FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS E A SISTEMATIZAÇÃO PRÁTICA DA ANÁLISE SOCIOLÓGICA DO DISCURSO

RESUMO

O objetivo do artigo é apresentar os fundamentos teórico-metodológicos da Análise Sociológica do Discurso (ASD) e demonstrar a aplicação prática da sua base procedimental por meio de um caso exemplificador que tem como tema a cultura de devoção às organizações. O desenvolvimento do plano prático de ASD é um processo construtivo, incremental e tem seus caminhos delineados à medida que os procedimentos vão sendo desenvolvidos. Não há regra geral e/ou rígida sobre quais procedimentos serão necessários para a consecução dos objetivos da pesquisa; o que determinará a sua prática é a própria interpretação contextualizadora dos discursos. Em conclusão, o uso da ASD como lente analítica permitiu penetrar nas dimensões internas do discurso, considerando a realidade social em que ele é produzido, e proporcionou a compreensão da cultura de devoção por meio dos sentidos e significados construídos pelos trabalhadores da empresa estudada.

PALAVRAS-CHAVE:
Análise Sociológica do Discurso; método de pesquisa; pesquisa social qualitativa; análise qualitativa; cultura de devoção

ABSTRACT

The objective of the paper is to present the theoretical and methodological foundations of sociological discourse analysis (SDA) and to demonstrate the practical application of its procedural basis by way of an exemplary case that has as its theme the culture of devotion to organizations. The development of a practical SDA plan is a constructive and incremental process and its paths are outlined as procedures under development. There is no general and/or rigid rule on what procedures are necessary for achieving the research objectives; the contextualizing interpretation of the discourses will determine the practice. The use of SDA as an analytical lens enabled us to explore the internal dimensions of the discourse, considering the social reality in which it is produced and providing an understanding of the culture of devotion through the senses and meanings that are constructed by the workers of the company we studied.

KEYWORDS
Sociological discourse analysis; research method; qualitative social research; qualitative analysis; culture of devotion

RESUMEN

El objetivo del artículo es presentar los fundamentos teóricos y metodológicos del análisis sociológico del discurso (ASD) y demostrar la aplicación práctica de su base de procedimiento a través de un caso ejemplar que tiene como tema la cultura de la devoción a las organizaciones. El desarrollo del plan práctico del ASD es un proceso constructivo e incremental y se delinean sus caminos a medida que se desarrollan los procedimientos. No existe una regla general y/o estricta sobre qué procedimientos serán necesarios para lograr los objetivos de la investigación; lo que determinará su práctica es la interpretación contextualizadora de los discursos. En conclusión, el uso del ASD como lente analítica permitió penetrar las dimensiones internas del discurso, considerando la realidad social en la que se produce, y brindó una comprensión de la cultura de la devoción a través de los sentidos y significados construidos por los trabajadores de la empresa estudiada.

PALAVRAS CLAVE
Análisis sociológico del discurso; método de investigación; investigación social cualitativa; análisis cualitativo; cultura de la devoción

INTRODUÇÃO

A investigação social qualitativa, enquanto processo reflexivo e contextual, tem a função de reconstruir a realidade investigada interpretando seus aspectos objetivos e subjetivos; não se trata apenas de descrever fenômenos sociais pontuais e suas relações externas, mas sim de produzir o sentido e atribuir significado às condutas humanas e ações significativas para o conjunto de atores envolvidos (Alonso, 1998).

Para isso, existem diversas abordagens que um pesquisador pode assumir para acessar, desvelar e interpretar a realidade, ou ainda, especificamente, o seu objeto de pesquisa. Inobstante, inúmeros aspectos estão envolvidos nas definições concernentes ao processo analítico e estes, além de serem capazes de reconstruir o campo de forças sociais que deu origem à investigação, devem ir ao encontro dos objetivos da pesquisa (Ortí, 2014).

No campo dos Estudos Organizacionais, além das temáticas que abordam as dinâmicas das organizações, suas interfaces sociais, políticas, econômicas, ideológicas e psicossociais e seus efeitos sobre os indivíduos e a sociedade a partir da perspectiva crítico-reflexiva, as matrizes paradigmáticas, epistemológicas e teóricas do campo demandam o desenvolvimento de pesquisas interpretativas de sentidos e significados e que permitam conhecer a tessitura da realidade social em estudo. Para tanto, é necessário aproximar-se de “metodologias - tanto de coleta quanto de análise de material empírico - originárias e construídas no interior da sociologia” - ou seja, com tradição de amplitude multidimensional (sujeito-grupo-organização e sociedade) - que possam se apresentar como alternativas às abordagens padrões de pesquisa já amplamente praticadas na área (Godoi, Mastella, & Uchôa, 2018, p. 35).

Neste sentido, depreende-se que para este e demais campos de pesquisa que busquem suscitar a reflexividade e a crítica, desvelar as controvérsias da legitimação de relações e estruturas de poder e da manutenção de determinadas ordens sociais, a Análise Sociológica do Discurso (ASD) da Escola Qualitativista Crítica de Madri, Tradição Espanhola de Pesquisa Social Qualitativa, e todo o seu aparato epistemológico, teórico e técnico-metodológico, apresenta-se como um referencial apropriado. A ASD intenta conhecer as motivações e reconstruir os sentidos dos discursos considerando o contexto social e a historicidade implicados nestes (Alonso, 1998; Godoi, 2010; Godoi, Coelho, & Serrano, 2014).

Na tentativa de retratar historicamente as origens e as perspectivas teórico-epistêmicas da ASD, percebe-se claramente suas raízes interdisciplinares - linguística, semiótica, estudos literários, antropologia, sociologia, teoria da comunicação, psicologia social e comunicação -, seu pluralismo epistemológico, sua interdisciplinaridade e fragmentação em diversas escolas e tendências. Por exemplo, os principais autores da ASD, representantes da sociologia crítica em oposição ao formalismo instrumental da sociologia empírica, podem ser situados em pelo menos três gerações (Godoi, Coelho, & Serrano, 2014).

Como representantes da primeira geração tem-se Jesus Ibáñez (Ibáñez, 2003, 2010), que constituiu o núcleo da corrente espanhola de investigação qualitativa e de ASD, e Alfonso Ortí (Ortí, 1986, 2010), ambos considerados como principais mentores do método, além de Angel de Lucas (De Lucas & Ortí, 1995). A segunda geração, que sistematizou a ASD, é representada especialmente por Luiz Enrique Alonso (Alonso, 1998), Fernando Conde (Conde, 2009), este último destaque contemporâneo na pesquisa de ASD, assim como Jorge Ruiz Ruiz (Ruiz Ruiz, 2009) e Enrique Martín Criado (Criado, 2013). Por sua vez, na terceira geração os principais representantes são Araceli Serrano e Ângel Gordo, especialmente com sua obra Gordo e Serrano (2008), em que inovaram, ainda que revisitando alguns autores da segunda geração, especialmente Conde (2009), ao buscar adaptar a aplicação da ASD para outros temas, diferentes dos tradicionalmente estudados pelos autores precursores.

No Brasil e no campo das pesquisas em organizações, a ASD ainda é uma opção pouco utilizada, sendo que além de estudos teóricos - Godoi (2005), Godoi (2010); Godoi, Coelho, & Serrano, 2014 - desenvolvidos com o intuito de aproximar as perspectivas de ASD dos Estudos Organizacionais, são poucos os trabalhos práticos adotando o método. Anterior a este estudo, foram desenvolvidas no país somente duas teses utilizando a ASD (Coelho, 2012; Mastella, 2015) e uma utilizando a Análise Sociológica Discursivo Imagética (ASDI) (Uchôa, 2017, que originou Godoi & Uchôa, 2019), e delas se originaram artigos com casos exemplificadores de sua aplicação prática (Coelho, Godoi, & Coelho, 2015; Godoi, Mastella, & Uchôa, 2018; Soares & Godoi, 2017).

O objetivo central deste artigo metodológico é apresentar os alicerces teórico-metodológicos da Análise Sociológica do Discurso (ASD) e demonstrar a aplicação de sua base procedimental por meio de um caso exemplificador.

Trata-se de um recorte de uma pesquisa mais ampla que abordou a temática da cultura de devoção nas organizações adotando a ASD como alicerce teórico-metodológico para acesso e análise da realidade em estudo. Especificamente, elegeu-se como caso exemplificador o momento da pesquisa que teve como objetivo descrever o contexto da cultura de devoção enfatizando os elementos que a compõem e a caracterizam.

A cultura de devoção compreende uma realidade de extremo envolvimento do trabalhador aos preceitos da organização, onde se cultuam de maneira inquestionável os valores, as crenças, os hábitos, os objetivos e, principalmente, sua ideologia; se renunciam os questionamentos e legitima-se um universo simbólico deificado e (con)sagrado. Neste sentido, para compreendê-la é necessário evidenciar e observar tanto aspectos práticos quanto aspectos simbólicos, perpassando pelas esferas concretas e abstratas, o que, por sua vez, requer uma postura e um olhar perscrutador para os seus elementos e, sobretudo, um posicionamento reflexivo, crítico e orientado pela e para a intersubjetividade. Demanda esta, aderente aos pressupostos teóricos e metodológicos de ASD.

Alguns estudos (Collins & Porras, 1995; Fossá, 2003) apontaram evidências da expressão (ou não) de uma cultura de devoção, e atribuíram sua manifestação nas organizações a diferentes processos. No entanto, os elementos centrais que compõem ou representam indícios de uma cultura de devoção ainda não são unanimidade nas pesquisas do tema

Em vista disso, a relevância deste artigo é especialmente apoiada pela aproximação da ASD com os Estudos Organizacionais e pesquisas em Administração. Ele demonstra a aplicação prática do método em um estudo empírico, e vem somar-se aos estudos e ao grupo de pesquisadores que trabalham para consolidar a Escola Brasileira de ASD. Embora não seja seu foco, o artigo ajuda a aprofundar os estudos sobre a cultura de devoção nas organizações, os quais ainda se encontram em estágio incipiente, carecendo de definições conceituais e investigações empíricas que explorem desde os mecanismos de formação até como e por que ela é legitimada e mantida.

Para tanto, o artigo estrutura-se em cinco seções, das quais a primeira é a introdução que apresenta a análise sociológica do discurso (ASD) e destaca a possibilidade de seu uso no campo dos estudos organizacionais. Resumidamente, e à guisa de contextualização, uma vez que não é o foco do artigo, expõe-se o tópico de um caso exemplificador, a cultura de devoção. Na segunda seção do artigo, os alicerces teórico-metodológicos da ASD são apresentados de modo a introduzir o leitor à historicidade e aos conceitos subjacentes ao método. Em seguida, a terceira seção apresenta o plano de apresentação prática do método, por meio do caso exemplificador, enquanto a quarta seção apresenta as considerações finais. As referências utilizadas são apresentadas na quinta e última seção do artigo.

FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA ANÁLISE SOCIOLÓGICA DO DISCURSO (ASD)

A Análise Sociológica do Discurso, vinculada a Escola Qualitativista Crítica de Madri, compreende uma abordagem pluralista que busca integrar a realidade, fatos, discursos e motivações sociais (Ortí, 1986, 2010), sendo o discurso social o seu parâmetro de análise (Alonso, 1998; Godoi, 2005, 2010; Godoi, Coelho, & Serrano, 2014). Ela não dissolve ou suspende o sujeito, mas busca retomá-lo a partir do texto, de modo que aqueles fatores que geram ações e sentidos possam ser revelados (Alonso, 1998; Godoi, 2005, 2010; Godoi, Coelho, & Serrano, 2014).

Há múltiplas abordagens da análise do discurso, entre as quais o foco de interpretação pode estar na palavra, no texto ou no contexto dos argumentos. A fim de demonstrar a variedade de perspectivas de análise do discurso de forma sintética, e para situar a ASD nesta lista de modelos de análise e interpretação do discurso, diversos autores têm sugerido vários níveis de abordagem do tema, tais como os propostos por Ortí (1986), Alonso (1998) e Ruiz Ruiz (2009).

Inicialmente, Ortí (1986) propôs o que chamou de processo de construção sociológica da realidade, compreendendo três níveis, regiões ou estruturas sociais: a) o campo do fato: o que acontece e é feito; b) o universo do discurso: o que é dito, expresso ou significado; c) o domínio da motivação: a razão para a interação social, seu significado, intencionalidade ou propósito, seja ele consciente ou não.

Por sua vez, Alonso (1998), um dos principais teóricos do tema, propôs organizá-lo em três níveis - ou dimensões, como ele recentemente as chamou (Alonso, 2012) - de aproximação do discurso: informacional-quantitativo; estrutural-textual; e social-hermenêutico.

O nível informacional-quantitativo possui uma perspectiva de análise que equivale à análise de conteúdo clássica, na qual a unidade central de análise é a palavra (Alonso, 1998). O texto é reduzido a um conjunto de palavras, pelo qual seus significados simbólicos são excluídos, e o processo de produção social impossibilitado (Alonso, 1998; Godoi, 2010).

Cobrindo a maior parte da tradição francesa de análise do discurso, o parâmetro de análise do segundo nível de aproximação do discurso, o nível estrutural-textual, é o texto, a partir do qual se realiza uma análise internalista de suas partes excessivamente decompostas (Alonso, 1998). Essencialmente estruturalista, já que se esforça em encontrar a lógica interna que dá significado à estrutura textual, o foco desta dimensão é a análise linguística do texto, a materialização do discurso, porém sem considerar sua inserção no contexto social (Alonso, 1998).

O terceiro nível de aproximação do discurso, o social-hermenêutico, também chamado de interpretação social do discurso ou etnolinguística do discurso, onde reside a ASD, possui como núcleo a análise internalista e externalista do texto. Em outras palavras, o texto como um todo é considerado no contexto da produção do discurso, a fim de entender como ele foi produzido em determinada realidade social (Alonso, 1998; Conde, 2009).

De modo semelhante às proposições de Alonso (1998), Ruiz Ruiz (2009) também propõe a análise do discurso em três níveis de aproximação, chamados de textual, contextual e de interpretação sociológica. O primeiro nível, o textual, diferentemente daquele de Alonso (1998), foca no conteúdo e na análise semiótica, em que o discurso é caracterizado a partir do enunciado. O nível contextual abarca a compreensão dos significados dos discursos centrando-se na enunciação e considerando o contexto situacional e intertextual. No terceiro nível, o da interpretação sociológica, a explicação do discurso baseia-se nas dimensões da informação, ideologia e produto social (Ruiz Ruiz, 2009).

De acordo com Alonso (1998), a ASD está apenas no terceiro nível, o social-hermenêutico, enquanto no entendimento de Ruiz Ruiz (2009), que é também compartilhado por Ortí (1986) e Conde (2009), o processo da ASD deve envolver todos os níveis.

Apesar dessas aparentes diferenças, as abordagens de Alonso (1998) e Ruiz Ruiz (2009) são consistentes quando levamos em consideração que o primeiro e o segundo níveis não são suficientes para a análise sociológica, que, na verdade, é efetiva no nível de interpretação social-hermenêutico em Alonso (1998), e no nível da interpretação sociológica em Ruiz Ruiz (2009) (Coelho, 2012).

Destes, sobreleva-se o terceiro nível de aproximação do discurso, o social-hermenêutico, em que o intuito consiste em revelar os significados atrelados à realidade organizacional estudada, e não somente a análise pura da palavra estritamente como enunciada e da estrutura interna do texto, características da análise de conteúdo clássica (primeiro nível) ou análise semiótica (segundo nível).

No nível social-hermenêutico, a análise supera o nível textual. A interpretação do discurso se dá através da pragmática, e foca no processo de comunicação, e nas interações e conflitos entre os grupos sociais, considerando o contexto no qual se situam (Conde, 2009). No nível social hermenêutico, a ASD compreende um processo cíclico entre a materialidade do texto, o contexto da produção do discurso e as características do grupo social ao qual pertencem os autores (Godoi, 2010; Godoi, Coelho, & Serrano, 2014).

Cabe destacar que, na prática, a ASD ocupa-se tanto do texto materializado (análise textual interna) quanto do sujeito social e da linguagem enquanto espaço de disputa de poder, conflito e ideologia (análise textual externa); ela atravessa o texto e o contexto para obter uma interpretação social do discurso. Esta é uma de suas principais diferenças em relação a outras abordagens de AD que desenvolvem uma análise puramente interna (por exemplo, análise de conteúdo clássica) (Godoi, Mastella, & Uchôa, 2018).

Esta é, portanto, uma análise contextual dos argumentos, chamada de análise sócio-hermenêutica e pragmática (Alonso, 1998; Serrano, 2008), de interpretação contextualizadora, na qual o discurso e o contexto estão interligados. Observa-se a dinâmica da construção dos discursos a partir da realidade social e da edificação desta por meio dos discursos (Godoi, Coelho, & Serrano, 2014). Para Ruiz (2009), este é exatamente o ponto que diferencia a ASD de outras abordagens de análise do discurso: sua conexão entre o discurso e as realidades sociais que o rodeiam.

O ponto central da ASD é a interpretação contextualizadora. Ela vai além do texto e considera a pragmática do discurso como reveladora da prática social. Ela vai além do que é literalmente dito (enunciação), manifesto e explicitado para identificar o sujeito no discurso (enunciação), e, assim, revelar o que está implícito e latente (Alonso, 1998; Godoi, 2005, 2010). Para Godoi (2005, 2009, 2010), pesquisador da ASD brasileira, esta abordagem da análise do discurso é o que importa em estudos organizacionais.

O contexto na ASD envolve tanto objetos e ações quanto os hábitos, costumes, crenças e outros aspectos subjetivos e simbólicos da realidade social (Alonso, 2002). Trata-se do conjunto de circunstâncias vivenciadas, idealizadas ou relativas a um encadeamento situacional, as referências socioculturais que dão significado ao discurso (Alonso, 1998; Godoi, 2010).

O discurso, por sua vez, não compreende apenas palavras, mas também expressões de práticas sociais, sistemas de relações e práticas não discursivas no sentido literal. Ele é uma expressão da consciência do sujeito que o profere (Alonso, 1998, 2012), um sinalizador de construções ideológicas, inconsistências, contradições e fragmentações sociais (Godoi, Coelho, & Serrano, 2014; Ruiz Ruiz, 2009).

A ASD é praxeológica, busca entender os processos sociais dentro de sua estrutura e explicar o significado das ações dos sujeitos sociais. Para Ruiz Ruiz (2014), analisar sociologicamente o discurso vai além da pragmática, e trata não apenas da interpretação de suas dimensões explícitas, mas também de suas intenções implícitas e ocultas, que estão invariavelmente presentes no discurso social.

Em termos operacionais, a ASD está longe de ser uma técnica que possa ser padronizada ou prescrita por meio de um manual de procedimentos estritos. Em sua tentativa de entender os fenômenos sociais, é um processo interpretativo flexível e dinâmico que deve ser adaptado a cada pesquisa, devido a suas peculiaridades e à criatividade do pesquisador (Conde, 2009).

Como diretriz, Conde (2009) buscou sistematizar a teoria da ASD - e foi o primeiro a fazê-la - em procedimentos práticos divididos em etapas que podem servir como um guia inicial para o pesquisador. Para tanto, conforme mostra a Figura 1, o autor propõe quatro etapas principais para o seu desenvolvimento, as quais se subdividem em processos: 1) Trabalhos Práticos Iniciais de ASD; 2) Procedimentos de Interpretação em ASD; 3) Procedimentos de Análise em ASD, e; 4) Procedimentos Complementares à Análise e Interpretação em ASD.

Figura 1
Plano prático de ASD

Ao longo de todo o desenvolvimento do plano prático da ASD, são utilizadas representações gráficas como ferramentas de visualização e ordenamento, e podem ser apresentadas em diferentes formatos: quadros, matrizes, esquemas, figuras, entre outros, a cargo da criatividade do pesquisador (Conde, 2009; Godoi, Coelho, & Serrano, 2014). As representações gráficas são de fundamental importância para o pesquisador no processo de criação e validação das conjecturas, para a identificação das dimensões mais relevantes das linhas de análise e interpretação, e para permitir a emergência de evidências da evolução, ao longo do tempo, de posições discursivas, configurações narrativas e espaços semânticos construídos. Elas também estabelecem as relações contextuais dos conceitos gerados e, ainda, configuram e analisam os sistemas de discurso (Coelho, 2012).

Plano Prático de Análise Sociológica do Discurso (ASD): o caso da cultura de devoção na empresa Liberty

O caso utilizado neste artigo como exemplo é parte de uma pesquisa mais ampla, cujo objetivo geral era entender o processo envolvido na legitimação e manutenção da cultura de devoção e seu entrelaçamento com as razões pelas quais os funcionários toram-se devotados a uma organização. Um dos objetivos específicos desta pesquisa, que foi epistêmica e metodologicamente concebida no campo dos estudos organizacionais críticos, foi descrever o contexto da cultura de devoção por meio da enfatização dos elementos que a compõem e caracterizam. Este foi o exemplo utilizado para demonstrar o uso da ASD através de uma lente analítica. Adotando-se uma abordagem qualitativa e exploratória, este é um estudo de caso intrínseco realizado em uma empresa no campo da Tecnologia da Informação (TI) e da Inteligência Estatística (IE). Seu nome fictício é Liberty, escolhido por ser representativo do fenômeno estudado.

A Liberty, fundada em 2001, é líder no mercado antifraude. Ela vende soluções antifraude para o mercado de varejo (com foco em e-commerce, telecomunicações, serviços financeiros, vendas diretas e seguro), tais como plataformas/sistemas de análise e tomada de decisão relacionadas à aprovação/reprovação de pedidos (compras de consumidores finais), ou gestão completa de combate a fraudes. No momento da pesquisa, ela contava com 1.107 funcionários trabalhando em sua sede, em São Paulo/SP. Contava ainda com oito funcionários (quatro brasileiros e quatro americanos) trabalhando nos Estados Unidos, onde instalou um escritório em 2015 e iniciou seu processo de internacionalização.

Para desenvolver a pesquisa, foi composto um corpus analítico de entrevistas semiestruturadas, realizadas com funcionários em diferentes posições discursivas, de modo a obter uma visão panorâmica da realidade estudada, conforme indicado por Ruiz Ruiz (2009). Ao total foram entrevistados trinta trabalhadores, sendo dez do nível organizacional da “gestão” (G) e vinte da “operação” (OP).

As entrevistas foram gravadas em áudio, e, ao final delas, percepções, reflexões, lembretes e insights eram registrados em um caderno, instrumento de apoio à documentação do processo de pesquisa, que também contribuiu para o desenvolvimento analítico prático dos dados, orientado pela ASD. Em seguida, as entrevistas foram transcritas na íntegra, com a adoção de convenções simbólicas para registrar a identidade do falante (pesquisador ou entrevistado), interrupções, hesitações, classes não gramaticais e até padrões de formatação de texto.

Ademais, foram realizadas observações diretas livres, sem o uso de categorias predefinidas ou roteiros de observação (Trivinõs, 2008) e realizadas em todos os momentos em os pesquisadores estiveram presentes na empresa tendo como foco as práticas, os eventos, os discursos, as ações, atitudes e comportamentos no cotidiano de trabalho. As observações foram utilizadas como subsídio para compor o contexto organizacional em que a pesquisa se desenvolveu, e para registrar vivências no campo.

O plano prático de ASD se inicia com os Trabalhos Práticos Iniciais, que correspondem a tarefas gerais e introdutórias que antecedem os processos de interpretação e análise propriamente ditos. Envolvem quatro procedimentos principais detalhados no Quadro 1.

Quadro 1
Trabalhos Práticos Iniciais

PROCEDIMENTO		Descrição
Preparação da análise dos textos	Tarefas imediatamente posteriores ao trabalho de campo	Identificação de temáticas significativas. Elaboração de mapas de posicionamento de identificação de pontos de conflito (texto e imagem). Registro das primeiras intuições, sensações, ideias e conclusões das entrevistas realizadas.
	Transcrições	Transcrição literal das entrevistas. Releitura das transcrições acompanhada dos áudios. Inclusão de comentários, pausas, saídas, movimentos, intervenientes durante a entrevista.
		Elaboração do perfil dos entrevistados.
Preparação do trabalho de leitura	Leitura ordenada do corpus do texto	Criação de uma ordem inicial provisória de leitura das entrevistas.
	Leitura literal do texto	Leitura e releitura literal do texto, atentando para a mudança da forma habitual de leitura. Identificação de peculiaridades geradoras de pistas que conduzem as conjecturas.
Decomposição e abordagem integral dos textos	Decomposição em unidades elementares	Decomposição analítica - unidades elementares de análise (rubricas, temas ou categorias de análise ou unidades de sentido) para posterior síntese.
	Aproximação integral do texto	Aproximação do texto de forma global e integral (aproximação integrativa).
Anotações gerais nos textos		Caracterização, classificação e codificação de conteúdos; marcação de expressões, insights, associações, hipóteses, elementos importantes.

Conde (2009)

Após os Trabalhos Práticos Iniciais, passamos para os Procedimentos de Interpretação, segunda etapa do plano prático de ASD, centrada em dois processos: elaboração das conjecturas pré-analíticas e a análise dos estilos discursivos.

A elaboração das conjecturas pré-analíticas, isto é, das hipóteses iniciais, permite compor um sentido geral do texto a ser composto e a interpretação do discurso dirigido ao objetivo da pesquisa (Conde, 2009). Validando-as, é possível verificar sua capacidade de integrar e explicar as opiniões, julgamentos, posições e debates da maioria dos sujeitos pesquisados, comparando-os com os objetivos da pesquisa, sendo possível realizar correções e modificações conforme necessário (Conde, 2009). As conjecturas pré-analíticas são gradualmente formuladas durante o processo de análise e, quando necessário, corrigidas e modificadas, obtendo-se, assim, conjecturas analíticas que destacam a maioria das posições e entendimentos dos sujeitos pesquisados.

Entende-se a cultura de devoção como um sistema de elementos simbólicos engendrados por meio de práticas organizacionais regulamentadoras e promulgadoras da veneração, dedicação e lealdade, do estabelecimento de vínculos e sentimentos de pertencimento, ligação e identificação. Aos trabalhadores são apresentadas significações simbólicas e racionais para interpretar e vivenciar o mundo diferenciado e privilegiado criado por meio da institucionalização da ideologia dominante e pelo desenvolvimento de uma religiosidade organizacional, ambas calcadas num coeso aparelho disciplinar.

Neste sentido, entender a cultura de devoção começa com a realidade social e a interpretação de seu contexto. Isto envolve as características do cenário organizacional, o trabalho diário, as práticas que materializam e equipam sua existência, e, finalmente, são descritos os elementos que o compõem e o tornam evidente. Para tanto, o estudo realizado na Liberty começou com uma descrição detalhada de seu contexto cultural, que foi registrado a partir de experiências no campo, e analisado utilizando os discursos dos trinta funcionários que entrevistamos. Especificamente, no contexto da cultura de devoção, observamos:

• Ambiente descontraído, informal e acolhedor, que permite a cada um a expressão de sua própria identidade e faz com que seus membros se sintam parte de algo especial;

• Envolvimento pessoal, estabelecimento de vínculos e ligações, criação de atmosfera familiar que torna a empresa um lar fora do domicílio, um espaço que mistura dever e prazer;

• Cotidiano de trabalho baseado nas propostas de liberdade, flexibilidade e descontração, mesclando em um mesmo espaço e tempo, períodos de intenso trabalho com momentos de descontração e foco em questões pessoais;

• Eventos de integração, momentos de lazer e atividades sociais entre os colegas, ações voltadas ao bem-estar, saúde, arte e educação dos funcionários;

• Grupos de apoio e diálogos sobre questões pessoais, eventos para levar a família para dentro do trabalho, bem como programas de indicação de pessoas para trabalharem na empresa;

• Ações de endomarketing e comunicação interna, programas de engajamento, políticas e processos centrais em gestão de pessoas - recrutamento, seleção, socialização, treinamento, desenvolvimento - imbuídos de significado;

• Rígido processo seletivo voltado para o alinhamento cultural;

• Extensa e intensa programação de adaptação para novos funcionários;

• Programas de treinamento, de criação própria, realizados dentro da empresa e direcionados para o core do negócio;

• Oferta e/ou facilitação na realização de cursos de aperfeiçoamento voltados para o desenvolvimento do profissional;

• Eventos, rituais e celebrações, espaços de instituição de seus dogmas, disseminação dos seus valores e filosofias, e, sobretudo, de doutrinação cultural.

A partir desta composição e caracterização do contexto cultural da Liberty, emergiu uma Conjectura Pré-Analítica acerca do papel do contexto cultural no processo de manutenção da cultura de devoção. A representação gráfica a seguir (Figura 2) apresenta a hipótese explicativa inicial.

Figura 2
Conjectura pré-analítica - o papel do contexto cultural na manutenção da cultura de devoção

A Conjectura Pré-Analítica estabelecida consistiu no entendimento do contexto cultural, caracterizado por um plano concreto e um plano subjetivo, como uma infraestrutura de manutenção da cultura de devoção. Os simbolismos que permeiam o contexto cultural são disseminados constantemente tanto no cenário, nas práticas e estratégias organizacionais (plano concreto), quanto nas significações trabalhadas pela empresa (plano subjetivo) e, desta forma, asseguram objetiva e subjetivamente a subsistência da cultura de devoção.

Dando continuidade ao processo analítico, passou-se para a análise dos estilos discursivos - Procedimento de Interpretação de ASD -, que envolve o reconhecimento das possíveis linhas de condicionamentos dos sujeitos da pesquisa. Os condicionamentos podem compreender as características gerais do grupo social, dada sua inserção em uma estrutura social e ideológica, bem como as características singulares, biográficas e atitudinais do sujeito em relação fenômeno social estudado (Conde, 2009).

Neste sentido, percebemos que as visões, experiências e simbolismo absorvidos a partir do contexto cultural estão condicionados pelo nível hierárquico e pelo setor em que o funcionário opera. Em outras palavras, a posição social do funcionário na empresa guia suas percepções, experiências e interpretações da cultura. Excertos do discurso de dois entrevistados dos níveis de “gestão” (G) e “operação” (OP) da organização demonstram, como sugere Conde (2009), os estilos narrativos e as formas mais expressivas de construção do discurso sobre o contexto cultural:

G_4 - Vice-Presidência: [...] eu quero que os meus funcionários pensem na empresa o tempo todo, assim como eu os permito a pensar na vida pessoal quando estão na empresa.

OP_12 - Setor Operacional: Quando eu entrei na Liberty que eu conheci a cultura, que eu vi a forma de trabalhar, e vi o que a gente faz, eu me apaixonei, isso é muito bom, você trabalhar, eu moro em Poá, uma cidadezinha que tem aqui em São Paulo, é longe eu demoro cerca de 2, 2 horas e meia da minha casa. São Paulo é muito grande né, é muito grande, vive com trânsito, vive com metrô parando, então demora bastante e daí o pessoal: nossa, o que que te motiva ficar duas horas, gasta 4 ou 5 horas por dia de condução ida e volta? Mas é muito bom, aqui é uma família, o tempo passa e eu não vejo.

Os discursos dos entrevistados da “gestão” e da “operação”, revelam uma interpretação do contexto cultural permeada por uma multiplicidade de simbolismos que são atrelados a tudo que vivenciam na empresa, desde o usufruto dos espaços físicos, o cotidiano, as práticas e políticas de gestão de pessoas, até a forma de se relacionar no ambiente de trabalho, são imbuídas de significações e subjetividades.

Os principais simbolismos latentes nos discursos dos funcionários da Liberty foram a ideia de “troca”, de relação ganha-ganha entre a empresa e o funcionário, o sentimento de “propriedade”, de ser dono da empresa, por eles denominado ownership, o trabalho com “propósito” e valor social, e o estabelecimento de “vínculos” íntimos e fortes no ambiente organizacional, considerando a empresa como uma família, um lar.

Passamos, então, aos Procedimentos de Análise em ASD, etapa em que se realiza uma análise sistemática do texto, por meio da análise dos posicionamentos discursivos, das configurações narrativas e dos espaços semânticos, bem como do processo de relacionar as configurações narrativas e os espaços semânticos.

A análise dos posicionamentos discursivos é desenvolvida, inicialmente, pela identificação das frações discursivas, isto é, de pequenos posicionamentos dos sujeitos que, após, são agrupados, dando surgimento às posições discursivas propriamente ditas (Conde, 2009). Na sequência, a análise das configurações narrativas se ocupa, sobretudo, em expor o eixo central da mensagem manifestada no discurso (Godoi, Coelho, & Serrano, 2014), retratando, na medida do possível, os significados latentes manifestos nos textos (Coelho, 2012).

Ocorre que ao analisar o posicionamento discursivo - Quem é o sujeito social que fala? De que lugar social fala? - e as configurações narrativas - De que se fala? Como se organiza a fala? -, verificou-se a existência de diferenças nos principais simbolismos expressos nos discursos dos funcionários que são determinadas, principalmente, pelo seu posicionamento social na empresa.

Ao correlacionar o discurso concreto com o espaço social e, desta forma, desenvolver uma interpretação sociológica do discurso, verificamos que as visões dos funcionários da Liberty acerca do contexto cultural posicionam-se entre dois polos, idealista e estratégico, e acabam definindo a configuração narrativa dos simbolismos produzidos nestes mesmos dois polos.

A representação gráfica expressa na Figura 3 demonstra o posicionamento discursivo e as configurações narrativas acerca do contexto cultural. O eixo horizontal da representação gráfica corresponde à visão do contexto cultural, de idealista a estratégica, e o eixo vertical aos principais simbolismos expressos nos discursos, também variando entre idealista e estratégico. Os sujeitos da pesquisa são representados por blocos de cor cinza contendo a sua sigla de identificação e o setor em que trabalham, e foram distribuídos entre os eixos da figura de acordo com a visão que possuem do contexto cultural e com os simbolismos predominantes em seu discurso.

Com a distribuição dos sujeitos da pesquisa nos eixos da representação gráfica, formaram-se três agrupamentos de posições discursivas e, consequentemente, de diferentes percepções, caracterizadas pelo nível hierárquico do qual fazem parte e pela sua relação e/ou proximidade da parte central do negócio. Administração (1), Core (2) e Operacional (3) compõem grupos que qualificam a visão do contexto cultural, criam, interpretam e, ao mesmo tempo, disseminam simbolismos de acordo com os condicionamentos inerentes a seu posicionamento social.

Passando para a terceira e última etapa da tríade de Procedimentos de Análise da ASD, analisam-se os espaços semânticos que, constituindo uma análise mais internalista dos textos, concentra-se em dois elementos principais: 1) análise dos atratores semânticos, ou seja, análise das principais expressões verbais e simbólicas que organizam e configuram o campo de significações de cada espaço; e 2) análise dos eixos discursivos, os quais vinculam um ou outro atrator semântico, tecendo a trama que relaciona um espaço semântico e outro (Godoi, Coelho, & Serrano, 2014).

Figura 3
Posicionamentos discursivos e configurações narrativas - contexto cultural

Ao analisar os espaços semânticos - Qual o significado do que se fala? O que está em jogo quando se fala? Dos discursos dos entrevistados do grupo da Administração, verificou-se que o simbolismo da “troca” é predominante, ficando, portanto, em torno dele o eixo discursivo central acerca do contexto cultural da Liberty.

Para este grupo de entrevistados, o contexto cultural da Liberty é estratégico quando estabelece um mecanismo de compensação entre o trabalhador e a empresa. “Este ambiente acolhedor né, faz você relaxar pra trabalhar bem [...]” (G_6 - Diretor do Operacional); “[...] na verdade é uma troca, um ganha-ganha, né?!” (G_7 - Gerente da Gestão de Pessoas); “Então, tem essa liberdade, mas porque precisa entregar muito [...]” (G_9 - Gerente do Operacional). Estes são alguns exemplos das principais expressões verbais e simbólicas que organizam e configuram o campo de significações dos entrevistados deste grupo sobre o contexto cultural da Liberty.

De modo geral, realizando-se uma análise externalista, que considera perspectivas e pontos de vista, e uma análise internalista, focada no conteúdo e nas declarações concretas, o que o discurso dos entrevistados do grupo denominado Administração revela são argumentos teleológicos que expressam, como propósito da composição do contexto cultural, a expectativa de retribuição do funcionário com desenvolvimento e bons resultados, para si e, por conseguinte, para a empresa.

Acerca dos discursos dos funcionários do Core, conforme demonstrado na Figura 3 ao representar as configurações narrativas, os principais simbolismos identificados foram o senso de “propriedade” e de “propósito” social no trabalho que desempenham, a prevenção à fraude. Além destes simbolismos centrais, alguns destacaram o “vínculo” de intimidade estabelecido com a empresa e, em menor expressividade, a “troca” entre empresa e trabalhadores no que diz respeito a bem-estar no trabalho e empenho com os objetivos organizacionais. Por sua vez, os simbolismos citados de modo precípuo pelos sujeitos do grupo Operacional foram os “vínculos” que estabelecem com os colegas de trabalho, com a empresa e tudo o que ela representa em suas vidas, seguido do entendimento de um trabalho com “propósito” e valor social. A Figura 4 representa graficamente os espaços semânticos emblemáticos dos discursos dos dois grupos, Core e Operacional, quer dizer, apresenta as principais materialidades verbais e conteúdos que se desenvolveram nos discursos destes sujeitos.

Figura 4
Espaços semânticos - Core e Operacional - contexto cultural

Diversos caminhos narrativos e argumentativos foram se desenvolvendo ao longo dos discursos dos entrevistados que compuseram os grupos Core e Operacional, mas é fácil reconhecer que o fio condutor das falas de ambos foram os liames que se estabelecem entre a empresa e os funcionários e dos funcionários entre si.

Também notamos nos discursos dos entrevistados do Core e do Operacional que todos estes simbolismos que são produzidos e disseminados - propriedade, propósito e vínculos - são utilizados como justificadores da realidade instaurada a partir da cultura de devoção, que, ao mesmo tempo, lhe proporciona todo este contexto interpretado como benéfico, mas que exige envolvimento e doação extrema, excelência e superioridade e, assim, conduz à autocobrança contínua, não separação do tempo de trabalho e de não trabalho e o domínio sobre os planos do trabalhador que sente-se incapaz de imaginar-se fora da empresa.

O contexto cultural da Liberty, concomitantemente, produz e dissemina simbolismos diferentes em cada nível organizacional, cabíveis ao posicionamento social do funcionário na empresa, por exemplo, o sentimento de propriedade - ownership - não é um simbolismo que atinge os funcionários operadores. Isso é salutar para a manutenção da cultura de devoção, pois o que é relevante e significativo para uma realidade pode não ser para a outra, dado seu contexto de trabalho, circunstâncias de vida e relações com o trabalho. Para isso, os líderes intermediários são ferramentas importantes na manutenção da cultura de devoção, pois de nada adiantaria a gestão idealizar valores e uma filosofia se não houvesse os vetores para disseminá-la. Eles representam a interseção entre os polos naturalmente existentes nas organizações; empresa e funcionários, gestores e trabalhadores.

Desta forma, ao cotejar as vivências do campo com os discursos dos sujeitos da pesquisa, ajustou-se e validou-se a Conjectura Pré-Analítica acerca do papel do contexto cultural como infraestrutura de manutenção da cultura de devoção. Para tanto, demonstra-se na representação gráfica denominada de Figura 5 a Conjectura Analítica que caracteriza o entendimento acerca do processo de manutenção da cultura de devoção.

Figura 5
Conjectura analítica - o papel do contexto cultural na manutenção da cultura de devoção

O plano concreto (cenário, práticas e estratégias organizacionais) do contexto cultural é a representação material, física e objetiva da cultura de devoção, estimulando a criação de simbolismos que, sincronicamente, são disseminados com o apoio dos líderes intermediários. Os simbolismos produzidos e/ou que atingem cada nível organizacional são diferentes e estão relacionados, principalmente, ao posicionamento social do trabalhador na empresa. Por sua vez, o plano subjetivo abarca as significações produzidas a partir do plano concreto e, sobretudo, com base nos simbolismos.

Finalmente, ao concluir a demonstração da aplicação prática da base procedimental da Análise Sociológica do Discurso (ASD), cabe reiterar que se trata de um processo analítico, construtivo e incremental. Portanto, as conclusões acerca do contexto cultural são resgatadas ao longo das análises das demais dimensões analíticas do estudo mais amplo realizado abordando a temática da cultura de devoção. Ademais, destaca-se que o método não foi desenvolvido da mesma forma e seguindo a mesma ordem nos momentos seguintes da pesquisa, pois, conforme já explicado, não se trata de um método rígido, mas sim, empreendido pelos pesquisadores pautando-se na consecução dos propósitos da pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Utilizando um caso exemplificador para apresentar os fundamentos teórico-metodológicos e demonstrar a aplicação prática da base procedimental da Análise Sociológica do Discurso (ASD), este artigo traz contribuições de cunho temático e, especialmente, metodológico -objetivo principal.

Ao realizar um estudo abordando a temática da cultura de devoção, é necessário adotar uma abordagem que permita desvelar os processos, sentidos e significados construídos e compartilhados pelos trabalhadores que fazem parte deste universo simbólico. Em face disto, considerou-se a Análise Sociológica do Discurso (ASD) da Escola Qualitativista Crítica de Madri, Tradição Espanhola de Pesquisa Social Qualitativa, como um referencial apropriado.

A adoção da ASD, não apenas como opção analítica para o material empírico, mas também como posição em relação ao fenômeno estudado, mas, acima de tudo, como abordagem e forma de conduzir a pesquisa como um todo, permite aos acadêmicos penetrar nas dimensões internas do discurso, e ir além do plano manifesto, considerando a realidade social na qual é produzido.

Para tanto, os primeiros procedimentos desenvolvidos foram os Trabalhos Práticos Iniciais, seguidos dos Procedimentos de Interpretação e dos Procedimentos de Análise. Concomitantemente, foram desenvolvidas algumas etapas práticas dos Procedimentos Complementares, especificamente, análises de associações e condensações. O deslocamento, ou seja, mudanças de tema e conteúdo, expressões indicando uma posição defensiva, conflito, ruptura, censura ou repressão (Conde, 2009) não foram observados no discurso dos entrevistados. Cabe destacar que os Procedimentos Complementares têm sua origem calcada em teorias psicanalíticas (Godoi, 2018), exigindo o conhecimento específico do pesquisador para identificar e interpretar estes mecanismos em profundidade.

Nesse sentido, com relação às contribuições do caso exemplificador ao tema, após desenvolver o plano prático de ASD para descrever o contexto da cultura de devoção e enfatizar os elementos que a compõem e caracterizam, verificamos que o contexto cultural se configura como um substrato ineludível da cultura de devoção, pois por meio da pulverização amiúde de simbolismos em instâncias concretas e observáveis, subjetivas e intangíveis, cerca o consciente e o inconsciente do funcionário. Portanto, o contexto cultural não só representa e ecoa a mensagem que a empresa quer transmitir, como, também, possibilita a institucionalização de uma infraestrutura de manutenção da cultura de devoção ao longo do tempo.

Vale ressaltar, como frisado por Conde (2009), que o processo de análise não constitui uma sequência didática padronizada, nem engessada em um plano a ser mecanicamente seguido. Pelo contrário, nem todos os passos são necessários em todas as pesquisas, e cabe ao pesquisador verificar sua relevância e adequação ao objetivo da pesquisa. No estudo mais amplo do qual o caso exemplificador faz parte, por exemplo, foi necessário aplicar o plano prático completo de ASD outras vezes, e a ordem dos procedimentos não ocorreu necessariamente da mesma forma como foi aqui apresentada, mas de acordo com as percepções dos pesquisadores em relação à necessidade de alcançar o objetivo geral da pesquisa.

É também importante apontar que, dado o objetivo de demonstrar a aplicação prática da base procedimental da ASD, o foco deste artigo metodológico não foi aprofundar-se nos resultados e discussões acerca da cultura de devoção,; ela foi apenas utilizada como caso exemplificador e pano de fundo para ilustrar o uso do método.

Finalmente, com relação às contribuições metodológicas, considerando que a ASD ainda é pouco aplicada em pesquisas empíricas no campo dos Estudos Organizacionais e da Administração, espera-se que o artigo possa auxiliar a prática de pesquisadores iniciantes e incentivar a sua adoção em investigações qualitativas, sobretudo, em estudos críticos aos quais a ASD se adere, na medida em que não se ocupa apenas da esfera visível da linguagem e busca penetrar nas faces não expressamente manifestas pelos sujeitos.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  17 Dez 2021
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  25 Out 2020
• Aceito
  18 Maio 2021