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HUMOR NA ACADEMIA E PESQUISAS SOBRE HUMOR

Começamos o editorial da edição passada - o primeiro do ano - com uma breve brincadeira e fomos questionados por alguns colegas como se tivéssemos cometido alguma heresia: "O que é isso num editorial?". Bem, talvez não tenha sido uma boa piada, mas o questionamento foi ótimo e pede uma reflexão. Será que a academia precisa necessariamente ser inodora e incolor? Será que o humor não pode fazer parte da vida dos pesquisadores? Precisamos ser sisudos e sem graça? Bem, essa visão me parece desconsiderar as próprias pesquisas que mostram o benefício do humor para a criatividade, o bem-estar e a saúde e para melhores resultados nas organizações (Mesmer-Magnus, Glew, & Viswesvaran, 2012Mesmer-Magnus, J., Glew, D. J., & Viswesvaran, C. (2012). A meta-analysis of positive humour in the workplace. Journal of Managerial Psychology, 27(2), 155-190. doi:10.1108/02683941211199554
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). O humor está embebido nos próprios processos de trabalho (Korczynski, 2011Korczynski, M. (2011). The dialectical sense of humour: Routine joking in a taylorized factory. Organization Studies, 32(10), 1421-1439. doi:10.1177/0170840611421256
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) e constitui um elemento fundamental na construção das relações humanas. O humor facilita o trabalho (Rodrigues & Collison, 1995Rodrigues, S. B., & Collison, D. L. (1995). Having fun? Humour as resistance in Brazil. Organization Studies, 16(5), 739-768. doi:10.1177/017084069501600501
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), como nos informa o artigo seminal sobre o tema de humor na área de Estudos Organizacionais, escrito pela pesquisadora brasileira Suzana Braga Rodrigues. O humor tem importância para indivíduos, organizações e sociedade (Duarte & Duarte, 2016Duarte, S. R., & Duarte, L. C. R. de P. (2016). O humor nas organizações: Um estudo epistemológico. Revista Hospitalidade, 13(2), 336-357.), e até existe um periódico voltado exclusivamente para pesquisas sobre humor: The European Journal of Humour Research. Reforçando a positividade desse traço humano para o trabalho, os artigos de Romero e Cruthirds (2006)Romero, E. J., & Cruthirds, K. (2006). The use of humour in the workplace. Academy of Management Perspectives, 20(2). doi:10.5465/amp.2006.20591005
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e, no contexto brasileiro, Castro Silva e Brito (2014)Castro Silva, R.R.C.; Brito, M.J. (2014). Humor no espaço organizacional: Um estudo interpretativo em um call center. Revista Eletrônica de Gestão Organizacional, 12(2), 113-124. mostram que o humor tem impacto positivo na comunicação, na coesão grupal e na liderança. O humor faz parte do discurso organizacional (Koester, 2010Koester, A. (2010). Workplace discourse. London, UK: Continuum International Publishing Group.) e do espaço do trabalho (Chefneux, 2015Chefneux, G. (2015). Humour at work. Language and Dialogue, 5(3), 381-407. doi:10.1075/ld.5.3.02che
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; Vivona, 2014Vivona, B. D. (2014). "To laugh or not to laugh": Understanding the appropriateness of humour and joking in the workplace. The European Journal of Humour Research, 2(1). doi:10.7592/EJHR2014.2.1.vivona
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). Em síntese, o papel do humor na convivência no trabalho parece ser fundamental para o bom funcionamento das organizações.

Mas o humor não é apenas um aspecto positivo do comportamento humano. Pode carregar cinismo, sexismo e agressividade, além de ser o primeiro passo na direção do bullying e dos mais diversos preconceitos que cercam os humanos, como em questões de raça, etnia, gênero e idade, para listar as mais comuns (Irigaray, Saraiva, & Carrieri, 2010Irigaray, H. A. R., Saraiva, L. A. S., & Carrieri, A. de P. (2010). Humor e discriminação por orientação sexual no âmbito organizacional. Revista de Administração Contemporânea, 14(5), 890-906. doi:10.1590/S1415-65552010000500008
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; Korczynski, 2011Korczynski, M. (2011). The dialectical sense of humour: Routine joking in a taylorized factory. Organization Studies, 32(10), 1421-1439. doi:10.1177/0170840611421256
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; Westwood & Johnston, 2012Westwood, R., & Johnston, A. (2012). Reclaiming authentic selves: Control, resistive humour and identity work in the office. Organization, 19(6), 787-808. doi:10.1177/1350508411422583
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; Wood & Caldas, 2005Wood, T., Jr., & Caldas, M. P. (2005). Rindo do quê? Como consultores reagem ao humor crítico e à ironia sobre sua profissão. Organização e Sociedade, 12(34), 83-10. doi:10.1590/S1984-92302005000300006
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). O humor é uma forma de resistência que pode chegar à sabotagem (Alcadipani, Hassard, & Islam, 2018Alcadipani, R., Hassard, J., & Islam, G. (2018). -"I shot the sheriff": Irony, sarcasm and the changing nature of work­place resistance. Journal of Management Studies, 55(8), 1452-1487. doi:10.1111/joms.12356
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; Medeiros & Alcadipani, 2016Medeiros, C. R. de O., & Alcadipani, R. (2016). In the corporate backstage, the taste of revenge: Misbehaviour and humor as form of resistance and subversion. Revista de Administração (São Paulo), 51(2), 123-136. doi:10.5700/rausp1229
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) e, por vezes, a única que permite demonstrar insatisfação no trabalho (Rodrigues & Collinson, 1995Rodrigues, S. B., & Collison, D. L. (1995). Having fun? Humour as resistance in Brazil. Organization Studies, 16(5), 739-768. doi:10.1177/017084069501600501
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), além de expressar também formas de controle (Huber & Brown, 2017Huber, G., & Brown, A. (2017). Identity work, humour and disciplinary power. Organization Studies, 38(8), 1107-1126. doi:10.1177/0170840616677632
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) que podem provocar o riso (Valadão, Medeiros, & Teixeira, 2017Valadão, V. M., Medeiros, C. R. de O., & Teixeira, F. D. (2017). Luz, câmera, ação! Quando a resistência ao poder e controle organizacional provoca o riso. Revista Interdisciplinar de Gestão Social, 6(2), 75-92. doi:10.21714/2317-2428/2017v6n2p75-92
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). Com as novas tecnologias, o humor pode adquirir outras cores na internet, com novas estratégias de crítica a processos organizacionais (Furtado, Carrieri, & Bretas, 2014Furtado, R. A., Carrieri, A. de P., & Bretas, P. F. F. (2014). Humor na internet: Trabalhadores utilizam novas estratégias para protestar contra demissões e terceirizações. Revista de Administração (São Paulo), 49(1), 33-44. doi:10.5700/rausp1129
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).

O humor permeia o mundo do trabalho e das organizações (Westwood & Rhodes, 2007Westwood, R., & Rhodes, C. (Eds.). (2007). Humour, work and organization. London, UK: Routledge.) assim como as diversas esferas da vida. Mas, em pleno século XXI, que tipo de organização não permite humor? Organizações totais, como já nos mostrou Goffman (1974)Goffman, I. (1974). Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, SP: Perspectiva. em Manicômios, prisões e conventos? O humor pode ser apropriado ou inapropriado (Huber & Brown, 2017Huber, G., & Brown, A. (2017). Identity work, humour and disciplinary power. Organization Studies, 38(8), 1107-1126. doi:10.1177/0170840616677632
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; Vivona, 2014Vivona, B. D. (2014). "To laugh or not to laugh": Understanding the appropriateness of humour and joking in the workplace. The European Journal of Humour Research, 2(1). doi:10.7592/EJHR2014.2.1.vivona
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) mas, para além de sua avaliação, podemos nos perguntar qual o significado de sua ausência. Vale uma pesquisa para entender o papel do humor na academia.

Compõem esta edição quatro artigos: "O elo perdido entre o sistema de trabalho de alto desempenho e a percepção de política organizacional", escrito por Adnan Riaz, Saima Batool e Mohd Shamsuri Md Saad; "Relación entre la innovación y el desempeño: Impacto de la intensidad competitiva y el slack organizacional", por Diego Armando Marín-Idárraga e Juan Carlos Cuartas-Marín; "Impactos na vida social e familiar do trabalho por turnos na perspectiva dos familiares", por Daniela Costa e Isabel Soares Silva; e, por fim, "Cartografia estrutural para revisão de literatura: Revelando a estrutura subjacente de uma literatura por meio de um atlas bibliográfico", por Joaquim Heck e Ion Georgiou. A seção Perspectivas traz dois textos relevantes para área de Logística e Operações: "Ambidestria e coevolução em operações: Integrando teoria e prática" e "O dilema da criatividade", escritos por Ely Laureano Paiva e Elena Revilla, respectivamente. Já na seção Resenha, Luiz Alex Silva Saraiva, em "Do Agreste para o mundo", traz seu ponto de vista sobre a obra Filhos das feiras: Uma composição do campo de negócios agreste, de Márcio Sá.

Boa leitura!

  • Versão original

REFERÊNCIAS

  • Alcadipani, R., Hassard, J., & Islam, G. (2018). -"I shot the sheriff": Irony, sarcasm and the changing nature of work­place resistance. Journal of Management Studies, 55(8), 1452-1487. doi:10.1111/joms.12356
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Mar-Apr 2019
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