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ENSINO E PESQUISA EM GESTÃO DE PESSOAS/GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS NO BRASIL: CONVERGÊNCIA OU DIVERGÊNCIA

INTRODUÇÃO

A origem do que se pode chamar hoje de gestão de recursos humanos (GRH) pode ser encontrada conceitualmente na tentativa de estudiosos de universidades norte-americanas entenderem a chamada "questão do trabalho" no último quarto do século XIX. Naquele período, essa questão fora imposta pelo assalariamento provocado pela industrialização. De lá para cá, o conflito trabalhista foi conduzido para a arena institucional em que a ação sindical e a existência de uma legislação específica para isso criaram marcos externos às organizações na contratação de seus funcionários.

Nesse caminho, as grandes empresas tomaram para si as orientações dos princípios do taylorismo e do fordismo e, já em meados do século XX, assimilaram também as orientações proporcionadas pela escola de Relações Humanas. Nesse ponto, o lado de dentro das organizações tornou-se cada vez mais importante, com o crescente interesse pela dimensão psicológica dos trabalhadores já em meados dos anos 1960. A abertura dos mercados e a intensificação do processo de globalização nos anos 1980 tornaram premente que o encaminhamento estratégico das organizações evidenciasse cada vez mais a identificação tanto dos conhecimentos necessários aos postos de trabalho quanto do comportamento desejado dos seus ocupantes.

Desde então, a expressão recursos humanos (RH) revestiu-se de condição para a competitividade das organizações. A dimensão coletiva das relações de trabalho, representada pelas negociações com os sindicatos, tornou-se uma função secundária para a GRH, e iniciou-se um enorme esforço para a criação de métodos e métricas para calibrar pessoas - seus conhecimentos e comportamentos - e organizações, cabendo à gestão por competências o papel de alinhá-las e torná-las mais eficientes.

Em abstrato, todo esse percurso é feito tendo por pano de fundo a prevalência dos modelos de sociedades democráticas no Ocidente, a aceleração da penetração da tecnologia nos processos produtivos e a própria globalização.

Em nível internacional, a necessidade de melhores recursos humanos gerou a disseminação do conhecimento sobre a sua gestão não só pelos seus estudiosos, mas principalmente pela via dos profissionais colocados nas grandes consultorias ou nas escolas profissionais. Em fenômeno associado, a consolidação da comunidade de profissionais nos diversos países era um sinal da pluralidade com que o saber sobre GRH é produzido e flui entre e para as organizações.

Todo esse movimento alcança também o Brasil, mas encontra aqui condições e momentos peculiares. A intenção deste texto é, de maneira breve, refletir sobre a trajetória da experiência brasileira em ensino e pesquisa em gestão de pessoas (GP) diante desse percurso do chamado mainstream dos EUA e Europa. Dentro desse propósito, uma chave para este artigo está na dicotomia "convergência x divergência" do ensino e pesquisa em GRH daquilo produzido no exterior. Os conceitos de convergência e divergência das políticas e práticas em GRH vêm sendo utilizados a partir dos estudos comparativos entre países e regiões que têm como referência a abordagem institucional da gestão de RH (Mayrhofer, Brewster, Morley, & Ledolter, 2011Mayrhofer, W., Brewster, C., Morley, M., & Ledolter, J. (2011). Hearing a different drummer? Convergence of human resource management in Europe: A longitudinal analysis. Human Resource Management Review, 21(1), 50-67. doi:10.1016/j.hrmr.2010.09.011
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)

Para isso, além desta introdução, este artigo traz outras quatro partes: um breve histórico da GP/GRH no Brasil; o conhecimento em GP/GRH em suas fontes no Brasil; as perspectivas no ensino em GP (a GP ainda é necessária?); considerações finais (de olho no futuro próximo em ensino e pesquisa em GP/GRH).

GP/GRH NO BRASIL: UM BREVE HISTÓRICO DE SUAS PRIMEIRAS DÉCADAS

Uma primeira questão a ser respondida é: Quando ocorre o surgimento de ensino e pesquisa em RH no Brasil? De maneira análoga à dos países desenvolvidos onde se localizava o mainstream, isso acontece também quando a questão do trabalho emerge em nosso país, ou seja, na passagem dos anos 1970 para a década de 1980 e daí em diante.

Após três décadas transformadoras no Brasil, o assalariamento e a urbanização consolidam-se no País. Nesse período, grandes planos econômicos sucederam-se e, com o recurso da proteção ao mercado interno, viabilizaram a instalação de uma indústria de bens de consumo durável apoiada em grandes empresas multinacionais e investimentos de empresas estatais em energia e telecomunicações. No que se refere à política, em meados dos anos 1960, instalaram-se governos autoritários militares que durariam 20 anos. Dessa forma, no início dos anos 1980, pelo menos dois fatores criaram situações críticas para as empresas: o ressurgimento dos sindicatos, o desemprego e, do lado de dentro das empresas, a ênfase no corte de custos. A despeito das dificuldades econômicas do período, também foram destacados os avanços em termos democráticos com o governo civil em 1985 e a Constituinte de 1988.

A consolidação do movimento sindical como ator importante no âmbito das relações de trabalho aconteceu nos últimos oito anos dos governos militares. Com isso, o conflito trabalhista, fora da cena gerencial desde a primeira metade dos anos 1960, incluiu-se como uma possibilidade real no âmbito da gestão de RH das organizações em setores da indústria e bancários, por exemplo. Para os demais setores, em fenômeno típico dos mercados de trabalho, valeu o efeito demonstração para que os gestores se precavessem. Até então, o trabalho das áreas de RH com a contratação do trabalho visava basicamente contemplar as rotinas trabalhistas previstas em lei e, quando mais avançadas, de modo processual, também previam programas de treinamento de escopo operacional e restrito aos seus trabalhadores e gestores.

A necessidade ou possibilidade de algum tipo de diálogo com um elemento externo e fora do controle absoluto das organizações encontrou os gerentes despreparados para essa tarefa. No âmbito da academia, a leitura desse novo ambiente mostrou que a abordagem funcionalista em que repousavam a pesquisa e ensino nas escolas de Administração não dava conta das novas componentes do ambiente político que surgiam vinculadas às relações de trabalho no Brasil.

Naquele momento, o esforço era duplo: de posicionar a Administração como ciência social aplicada no front acadêmico e de modernizar sua prática no front profissional. No âmbito profissional, em uma reação mais rápida, ocorreu a valorização das reuniões dos chamados grupos profissionais de gerentes para troca de informações e experiências relativas às negociações coletivas com sindicatos. A inflação e as políticas salariais foram o objeto de todas as campanhas salariais nos anos 1980. Os movimentos pela qualidade, produtividade e reengenharia já estavam em ação no interior das empresas, embora seus ecos só revibrassem no País nos anos 1990. No âmbito acadêmico, com timing mais lento para apresentar resultados, os movimentos foram feitos em pelo menos duas direções. Na primeira, com finalidades gerenciais mais evidentes, surgiram as primeiras pesquisas envolvendo a necessidade de se encontrar um papel estratégico para a GRH. Na segunda direção, com viés mais crítico, as pesquisas foram direcionadas aos aspectos relacionados à cultura das organizações no Brasil e à melhor compreensão dos mecanismos de poder a ela inerentes.

O desafio acadêmico, nesse sentido, era aproximar as Ciências Sociais da Administração e, a partir disso, afetar a gestão dando maior peso às relações de trabalho. Em ambas as direções, a grande ambição era proporcionar uma linha adicional às políticas de gestão que contemplasse a gestão do trabalho em sua maior complexidade.

No que se refere ao surgimento do fenômeno de desemprego estrutural e em larga escala, o grande fato foi que, pela primeira vez em 30 anos, houve uma perda expressiva no dinamismo da criação de vagas no mercado de trabalho brasileiro. Um sinal da importância do desemprego como questão econômica e social é que, no início dessa década, foram criadas as primeiras pesquisas sistemáticas sobre o desemprego no Brasil.

Para a gestão de RH, em termos conjunturais, a questão do desemprego vincula-se à necessidade de ajuste das empresas a um ambiente de menor crescimento econômico e maiores restrições quanto ao custo da mão de obra. Em uma perspectiva mais estrutural, há, por outro lado, o posicionamento das organizações como contratantes em um mercado de trabalho com uma superoferta de pessoas e elevado grau de informalidade. Decorre daí que, no Brasil, as políticas e práticas de RH, de certa maneira, se conformam a menores esforços quanto à atração e retenção de trabalhadores, sempre refletidos em altos níveis de rotatividade.

Em poucas palavras, a consolidação de um cenário mais exigente para a atuação das áreas de RH contribuiu para a necessidade de formação de profissionais também habilitados a lidar com cenários de gestão mais complexos. Ou seja, nessa linha de raciocínio, é possível se afirmar que, assim como a questão do trabalho propôs a necessidade de uma abordagem conceitual própria que desembocou na moderna GRH nos EUA e Europa, no Brasil, mutatis mutandis, a questão do trabalho também tornou imprescindível a emergência da GRH como campo de estudo e área de ensino expressiva nos meios acadêmico e profissional.

Os anos 1990 reafirmaram essa necessidade. A abertura econômica e a globalização impuseram um duro processo de ajuste da economia brasileira, que resultou na queda definitiva da inflação. Assim, a área de RH passou a ser elemento sensível na gestão das organizações. Boa parte do ajuste realizado pelas organizações foi viabilizada de maneira reativa pelas mãos do RH das organizações, por meio de processos de terceirização, turnover, além do início da introdução gradual da gestão por competências associada à noção de empregabilidade. A GRH tornou-se mais sofisticada tecnicamente na medida em que se propunha mais próxima da estratégia das organizações. No final da segunda metade dessa década, tornou-se evidente a lacuna de formação mais especializada tanto entre os profissionais de RH mais experientes quanto entre os mais jovens. Tal lacuna abriu campo para a criação dos primeiros cursos de MBA especializados em gestão em RH no Brasil e para a necessidade de se ampliar o foco em temas similares nos cursos superiores de formação de administradores.

Nessa época, o ensino de GP na graduação em Administração recorria a manuais que reproduziam as obras de mesmo tipo das dos EUA. O ensino tinha um foco bem pragmático, lastreado no paradigma da simplicidade, como diria Morin (1991)Morin, E. (1991). Introdução ao pensamento complexo. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget.: demonstrar a relevância da área de RH para atingimento dos objetivos das empresas. O saber era calcado na supremacia da fragmentação e da superespecialização, portanto a GP era vista como uma especialidade de quem desejava seguir sua trajetória na área de RH.

Em paralelo, não era fácil reverter a visão de uma área meramente processual, executora e reativa que estava impregnada no mindset dos alunos. Estes concluíam que os problemas encontrados em GP estavam associados a uma área pouco inovadora, com muita dificuldade de quantificar os seus resultados em comparação com outras áreas, ou seja, discurso "bonito e bem-intencionado", mas com pouca comprovação de sua agregação de valor à organização.

Embora os docentes da disciplina se esmerassem em atuar como advocacy dos temas de cultura organizacional, gerenciamento de times, desenvolvimento de competências, gestão de desempenho, recompensas financeiras e não financeiras, o entusiasmo dos docentes não era suficiente para superar uma visão impregnada de que GP era um "mal necessário", cujo valor estaria associado à maximização da eficiência dos trabalhadores com o mínimo de custo. Pode-se dizer, portanto, que, na década de 1990, os pesquisadores já alertavam para a necessidade de repensar a área de RH juntamente com a redistribuição das responsabilidades com os gestores de linha. Todavia, os alunos consideravam a disciplina de GP útil para a formação de futuros profissionais de RH, e não essencial na formação de futuros gestores.

Uma explicação para esse fenômeno pode ser atribuída ao fato de boa parte dos alunos de graduação em Administração buscar estágios em grandes corporações que estavam justamente na fase inicial de profissionalização da área de RH. Os primeiros MBAs começam a surgir no início dos anos 1990 e especialmente em RH, em 1996, já com algum viés estratégico (com foco em cultura organizacional, depois competências e planejamento estratégico) e menos processual. Entretanto, o crescimento da demanda para os cursos de especialização em GP e dos MBAs voltados para RH ocorreria apenas nos primeiros anos da década de 2000.

Tragtenberg (1999)Tragtenberg, M. (1999). Memórias de um autodidata no Brasil. In S. A. Marrach (Org.). São Paulo, SP: Escuta. descreveu bem de que forma o cenário de incerteza afetaria as organizações no final dos anos 1990: "um clima permanente de insegurança. Insegurança que, por sua vez, traz inevitáveis prejuízos à produtividade e saúde dos seus integrantes, ao desdobrar-se em desorientação, sobrecarga emocional, medo e estresse" (p. 2). Nesse sentido, o autor defende a mudança de enfoque no ensino e formação de pessoas calcado no paradigma da complexidade. Ou seja, entendido como aquele que não preconiza receitas, que não defende um conjunto de ideias simples, mas sim estimula reflexões críticas e aponta soluções criativas que podem ser ambíguas e retrocausais.

Nessa rápida retrospectiva, é importante frisar que a chegada e o desenvolvimento do ensino e pesquisa em GRH no Brasil encontram-se alinhados ao próprio desenvolvimento socioeconômico do País. Dada sua condição de economia em desenvolvimento e com presença importante de multinacionais, torna-se compreensível que a GRH por aqui se encontre alinhada ao que acontece nos EUA e Europa, mas, ao mesmo tempo, esteja estruturalmente em defasagem em relação a esses territórios.

Dessa forma, a GRH e seu ensino e pesquisa no Brasil incorporam temas centrais como gestão por competências, por exemplo, em um movimento de convergência com o praticado e ensinado nos países desenvolvidos. Temáticas como planejamento estratégico em RH têm seus primeiros trabalhos publicados em meados dos anos 1980. Outras, como inovação e mudança organizacional, também começam a surgir entre meados dos anos 1990 e início dos anos 2000. Entretanto, sua disseminação ocorre com uma defasagem de, no mínimo, 10 anos. Por outro lado, ao longo do tempo, e especialmente após a virada do século, é possível também afirmar que essa defasagem vem se reduzindo.

Outro elemento interessante é que esse movimento de alinhamento e redução de defasagem temporal ocorre com algumas contradições. No Brasil, a própria renomeação do campo de GRH como um campo de GP foi consolidada no fim dos anos 1990 e tida como um avanço por pesquisadores, docentes e mesmo profissionais nacionais. A preocupação latente destes era quanto ao tratamento dos funcionários preponderantemente como um recurso das organizações e menos como humanos. Tal preocupação ligava-se, bem provavelmente, ao fato de a chamada escola de Relações Humanas ter sido rapidamente ultrapassada pela gestão por competência no País. Outra preocupação também pode estar ligada à cultura da gestão brasileira, sabidamente pouco afeita à participação. Nossa cultura organizacional dá pouco espaço ao questionamento quanto ao papel dos indivíduos dentro dela, e isso facilita ou simplifica aos gestores seu cálculo para a adesão às novas práticas de gestão. Em contraponto a isso, como uma espécie de jabuticaba, ou seja, coisa tipicamente brasileira, a expressão gestão de pessoas e todo o esforço existente em sua disseminação no meio acadêmico e profissional demonstram um movimento de divergência em relação ao cenário internacional. Essa expressão não encontra, a princípio, repercussão correspondente no exterior, dado que RH segue sendo o conceito preponderante para designar o campo, sem que isso denote nos pesquisadores estrangeiros menor preocupação com as pessoas.

O CONHECIMENTO EM GP/GRH EM SUAS FONTES NO BRASIL

De toda forma, na última década, o processo de globalização aproximou as fontes centrais de produção de conhecimento de seus usuários em todo o mundo. O Brasil e a gestão de RH das empresas do País, mesmo com suas jabuticabas, não ficariam fora dessa dinâmica, o que poderia reforçar a ideia de que caminhamos inexoravelmente rumo à convergência.

As iniciativas de adoção de práticas globalizadas pelas multinacionais em suas diferentes subsidiárias e a influência das consultorias internacionais na definição de best practices, aplicáveis indistintamente em diferentes organizações e sociedades, vêm homogeneizando o conhecimento que dá identidade ao profissional de RH. Termos como leadership pipeline, business partner, employer branding e employee value proposition fazem parte da linguagem comum que legitima os profissionais da área. Eles representam cursos de ação cujo entendimento, compreensão e forma de aplicação prática estão acessíveis nas redes virtuais e presentes nos currículos de formação especializada, particularmente nas escolas de pós-graduação profissional.

No âmbito acadêmico, as instituições, há tempos, vêm se globalizando, e a presença física ou virtual de pesquisadores, professores ou mesmo de campi avançados de escolas europeias e norte-americanas nos chamados países emergentes tornou-se parte do quotidiano. A facilidade de contato veio a intensificar também a participação de pesquisadores brasileiros em redes internacionais, propiciando uma troca mais permanente e o engajamento em processos conjuntos de pesquisa e disseminação do conhecimento em GP.

Esse movimento é muito rico pela diversidade que proporciona, trazendo diferentes visões sobre os temas de pesquisa que antes eram debatidos apenas entre pesquisadores nativos. Além disso, as redes internacionais colocam os participantes de diferentes países em um mesmo estágio de conhecimento sobre os seus temas de trabalho, garantindo que todos os envolvidos compartilhem quase simultaneamente os avanços que são obtidos pela produção coletiva. Por outro lado, a predominância de grupos de pesquisa internacionais no ambiente institucional de ensino e pesquisa de países como o Brasil é uma evidência de que temas e interesses acadêmicos vêm se submetendo a um claro movimento de convergência.

Outro sinal característico desse movimento refere-se aos critérios de valorização dos artigos produzidos pelos acadêmicos. Aqueles que militam nesse meio sabem que, nos últimos anos, os pesquisadores brasileiros vêm sendo fortemente estimulados a direcionar seus trabalhos para revistas internacionais. Artigos aceitos por publicações nacionais são muito menos valorizados, seja pelas instituições empregadoras, seja pelas entidades de avaliação dos cursos de pós-graduação. Os próprios periódicos nacionais esforçam-se por se internacionalizar e, para isso, buscam atrair autores de outros países. São iniciativas de políticas acadêmicas que mais que se justificam, uma vez que submeter nossos pesquisadores e editores ao julgamento internacional tende a provocar um aprimoramento constante e mais acelerado de nosso potencial de pesquisa. Por outro lado, parece evidente que essa política orienta a produção acadêmica para a convergência, dado que confere maior importância aos temas de interesse global em detrimento das questões locais. No caso específico da GRH, as questões locais, tais como mudanças nas relações de emprego, nas instituições que regem o trabalho e a previdência e na composição etária da sociedade, passam a ganhar status acadêmico somente quando suscitam a atenção e o interesse dos conselhos editoriais compostos por pesquisadores internacionais.

Tais constatações parecem determinar um caminho único para o ensino e a pesquisa em RH no Brasil: associar-se cada vez mais aos grandes centros de produção e disseminação de conhecimento na área e acompanhar a sua disseminação pelas organizações aqui instaladas.

Mas a realidade parece demonstrar que essa solução pode não dar conta dos desafios que se colocam não só para o ensino e a pesquisa em RH no Brasil, mas também para a própria prática daqueles que atuam na área. Relatos frequentes obtidos com profissionais experientes indicam que as práticas globalizadas pelas multinacionais nem sempre produzem os resultados pretendidos quando aplicadas em suas subsidiárias brasileiras. Muitas vezes, não são nem mesmo totalmente implementadas, por entrarem em conflito com fatores institucionais, culturais ou mesmo organizacionais característicos da localidade. As próprias empresas de consultoria esforçam-se em adaptar os modelos que trazem das suas experiências nos países centrais, o que, em algumas situações, chega a descaracterizar o propósito inicial desses modelos.

Isso demonstra algo que a literatura sobre recursos, competências e capacidades já constatou há algum tempo. As competências organizacionais em GP são capacidades dinâmicas, aquelas que, segundo Teece, Pisano e Shuen (1997, p. 516)Teece, D. J., Pisano, G., & Shuen, A. (1997). Dynamic capabilities and strategic management. Strategic Management Journal, 18(7), 509-533. doi:10.1002/(SICI)1097-0266(199708)18:7<509::AID-SMJ882>3.0.CO;2-Z
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, são capazes de criar ou reconfigurar outras competências. Vários autores já demonstraram que capacidades dinâmicas não são adquiridas de maneira mecânica e imediata; são path dependence, fruto de uma transição, em geral demorada e contraditória, de desenvolvimento de processos, hábitos, papéis organizacionais e formas de relacionamento. Em outras palavras, mudanças em práticas de RH, diferentemente de outras transformações organizacionais, constituem sempre uma intervenção no sistema social da empresa e, portanto, para se viabilizarem, precisam dialogar com esse sistema social. Nesse sentido, sempre haverá questões locais que o conhecimento produzido externamente não será capaz de prever e equacionar, o que coloca limites na simples transferência de práticas e conhecimentos que se demonstraram úteis e adequados em outras realidades socioculturais.

Qual seria a saída, então, para o dilema da convergência ou divergência no ensino e na pesquisa em GP? Autores que estudam GRH comparada entre diferentes países a partir da perspectiva institucional chegaram a conclusões interessantes, que talvez nos ajudem a indicar caminhos para lidar com esse dilema. Eles constataram que existe realmente uma tendência à convergência das práticas de RH entre os diferentes países pesquisados, todos estão caminhando em uma mesma direção quanto aos tipos de práticas adotados. Entretanto, essa convergência não é final. Ou seja, embora todos caminhem numa direção semelhante, não há evidências de que chegarão ao mesmo ponto, uma vez que não partiram da mesma condição original (Mayrhofer et al., 2011Mayrhofer, W., Brewster, C., Morley, M., & Ledolter, J. (2011). Hearing a different drummer? Convergence of human resource management in Europe: A longitudinal analysis. Human Resource Management Review, 21(1), 50-67. doi:10.1016/j.hrmr.2010.09.011
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). Os ritmos, a velocidade e as adaptações que são feitas nas práticas e modelos adotados não indicam que, no futuro, teremos um modelo de GP global, único e homogêneo. As oportunidades de surgimento das jabuticabas nacionais surgem aqui.

Os próprios autores consideram que há muito, ainda, a se investigar sobre o assunto para se obterem constatações mais conclusivas. Ainda assim, podemos dizer que os estudos comparados indicam até aqui que, embora haja um direcionamento comum sobre como praticar RH nos vários países pesquisados, as condições institucionais e culturais de cada localidade conferem um caráter peculiar às práticas lá aplicadas e aceitas. Se isso é verdade, parece ganhar particular relevância um aspecto nem sempre abordado nessas análises: a questão da implementação das práticas de RH.

O processo de implementação é um empreendimento complexo, muitas vezes mais complexo do que o próprio desenvolvimento da prática em si (Fixsen, Naoom, Blase, Friedman, & Wallace, 2005Fixsen, D. L., Naoom, S. F., Blase, K. A., Friedman, R. M., & Wallace, F. (2005). Implementation research: A synthesis of the literature. Tampa, FL: University of South Florida.). Na verdade, não se trata de uma mera tradução daquilo que foi proposto nos países de origem, mas de um processo de adaptação a uma série de condições locais, tais como: ambiente de negócios, legislação, cultura organizacional local, características das lideranças, entre outras. São contingências estruturais que, por vezes, exigem uma reformulação também estrutural daquilo que o projeto original previa.

Nesse sentido, a implantação equivale a dar uma nova concepção da política ou prática proposta. Isso exige da comunidade de RH - em particular, dos seus dois principais atores: os profissionais especializados e os gestores - o desenvolvimento de uma série de competências e conhecimentos. Para isso, o profissional de RH precisa compreender as demandas do negócio na localidade, que podem ser muito diferentes daquilo que ocorre nos países centrais. A ele cabe conhecer e analisar as demandas contingenciais específicas externas e internas às empresas, como legislação, relações sindicais, características do mercado de trabalho, estratégias de negócio, cultura e clima organizacional, por exemplo. Os gestores de negócios e de equipes, como principais responsáveis pela efetiva implantação das práticas, devem deter conhecimentos sobre RH que demonstrem a importância do seu papel e desenvolver habilidades de gestão de equipes e de condução de processos de mudança organizacional.

Com base nessas análises, surge uma primeira sugestão de pauta para o ensino e pesquisa em GRH no Brasil. Precisamos pesquisar localmente, utilizando e reformulando teorias produzidas globalmente. Isso porque é importante colocar nosso território como exportador de teoria, e não apenas importador, tanto mais porque são vários os casos de multinacionais brasileiras e unicórnios brasileiros marcando presença em diversos mercados. O propósito é, exatamente, ensinar melhor gestores e profissionais de RH que enfrentam os desafios quotidianos nas organizações de todos os tipos e também focar as pesquisas em como vem se dando a implantação das políticas e práticas nas empresas aqui instaladas. Infelizmente, não é o que ocorre até aqui, nossa academia está muito longe de conseguir traçar um quadro do que efetivamente ocorre nas organizações brasileiras no campo de RH.

O que sabemos é pouco, não cumulativo, disperso em grupos de pesquisa que pouco se conversam. Além disso, o impacto dos resultados dessas raras pesquisas sobre a prática em sala de aula, na forma de textos didáticos, de projetos de consultoria e mesmo na divulgação não acadêmica é quase nulo. Dessa maneira, a literatura internacional continua a ser reproduzida ou criticada, sem o oferecimento de alternativas capazes de dar conta da demanda das organizações.

Segundo dados do Ministério do Trabalho, o Brasil contava, em 2015, com 18.811 organizações com mais de 200 empregados, tamanho que demanda algum nível de profissionalização da atividade de RH (MTE-RAIS). Nelas trabalhavam 48 milhões de pessoas nesse mesmo ano (Brasil, 2015Brasil. Ministério do Trabalho em Emprego (2015). Programa de Disseminação de Estatísticas do Trabalho (http://bi.mte.gov.br/bgcaged/login.php
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), e estima-se que haja 430 mil profissionais especializados atuando na área (Programa de Estudos em Gestão de Pessoas - Fundação Instituto de Administração, 2018Programa de Estudos em Gestão de Pessoas - Fundação Instituto de Administração. (2018). Melhores empresas para você trabalhar. São Paulo, SP: Progep - FIA.). Os cursos superiores formam mais de 100 mil administradores todos os anos, além de milhares de tecnólogos especialistas em RH. A pesquisa e o ensino precisam dar respostas à altura dos desafios desses profissionais que, em última instância, são responsáveis pela competitividade de nossas empresas e, por decorrência, pelo desenvolvimento econômico e social do País.

PERSPECTIVAS NO ENSINO EM GP: A GP AINDA É NECESSÁRIA?

Dado esse panorama, já na segunda década dos anos 2000, constata-se um crescente interesse pelo tema por parte dos alunos de graduação em Administração. Nos levantamentos de expectativas sobre o curso de GP, aparece com frequência o desejo dos alunos em aprender como criar uma cultura de engajamento, como efetivar um ambiente de aprendizagem e diversidade, como criar organizações que privilegiem a autonomia e a flexibilidade. Os jovens já se colocam como gestores e partícipes da construção de um novo tipo de empresa, pautada por sólidos valores.

Essa situação pode ser explicada por diferentes fenômenos do século XXI: intensificação do mundo digital, aumento do interesse em empreendedorismo, fomento de start-ups, crescimento de negócios sociais, busca por um trabalho com mais significado e valor. Ao estudante e mesmo ao profissional, evidencia-se a sua carreira não mais em uma única ou poucas empresas, mas dentro de outras possibilidades sem fronteiras em termos de organizações ou mesmo de tipos de atividades.

Nesse cenário de mudanças na sociedade e no mercado de trabalho, a demonstração de que o sucesso das organizações passa por uma boa GP é simples. Porém, de que forma é possível provar a relevância do ensino de GP?

Se, na década de 1990, prevaleceu o modus operandi no paradigma da simplicidade, tornou-se imperativo operar no paradigma da complexidade. O primeiro aspecto fundamental é demonstrar aos alunos que não há uma única solução correta para os problemas atuais vivenciados pelas organizações. As respostas serão adequadas para determinados contextos e por um determinado momento. No campo teórico, a abordagem institucional é um caminho importante nessa direção. Além disso, os ambientes precisam estar abertos para testar soluções e revisão rápidas se os resultados desejados não forem alcançados. Ou seja, o ambiente deve ser estimulante à inovação em GP. Coloca-se, portanto, a seguinte pergunta: O que seria hoje inovação em GP?

A observação de novos formatos organizacionais que têm sido atrativos para os estudantes auxilia a elencar alguns elementos centrais no ensino em GP:

  • Reflexão sobre as condições necessárias e suficientes para implementar uma cultura de engajamento. Para isso, é necessário desapegar do modelo de GP criado no paradigma comando-controle e estruturar um modelo de autonomia-responsabilidade, ou seja, liberdade de ação e responsabilidade com o resultado.

  • Reflexão sobre formas de criar um ambiente de aprendizado que promova a reflexão contínua sobre erros e falhas, e não a caça aos culpados.

  • Sensibilização dos alunos para a importância de uma comunicação ativa com diálogos francos dentro das organizações. As pessoas precisam sentir-se parte da dinâmica da organização, precisam sentir-se vinculadas a algo que tem um propósito. As pessoas permanecem em ambientes nos quais podem aprender algo, reconhecem a importância do seu trabalho no atingimento dos objetivos coletivos e podem confiar no grupo.

  • Ensino não deve ser pautado em apenas mostrar benchmarkings de sucesso, mas como superar os erros e falhas evidenciados nas organizações.

  • Formação de alunos com uma visão crítica e sistêmica, tendo consciência de que GP é atribuição de todo gestor. O bom gestor é aquele que sabe identificar e aproveitar os pontos positivos das pessoas e consegue transmitir com entusiasmo o valor e o propósito da organização.

O desafio de reinventar as organizações passa necessariamente por reinventar a forma de gerir pessoas que buscam mais propósito em suas vidas e não querem fazer uma demarcação do prazer apenas em sua vida pessoal, mas também despertar prazer na vida profissional.

UMA CONCLUSÃO SEM PONTO FINAL

Neste ensaio, tratamos das políticas e práticas de RH observadas e estudadas nas organizações no Brasil, passamos pela evolução conceitual para análise e dali chegamos até o momento da prescrição quanto ao que e como ensinar e aprender nesse campo. O desafio proposto para a gestão de RH e seu ensino é complexo. Desde sempre, há a necessidade de conciliar opostos: tratar da globalização e também da cultura nacional, adotar modelos e abordagens de ampla aplicação internacional e, por outro lado, contemplar as especificidades das organizações nos contextos econômico e social brasileiro; dar maior prevalência aos sentimentos e opiniões dos indivíduos no trabalho e, em contraponto, estimular o trabalho em equipe, alinhando-o às necessidades da organização; atender às exigências da organização, mas, ao mesmo tempo, não relegar a um segundo plano sua contribuição sustentada e responsável à sociedade e ao País etc.

Ou seja, é preciso envergar com força, mas também com delicadeza, o arco que opõe convergência e divergência.

De modo geral, é possível afirmar que a paciência e a tolerância com as frustrações no trabalho dentro das organizações estão ficando menores, sinalizando, assim, um potencial de protagonismo dos indivíduos. Diante disso, a GP precisa atuar duplamente, ou seja, eliminar o que for possível dos obstáculos ao trabalho bem-feito e aos bons resultados para as pessoas e organizações e, ao mesmo tempo, estimular o aprendizado para a paciência e a tolerância, elementos indispensáveis à vida social. O ritmo com que as coisas acontecem no mundo é cada vez mais acelerado. Com isso, o convencimento pela paciência e tolerância é tarefa de difícil apreensão nas organizações. É nesse ponto que a escola, com tempos e prazos mais longos e exigentes de reflexão e amadurecimento, precisa encontrar seu lugar.

  • Artigo convidado
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REFERÊNCIAS

  • Brasil. Ministério do Trabalho em Emprego (2015). Programa de Disseminação de Estatísticas do Trabalho (http://bi.mte.gov.br/bgcaged/login.php
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    May-Jun 2019
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