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SEMPRE ELE! A NOVA FORMA DO CAPITALISMO

Lipovetsky, Gilles; Serroy, Jean. A ESTETIZAÇÃO DO MUNDO: Viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2015. 467 p.

Desde a Revolução Industrial, o sistema capitalista é inspiração para grande debate social. Como se não fosse obra do próprio homem, assistimos a protestos calorosos de inspiração filosófica, sociológica e econômica (para citar apenas algumas) sobre as virtudes e as excrecências do sistema que rege a ordem social mundial, amando-o ou odiando-o. Se alguns viram, na crise de 2008, o começo do fim, a volta por cima demonstra a sua força, ainda que tenhamos razões para contestar suas consequências excludentes e sua vocação concentradora de riqueza. Diante das inúmeras obras que buscam analisar o sistema do capital, o livro A Estetização do Mundo: Viver na Era do Capitalismo Artista, de Gillis Lipovetsky e Jean Serroy, apresenta um viés do que os autores chamam de capitalista artista e orienta-se por uma visão crítica ancorada na natureza estética que domina a produção, a distribuição e o consumo. Isso fica claro logo em sua página introdutória, quando os autores citam que o capitalismo "aparece como um rolo compressor que não respeita nenhuma tradição, não venera nenhum princípio superior, seja ele ético, cultural ou ecológico".

Os autores baseiam sua crítica na arte, a qual eles afirmam ter se deslocado em sua significação por quatro momentos. No primeiro, a arte estava ligada a um movimento ritualístico e sem pretensões estéticas. No segundo momento, tivemos a estetização aristocrática, quando a arte se voltava para atender a uma classe abastada e instruída. Em seguida, houve a moderna estetização do mundo, período em que há uma autonomia da arte, com liberdade de criação e sem contas a prestar, ainda que tenha sido preciso, segundo os autores, ser acompanhada por uma "dependência econômica das leis de mercado", tanto com a arte pura como com a arte utilitária. Finalmente, temos a era da arte transestética, momento no qual vemos o fim "das grandes oposições insuperáveis – arte contra indústria, cultura contra comércio, criação contra divertimento". É o momento da superabundância e da hiperarte, que se infiltra em todas as instâncias da vida cotidiana com a emergência da arte para o mercado, de acordo com os autores, com o "triunfo do fútil e do supérfluo".

O livro é estruturado com uma introdução, que discute as bases do capitalismo artístico conforme apresentado no parágrafo anterior, e mais seis capítulos. No primeiro capítulo, os autores apresentam as bases de compreensão do capitalismo artista, que utiliza a arte de maneira intensa como criador de valor quando interessa menos a qualidade da estética em si e mais os processos e as estratégias que sustentam uma nova estrutura de mercado. Essa inflação do domínio estético é ancorada no estilo como um novo imperativo econômico, em uma diversificação aguda dos produtos disponíveis, em uma escalada do efêmero que retroalimenta o sistema, em uma explosão de novos locais de arte e em um hiperconsumo estetizado.

O segundo capítulo apresenta as figuras inaugurais do capitalismo artista, desde a loja de departamentos aos modernos centros de compra, passando por distintos momentos e escopos, tais como a alta costura, a publicidade, o cinema e a música e as razões que tornaram possível o consumo em massa com um apelo crescente à estetização das mercadorias.

O capítulo seguinte foca o mundo do design e a trajetória de sua incorporação nas mercadorias, naquilo que os autores chamam da segunda fase do capitalismo artístico. Nesse momento, o design participa com mais força da identidade do produto e das estratégias de marketing, bem como há uma disseminação do design em vários sentidos. Isso torna possível, por exemplo, o design de ambiente, o web design, o game design e mesmo o design sustentável, instituindo uma nova síntese entre indústria e ecologia ou entre mercado e desenvolvimento sustentável, mas sempre em uma lógica de consumo exacerbada.

O capítulo quatro trata do império do espetáculo e do divertimento no qual os autores analisam a transformação da era do espetáculo em era do hiperespetáculo, momento em que o gigantismo, o choque visual, a provocação, a escalada da violência ou o uso multiplicado das celebridades tornam possível um consumo no qual se entrelaçam os domínios econômicos e culturais.

O capítulo cinco aborda o estágio estético do consumo e as condições socioespaciais que são criadas no favorecimento do hiperconsumo, mais precisamente, os ambientes urbanos, que são dotados de uma lógica consumista, transformando as cidades naquilo que Lipovetsky e Serroy chamam de "cidade franqueada", caracterizada por uma saturação de locais comerciais e voltada para o prazer e para o entretenimento, com foco no lúdico, no imaterial e no cultural, tendo nos arquitetos uma base para transformação do espaço urbano em algo que facilite o consumo estético. Nesse universo, há também espaço para o consumo gourmet e para o embelezamento de si, fazendo surgir o homo festivus e o homo aestheticus. O sexto e último capítulo não se apresenta propriamente como uma conclusão, mas traz um desfecho quando os autores discutem os limites da sociedade transestética, na qual a salvação não está mais na moral religiosa, e sim na plenitude pessoal. Lipovetsky e Serroy analisam as contradições da cultura hipermoderna em várias vertentes, tais como a medicalização da vida, os valores ecológicos e a performance. Especificamente nesse item, os autores focam um aspecto próximo aos interesses dos acadêmicos organizacionais ao afirmarem que, mesmo em um período de hiperconsumo estético, não há um mundo "cor-de-rosa" para as empresas e para seus profissionais, que estão pressionados pela intensificação da concorrência, das exigências dos ganhos de produtividade e resultados de curto prazo, o que leva a uma redução do quadro funcional com objetivos cada vez mais elevados, gerando um quadro que prejudica o bem-estar no trabalho e a qualidade de vida na empresa. Ainda assim, os autores dizem que não se trata de satanizar o capitalismo artista e o mundo do consumo, e até questionam qual sistema seria capaz de assegurar o bem-estar de bilhões de indivíduos no planeta. Nesse sentido, os teóricos afirmam que o consumo é bom como um meio, embora seja detestável como um fim.

Em um mundo hipermoderno, para usar o termo consagrado de Lipovetsky, filósofo e professor francês, e o crítico e docente Jean Serroy, ambos da Universidade de Grenoble, apresentam um livro para ajudar-nos na árdua missão de compreender a realidade contemporânea e seu sistema político-econômico hegemônico. Nesse caso, com um viés crítico sobre uma sociedade do consumo na qual o estilo, o design e a beleza se sobrepõem nas trocas econômicas, cada vez mais efêmeras e centradas no imaterial e no imaginário, certamente, mais difíceis de combater em suas consequências do que na lógica fordista da produção material.

Depois do período da Guerra Fria, não há mais um inimigo claro a combater. As ideologias perderam seus encantos, e parece que sobrou o consumo para dotar de sentido o vazio ideológico, ainda que muitos possam (com razão) lamentar tal desfecho. O livro de Lipovetsky e Serroy oferece uma lente de análise para melhor compreendermos o modelo de capitalismo vigente, pelo menos, até que ele se reinvente em busca de sua hegemonia perpétua. A temática não é novidade, o consumo e o seu incentivo crescente não são um fenômeno recente, o que temos de mais novo é o processo que potencializa o seu escopo e o seu alcance.

Para aqueles que estão na condução das organizações ou para aqueles que laboram na academia e buscam compreender essas mesmas instituições, o livro A Estetização do Mundo... é uma útil ferramenta para auxiliar a agir, a analisar ou, mais ainda, a criticar uma realidade na qual as organizações são protagonistas, em um tempo no qual o consumo é caracterizado pela efemeridade, pela obsolescência programada e pela espetacularização das relações econômico-sociais. Embora mais indicado para os acadêmicos, que problematizam a realidade, o livro também pode ser interessante para os gestores que se voltam para a operacionalização das ferramentas de gestão em busca da maximização instrumental. Para ambos os públicos, a obra oferece mais uma fonte para compreensão de como o sistema capitalista, em sua nova face, interfere nos diversos fenômenos sociais, políticos e econômicos que interessam aos teóricos das ciências sociais aplicadas. Enfim, para os defensores e os críticos do capitalismo, vale a leitura, mesmo existindo outras lentes de análise; ainda bem!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2015
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