empresas são vítimas: os empresários não sabem o que fazem seus fornecedores, e os impostos e taxas são tão altos que é impossível arcar com eles.

Para C1.1, a Zara é vítima, porém não a exime de culpa de comprar "destas empresas": "COMO É A ZARA ESTÃO FAZENDO ESTE AUE [sic] TODO. NOTE QUE A ZARA É COMPRADORA DESTAS EMPRESAS, PORTANTO ELA TAMBÉM É VÍTIMA. ISTO NÃO TIRA A CULPA DELA. TEM COISA PIOR" (C1.1).

Tema 5: A sociedade é hipócrita, pois o trabalho escravo é uma prática comum.

Em muitos comentários, o interdiscurso é de que "Isso não é novidade para ninguém. Não é somente a Inditex (Zara) que faz isso" (C4.1). O trabalho escravo é uma prática comum, estando à vista de qualquer pessoa que queira confirmar.

é só ir na josé paulino e adjacências e olhar para os andares superiores das lojas. são antro de prisões de coreanos, chineses, bolivianos que em troca de comida e abrigo se dipõem a trabalhos que chegam até mesmo a prostituição de menores. é só ir la [sic] e confirmar. mas... (C1.1).

Ainda, no comentário de C2.1, o internauta manifesta-se sobre a continuidade dessa prática, ao questionar se alguém vai deixar de comprar: "Mas as roupas e demais acessórios (eletrônicos, tênis, etc) vendidos na Zepa (R. José Paulino) e 25 de março também não são oriundas de trabalho escravo? E alguém deixa de comprar?????????" (C2.1).

Ideologias nas corporações

Para finalizar nossa análise, identificamos que a interação entre os significados e visões de mundo expressas nos comentários dos internautas, apesar de não reproduzir as ideologias corporativas, é utilizada como um esforço para compreender e explicar por que o trabalho escravo é uma prática adotada pelas empresas. Entre as ideologias corporativas manifestadas, apresentamos, a seguir, as duas mais significativas, as quais fazem parte dos pressupostos da "cultura do management" (WOOD JR. e PAULA, 2006).

As tecnologias gerenciais, como a terceirização, permitem racionalizar as atividades organizacionais

A racionalização dos processos permite às empresas maior produtividade, trazendo consequências (TRAGTENBERG, 1974; 2005; MOTTA, 1981; 1992; MORGAN, 1996, entre outros) para o trabalhador e a sociedade. A racionalização dos processos empresariais é uma ideologia gerencial (BARLEY, MEYER, GASH, 1988; BARLEY e KUNDA, 1992) e, como tal, é utilizada para explicar por que essas práticas (condições de trabalho abaixo da crítica) persistem nas empresas, e, ainda, aponta para sua naturalização.

Hoje a palavra de ordem é bater as metas, ganhar mais e gastar o mínimo possível. Alguém de dentro da ZARA sabia sim dessas coisas, mas como vivemos no país na impunidade, é vantajoso continuar a economizar na mão-de-obra. Não se preocupem já já todo mundo esquece disso (C15.9).

Toda terceirização carrega consigo o potencial de gerar a precarização das condições de trabalho. [...] Medalhões ganham contratos milionários dos governos para prestar serviços de segurança, limpeza, transporte, etc. Esses medalhões terceirizam os serviços para os "gatos", e estes contratam "escravos", que receberão salários humilhantes e condições de trabalho abaixo da crítica. [...] (C20.8).

Diversos comentários, a exemplo de C20.8, manifestam a ideia de que o trabalho escravo é caracterizado pela exploração dos trabalhadores e das condições de trabalho a que esses são submetidos.

Sociedade de livre mercado

Identificamos, nos comentários, que a crença em uma sociedade de livre mercado é utilizada para explicar (sem justificar) as ações da empresa: "Incrível o que o poder econômico, com claro consentimento de autoridades públicas, ainda faz com o trabalhador em pleno século XXI" (C5.1), referindo-se ao poder das corporações perante o Estado. Esse poder é analisado por Motta (1981), que as considera um aparelho de Estado, cuja função é reproduzir a sociedade de classes, do mesmo modo que as instituições religiosas, militares e educacionais.

Essa crença também está presente no comentário C3.3, o qual questiona os deveres do Estado e a transferência de suas funções ao setor privado: "Quer dizer que agora o trabalho de fiscalização quanto ao cumprimento da legislação trabalhista também cabe ao setor privado? É mais uma função pública que está sendo transferida ao privado? [sic]" (C3.3).

Os crimes corporativos são cometidos pelas corporações na busca por desempenho superior (ALEXANDER e COHEN, 1999; SIMPSON e PIQUERO, 2002), produzindo, como vítimas, consumidores, trabalhadores e a sociedade em geral, os quais arcam com os custos sociais e materiais advindos desses crimes (SCHRAGER e SHORT JR, 1978). Nesse sentido, os internautas se manifestaram, em seus comentários, quanto aos motivos pelos quais esse tipo de crime ocorre, entre eles, a busca por maiores lucros na forma de racionalização do trabalho e redução de custos por parte das corporações e a ineficiência, o descaso e a corrupção do governo e agentes fiscalizadores. Manifestam-se, também, a respeito do fato de as empresas transferirem os custos para a sociedade, pois, ainda que suas práticas incorram em multas e outras despesas, continuam sendo lucrativas (MORGAN, 1996; MOKHIBER, 1995).

Para o internauta que postou o C5.7, a exploração faz parte do sistema capitalista e expressa reconhecimento do modo pelo qual as ideologias corporativas obscurecem a reflexão:

É tudo hipocrisia! Onde é que se viu o capitalismo sem a exploração. A gente é forçada a correr atrás dessas bobagens, sem o direito de se defender. A lavagem cerebral que nos leva atrás dessas besteiras acontece diariamente, sem darmos conta. Se hoje um miserável, que vive com menos de um dólar por dia, possa também ter iPod, mp4, celular e adidas, é graças a esses países chamados China e Índia. Porque não faz sentido alguém colocar diariamente um prato de comida à minha frente sem que possa degustá-la (C5.7).

Ainda quanto a essa questão, a sociedade do consumo é referenciada: "A diferença de preço só demonstra como a sociedade se tornou tola no consumo. [...] somos vítimas dos nossos próprios valores" (C25.8) (grifo no original).

Quanto à concepção de trabalho escravo, reproduzimos um comentário postado no qual o internauta contesta a utilização do termo "escravidão" para referir-se às condições denunciadas no caso.

O termo "Escravidão" que está sendo usado é ridículo. Os trabalhadores podem ser irregulares por não serem registrados e receber baixo salário, mas nenhum deles é propriedade do dono da confecção e se estão lá é porque precisam do dinheiro do trabalho, mesmo que seja pouco. As portas estão abertas e eles têm liberdade para trabalhar em outro local. Agora perguntem pra eles o que eles preferem. O trabalho "escravo", como estão dizendo, ou o desemprego?

As manifestações dos internautas dividem-se quanto à concepção de trabalho escravo. Diversos internautas fizeram alusão à escravidão por dívida, que, conforme Martins (1994), é uma variação do trabalho assalariado e, como tal, ressurge na superexploração do trabalhador, a ponto de comprometer sua sobrevivência. São vários os comentários, porém, que consideram ser o trabalhador "livre para trabalhar em outro local", revelando um conceito de escravidão histórico, em que o escravo é acorrentado. Essa visão dificulta e distorce a compreensão da situação atual em relação à exploração do trabalho escravo, cujas amarras não são correntes grossas.

Em relação ao trabalho escravo como um tipo de crime corporativo, os comentários também se dividem. Embora não tenhamos identificado a utilização do termo "crime corporativo" como referência ao trabalho escravo, as expressões "empresa criminosa" e "um crime desses", "criminosos", entre outros termos, remetem à concepção do trabalho escravo como um crime produzido, no caso pesquisado, pelas corporações, termo também referenciado nos comentários. Como esse tipo de crime não recebeu a atenção de governos da mesma forma que a criminalidade nas ruas (UNNEVER, BENSON, CULLEN, 2008; PAYNE, 2012), a sociedade em geral vê os crimes corporativos como algo sério somente quando suas consequências atingem proporções maiores.

Outra faceta presente nas concepções dos internautas diz respeito às práticas discursivas das corporações em geral (ALVESSON e DEETZ, 2000), não se limitando ao caso noticiado. Muitos comentários evidenciam que seus autores reconhecem as multinacionais como um modelo de negócios que, explorando consumidores, trabalhadores e o meio ambiente, torna-se cada vez mais forte e poderoso (CLINARD e outros, 1979). Esse modelo de negócios, na concepção de muitos internautas, configura-se em uma "ideologia neocapitalista" (TRAGTEMBERG, 2005) que, estando envolta em uma rede de agentes, corrompe e domina governos e a sociedade em geral. Esses internautas ainda reconhecem o que Wood Jr. e Paula (2006) e Barley, Meyer e Gash (1988) denominam, respectivamente, cultura do management e ideologias gerenciais, ao se referirem aos discursos das corporações como "conversa [...] mole para boi dormir" e às técnicas gerenciais para racionalização do trabalho.

Se, para muitos internautas, as práticas discursivas das corporações são ideológicas, visando ocultar reais intenções de lucro, exploração e dominação, como os autores referenciados (MORGAN, 1996; MOTTA, 1981, 1992, entre outros) neste artigo sugerem, para outros internautas, entretanto, a Zara é a marca favorita, e, como há muitas outras empresas fazendo o mesmo (trabalho escravo), preferem continuar fiéis a ela. Essa concepção indica o modo pelo qual as empresas atingem o imaginário social (FREITAS, 2000), reforçando seu domínio nas esferas econômica, social e cultural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE AS CONCEPÇÕES DE CRIME CORPORATIVO NOS COMENTÁRIOS DE INTERNAUTAS: CULPADA OU INOCENTE?

Nesta pesquisa, analisamos os comentários de internautas acerca de crimes corporativos, especificamente, em relação às denúncias de trabalho escravo contra a Zara. Os crimes corporativos ocorrem no contexto das organizações e das suas inter-relações com a sociedade, portanto discuti-los no campo dos estudos organizacionais amplia o conhecimento sobre suas causas, o processo por meio do qual ocorrem e a opinião pública em relação a esses acontecimentos.

Retomamos o título deste artigo, na tentativa de esboçar uma resposta sobre se a empresa é culpada ou inocente, conforme as concepções nos comentários de internautas. De modo geral, a empresa do caso ilustrado é culpada e vítima, embora, em alguns poucos comentários, os internautas a tenham declarado inocente ou, ainda, tenham se mantido neutros, pois apreciam os produtos da marca. Quando a consideram culpada, eles utilizam como explicações: o próprio sistema capitalista; o Estado, por sua benevolência e ineficiência; e, em algumas vezes, os próprios consumidores e trabalhadores, por aceitarem tais condições. Quando é considerada vítima, a explicação mais recorrente é de que a empresa, ao utilizar-se de serviços de terceiros, não tem a obrigação de fiscalizar o processo de trabalho deles.

Na análise dos textos e intertextos, as concepções que envolvem o crime corporativo, neste caso ilustrado pelo trabalho escravo, podem ser sintetizadas da seguinte forma: (1) o crime corporativo compensa, financeiramente, para a corporação - assim, deve ser punido não só com multas mas também de maneira mais severa; (2) o crime corporativo deve ter fiscalização mais intensa por parte do Estado; (3) o crime corporativo é inevitável, pois o que interessa é a obtenção de maiores lucros; (4) o crime corporativo continuará a existir, pois a população aceita que ele ocorra, adquirindo os produtos da empresa e ignorando esse tipo de fato. Os crimes corporativos são evitáveis, porém a um custo que as corporações não querem assumir (MOKHIBER, 1995), adotando práticas como o trabalho escravo, cujo custo é da sociedade em geral (CLINARD e outros, 1979), gerando o que Chikudate (2009) denomina miopia coletiva, que pouco associa a palavra crime aos acontecimentos do ambiente empresarial.

Muitos internautas manifestaram o entendimento de um conceito histórico de trabalhador escravo, cujo estereótipo é o do escravo acorrentado, mostrando desconhecer a concepção contemporânea desse fenômeno, conforme Martins (1994) discute. Hoje, o empregador acorrenta o trabalhador oferecendo condições mínimas para sua sobrevivência, visto que a sua substituição pode ser feita sem maiores custos.

Esta pesquisa tem implicações de natureza prática e teórica. Quanto às primeiras, os resultados indicam, para os gestores e os responsáveis pelas organizações, que a sociedade acompanha as suas ações, tomando posicionamentos que podem levar a outros movimentos, como boicotes, utilizando-se de uma vasta possibilidade de ferramentas on-line, como as redes sociais. Esta pesquisa traz, ainda, contribuições para a prática gerencial, ao apontar para a necessidade de as empresas implementarem políticas organizacionais sérias e efetivas para conduzir os negócios sem colocar os lucros acima da dignidade humana.

Em relação às implicações de natureza teórica, destacamos que, ao iniciar esta pesquisa, o fizemos considerando-a um ponto de partida para outros trabalhos no campo dos estudos organizacionais, visto que os crimes corporativos ainda são um território obscuro. Esta pesquisa contribui, assim, por chamar a atenção dos pesquisadores do campo para a necessidade de avançar no conhecimento sobre os crimes corporativos de modo geral e, em particular, o trabalho escravo, no que concerne tanto aos seus antecedentes e motivos quanto ao contexto sócio-histórico no qual eles ocorrem. O conhecimento gerado a partir daí pode clarificar questões ainda marginalizadas nos estudos organizacionais, como: Por que e como as corporações tornam-se criminosas? Diante disso, vislumbramos outras possibilidades que podem ampliar esta pesquisa, como: (a) considerar outros tipos de crimes corporativos para análise; (b) estabelecer comparações entre os comentários de internautas em relação aos outros tipos de crimes corporativos; e (c) criar uma agenda de pesquisas, considerando as múltiplas abordagens do campo dos estudos organizacionais, especialmente, as abordagens críticas.

Ao considerarmos notícias jornalísticas sobre organizações, apontamos para outros atores na construção dos discursos sobre corporações, como os jornais, o que consiste, também, em uma contribuição desta pesquisa para o campo dos estudos organizacionais, por adotar a análise intertextual. Nesse sentido, sugerimos: (a) considerar o(s) texto(s) das notícias que estimularam os comentários; (b) analisar as conversas entre os internautas; (c) realizar comparações entre os comentários veiculados nos diferentes veículos.

É preciso, ainda, ressaltar as limitações da pesquisa ao utilizar postagens de internautas como fontes de pesquisa. Estes são sujeitos anônimos, heterogêneos e virtuais, podendo, portanto, vir a ser múltiplos, privilegiando-se de inúmeras opções, de vários caminhos e da faculdade de formarem diversas concepções. Outra limitação de natureza metodológica refere-se à impossibilidade de generalização deste caso para outros tipos de crime corporativo, e mesmo outros tipos de trabalho escravo, como aquele que envolve o trabalho infantil.

Recebido em 10.06.2012

Aprovado em 03.10.2012

Avaliado pelo sistema double blind review. Editor Científico: Alexandre de Pádua Carrieri

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Nov 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      10 Jun 2012
    • Aceito
      03 Out 2012
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