Acessibilidade / Reportar erro

Poder e resistências nas organizações: a propósito das contribuições de Fernando C. Prestes Motta

ESPECIAL

ARTIGO CONVIDADO

Poder e resistências nas organizações: a propósito das contribuições de Fernando C. Prestes Motta

Liliana SegniniI; Rafael AlcadipaniII

IProfessora do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas a Educação, Faculdade de Educação e do Programa de Doutorado em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP -Brasil. lilianaseg@uol.com.br

IIProfessor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, SP – Brasil. rafael.alcadipani@fgv.br

Relembramos a proposição de Cornelius Castoriadis, um dos autores presentes nas pesquisas e análises teóricas de Prestes Motta na elaboração desse texto:

Honrar um pensador não é elogiá-lo, nem mesmo interpretá-lo, mas discutir sua obra, mantendo-o, dessa forma, vivo e demonstrando em ato que ele desafiou o tempo e mantém sua relevância. (Castoriadis como citado em Peters, 2009, p. 39).

A questão do poder nas organizações mobiliza atrai acadêmicos do campo de diferentes tradições e países (Clegg, 1975; Dalton, 1959). Trata-se de um tema clássico da área. Provavelmente, o interesse dos pesquisadores que desenvolvem análises das organizações na perspectiva do poder está associado ao fato de que a sociedade contemporânea é uma sociedade organizacional (Presthus, 1965) na qual as formas de gestão que a influenciam sobremaneira, bem como aos indivíduos. Ao realizar a crítica das organizações, principalmente em sua dimensão de controle, poder e transmissão da ideologia, Prestes Motta analisou um fenômeno que constitui uma preocupação de muitos pensadores do campo que procuram questionar e desafiar o poder contemporâneo das organizações e da sua lógica que invade as mais diversas esferas da vida cotidiana das pessoas (Gaulejac, 2007).

Existem intelectuais que nos deixam cedo e nos fazem muita falta na complexa tarefa de compreender o presente. Prestes Motta faz parte desse grupo, assim como seu mestre Maurício Tragtenberg. A relevância do pensamento de Prestes Motta está na sua singular contribuição à análise sociológica das organizações, fundamentada nas principais teorias desse campo do conhecimento que lhe possibilitaram desvendá-las, num momento histórico no qual poucos se dedicavam ao seu "desencantamento". Além disso, Prestes Motta vislumbrou o fortalecimento do poder organizacional na sociedade, inspirado em Max Weber. Sua contribuição a respeito do poder das organizações é evidenciada no livro Organização e Poder: Empresa, Estado e Escola (Prestes Motta, 1986a).

Neste texto, discutiremos a obra de Fernando Prestes Motta considerando suas contribuições à questão do poder, que, além de ser um tema clássico do campo, é um dos principais objetos de análise em sua obra.

Gênese dos fenômenos, contextualização histórica e relações de poder

A obra de Prestes Motta realiza um duplo movimento analítico. Por um lado, seus escritos buscam recuperar a gênese dos fenômenos observados – seja a dominação burocrática ou a sua antítese, a autogestão. Por outro, Prestes Motta buscou contextualizar historicamente aquilo que focava, procurando determinar uma relação singular que cada um dos temas selecionados estabeleceu com seu momento histórico.

Tal duplo movimento encontra-se em toda a sua trajetória intelectual, desde os primeiros trabalhos até suas obras mais recentes. O livro pioneiro, Teoria Geral da Administração: uma Introdução, publicado em 1974, que se tornou um grande êxito editorial, já contextualizava as teorias administrativas numa perspectiva sociológica e histórica. Tal movimento ficou ainda mais evidente no texto posterior, Teoria das Organizações: Evolução e Crítica, em que Prestes Motta (1986b) discutia as teorias organizacionais tradicionais para depois apresentar a sua crítica.

Em Empresários e Hegemonia Política (1979), reafirmou a importância do duplo movimento citado e discutiu a construção da "história da burguesia, em formações sociais concretas", como história da busca da hegemonia e da ideologia que a sustenta. Nessa análise, a referência à análise marxista é reiterada, sintetizada na epígrafe do primeiro capítulo.

Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios encontram sua solução racional na práxis humana e no compreender desta práxis (Marx, 1978, p. 89).

Nesse trabalho, Prestes Motta analisou a trajetória burguesa no Brasil, dialogando com Marx, Gramsci, Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira, Caio Prado Jr. e outros historiadores e sociólogos, numa perspectiva crítica. Concluiu:

[...] a transformação efetiva de qualquer sociedade, e a brasileira não foge à regra, terá que passar pela superação da relação dirigente/dirigido se a sua meta for realmente a igualdade e a liberdade. Não basta superar o antagonismo fundamental entre capital e trabalho, mas todas as separações que lhes são estreitamente vinculadas ou que, preexistentes, a ele se amoldaram funcionalmente. (Prestes Motta, 1979, p. 129).

As análises que se seguiram, na trajetória intelectual de Prestes Motta, não economizaram esforços teóricos e analíticos na tentativa de compreender as contradições presentes nesse debate, no qual as relações de poder assumem importância central, constituem o Télos da discussão. Encontra, assim, na análise da burocracia uma das dimensões fundamentais na construção do poder na sociedade moderna e contemporânea. Recorre à sociologia da dominação em Max Weber para a elaboração de suas reflexões publicadas em livros e artigos; mas não só. Elabora diálogos reflexivos e criativos com vários outros autores e categorias teóricas na tentativa de compreendê-la. Demonstra, em 1986, a relativa timidez nas análises que consideram as fontes da Administração como campo acadêmico e reclama por estudos que informem a organização burocrática como produto de determinações históricas que expressem as contradições observadas nos campos econômico e da técnica. Salienta que estas são frequentemente analisadas como "um objeto natural, isto é, como a única forma existente e possível de organização" (Prestes Motta, 1986a, p. 13).

Prestes Motta analisa a construção do poder em duas dimensões – exploração (Marx) e dominação (Weber). Recorre, ao mesmo tempo, a autores que partem de premissas diferentes para explicar a dupla dimensão pretendida. Nicos Poulantzas, Michel Foucault, Erwing Goffman, Max Pagès, Lobrot e Claude Grignon são, assim, autores que, com base em várias abordagens, se colocam como leitores da "construção do valor", tal como elaborada por Karl Marx.

Além disso, há uma dimensão humanista que impulsiona o trabalho intelectual de Prestes Motta. A autogestão, na perspectiva econômica, política ou social, foi objeto de suas análises como resposta inscrita no ponto extremo do continuum das formas de organização dos processos produtivos, nos quais os trabalhadores se inscrevem politicamente. Destacou, no livro Participação e cogestão: novas formas de administração, que, "potencialmente, a cogestão parece ser o limite das formas participativas do capitalismo avançado, da mesma forma que a augestão parece ser o limite e a meta final do socialismo" (Prestes Motta, 1982a, p. 83).

Várias de suas obras analisam as formas de participação dos trabalhadores no século XIX, período que destaca os socialistas utópicos e libertários. Em Burocracia e Autogestão (1980), analisa as propostas de Pierre-Joseph Proudhon. No século XX, analisa criticamente várias experiências de participação, desde o reformismo alemão que precedeu a Primeira Guerra Mundial, a social-democracia e os acordos sindicais, na tentativa de participar de todos os níveis da vida social e econômica, nas empresas e no Estado.

Aprofundar a compreensão da relação do homem nas instituições burocráticas ou autogeridas, submetidos à dominação ou autônomos, levou-o aos estudos no campo da Psicologia Analítica (Carl Jung) e da Psicanálise (Freud). Sincronicidade, conceito desenvolvido por Carl Gustav Jung, define acontecimentos que estabelecem relação de significado, referida por Jung por "coincidência significativa". Trataremos da questão do poder e indivíduo nas organizações no pensamento de Prestes Motta na próxima parte deste texto.

Prestes Motta: organização, poder e indivíduos

Conforme discute Ester Freitas em texto nesta edição da RAE, Prestes Motta possuiu uma "obra docente". A autora mostra com precisão como ele era influenciado por fontes da Sociologia, Ciência Política, Antropologia, Psicanálise, somente para citar algumas áreas. Com isso, Prestes Motta ampliava os horizontes da análise organizacional de uma compreensão restrita das organizações para a compreensão das organizações como fenômenos humanos, históricos e sociais. Já vimos acima como a contextualização era importante para as suas análises. As organizações eram, assim, vistas como fenômeno amplo em suas análises, não como algo circunscrito que deve ser eficiente, como nos estudos gerencialistas, ou na mera dimensão organizacional, como nas abordagens dominantes do campo de Estudos Organizacionais.

A contribuição de Prestes Motta deu-se não apenas em livros e textos acadêmicos, mas também em resenhas e comentários de obras nacionais e estrangeiras, sobretudo nas línguas francesa e inglesa. Não é incomum ainda hoje encontramos livros relevantes na biblioteca da FGV-EAESP que foram solicitados por ele. Grande incentivador da leitura sem preconceitos e sem dogmas em nosso campo, Prestes Motta usava, dessa maneira, sua posição geográfica para inspirar-se em obras europeias e norte-americanas e difundi-las no Brasil de maneira articulada e híbrida, quando ainda tecnologias não facilitavam o amplo acesso ao conhecimento produzido fora do Brasil. Ao construir esse hibridismo e articulação de perspectivas, sua contribuição foi fundamental para constituir um pensamento organizacional autônomo em nosso país (Paula, Maranhão, Barreto, & Klechen, 2010), mas que estava fundamentado no pensamento social ocidental. Trazer obras de outras áreas e de outros países para o nosso campo possibilitou ampliar sociologicamente os Estudos Organizacionais no Brasil.

Dentro do tema Organizações e Poder, as obras de Presthus (1965) e Whyte and William (1956) influenciaram o pensamento de Prestes Motta no final dos anos de 1970. Presthus (1965) discutiu a sociedade organizacional, momento histórico em que as grandes organizações ganhavam cada vez mais destaque na sociedade. A sociedade organizacional suplanta, para o autor, a sociedade tradicional. Para Prestes Motta (1978), as organizações "parecem frequentemente menos ocupadas com a auto-realizacão de seus membros do que com a importância de tais indivíduos para as metas organizacionais de tamanho, poder e sobrevivência, bem como pela aceitação, por parte dos membros, desta barganha instrumental" (Prestes Motta, 1978, p. 71).

Prestes Motta articulou as análises de Presthus (1965) com as de Whyte and William (1956) para argumentar que, no contexto da sociedade organizacional, o homem organizacional "não tem identidade porque não age em nome de motivos próprios reais, mas, sim, em nome de uma fantasia. Sua existência, como a da organização e da sociedade organizacional, baseia-se na repressão e no autoritarismo, mesmo quando parece lutar contra isso" (Prestes Motta, 1978, p. 74). Ele traz à tona o fato de que, nesse tipo de sociedade, é constituído um tipo determinado de indivíduo. A questão da tentativa do controle das mentes por parte das organizações estava presente desde os primórdios em seu pensamento.

Prestes Motta (1978) afirma, ainda, que a sociedade organizacional é a sociedade da burocracia e aponta as suas vicissitudes e necessidade de superação, ao concluir que:

A sociedade organizacional é a sociedade da burocracia que, nascida na produção e no Estado, expande-se para todas as esferas da vida social. A burocracia contemporânea, no nível de formações sociais concretas, implica uma política econômica e uma economia política. A superação histórica da sociedade altamente burocratizada não pode estar divorciada da superação das bases materiais e institucionais em que ela floresce, nem da moral que amadurece seus frutos. (Prestes Motta, 1978, p. 75).

Vale frisar que o tema das relações de poder como construtoras de individualidades expressa também suas leituras de Michel Foucault. O pensador francês mereceu atenção especial, principalmente na questão do poder disciplinar na empresa e nas organizações de formação profissional. Ao refletir sobre o poder disciplinar, Prestes Motta (1981, p. 41) argumentou que

as organizações são sistemas sociais artificiais cuja função primordial é a reprodução da sociedade de classes. Embora existam organizações primordialmente econômicas, repressivas ou ideológicas, toda e qualquer organização é de alguma forma econômica, repressiva e ideológica. Enquanto aparelho a organização se caracteriza como um modo de ação do poder que podemos chamar poder disciplinar. Esse modo de ação se concretiza na organização do espaço, na organização do tempo, na vigilância e nos exames periódicos. [...] organizações tendem a desenvolver mecanismos para a sua própria reprodução. (Prestes Motta, 1981, p. 43).

Inspirando-se na obra de Michael Foucault para pensar a questão do poder das organizações contemporâneas sobre os indivíduos, ele afirma que "As organizações tendem a desenvolver mecanismos para a sua própria reprodução. Esses mecanismos, comuns nas instituições religiosas, militares e educacionais, são também encontrados nas empresas, e geralmente se associam a uma captação pela organização do ideal do ego de seus membros individuais" (Prestes Motta, 1981, p. 44). A utilização da noção de "ideal do ego" já mostra, em 1981, a preocupação de Prestes Motta em relação ao poder das organizações sobre as pessoas por meio da psicossociologia, e não pela visão foucaultiana de constituição da subjetividade (Fonseca, 2002). Podemos perceber, em seus textos de 1978 e 1981, a presença da questão do poder das organizações sobre os indivíduos como um tema emergente no pensamento do autor.

O texto de Pagés, Bonetti e Gaulejac (1987) foi crucial para o pensamento de Prestes Motta para tratar a questão do poder nesta perspectiva. Ele mesmo apontou isso na resenha do respectivo livro:

sem dúvida, merece todo nosso entusiasmo a iniciativa da Editora Atlas de publicar textos de análise organizacional de ordem mais crítica, afastados da linha dominante da literatura gerencialista, em geral pobre em conteúdo e na utilidade que em princípio deveria ter. [...] Tem-se agora a possibilidade de conhecer o original de um trabalho que foi de grande importância para muitas teses como as de [...] e do próprio autor dessa resenha, dentre muitas outras defendidas em universidades brasileiras e estrangeiras em anos recentes. (Prestes Motta, 1982b, p. 68).

É nítido, aqui, Prestes Motta rechaçando um pensamento organizacional gerencialista em favor de uma visão mais reflexiva da realidade organizacional.

Ainda nessa resenha, define o livro como um "encontro feliz da psicanálise e de um marxismo sem os dogmatismos e vulgaridades comuns em muitos meios" para afirmar que:

A análise leva à consideração de como a administração da angústia, presente na política de carreira e em outras, é responsável por um processo regressivo, no qual os indivíduos vivem dominados pelo medo da perda do "amor da organização" e pela lógica desse processo. Assim, a organização apodera-se de seus membros, realizando políticas mediadoras em quatro níveis de atuação: econômico, político, ideológico e psicológico. Oferece, em cada um desses níveis, salários e carreira, autonomia, humanismo e sedução e prazer. Em contrapartida, exige trabalho disciplinado com vistas ao lucro e à expansão, submissão ao controle burocrático e eficiência. (Prestes Motta, 1984a, p. 20)

A partir da obra de Pagés et al. (1987), Prestes Motta (1984a) segue na sua discussão a respeito do papel das empresas na transmissão da ideologia que a define como "um conjunto de valores e crenças que visa a manutenção de uma determinada ordem social, ocultando os elementos que a ameaçam e lhe são inerentes" (Prestes Motta, 1984a, p. 19). Ele situa a ideologia dentro de um contexto da sociedade do espetáculo e argumenta que "O tempo colocado pela ideologia dominante é o tempo do consumo das imagens. Essas imagens são apresentadas como a vida real" (Prestes Motta, 1984a, p. 20). A transmissão da ideologia com base em Pagés et al. (1987), Prestes Motta (1984a, p. 22) é compreendido por ele como "A conquista ideológica dos empregados pela empresa parece basear-se no fato de que esta oferece uma interpretação do real relativamente coerente com as práticas sociais dos indivíduos, fornecendo-lhes uma visão de mundo coerente com as aspirações". Vemos aqui presente, mais uma vez, a preocupação de Prestes Motta com a questão do poder das empresas sobre os indivíduos.

Ao pensar na ideologia nas empresas, Prestes Motta (1984b) traz à tona o debate do modelo japonês em voga no mundo organizacional no início da década de 1980. Mais uma vez, ele desconstrói como a empresa exerce o poder e o controle sobre o indivíduo. O autor argumenta que o denominado Milagre Japonês esconde que "os grandes grupos econômicos japoneses mantêm uma política de falência planejada de pequenas e médias empresas a cada ano, colocando, literalmente, na rua os empregados vitalícios, isso raramente é lembrado" (Prestes Motta, 1984b, p. 67). Além disso, o autor argumenta que o sistema japonês mascara um autoritarismo da empresa sobre o empregado e que, apesar de estarem supostamente em um modelo mais democrático de gestão, os operários vivem em um sistema tão autoritário e opressor quanto no fordismo. O modelo japonês reforça um modelo esquizofrênico no qual:

Os administradores lutam pela carreira até o esgotamento, aprendendo a viver com a angústia crescente. Essa luta leva ao desenvolvimento de um tipo de personalidade que separa a vida em esferas estanques: trabalho, família, lazer e relações sociais. A vida assume uma economia interna que é gerida em benefício da carreira, e portanto da organização. (Prestes Motta, 1984b, p. 69).

O autor denuncia que o mundo passava a vivenciar uma nova forma de exploração ao afirmar que "A opressão no mundo moderno tomou novas formas e generalizou-se. Da mesma maneira, a luta contra a opressão precisa ser multiforme, descobrindo modelos de organização diversos e mais eficazes que os da opressão, modelos opostos ao que o Japão, onde domina o ideal de homogeneidade e docilidade sociais, nos oferece" (Prestes Motta, 1984b, p. 70). É interessante perceber como Prestes Motta adianta uma crítica ao toyotismo e o faz pela ótica da defesa do indivíduo. Vemos, mais uma vez, o direcionamento do autor para pensar a questão do poder das organizações por meio das contribuições da psicossociologia e da psicanálise.

A análise do poder das organizações sobre os indivíduos levou Prestes Motta a desbravar o caminho da ideologia para a cultura, da cultura para o imaginário. A questão do poder levou-o, assim, para a vida psíquica das organizações, com base nos trabalhos sociológicos de Freud e Eugène Henriquez (Prestes Motta & Freitas, 2000). Nos últimos trabalhos elaborados por Prestes Motta, não houve distanciamento em relação aos clássicos de sociologia que orientaram seus trabalhos anteriores, mas a incorporação, por exigência intelectual, da esfera da psiquê humana. Também nesse campo, procurou realizar o duplo movimento citado anteriormente: recuperou a gênese dos fenômenos observados e os contextualizou historicamente.

Fernando e a resistência

Discutimos neste texto diferentes dimensões do pensamento de Prestes Motta com relação ao tema do poder e das organizações, porém é indispensável pensar em Prestes Motta como um pesquisador e como um docente. Conforme ressaltado por Maria Ester Freitas no texto desta edição, um dos maiores legados de Prestes Motta foi formar novas gerações, transmitir e estimular o pensamento crítico. Deu, assim, continuidade a uma forma de pensar criticamente as formas de gestão. É exatamente nesse aspecto que Maurício Tragtenberg e Fernando Motta convergem nas suas análises sobre o poder nas organizações e na sociedade. O primeiro foi professor do segundo, e a ele se refere em seu memorial dizendo:

Concluindo, penso que um professor que consegue a mudança de paradigmas numa área e fecundar uma obra como a de Fernando Prestes Motta, [...] conseguiu seu objetivo. Isso porque, segundo os clássicos chineses, influenciar é ter poder. (Tragtenberg, 1990, p. 89).

Muitos dos atuais pesquisadores responsáveis pela compreensão do presente encontram na atualidade da obra de Fernando Cláudio Prestes Motta uma fonte analítica esclarecedora e inspiradora. Fernando escrevia textos acadêmicos em uma época em que não havia ponto CAPES, fator de impacto, índice H, que fazem parte do nosso meio nos dias de hoje. Um meio que está imerso na lógica gerencialista, na qual escolas e instituições de ensino se parecem cada vez mais com empresas, onde professores, depois de contribuírem durante a sua vida toda com a pesquisa, são demitidos ou excluídos dos programas de pós-graduação por serem "improdutivos" ou porque não publicam "internacionalmente", onde o pensamento crítico na Administração é rechaçado a favor dessas abordagens instrumentais norte-americanas que alguns nomeiam "ciência". Sua obra nos serve de contínua inspiração para refletirmos a respeito das organizações em contexto brasileiro.

...na trajetória intelectual de Prestes Motta, não economizaram esforços teóricos e analíticos na tentativa de compreender as contradições presentes nesse debate, no qual as relações de poder assumem importância central, constituem o Télos da discussão.

A contribuição de Prestes Motta deu-se não apenas em livros e textos acadêmicos, mas também em resenhas e comentários de obras nacionais e estrangeiras, sobretudo nas línguas francesa e inglesa. Não é incomum ainda hoje encontramos livros relevantes na biblioteca da FGV-EAESP que foram solicitados por ele. Grande incentivador da leitura sem preconceitos e sem dogmas em nosso campo, Prestes Motta usava, dessa maneira, sua posição geográfica para inspirar-se em obras europeias e norte-americanas e difundi-las no Brasil de maneira articulada e híbrida...

"As organizações tendem a desenvolver mecanismos para a sua própria reprodução. Esses mecanismos, comuns nas instituições religiosas, militares e educacionais, são também encontrados nas empresas, e geralmente se associam a uma captação pela organização do ideal do ego de seus membros individuais"

"A conquista ideológica dos empregados pela empresa parece basear-se no fato de que esta oferece uma interpretação do real relativamente coerente com as práticas sociais dos indivíduos, fornecendo-lhes uma visão de mundo coerente com as aspirações"

"A opressão no mundo moderno tomou novas formas e generalizou-se. Da mesma maneira, a luta contra a opressão precisa ser multiforme, descobrindo modelos de organização diversos e mais eficazes que os da opressão, modelos opostos ao que o Japão, onde domina o ideal de homogeneidade e docilidade sociais, nos oferece"

  • Clegg, S. (1975). Power, rule, and domination: a critical and empirical understanding of power in sociological theory and organizational life London: Routledge & Paul.
  • Dalton, M. (1959). Man who manage New York: John Wiley.
  • Fonseca, M. (2002). Michel Foucault e o direito São Paulo: Max Limonad.
  • Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social São Paulo: Ideias & Letras.
  • Marx, K. (1978). Os pensadores: Karl Marx São Paulo: Abril.
  • Pagés, M; Bonetti, M; Gaulejac, V. (1987). O poder das organizações São Paulo: Atlas.
  • Paula, A. P. P. de; Maranhão, C. S; Barreto, R; Klechen, C. F. (2010). A tradição e a autonomia dos estudos organizacionais críticos no Brasil. RAE-Revista de Administração de Empresas, 50(1), 10-23.
  • Peters, G. (2009). Configurações e reconfigurações na teoria do habitus: um percurso. Anais do Congresso Brasileiro de Sociologia, Rio de Janeiro, 16.
  • Prestes Motta, F. C. (1974). Teoria geral da administração: uma introdução São Paulo: Pioneira.
  • Prestes Motta, F. C. (1978). A propósito da sociedade organizacional. RAE-Revista de Administração de Empresas, 18(4), 71-75.
  • Prestes Motta, F. C. (1979). Empresários e hegemonia política São Paulo: Brasiliense.
  • Prestes Motta, F. C. (1981) O Poder Disciplinar nas Organizações Formais. RAE-Revista de Administração de Empresas, 21(4), 33-41.
  • Prestes Motta, F. C. (1980). Burocracia e autogestão: proposta de Proudhon São Paulo: Brasiliense.
  • Prestes Motta, F. C. (1982a). Participação e cogestão: novas formas de administração São Paulo: Babel Cultural.
  • Prestes Motta, F. C. (1984a). As empresas e a transmissão da ideologia. RAE-Revista de Administração de Empresas, 24(3), 19-24.
  • Prestes Motta, F. C. (1984b). Organização, automação e alienação. RAE-Revista de Administração de Empresas, 24(3), 67-69.
  • Prestes Motta, F. C. (1986a). Organização e poder: empresa, estado e escola São Paulo: Atlas.
  • Prestes Motta, F. C. (1986b). Teoria das organizações: evolução e crítica São Paulo: Pioneira.
  • Prestes Motta, F. C; Freitas, M. E. (2000). Vida psíquica e organizações Rio de Janeiro: FGV.
  • Presthus, R. (1965). The organizational society: an analysis and a theory New York: Caravelle Edition, Vintage Books, A Division of Random House.
  • Tragtenberg, M. (1990). Memorial para o concurso professor titular, apresentado à FE/Unicamp.
  • Whyte, Jr, & William, H. (1956). The organization man New York: Doubleday and Company, Garden City.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2014
  • Data do Fascículo
    Jun 2014
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rae@fgv.br