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BARBA, CABELO E BIGODE: CONSUMO E MASCULINIDADES EM BARBEARIAS

Barba, pelo y bigote: Consumo y masculinidades en barberías

RESUMO

Os homens vêm questionando estereótipos de gênero que instituíam o que deveriam ou não consumir. Um exemplo disso é o crescimento do mercado de serviços para esse público, como as novas barbearias. Assim, o objetivo deste trabalho é analisar de que modo as identidades masculinas são construídas, administradas e negociadas em espaços de barbearias. Como métodos, foram realizadas observação participante em barbearias e 17 entrevistas com consumidores e prestadores de serviços. Os resultados sugerem que os significados simbólicos sobre o que é ser masculino emergem em um processo dialético entre os clientes, prestadores de serviços e os espaços das barbearias, sendo utilizados ativamente para a construção e negociação de suas masculinidades. Esse processo acontece de três formas: i) distinção do universo feminino; ii) espaço de relaxamento e bem-estar, e iii) espaço de sociabilidade entre homens. O estudo é concluído apresentando as implicações acadêmicas e gerenciais.

PALAVRAS-CHAVE
Consumo; barbearias; masculinidades; identidade; gênero

RESUMEN

Los hombres están cuestionando los estereotipos de género que instituyeron lo que deberían o no consumir. Un ejemplo es el crecimiento del mercado de servicios para ese público, como las nuevas barberías. El objetivo de este estudio es analizar de qué modo las identidades masculinas se construyen, administran y negocian en espacios como las barberías. Como métodos, se realizaron observación participante en barberías y diecisiete entrevistas con consumidores y prestadores de servicios. Los resultados sugieren que los significados simbólicos sobre lo que es ser masculino emergen en un proceso dialéctico entre los clientes, los profesionales prestadores de servicios y los espacios de las barberías, utilizados activamente para la construcción y negociación de sus masculinidades. Ese proceso ocurre de tres formas: i) distinción del universo femenino; ii) espacio de relajación y bienestar, y iii) espacio de sociabilidad entre hombres. El estudio se concluye presentando las implicaciones académicas y gerenciales.

PALABRAS CLAVE
Consumo; barberías; masculinidades; identidad; género

ABSTRACT

Men have been questioning gender stereotypes that establish what they should or should not consume. One example is the increase in the offer of services for the audience at new barbershops. This study aims to analyze how masculinities are constructed, administrated, and negotiated in barbershops. Participant observations were conducted in barbershops as the method and 17 consumers and market agents were interviewed. The study's findings suggest that the symbolic meanings of what it is to be masculine emerge in a dialectic process among consumers, market agents, and barbershops. These symbolic meanings are used to actively build and negotiate their masculinities. This process takes place in three ways: i) differentiation from the female world; ii) a space for relaxation and wellbeing; and iii) a space for men to socialize. The study also presents the academic and managerial implications of the findings.

KEYWORDS
Consumption; barbershops; masculinities; identity; gender

INTRODUÇÃO

Entre as inúmeras influências sob a constituição das masculinidades, uma das mais significativas têm sido a crescente participação e diversificação dos homens na esfera do consumo. Segundo Ourahmoune (2016)Ourahmoune, N. (2016). Luxury retail environments and changing masculine sociocultural norms. Journal of Applied Business Research, 32(3), 695-706. doi: 10.19030/jabr.v32i3.9650.
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, na atualidade, os homens estão consumindo produtos e serviços que, até pouco tempo, eram negados a eles, pelo fato de serem considerados femininos, como cosméticos, "lingeries" e itens decorativos.

Segundo um levantamento realizado pela Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC, 2016Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos. (2016). Segmento resiste à retração do setor brasileiro de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos. Recuperado de https://www.abihpec.org.br/2016/08/mercado-masculino-de-hppc-segue-em-crescimento/. Acesso: dez. 2017
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), os homens brasileiros vêm, progressivamente, questionando convenções sociais e estereótipos de gênero que instituíam o que deveriam consumir pelo fato de serem "machos". No mercado brasileiro de higiene e beleza voltado para o público masculino, os produtos e serviços associados aos cuidados com a barba e o cabelo foram os que mais se destacaram quanto a crescimento nos últimos anos (ABIHPEC, 2016Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos. (2016). Segmento resiste à retração do setor brasileiro de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos. Recuperado de https://www.abihpec.org.br/2016/08/mercado-masculino-de-hppc-segue-em-crescimento/. Acesso: dez. 2017
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; Datamonitor Consumer, 2015Datamonitor Consumer. (2015). It's all about the facial hair: Trends in the men's grooming. Recuperado de http://www.gcimagazine.com/marketstrends/consumers/men/Its-All-About-the-Facial-Hair-Trends-in-the-Mens-Grooming-295074031
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).

No Brasil, um dos principais canais de varejo que estimulam o consumo de produtos e serviços de beleza entre homens são as denominadas "barbershops", um tipo novo de barbearia que combina o visual retrô das barbearias antigas com tratamentos modernos e serviços adicionais, como a oferta de bebidas alcoólicas e entretenimentos (ABIHPEC, 2017Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (2017, Outubro). Mercado masculino avança 94% em 5 anos. Recuperado de https://abihpec.org.br/2017/10/mercado-masculino-avanca-94-em-5-anos/
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). No período de 2008 a 2014, houve um aumento de 100% no número de barbearias no mercado brasileiro, e a previsão é que esse crescimento se mantenha até 2019 (ABIHPEC, 2016Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos. (2016). Segmento resiste à retração do setor brasileiro de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos. Recuperado de https://www.abihpec.org.br/2016/08/mercado-masculino-de-hppc-segue-em-crescimento/. Acesso: dez. 2017
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).

Por serem ambientes de circulação exclusiva de homens, é possível pensar as barbearias como espaços onde masculinidades são projetadas e negociadas. No Brasil, assim como em outras sociedades latino-americanas, é possível perceber uma ordem preestabelecida de masculinidade, porém a compreensão dessa ordem é complexa (Gutmann, 2003Gutmann, M. (2003). Changing Men and Masculinities in Latin America. Durham, UK: Duke University Press). Isso se deve, principalmente, ao fato de o gênero ser tomado, erroneamente, como algo dado, intimamente atrelado e determinado pelas características biológicas dos indivíduos (Connell, 2006Connell, R. (2006). Gender, men, and masculinities. Quality of human resources: Disadvantaged people. Oxford, USA: Unesco/EOLSS Publishers.).

Dessa forma, prescrições sociais a respeito do que é ou como deve se comportar um homem, uma vez naturalizadas no seio de uma sociedade, são responsáveis por consolidar um determinado padrão de conduta considerado masculino, fixando, assim, um modelo hegemônico de gênero. No contexto brasileiro, o modelo de masculinidade hegemônica exige dos indivíduos uma eterna vigilância das emoções, dos gestos e do próprio corpo. Ademais, nessa sociedade, "ser homem" não é apenas ter um corpo de homem, mas mostrar-se como "masculino" e "macho" em todos os momentos (DaMatta, 2010DaMatta, R. (2010). Tem pente aí? Reflexões sobre a identidade masculina. Revista Enfoques, 9(1), 134-51. Recuperado de http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br/ojs/index.php/enfoques/article/view/104/96
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).

A relação entre consumo e masculinidades tem sido objeto de alguns estudos na área de "Marketing", em particular dos estudos na perspectiva da Teoria da Cultura de Consumo (Arnould & Thompson, 2005Arnould, E. J., & Thompson, C. J. (2005). Consumer Culture Theory (CCT): Twenty years of research. Journal of Consumer Research, 31(4), 868-82. doi: 10.1086/426626
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), que tem um maior foco na influência cultural sob os processos de consumo, como o de Holt e Thompson (2004)Holt, D. B., & Thompson, C. J. (2004). Man-of-action heroes: The pursuit of heroic masculinity in everyday consumption. Journal of Consumer Research, 31(2), 425-440. doi: 10.1086/422120
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sobre os tipos e ideologias de masculinidades norte-americanas; o de Moisio e Beruschashvili (2016)Moisio, R., & Beruchashvili, M. (2016). Mancaves and masculinity. Journal of Consumer Culture, 16(3), 656-76. doi: 10.1177/1469540514553712
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sobre o consumo de espaços masculinos na esfera doméstica norte-americana; o de Fontes, Borelli e Casotti (2012)Fontes, O. A., Borelli, F. C., & Casotti, L. M. (2012). Como ser homem e ser belo? Um estudo exploratório sobre a relação entre masculinidade e o consumo de beleza. Revista Eletrônica de Administração, 18(2), 400-32. doi: 10.1590/S1413-23112012000200005
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sobre o consumo masculino de produtos e serviços de beleza no Brasil; e o de Pereira e Ayrosa (2012)Pereira, S. J. N., & Ayrosa, E. A. T. (2012). Corpos consumidos: Cultura de consumo gay carioca. Revista Organizações & Sociedade, 19(61), 295-313. doi: 10.1590/S1984-92302012000200007
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sobre a construção e expressão de masculinidades entre consumidores gays cariocas.

Entretanto, pouco se têm explorado acerca da influência dos espaços públicos de consumo considerados masculinos sobre a construção, expressão e administração das identidades de gênero dos consumidores. Assim, este estudo vem preencher essa lacuna ao olhar para um ambiente de consumo tradicionalmente de circulação do masculino e as tensões e negociações identitárias que ali ocorrem. Do mesmo modo, restam lacunas na literatura acerca da ressignificação e apropriação simbólica de espaços públicos de consumo, a partir da configuração e reconfiguração de significados e significações para as relações aparentemente duais, como o masculino e o feminino, o público e o privado.

Diante desse cenário, o presente trabalho busca analisar como as identidades de gênero masculinas são construídas, administradas e negociadas em espaços de barbearias. Para tal, este trabalho está dividido em quatro partes. Na primeira, são apresentadas as bases teóricas que apoiaram o estudo. A segunda seção trata da metodologia que conduziu essa pesquisa e, em seguida, são discutidas a análise e interpretação dos achados. Por fim, apresentamos as considerações finais do estudo, juntamente com suas implicações gerenciais e sugestões para pesquisas futuras.

BASE TEÓRICA

Esta seção está organizada em três partes: a primeira traz o conceito de identidade e sua construção e expressão a partir do consumo; a segunda refere-se à relação entre consumo e identidade de gênero, especificamente a masculina, e, por fim, são pontuadas reflexões sobre espaços masculinos de consumo e materialidade em consumo.

Consumo e identidade

Entende-se identidade como "um conjunto de critérios de definição de um indivíduo e um sentimento interno composto de diferentes sensações, tais como o sentimento de unidade, de coerência, de pertencimento, de valor, de autonomia e de confiança" (Medeiros, 2008Medeiros, J. L. (2008) Identidades em movimento: Nação, cyberespaço, ambientalismo e religião no Brasil. Porto Alegre, RS: Sulina., p. 34). Por ser elaborado dentro de contextos sociais, esse senso de definição de si expressa representações, orienta escolhas e determina posições sociais para o indivíduo. A importância do contexto social na construção identitária é percebida também na criação de diferenças e oposições em relação ao outro, pois a definição de quem se é envolve também a definição de quem não se é (Medeiros, 2008Medeiros, J. L. (2008) Identidades em movimento: Nação, cyberespaço, ambientalismo e religião no Brasil. Porto Alegre, RS: Sulina.). Assim, a identidade assume função de identificação, pertencimento e diferenciação, em um processo de troca e negociação constante entre o eu e o outro.

Entre as inúmeras identidades que o indivíduo pode ter, está a identidade de gênero, que é o modo pelo qual a pessoa se identifica ou se autodetermina como masculino ou feminino, como ambos, nenhum ou uma combinação desses (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2014Fundo das Nações Unidas para a Infância. (2014). Eliminando a discriminação baseada em orientação sexual e/ou identidade de gênero. Unicef. Recuperado de http://www.unicef.org/brazil/pt/resources_30432.htm. Acesso: mai. 2016
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). É importante perceber que a identidade de gênero pode ou não estar de acordo com a identidade sexual do indivíduo, ou seja, com suas características biológicas. Do mesmo modo, pode ou não concordar com as representações de gêneros instituídas por normas sociais. Nesse projeto identitário, o indivíduo passa de uma identidade socialmente atribuída para uma identidade construída, não sendo mais um receptáculo passivo de identidades impostas, mas o criador de suas próprias identidades (Medeiros, 2008Medeiros, J. L. (2008) Identidades em movimento: Nação, cyberespaço, ambientalismo e religião no Brasil. Porto Alegre, RS: Sulina.).

Nesse sentido, é importante notar que os indivíduos e grupos podem se identificar e se distinguir por meio do que possuem e consomem. De acordo com Belk (1998)Belk, R. W. (1998). Possessions and the extend self. Journal of Consumer Research, 15, 139-68. doi: 10.1086/209154
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, as construções identitárias do sujeito por meio do consumo assemelham-se a narrativas pelas quais esse define a si próprio como indivíduo, membro de grupos e de uma sociedade. O que uma pessoa consome ajuda na construção de sua identidade, classificando-a e permitindo-lhe interagir em determinados grupos sociais. Alguns trabalhos demonstraram essa relação entre consumo e identidade, como o de Kozinets (2001)Kozinets, R. V. (2001). Utopian enterprise: Articulating the meaning of Star Trek's culture of consumption. Journal of Consumer Research, 28, 67-89. doi: 10.1086/321948
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, que investigou como os fãs da série "Star Trek" constroem uma identidade própria para se distinguirem socialmente, demarcando seus interesses e valores a partir do consumo de textos, imagens e objetos dessa série. Similarmente, Scaraboto e Fisher (2013)Scaraboto, D., & Fischer, E. (2013). Frustrated fatshionistas: An institutional theory perspective on consumer quests for greater choice in mainstream markets. Journal of Consumer Research, 39(6), 1234-57. doi: 10.1086/668298
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estudaram como consumidoras e blogueiras norteamericanas "plus-size", marginalizadas pelo mercado, constroem uma identidade coletiva e se autointitulam "fatshionistas" para reivindicar do mercado dominante o fornecimento de mais opções de roupas da moda em tamanho "plus-size".

Em outras palavras, a cultura de consumo atua como fonte de recursos míticos e simbólicos que consumidores utilizam na construção de suas narrativas identitárias (Arnould & Thompson, 2005Arnould, E. J., & Thompson, C. J. (2005). Consumer Culture Theory (CCT): Twenty years of research. Journal of Consumer Research, 31(4), 868-82. doi: 10.1086/426626
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). Ou seja, o sujeito utiliza os aspectos simbólicos e culturais daquilo que consome para apoiar suas intenções de expressão e representação do "eu" (Slater, 2002Slater, D. (2002). Cultura, consumo e modernidade. São Paulo, SP: Nobel.). A escolha por consumir determinados elementos simbólicos e culturais entre os inúmeros que circulam de modo proeminente em uma sociedade, em consonância com as narrativas pessoais, auxiliam os consumidores na construção e expressão de suas identidades. Nesse sentido, autores como Holt e Thompson (2004)Holt, D. B., & Thompson, C. J. (2004). Man-of-action heroes: The pursuit of heroic masculinity in everyday consumption. Journal of Consumer Research, 31(2), 425-440. doi: 10.1086/422120
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e Pereira e Ayrosa (2012)Pereira, S. J. N., & Ayrosa, E. A. T. (2012). Corpos consumidos: Cultura de consumo gay carioca. Revista Organizações & Sociedade, 19(61), 295-313. doi: 10.1590/S1984-92302012000200007
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defendem que o consumo aponta preferências e priorização de determinados elementos e valores a outros, os quais, dentro de um contexto cultural, ajudam a desenhar e comunicar identidades de gênero masculinas.

Consumo e masculinidade

Como identidade de gênero, "masculinidade é a maneira como os homens se comportam; é a maneira como os homens pensam e sentem sobre si mesmos" (Murray, 1993Murray, F. (1993). A separate reality: Science, technology and masculinity. In E. Green, J. Owen & D. Pain (Eds.), Gendered by design: Information technology and office systems (pp. 64-80). London, UK: Taylor&Francis., p. 65). São construções socioculturais que se dão de acordo com símbolos não femininos (Alsop, Fitzsimmons, & Lennon, 2002Alsop, R., Fitzsimons, A., & Lennon, K. (2002). Theorizing gender. Cambridge, USA: Polity.), sendo, portanto, contextuais, múltiplas e hierárquicas.

Connell (2006)Connell, R. (2006). Gender, men, and masculinities. Quality of human resources: Disadvantaged people. Oxford, USA: Unesco/EOLSS Publishers. aponta que as prescrições sociais a respeito do que é ou como deve se comportar um homem, uma vez naturalizadas no seio da sociedade, são responsáveis por consolidar um determinado padrão de conduta de masculinidade. Assim, em todas as sociedades, existe uma concepção de masculinidade hegemônica ou ideal, ou seja, um modelo de referência para o que é ser masculino, que dita a "forma mais honrada de ser um homem", instituindo uma condição masculina como dominante e superior às demais (Connell & Messerschimidt, 2013Connell, R., & Messerschmidt, J. W. (2013). Hegemonic masculinity: Rethinking the concept. Gender & Society, 19(6), 829-859. doi: 10.1177/0891243205278639
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, p. 245).

No contexto brasileiro, DaMatta (2010)DaMatta, R. (2010). Tem pente aí? Reflexões sobre a identidade masculina. Revista Enfoques, 9(1), 134-51. Recuperado de http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br/ojs/index.php/enfoques/article/view/104/96
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defende que a sociedade institui e exige que aquele que nasce homem se comporte como tal, com hombridade, consistência, firmeza e certa dureza, realizando sistematicamente certos gestos e mostrando certos hábitos, gostos e atitudes. Inclusive o consumo desse indivíduo determina a ausência ou a deficiência de sua masculinidade, quando, por exemplo, se desvia "daquilo que deveria ser camisa, calça, meia, gravata, relógio ou sapato de homem [grifo do autor]" (DaMatta, 2010DaMatta, R. (2010). Tem pente aí? Reflexões sobre a identidade masculina. Revista Enfoques, 9(1), 134-51. Recuperado de http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br/ojs/index.php/enfoques/article/view/104/96
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, p. 141). Esse modelo hegemônico garante representações de masculinidade, encerrando-se em formas particulares de condutas. Contudo, a maioria dos homens e meninos não vive de acordo com esses ideais (Connell & Messerschimidt, 2013Connell, R., & Messerschmidt, J. W. (2013). Hegemonic masculinity: Rethinking the concept. Gender & Society, 19(6), 829-859. doi: 10.1177/0891243205278639
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).

Na sociedade industrializada, que colaborou para a perda de postos de trabalho, a concorrência feminina e as crises da economia mundial, o homem foi assumindo formas diversas de experienciar a sua masculinidade (Connell, 2006Connell, R. (2006). Gender, men, and masculinities. Quality of human resources: Disadvantaged people. Oxford, USA: Unesco/EOLSS Publishers.). Diante das variadas formas de experiências e vivências masculinas e femininas e os novos cruzamentos sociais, sob variáveis de etnia, classe social, identidades nacionais, subjetividades, gêneros e sexualidades, não cabe mais falar em masculinidade no singular, mas, sim, em masculinidades. Assim, diferentes pressupostos de representação do masculino são possíveis e, de modo geral, sempre existirá "mais de uma configuração para qualquer ordem de gênero em uma sociedade" (Connell, 2006Connell, R. (2006). Gender, men, and masculinities. Quality of human resources: Disadvantaged people. Oxford, USA: Unesco/EOLSS Publishers., p. 188), não havendo, portanto, uma masculinidade que seja absoluta ou verdadeira.

Nas últimas décadas, uma das influências mais significativas sob as masculinidades tem sido a crescente participação dos homens no consumo e a diversificação daquilo que consomem (Ourahmoune, 2016Ourahmoune, N. (2016). Luxury retail environments and changing masculine sociocultural norms. Journal of Applied Business Research, 32(3), 695-706. doi: 10.19030/jabr.v32i3.9650.
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). Embora historicamente os homens tenham sido pouco estudados como consumidores (Östberg, 2012Östberg, J. (2012). Masculine self-presentation. In A. Ruvio, & R. W. Belk (Eds.), The Routledge Companion to identity and consumption (pp. 129-36). London, UK: Routledge.), pesquisas buscam demonstrar o processo de construção, expressão e reforço das masculinidades por meio do consumo. No contexto brasileiro, por exemplo, Fontes et al. (2012)Fontes, O. A., Borelli, F. C., & Casotti, L. M. (2012). Como ser homem e ser belo? Um estudo exploratório sobre a relação entre masculinidade e o consumo de beleza. Revista Eletrônica de Administração, 18(2), 400-32. doi: 10.1590/S1413-23112012000200005
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descobriram que os homens utilizam elementos culturalmente associados à esfera feminina como balizadores e referências para determinação de quais práticas de beleza e vaidade lhes são permitidas. Ao estudarem os "gays" masculinos cariocas, Pereira e Ayrosa (2012)Pereira, S. J. N., & Ayrosa, E. A. T. (2012). Corpos consumidos: Cultura de consumo gay carioca. Revista Organizações & Sociedade, 19(61), 295-313. doi: 10.1590/S1984-92302012000200007
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concluíram que esses utilizam os significados simbólicos do consumo de modo a se diferenciarem de padrões heteronormativos, ajudando a comunicar ou sinalizar a sua identidade de gênero para os seus pares, a ocultar sua homossexualidade ou até mesmo a enfrentar o estereótipo da anormalidade e o estigma associados a essa identidade.

No contexto norte-americano, Holt e Thompson (2004)Holt, D. B., & Thompson, C. J. (2004). Man-of-action heroes: The pursuit of heroic masculinity in everyday consumption. Journal of Consumer Research, 31(2), 425-440. doi: 10.1086/422120
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falam sobre como o consumo dos homens norte-americanos constrói três modelos distintos de masculinidade: a de pai de família, a rebelde e a heroica. Esses autores explicam que, por enfatizar a respeitabilidade e a realização organizada das virtudes cívicas, a masculinidade de pai de família será determinada por um consumo que prioriza valores familiares e coletivos. Do outro lado, o indivíduo que não limita seu consumo diante de pressões sociais, enfatizando a rebelião e priorizando a autoafirmação, aparece como dono de uma masculinidade rebelde. Já a terceira masculinidade, a heroica, é um modelo idealizado de masculinidade que resolve as fraquezas inerentes aos dois modelos anteriores (Holt & Thompson, 2004Holt, D. B., & Thompson, C. J. (2004). Man-of-action heroes: The pursuit of heroic masculinity in everyday consumption. Journal of Consumer Research, 31(2), 425-440. doi: 10.1086/422120
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).

Nesse âmbito, espaços tradicionalmente considerados masculinos têm sido estudados tanto em ambientes domésticos como públicos. Um exemplo é o trabalho de Moisio e Beruchashvili (2016)Moisio, R., & Beruchashvili, M. (2016). Mancaves and masculinity. Journal of Consumer Culture, 16(3), 656-76. doi: 10.1177/1469540514553712
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, que mostra como o consumo de mancaves, espaços masculinos em ambientes domésticos, como porões, oficinas, garagens e churrasqueiras, funcionam como refúgios para homens norte-americanos, ajudando na revitalização e fortalecimento de suas identidades em relação ao trabalho, à família e a outros homens. Já Östberg (2012)Östberg, J. (2012). Masculine self-presentation. In A. Ruvio, & R. W. Belk (Eds.), The Routledge Companion to identity and consumption (pp. 129-36). London, UK: Routledge. reforça esses achados ao apontar o envolvimento de homens norte-americanos em atividades domésticas do tipo faça você mesmo (DIY) ou na estruturação de mancaves, como tentativa de expressar um projeto perfeito de masculinidade que permite assumir o controle sob o espaço feminino e, ao mesmo tempo, produzir objetos e espaços para si mesmos, em vez de apenas consumir o que a sociedade de consumo tem a oferecer. Finalmente, Jardim (1992)Jardim, D. F. (1992). Espaço social e autosegregação entre homens: Gostos, sonoridades e masculinidades. Cadernos de Antropologia, 7, 28-41. adiciona a essa discussão a apropriação que homens fazem de espaços públicos socialmente atribuídos ao gênero masculino, tais como bares e barbearias, para construir seus territórios privados de masculinidade.

Espaços masculinos de consumo

Fukelman e Lima (2012)Fukelman, C., & Lima, P. S. (2012). Ofícios ambulantes. Belo Horizonte, MG: Museu de Artes & Ofício - MAO. Recuperado de http://www.mao.org.br/
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explicam que as barbearias sempre assumiram a qualidade de espaço de circulação do masculino, por oferecem serviços que envolvem específica e unicamente o corte de cabelo masculino e o feitio de barba. Desse modo, pode-se dizer que os espaços das barbearias, há muito, remetem a noções de espaços masculinos de sociabilidade, na medida em que se caracterizam como lugares de encontros e interações entre homens. Ou seja, a análise do consumo em espaços de barbearia envolve não única e exclusivamente a observação da prestação de serviços, mas o conjunto de relacionamentos e interações entre sujeitos-sujeitos e sujeitos-objetos que ali ocorre.

Woodward (2011)Woodward, I. (2011). Towards an object-relations theory of consumerism: The aesthetics of desire and the unfolding materiality of social life. Journal of Consumer Culture, 11(3), 366-384. doi: 10.1177/1469540511417997
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argumenta que, nas interações entre sujeito-objeto, há uma lógica de transferência de símbolos, significados, valores, imaginação, emoções e desejos. De um lado, as pessoas projetam significados particulares, fantasias e desejos nos objetos e, do outro, os objetos são tomados, usados, elaborados, tocados e, eventualmente, esgotados pelas pessoas. Para explicar essa troca ativa de significados no consumo, Miller (2013)Miller, D. (2013). Trecos, troços e coisas: Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro, RJ: Editora Zahar. traz o conceito de objetivação para descrever o processo dialético pelo qual consumidores e objetos são coconstitutivos a partir de sua interação, de modo tal que as fronteiras entre sujeitos e objetos, mais do que difusas, tornam-se inexistentes. Ao final, os resultados da interação sujeito-objeto, se alinhados e coerentes às narrativas pessoais do indivíduo, materializam-se e são incorporados aos projetos de identidade do consumidor, e as formas culturais são substancializadas e materializadas nos objetos (Ferreira & Scaraboto, 2016Ferreira, M. C., & Scaraboto, D. (2016) "My plastic dreams": Towards an extended understanding of materiality and the shaping of consumer identities. Journal of Business Research, 69, 191-207. doi: 10.1016/j.jbusres.2015.07.032
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).

Esse espaço de interação entre sujeito-objeto aparece como um "espaço temporário de possibilidade cultural e fantasias", por meio do qual os consumidores dão sentido e atrelam emoções aos bens e práticas de consumo (Woodward, 2011Woodward, I. (2011). Towards an object-relations theory of consumerism: The aesthetics of desire and the unfolding materiality of social life. Journal of Consumer Culture, 11(3), 366-384. doi: 10.1177/1469540511417997
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, p. 375). Diante desse raciocínio, é possível pensar o espaço de uma barbearia como aquele de fantasia, onde masculinidades são projetadas e negociadas.

METODOLOGIA

Para compreender as interações sociais entre os indivíduos nos ambientes de consumo analisados, adotou-se a etnografia como método que se caracteriza por ser tanto descritivo quanto interpretativo. Descritivo porque descreve minuciosamente o fenômeno a que se propõe analisar, e interpretativo porque busca entender o processo de construção de significados por parte do grupo. Como afirmam Hopkinson e Hogg (2006)Hopkinson, G. C., & Hogg, M. K. (2006). Stories: How they are used and produced in market(ing) research. Handbook of qualitative research methods in marketing (pp. 156-174). Cheltenham, UK: Edward Elgar.: "o interpretativista se preocupa em entender a realidade pela perspectiva dos sujeitos estudados num contexto específico, e explorar os significados com os quais eles constroem o mundo onde vivem" (p. 157). Dessa forma, a coleta de dados foi feita com base em observações não participantes durante nove meses em barbearias nas cidades do Rio de Janeiro e Volta Redonda, aliadas a entrevistas em profundidade (McCracken, 1988McCracken, G. (1988). The long interview. California, USA: Sage Publications.) com consumidores, barbeiros e donos de barbearias.

Foram escolhidas seis barbearias, em diferentes bairros dessas cidades, sob o conceito de "barbershops", ou seja, que combinavam o visual retrô das barbearias antigas com a oferta de serviços adicionais ao corte de cabelo e feitio de barba, como opções de entretenimentos para o público masculino (ABIHPEC, 2017Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (2017, Outubro). Mercado masculino avança 94% em 5 anos. Recuperado de https://abihpec.org.br/2017/10/mercado-masculino-avanca-94-em-5-anos/
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). Durante as observações em campo, o acompanhamento e a convivência de um dos pesquisadores com o público masculino nesses espaços foram registrados em notas de campo, fotografias e entrevistas formais e informais. A cultura material dessas barbearias, bem como as interações entre consumidores, barbeiros e os elementos presentes nesses espaços, foi igualmente registrada.

Em adição, foram entrevistados 12 consumidores desses estabelecimentos, três barbeiros e dois donos de barbearias. O Quadro 1 resume o perfil desses consumidores. O perfil dos barbeiros e empresários como agentes de mercado está sumarizado no Quadro 2. Quaisquer informações que pudessem identificar os entrevistados foram trocadas, sem modificar o teor ou sentido das informações.

Quadro 1
Perfil dos consumidores entrevistados
Quadro 2
Perfil dos agentes de mercado entrevistados

Essas entrevistas tiveram a duração média de 70 minutos e foram gravadas, sendo, posteriormente, transcritas integralmente, sem correções ou qualquer comentário adicional. As transcrições, bem como as notas de campo, foram, então, submetidas à técnica de análise de conteúdo, como ferramental que permitiu identificar regularidades condicionadas a um determinado contexto social (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. São Paulo, SP: Edições 70.). A atividade de comparação sistêmica entre os conceitos teóricos e o "corpus" de análise originou um referencial de codificação por meio de unidades de registro, possibilitando a reunião de grupos de elementos com características comuns. Essas unidades de registro foram, então, organizadas em termos de similaridade, incorrendo na categorização dos dados que representam os significados do consumo em espaços de barbearias para os entrevistados.

ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

A análise dos dados sugere que os significados simbólicos e culturais sobre o que é ser masculino para os sujeitos de pesquisa emergem em um processo dialético entre os entrevistados, agentes de mercado e os espaços das barbearias, sendo utilizados ativamente para a construção, administração e negociação de suas masculinidades. Desse modo, esta seção está dividida em duas partes. A primeira apresenta os significados que o consumo em espaços de barbearias possui para os entrevistados, enquanto a segunda apresenta o processo dialético de construção, administração e negociação das identidades masculinas desses entrevistados.

Consumo em espaços de barbearias

A análise dos dados provenientes das entrevistas e notas de campo apontou que o consumo em barbearias aparece associado a significados de: (i) distinção do universo feminino; (ii) espaço de relaxamento e bem-estar, e (iii) espaço de sociabilidade entre homens. Esses significados não estão totalmente distintos uns dos outros, se confundido, se entrelaçando e se mesclando diversas vezes nos dados analisados.

Distinção do universo feminino

A análise dos dados indica que os entrevistados vão à barbearia com o intuito de buscar e manter uma boa aparência, de se cuidar e exercer sua vaidade. Contudo, para eles, esse exercício de vaidade deve acontecer de maneira privada, discreta e com cautela, pois o excesso de vaidade traz traços de feminilidade ao homem, o que pode representar uma ameaça a sua masculinidade. Vale destacar que, tanto para os clientes como para os barbeiros ou empresários do ramo, essa negociação do masculino surge na análise dos dados. Tal fato é ilustrado na fala abaixo de um dos barbeiros entrevistados, que argumenta que clientes homens não se sentiam à vontade em ambientes de consumo unissex, como os de salões de beleza.

Aqui o homem não quer saber de tratamento capilar. Ele [o cliente] quer tomar uma cerveja, conversar sobre futebol e cortar o cabelo. Às vezes ele nem quer saber se o cabelo vai ficar bom. Ele quer é beber a cerveja dele ali e sair feliz da vida. [...] Eu vejo muita diferença. Eu sentia que eles não estavam se sentindo muito bem ali [no salão unissex]. Normalmente, eles ficavam apreensivos [...] Não queriam sentar bem na porta do salão, onde todo mundo que passasse pudesse ver eles ali. Eles iam sempre pra parte de trás do salão. [...] Já na barbearia não, eles querem ficar ali na frente, querem que todo mundo veja que eles estão ali, tipo uma vitrine, tomando a cerveja, folheando a revista, conversando, vendo futebol. (Augusto, barbeiro, 28, solteiro)

Fica claro no trecho acima que, enquanto no salão unissex a vaidade masculina tem que ser escondida e disfarçada, nas barbearias ela pode ser exposta livremente. Aliando a isso, o esforço em distinguir o que seria um ambiente adequado para homens está baseado na divisão dicotômica entre dois universos, vistos pelos entrevistados, como opostos, diferentes e independentes: "o sem frescura", típico das barbearias e mais masculinos, e o "com frescura", característico dos salões unissex e, consequentemente, pertencentes ao universo feminino. A marcação de um ambiente "sem cheiro de esmalte, sem papo de novela" é declarada em uma bolacha de chope de uma das barbearias analisadas, promulgando a temática masculina e afastando referências ou práticas feminilizantes. Similarmente, as cores e materiais nesses espaços, as revistas, a oferta de cerveja e a presença predominante de homens são utilizadas pelos entrevistados para marcar a diferenças entre os gêneros masculino e feminino, ajudando a comunicar a quem é permitido circular em barbearias:

Acho que o fato de ser tudo marrom e preto. Acho que isso é uma coisa masculina, sem ser o azul e verde. As revistas que estão disponíveis lá. Tem "Playboy", revista de carro, de futebol, jornal, revista de notícia também. Essas coisas remetem a homem. O tijolo cru na parede é algo bruto, que lembra o homem. As instalações elétricas aparentes também lembram trabalhos de eletricista, pedreiro, que são profissões masculinas. Do mesmo jeito que a madeira lembra marceneiro, uma profissão masculina também. Tem a iluminação que é indireta, que é o oposto da iluminação dos salões de mulher. Tem também as cervejas artesanais, importadas, o chope que eles dão de cortesia quando você vai fazer alguma coisa lá. (João, 33, solteiro)

Esse ponto vai ao encontro dos achados de Fontes et al. (2012)Fontes, O. A., Borelli, F. C., & Casotti, L. M. (2012). Como ser homem e ser belo? Um estudo exploratório sobre a relação entre masculinidade e o consumo de beleza. Revista Eletrônica de Administração, 18(2), 400-32. doi: 10.1590/S1413-23112012000200005
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, quando afirmam que o consumo feminino da beleza é utilizado como ponto de referência para a definição das fronteiras entre o que é "permitido" ou "proibido" em relação à vaidade masculina. Essa transferência, de modo devidamente ressignificado, de bens e rituais da cultura feminina para o universo masculino, redefinindo significados simbólicos de gênero e endossando uma mensagem baseada na virilidade masculina, legitima as barbearias como um espaço ideal e seguro para o consumo masculino da vaidade e de cuidados estéticos. Isso ajuda a tranquilizar seus frequentadores quanto ao contágio de suas identidades por traços de feminilidade. O ambiente de uma barbearia torna-se, assim, um lugar de contrastes e marcações das diferenças entre o masculino e o feminino, como ilustra a citação a seguir:

Além de só ter homem (a barbearia), isso é também um estímulo para atrair mais homem, não atrair mulher nenhuma, as coisas são muito simples. É totalmente masculino. Lá o ambiente é tão masculino que é proibido entrar mulher. Você tem o chope e também revistas de mulher pelada, disponível junto com jornais, pros caras ficarem olhando lá. Ali mulher não entra de maneira nenhuma. (Roberto, 45, solteiro)

Os significados culturais atribuídos aos serviços prestados e aos objetos nos espaços de barbearia analisados ajudam a comunicar a quem convém ou a quem é permitido circular nesse ambiente. Assim, esses espaços de consumo recebem o rótulo de "lugar de homem", onde são oferecidos tratamentos "sem frescura" e "não femininos", representando e dando suporte (Arnould & Thompson, 2005Arnould, E. J., & Thompson, C. J. (2005). Consumer Culture Theory (CCT): Twenty years of research. Journal of Consumer Research, 31(4), 868-82. doi: 10.1086/426626
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) ao posicionamento dos entrevistados como indivíduos masculinos.

Relaxamento e bem-estar

Os entrevistados descrevem as barbearias, também, em termos terapêuticos, como espaços onde, em meio ao caos da vida urbana, eles têm a chance de relaxar, "desestressar" e "desligar". Para eles, a busca do homem contemporâneo pelo relaxamento deve ser algo natural e despretensioso, como se a ida anunciada à barbearia levantasse questões de vaidade, o que, como já dito, em excesso, representaria uma ameaça a suas masculinidades.

Não é nem tanto pela estética, porque eu poderia fazer a barba em casa, poderia cortar o cabelo em qualquer cabeleireiro. Não tenho muita frescura com cabelo e tal. É pelo tratamento mesmo. É como se eu tivesse indo fazer uma massagem, como se eu tivesse indo para um momento de relaxamento. Vou lá, bebo um chopinho, aí ele me põe naquela cadeirona de couro preto, grande, confortável. Eu deito, quase durmo. A pessoa vai cortando minha barba. Tem aquele cheirinho de couro no ar. Você tem a impressão de que tá entrando num lugar de época, sabe?! É um momento super-relaxante e, ao mesmo tempo, é uma coisa masculina, viril, uma coisa mais natural, mais viril. (Valter, 32, solteiro)

Esse significado hedônico, de prazer e bem-estar associado ao consumo, é justificado pelos entrevistados com base nos aspectos materiais e sensoriais da decoração do local. Elementos materiais, como poltronas de couro e paredes de madeira, e sensoriais, como a iluminação indireta e as cores neutras, são utilizados para objetificar (Miller, 2013Miller, D. (2013). Trecos, troços e coisas: Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro, RJ: Editora Zahar.) a informalidade, a despretensão e a naturalidade da ida à barbearia.

Tal como apontado por Moisio e Beruchashvili (2016)Moisio, R., & Beruchashvili, M. (2016). Mancaves and masculinity. Journal of Consumer Culture, 16(3), 656-76. doi: 10.1177/1469540514553712
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em estudo sobre o consumo dos espaços masculinos em ambientes domésticos, o espaço das barbearias promove um processo de revitalização das masculinidades em locais considerados seguros pelos entrevistados. Esses significados estão associados à noção de privacidade materializada nesses espaços, o que ajuda a aliviar, mesmo que temporariamente, as pressões sociais e obrigações que esses indivíduos enfrentam por serem homens. Correlatamente, Östberg (2012, p. 129)Östberg, J. (2012). Masculine self-presentation. In A. Ruvio, & R. W. Belk (Eds.), The Routledge Companion to identity and consumption (pp. 129-36). London, UK: Routledge. defende a necessidade de os homens de possuírem um refúgio onde possam ser "homens reais" e "completos", ainda mais agora que seus papéis de provedores e chefes de famílias aparecem, progressivamente, ameaçados pela ascensão das mulheres no mercado de trabalho.

Lá tem mais liberdade pra falar de alguns assuntos, falar palavrão, falar de mulher (risos). Dá pra ser solteiro por um tempo. (Pedro, 41, casado)

[...] E tem também que a gente quer ficar sozinho, relaxar, pensar na vida, falar besteira, falar pornografia, falar merda à vontade, sem a esposa podando, fazendo cara feia do lado. (Paulo, 44, casado)

O espaço hedônico criado durante o consumo dos e nos espaços de barbearias analisados responde pela flexibilização temporária das masculinidades dos entrevistados. Tal como a figura do homem herói de Holt e Thompson (2004)Holt, D. B., & Thompson, C. J. (2004). Man-of-action heroes: The pursuit of heroic masculinity in everyday consumption. Journal of Consumer Research, 31(2), 425-440. doi: 10.1086/422120
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, os entrevistados forjam identidades masculinas baseadas em um ideal de liberdade e independência diante das exigências sociais. Isso ilustra como o consumo permite a experimentação de fantasias, desejos invocadores, estética e jogo de identidade, que, muitas vezes, diferem dramaticamente das realidades cotidianas dos consumidores (Arnould & Thompson, 2005Arnould, E. J., & Thompson, C. J. (2005). Consumer Culture Theory (CCT): Twenty years of research. Journal of Consumer Research, 31(4), 868-82. doi: 10.1086/426626
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).

Espaço de sociabilidade entre homens

Os entrevistados distinguem os espaços de barbearias pela ativa relação entre suas características funcionais (corte de cabelo e feitio de barba), seus aspectos simbólicos e culturais. O consumo dos e nos espaços de barbearia ajudam os entrevistados a construir e manter relações com aqueles considerados desejáveis e oportunos para seus projetos identitários de gênero. Desse modo, o envolvimento e a participação dos entrevistados em uma rede de relações sociais com outros homens funcionam como estratégias para a construção e o reforço de suas masculinidades.

O uso histórico da barbearia para prestação de serviços unicamente masculinos, a forma como são realizados esses serviços e os comportamentos exigidos nesses locais parecem permitir que os entrevistados se percebam e sejam percebidos como indivíduos masculinos. Declarações como "vou porque é largado, tipo, é bem 'de homem' mesmo, é a minha cara!" (Iuri, 39, viúvo) e "e também eu já acostumei com lá, é só homem, é o meu lugar, meu momento" (Pedro, 41, casado), evidenciam que a construção da identidade masculina dos entrevistados está diretamente vinculada à interação com outros homens e à identificação com esses espaços (Belk, 1998Belk, R. W. (1998). Possessions and the extend self. Journal of Consumer Research, 15, 139-68. doi: 10.1086/209154
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). Assim, a construção desses espaços como locais masculinos surge na análise dos dados tanto pela posse que os consumidores fazem desses ambientes como da relação desses como os agentes de mercado, como barbeiros e gerente. O senso de pertencimento dos consumidores ao espaço ocorre não só em referência aos objetos e elementos ali disponíveis, mas também pelo tipo de experiência e envolvimento com os demais consumidores e prestadores de serviço (Pereira & Ayrosa, 2012Pereira, S. J. N., & Ayrosa, E. A. T. (2012). Corpos consumidos: Cultura de consumo gay carioca. Revista Organizações & Sociedade, 19(61), 295-313. doi: 10.1590/S1984-92302012000200007
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).

Justamente pela questão de identificação com esses espaços, os consumidores e demais agentes de mercados ali presentes parecem construir um certo tipo de fraternidade masculina. Não raro, os entrevistados referem-se à barbearia que frequentam por um nome abreviado ou ao barbeiro pelo apelido, mostrando proximidade, familiaridade ou até intimidade com esse espaço de consumo. A criação de vínculos de amizade que extrapolam os limites desse ambiente e a carga fraternal masculina e familiar desses espaços são igualmente percebidas na fala dos barbeiros entrevistados.

Às vezes a gente sai para beber chope fora da barbearia, tem essa coisa de proximidade, de amizade. [...] Lá [salão unissex onde trabalhou] não, lá era diferente, fazia o serviço, quieto, e tchau! (Léo, barbeiro, 32, casado)

Eu vejo muitos dos meus clientes na rua e você percebe um comportamento totalmente diferente. Quando ele entra aqui, parece que ele entrou na sala da casa dele, ele tá ali entre amigos. Nós deixamos de ser profissional do cliente pra nos tornarmos amigos praticamente fazemos parte da família. [...] e aí tem bem esse clima de família aqui dentro. É muito mais do que no salão [unissex]. Aqui nós somos uma família. (Augusto, barbeiro, 28, solteiro)

[...] boa parte dos clientes vem pelo ambiente, pela recepção, pela receptividade da barbearia, pela conversa, por se identificar, confiar no profissional. Isso eu acho legal. Porque é assim: quando eles se identificam com um profissional, ele não vai cortar cabelo com outro profissional. Ele não consegue confiar. Ele me espera, se eu não puder trabalhar ele vem no outro dia, marca pelo WhatsApp (Garcia, barbeiro, 31, casado)

A análise dos dados sugere que os barbeiros buscam evidenciar e demarcar as diferenças entre os laços fraternais que ocorrem nas barbearias, solidificando o sentimento de coletividade ("nós" da barbearia) e, concomitantemente, estabelecendo a distância e limites do "outro" ("lá" no salão unissex). Esse sentimento de fraternidade aponta, ainda, para a estabilidade e perpetuação de uma relação de confiança entre cliente e barbeiro.

Essas práticas de sociabilidade que ocorrem nos espaços de barbearias são responsáveis por configurar e reconfigurar significados e significações por meio das relações e diferenças entre os ambientes masculino e feminino, a casa e a rua, o privado e o público, nós e os outros, o lazer e o trabalho.

A ideia de recriar um espaço de sociabilidade em torno de uma temática masculina apareceu como principal inspiração de um empresário entrevistado para a concepção do espaço de sua barbearia. Segundo ele, a temática masculina atrai consumidores que compartilham pontos de vista sobre os papéis e as relações de gênero masculino, ajudando a desenhar masculinidades.

A gente pesquisou como eram as barbearias dessas épocas e descobrimos que o principal intuito da barbearia era o encontro. Os homens se encontravam na barbearia para negociar, para um convívio social. Isso foi acabando com o tempo, né?! Então nossa principal inspiração foi recriar esse ambiente: o ambiente ao redor do qual os homens, com um interesse em comum, iam se encontrar e interagir. [...] Nós temos aqui, por exemplo, muito médicos, e é muito comum eles virem na quarta, não sei por quê, mas eles vêm normalmente quarta e aí começa um bate-papo bem intenso sobre medicina, de um médico que tá sentado na cadeira com o que tá na cadeira do lado (risos). Mas tem também o grupinho dos advogados, dos flamenguistas, dos jogadores de pôquer [...] É bem legal como homem faz amizade fácil. (Tiago, empresário, 32, solteiro)

Dessa forma, ao se pensar em espaços de sociabilidade de homens, as barbearias evidenciam o compartilhamento de uma representação de masculinidade hegemônica comum (DaMatta, 2010DaMatta, R. (2010). Tem pente aí? Reflexões sobre a identidade masculina. Revista Enfoques, 9(1), 134-51. Recuperado de http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br/ojs/index.php/enfoques/article/view/104/96
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). A fala "aqui junta as coisas que o homem gosta de fazer: beber, ficar entre amigos, conversar, cortar cabelo, fazer a barba" (Augusto, barbeiro, 28, solteiro) evidencia a percepção de que as barbearias põem à disposição de seus consumidores os gostos e preferências que um certo tipo de homem "deve" ter, promulgando ideais e crenças e reunindo elementos capazes de resumir e materializar um modelo de masculinidade. Assim, na visão dos entrevistados, a construção e negociação da identidade de gênero masculina estão relacionadas com a interação com outros homens, bem como com a identificação simbólica com o espaço das barbearias, o que permite a eles localizarem-se socialmente como homens.

Construção, administração e negociação das identidades masculinas

Com base nos elementos materiais e nas interações sociais, a análise dos dados apontou que os entrevistados elegem espaços que consideram representativos das suas crenças sociais e atitudes sobre o que é ser masculino, criando um forte senso de identificação e personificação com o espaço e com aqueles que o frequentam. Os relatos a seguir sugerem a contaminação das identidades de gênero dos entrevistados pelos espaços das barbearias: "Se você vai em um lugar onde só vai homem, você acaba virando homem também" (Iuri, 39, viúvo), "Um lugar onde só vai homem acaba ficando com cara de homem" (Diogo, 37, casado). Desse modo, existe uma relação de coconstrução entre o sujeito e o espaço que ele frequenta (Miller, 2013Miller, D. (2013). Trecos, troços e coisas: Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro, RJ: Editora Zahar.). Se, por um lado, os entrevistados afirmam que se sentem mais masculinos ao frequentar esses espaços de barbearias, por outro lado, esses ambientes passam a ter significados mais masculinos pelo fato de seus frequentadores serem homens.

Assim, ideais culturais sobre o que é "ser masculino" emergem em um processo dialético entre os sujeitos e os elementos desses e nesses espaços de barbearias, sendo utilizados ativamente pelos entrevistados para a construção, administração e negociação de suas masculinidades. Desse modo, sugere-se que esses espaços, nas palavras de Arnould e Thompson (2005)Arnould, E. J., & Thompson, C. J. (2005). Consumer Culture Theory (CCT): Twenty years of research. Journal of Consumer Research, 31(4), 868-82. doi: 10.1086/426626
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, "fornecem aos consumidores uma paleta expansiva e heterogênea de recursos por meio dos quais eles constroem suas identidades individuais e coletivas" (p. 871).

Essas masculinidades estão fortemente atreladas e justificadas por prescrições sociais, ou seja, a sociedade aparece como uma instituição que normatiza o que é ser "homem" e, consequentemente, cobra dos indivíduos determinados comportamentos e posturas. As narrativas de socialização - histórias e expectativas sob as quais os indivíduos são socializados, refletindo suas posições sociais (Shankar, Elliot, & Fitchett, 2009Shankar, A., Elliott, R., & Fitchett, J. A. (2009). Identity, consumption and narratives of socialization. Marketing Theory, 9(1), 75-94. doi: 10.1177/1470593108100062
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), aparecem, na análise dos dados, internalizadas pelos entrevistados, influenciam seu consumo e seus projetos identitários de gênero: "Ser masculino tá relacionado a como se vestir como um homem, andar como homem, falar como homem, ter atitudes de homem, usar as coisas de homem, gostar do que homem gosta: mulher" (Pedro, 41, casado).

A noção de que a masculinidade está atrelada ao sexo evidencia o processo de absorção das normas e práticas sociais sobre o corpo, tornando-o a principal arena de incidência e expressão do gênero. Tal como os achados de Pereira e Ayrosa (2012)Pereira, S. J. N., & Ayrosa, E. A. T. (2012). Corpos consumidos: Cultura de consumo gay carioca. Revista Organizações & Sociedade, 19(61), 295-313. doi: 10.1590/S1984-92302012000200007
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, os entrevistados consideram o corpo, seu consumo e uso e todos os artefatos que o cobrem, como roupas e ornamentos, determinantes para a construção de suas masculinidades. Essa normatização social sobre o corpo cria uma receita de como agir, instituindo comportamentos específicos, os quais aparecem, na voz dos entrevistados, sob o rótulo de coisa "de homem".

Embora as masculinidades desses homens apareçam como algo já constituído pelas normas sociais, o consumo de objetos, lugares, ideias e experiências é amplamente utilizado para a administração dessas masculinidades nos contextos em que esses indivíduos se inserem. Ademais, os entrevistados evidenciam a construção e a administração de suas masculinidades por meio da negação, minimização ou inferiorização de elementos considerados femininos. Esses significados simbólicos associados à oposição ao feminino são difíceis de negociar ou até mesmo inegociáveis: "Homem que não tem muita 'frescurinha'. Ele pode até se cuidar, é importante se cuidar, mas não em excesso. Quando o cara se cuida demais, exagerado, aí ele fica meio afeminado" (Anderson, 39, casado).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse estudo buscou entender como as identidades masculinas são construídas, administradas e negociadas em espaços de barbearias. A análise dos dados indica que, nesses espaços, são compartilhadas regras, significados, crenças e estereótipos sobre a maneira como o homem deve ser, se comportar e consumir, caso deseje ser visto e reconhecido como um homem masculino. A cultura material e as interações sociais que ocorrem nesses espaços representam o que culturalmente é considerado masculino, acabando por materializar os gostos, interesses e desejos daquele que é ou almeja ser visto como um indivíduo totalmente masculino. Esse ponto, no contexto da análise, ajuda a naturalizar as maneiras de se experimentar a masculinidade, o que remota fortemente a um padrão hegemônico de masculinidade, que impossibilita outro modo de se vivenciar e construir a identidade de gênero masculino pelos entrevistados.

Por meio do consumo, os sujeitos se autorrepresentam e dão suporte as suas masculinidades, do mesmo modo como personalizam ideais que alinham suas identidades de gênero aos ideais hegemônicos de masculinidades promulgados nesses espaços e na sociedade em geral. Assim, a análise dos dados indica que as masculinidades, nos espaços de consumo analisados, são construídas, administradas e negociadas em torno de três categorias: (i) do atendimento a pressões e narrativas de socialização sobre o que é "ser homem"; (ii) de um sistema de representações que nega fortemente o feminino e (iii) de padrões de consumo de bens e experiências associados ao masculino, ou, na voz dos entrevistados, consumo "de homem".

Essa pesquisa ilustra o consumo em e de espaços de barbearias como processo de construção, negociação e administração identitária de gênero, a partir, principalmente, da apropriação e do uso de espaços públicos de consumo como se fossem privados. Esses espaços públicos (barbearias) são apropriados pelos consumidores e barbeiros, por meio da configuração e reconfiguração de significados e significações para as relações entre o masculino e o feminino, a casa e a rua, o privado e o público, nós e os outros, o lazer e o trabalho.

Assim, esse trabalho reforça a ideia das barbearias como espaços de circulação, socialização e negociação das masculinidades dos indivíduos. Esses espaços são vistos pelos consumidores também com fins terapêuticos e de encontro de seus pares, tal como "mancaves". Nesse sentido, os resultados deste estudo adicionam aos encontrados por Moisio e Beruchashvili (2016)Moisio, R., & Beruchashvili, M. (2016). Mancaves and masculinity. Journal of Consumer Culture, 16(3), 656-76. doi: 10.1177/1469540514553712
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, ao trazer a noção de mancaves, também, como espaços públicos de consumo.

Considera-se, assim, que este estudo contribui para o fortalecimento dos estudos de gênero e consumo de serviços, sob a perspectiva da Teoria da Cultura de Consumo (CCT), ilustrando, no contexto brasileiro, a influência da dimensão simbólica e cultural no consumo e nos projetos identitários de gênero dos consumidores. Ademais, questões citadas por Pinto, Freitas, Resende e Joaquim (2015)Pinto, M. R., Freitas, R. C., Resende, S. P., & Joaquim, A. M. (2015). Consumer Culture Theory (CCT) no contexto das experiências de consumo de serviços: Em busca de uma agenda de pesquisa. Revista Interdisciplinar de Marketing, 5(2), 49-68. Recuperado de http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rimar/article/view/27102/16277
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como emergentes do confronto entre CCT e o campo de consumo de serviços - como os processos de escolha e comportamentos no serviço são moldados por questões de gênero; como o sistema de crenças e práticas ligadas às estruturas sociais e institucionais molda as experiências de consumo de serviços - são abordadas neste estudo.

Esta pesquisa oferece importante contribuição gerencial ao colocar luz sobre comportamentos de consumo masculinos e as formas como empresários e profissionais de Marketing podem empregar, de modo eficaz, temáticas de gênero masculino nos espaços de consumo ou em comunicações de marketing. Contribui também ao evidenciar a influência da cultura material de espaços de consumo nos projetos identitários e na criação de sensos de pertencimento e autoexpressão dos consumidores. Ademais, oferece subsídios para um melhor aproveitamento de questões pertinentes à sociabilidade em espaços de consumo, transformação simbólica de espaços públicos em privados e para o entendimento do consumidor brasileiro em suas inúmeras identidades e riqueza cultural. Finalmente, a necessidade de os homens analisados manterem demarcações de gênero por meio do consumo sugere importantes reflexões para o mercado, como o modo como produtos, serviços e outras estratégias de marketing podem auxiliar na criação e marcação de fronteiras entre os gêneros - em particular, quando o consumo masculino se aproxima daquilo que socialmente é instituído como feminino, tal como demonstrado neste estudo, e a minimização ou até resolução de possíveis tensões identitárias de gênero.

A partir deste trabalho, é possível sugerir alguns estudos futuros, como a exploração de discursos e representações de gênero em espaços de consumo que não barbearias e a seleção de entrevistados diversos dos deste estudo, principalmente quanto à orientação sexual ou transgeneridade. Diferentemente do sugerido por esta pesquisa, ao se depararem com representações idealizadas de masculinidade, os consumidores podem experimentar situações de tensão, incluindo sentimentos de inadequação e vulnerabilidade. Tais cenários, igualmente, representam sugestões de estudos futuros.

  • NOTA DA REDAÇÃO
    Este artigo foi apresentado no VIII Encontro de Marketing da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração em 2018.
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NOTA DE AGRADECIMENTO

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pela concessão de bolsa de mestrado ao primeiro autor.

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Editado por

Avaliado pelo sistema double blind review. Editor Científico convidado: Andres Rodriguez Veloso

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    May-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2018
  • Aceito
    11 Fev 2019
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