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EM DEFESA DA CONSIDERAÇÃO DO CORPO ERÓGENO NOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

En defensa del cuerpo erógeno en los Estudios Organizacionales

RESUMO

Este artigo pretende contribuir com o estudo da corporalidade no campo dos Estudos Organizacionais a partir da noção psicanalítica de corpo erógeno. Existem investigações tanto sobre a corporalidade quanto de quadro psicanalítico no âmbito dos Estudos Organizacionais, mas há também uma lacuna a respeito das contribuições psicanalíticas especificamente sobre o corpo para esse campo. Demonstramos essa lacuna a partir de uma retomada da questão da corporalidade nos Estudos Organizacionais desde as origens racionalistas do parentesco entre medicina anatomopatológica e a teoria das organizações. Em seguida, apresentamos a conceituação psicanalítica de corpo erógeno desde uma ruptura com a medicina anatomopatológica. Por fim, retomamos um extenso estudo etnográfico sobre o corpo em bancos de investimento e discutimos como a noção de corpo erógeno pode iluminar os impasses nele presentes.

Palavras-chave:
corporeidade; psicanálise; corpo erógeno; organizações; gestão

RESUMEN

Nuestro objetivo es de contribuir con los estudios sobre corporalidad en el campo de los estudios organizacionales desde la noción psicoanalítica de cuerpo erógeno. Hay investigaciones acerca de la corporalidad y también de cuadro psicoanalítico en los estudios organizacionales, pero hay también un vacío con respeto a las contribuciones psicoanalíticas específicamente sobre el cuerpo en ese campo. Presentamos ese vacío desde una recuperación de la cuestión de la corporalidad en los estudios organizacionales a partir de los orígenes racionalistas del parentesco entre la medicina anatomopatológica y la teoría de las organizaciones. A continuación, presentamos la conceptualización psicoanalítica de cuerpo erógeno desde una ruptura de la medicina anatomopatológica. Finalmente, examinamos una extensa etnografía acerca el cuerpo en bancas de inversión y discutimos cómo la noción de cuerpo erógeno puede aclarar los impasses presentes en él.

Palabras clave:
corporeidad; psicoanálisis; cuerpo erógeno; organización; administración

ABSTRACT

This article aims to contribute to the study of corporeality in the field of organizational studies from the perspective of the psychoanalytical notion of the erogenous body. Investigations into corporeality and the psychoanalytical framework exist in organizational studies, but there is also a lack of psychoanalytical contributions with specific regard to the body in this field. We demonstrate that this gap exists by revisiting the question of corporeality in organizational studies, starting from the rationalist origins of the kinship between anatomopathological medicine and the theory of organizations. We then present the psychoanalytical conceptualization of the erogenous body starting with its rupture from anatomopathological medicine. In conclusion, we present an extensive ethnographic study of the body in investment banks and discuss how the notion of the erogenous body can throw light on the impasses found in it.

Keywords:
corporeality; psychoanalysis; erogenous body; organization; management

INTRODUÇÃO

O interesse pelo exame do lugar do corpo e da temática da corporalidade (embodiment) nos Estudos Organizacionais iniciou-se entre o final dos anos 1980 e os anos 1990, momento em que o campo passou a se abrir a outras perspectivas teóricas, classificadas por alguns como “pós-modernas”, muito distantes dos interesses empresariais tradicionais (Dale, 2001Dale, K. (2001). Anatomising embodiment and organization theory. Basingstoke, UK: Palgrave.). Foi a partir de então que uma série de investigações da área começou a se mostrar sensível aos assuntos ligados ao corpo, vinculada especialmente a temas como gênero, diversidade, emoção e expressão de sentimentos, sexo, gestos e ornamentação (Flores-Pereira, 2010Flores-Pereira, M. T. (2010). Corpo, pessoa e organizações. Organizações & Sociedade, 17(54), 417-438. doi: 10.1590/S1984-92302010000300002
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). Assim, desde esse momento, pode-se afirmar que surgiu uma “pequena, mas sólida corrente de investigações acadêmicas” (Hope, 2011Hope, A. (2011). The body: A review and a theoretical perspective. In E. L. Jeanes, D. Knights, & P. Y. Martin (Eds.), Handbook of gender, work and organization (pp. 131-146). Chichester, UK: John Wiley & Sons. p. 138) em torno do tema. Seguiremos a sugestão de tradução fundamentada por Flores-Pereira, Davel e Almeida (2017)Flores-Pereira, M. T., Davel, E., & Almeida, D. D. (2017). Desafios da corporalidade na pesquisa acadêmica. Cadernos EBAPE.BR, 15(2), 194-208. doi: 10.1590/1679-395149064
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, os quais, apesar de reconhecerem que o “termo embodiment ainda não foi traduzido de forma consensual em língua portuguesa, sendo empregado de modo variado pelos pesquisadores brasileiros” (p. 196), defendem o emprego do termo tal como ele tem aparecido no campo da Antropologia, reputado como grande manancial da revisão da concepção cartesiana de corpo.

Contudo, raros foram os estudos que o abordaram a partir da psicanálise. Desde os anos 1990, obras importantes, no que se refere à apresentação sistemática das múltiplas contribuições do enfoque psicanalítico aos Estudos Organizacionais, foram produzidas, como as de Diamond (1993)Diamond, M. (1993). The unconscious life of organizations: Interpreting organizational identity. London, UK: Quorum Books., Hirschorn e Barnett (1993)Hirschorn, L., & Barnett, C. (Eds). (1993). The psychodynamics of organizations. Philadelphia, USA: Temple University Press., Obholzer e Roberts (1994)Obholzer, A., & Roberts, V. Z. (1994). The unconscious at work. New York, USA: Routledge., French e Vince (1999)French, R., & Vince, R. (Eds.). (1999). Group relations, management, and organization. Oxford, UK: Oxford University Press., Gabriel (1999)Gabriel, Y. (1999). Organizations in depth. London, UK: SAGE. e Arnaud (2004)Arnaud, G. (2004). Psychanalyse et organisations. Paris, France: Armand Colin, 2004.. Nenhuma delas, todavia, abordou especificamente a questão do corpo sob o enfoque psicanalítico. Obras dessa ordem mais recentes, como a de Fotaki e Pullen (2019)Fotaki, M., & Pullen, A. (Eds.). (2019). Diversity, affect and embodiment in organizing. Cham, Suíça: Palgrave Macmillan., serviram-se da psicanálise para pensar questões ligadas especificamente à diversidade e ao feminismo. Poder-se-ia objetar que, conforme mostram Dashtipour e Vidaillet (2020)Dashtipour, P., & Vidaillet, B. (2020). Introducing the French psychodynamics of work perspective to critical management education: Why do the work task and the organization of work matter? Academy of Management Learning & Education, 19(2), 131-146. doi: 10.5465/amle.2018.0128
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, a psicodinâmica do trabalho tem mostrado a centralidade do corpo no trabalhar e, por conseguinte, no funcionamento das organizações, mas, como o próprio fundador desse campo, Christophe Dejours, atesta, a teoria do corpo da qual se extraem reflexões é, antes, a de Michel Henry (Dejours, 2012Dejours, C. (2012). Trabalho vivo (2 v.) Brasília, DF: Paralelo 15., v. 1). Assim, parece haver uma escassez de investigações que se debrucem especificamente sobre as contribuições da visão psicanalítica do corpo aos Estudos Organizacionais.

Este artigo pretende contribuir para a reversão dessa escassez retomando a abordagem oferecida pela psicanálise acerca do tema em questão, subsumida na noção de corpo erógeno. Flores-Pereira (2010)Flores-Pereira, M. T. (2010). Corpo, pessoa e organizações. Organizações & Sociedade, 17(54), 417-438. doi: 10.1590/S1984-92302010000300002
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atesta que quatro grandes enfoques informam as reflexões sobre a corporalidade no campo dos Estudos Organizacionais. Defendemos que, em razão de sua singularidade e de seu potencial para mitigar problemas que assolam as organizações hoje, o enfoque psicanalítico poderia inaugurar uma quinta linha de investigação em tal campo. Para tanto, primeiramente, mostraremos como a ideia de corpo foi construída nos estudos sobre as organizações e como estes puderam finalmente abordar a corporalidade. Em seguida, indicaremos a ausência das considerações psicanalíticas nos Estudos Organizacionais e as consequências dela. Ainda, recuperaremos a noção de corpo erógeno formulada pela psicanálise, salientando a ruptura provocada por ela relativamente à concepção hegemônica de corpo erigida pela medicina anatomopatológica. Por fim, procuraremos indicar como, a partir de uma análise psicanalítica da extensa etnografia de Michel (2011)Michel, A. (2011). Transcending socialization: A nine-year ethnography of the body's role in organizational control and knowledge workers transformation. Administrative Science Quarterly, 56, 325-368. doi: 10.1177/0001839212437519
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, o enfoque psicanalítico do corpo pode contribuir para um refinamento conceitual e metodológico nos Estudos Organizacionais a respeito da corporalidade e seus impasses.

TEORIA ORGANIZACIONAL: DO CORPO BIOLÓGICO À CORPORALIDADE

Conforme Karen Dale (2001)Dale, K. (2001). Anatomising embodiment and organization theory. Basingstoke, UK: Palgrave. revela de maneira detalhada, o conceito de organização remonta ao Iluminismo e vincula-se ao surgimento tanto da medicina anatomopatológica quanto das então novas instituições sociais e políticas. O solo comum a esses saberes foi o imperativo da produção de conhecimento mediante categorizações e divisões - diretriz que, de fato, denota um traço central do conhecimento moderno ocidental. Dessa forma, tanto a anatomia quanto o meio sociopolítico das Luzes foram guiados por essa diretriz: assim como a anatomopatologia nasceu do ordenamento do corpo em estruturas e funções, as instituições iluministas nasceram do ordenamento burocrático. Foi nesse “espaço cognitivo similar” (Dale, 2001Dale, K. (2001). Anatomising embodiment and organization theory. Basingstoke, UK: Palgrave., p. 111) que nasceu a ideia de organização.

Eis a razão pela qual ela foi concebida como um organismo. De fato, a palavra já o indica: “organização” vem de “órgão”, cuja definição moderna foi erigida a partir dos estudos da anatomia. Dale (2001)Dale, K. (2001). Anatomising embodiment and organization theory. Basingstoke, UK: Palgrave. recupera o arco histórico de Descartes a Bichat a fim de sustentar o que ela designa como “impulso de anatomização [anatomising urge]” (p. 23), isto é, certa exigência do conhecimento de operar pela decomposição do mundo em partes menores inteligíveis, pela sua classificação e por seu ordenamento. Uma vez que concebeu a organização como organismo, nos moldes de um corpo biológico, a teoria organizacional, originariamente, tomou a organização “como um dado” (Dale, 2001Dale, K. (2001). Anatomising embodiment and organization theory. Basingstoke, UK: Palgrave., p. 129), isto é, uma entidade natural.

Além de conceber a organização nesses termos, digamos, somáticos, tal teoria também ofereceu uma compreensão naturalizada e, por conseguinte, apassivada do corpo humano. Novamente, o peso do cartesianismo, e especialmente de seu dualismo ontológico, é evidente, mostrando-se, como lembra Dale (2001)Dale, K. (2001). Anatomising embodiment and organization theory. Basingstoke, UK: Palgrave., até mesmo nos termos e expressões da gestão que sinalizam a primazia da visão sobre o objeto e da mente sobre o corpo (“supervisor”, “head office” etc.). Como observa Le Breton (2002)Le Breton, D. (2002). Antropología del cuerpo y modernidad. Buenos Aires, Argentina: Ediciones Nueva Visión., a metafísica de Descartes encontrou no mundo industrial sua realização: “Taylor (e Ford) é que cumpre de facto o juízo pronunciado implicitamente por Descartes” (pp. 79-80). Assim, o corpo foi tomado pela teoria organizacional, em sua origem, como instrumento da mente e, por conseguinte, como objeto a ser gerido.

Isso não significa exatamente, portanto, que o corpo estava ausente nessa teoria, e sim que figurava enquanto “uma presença ausente”, como salientam Hassard, Holliday e Wilmott, (2000, p. 4). De modo mais específico, os fundadores da análise moderna da organização do trabalho, nomeadamente Taylor e Weber, “não consideraram diretamente a qualidade corporificada da organização do trabalho” (Hassard et al., 2000Hassard, J., Holiday, R., & Willmott, H. (2000). Introduction. In J. Hassard, R. Holiday, & H. Willmott (Eds.), Body and organization (pp. 1-14). London, UK: Sage., p. 6, grifos nossos). Ora, num enfoque organizacional em que a impessoalidade, o tecnicismo e a racionalização deveriam figurar como balizas das figuras de autoridade, não havia lugar para qualquer destaque ao corpo. A consideração direta deste requereria uma série de rearranjos de natureza epistemológica.

Por um lado, como mostrou Flores-Pereira (2010)Flores-Pereira, M. T. (2010). Corpo, pessoa e organizações. Organizações & Sociedade, 17(54), 417-438. doi: 10.1590/S1984-92302010000300002
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, mudanças importantes no campo das Ciências Sociais e da Filosofia foram responsáveis pela reconsideração da corporalidade nos Estudos Organizacionais nas últimas décadas do século XX. Como indicávamos, a autora identificou quatro linhas de investigação sobre o corpo originárias dessas mudanças, e três delas começaram por informar tal reconsideração: uma primeira, a qual se iniciou com as investigações antropológicas de Mauss, mostrou como o corpo representa a sociedade que o abriga, o que revelou a sua face “sociocultural”; uma segunda, que vai de Durkheim a Bourdieu, revelou o corpo como lócus da hierarquização e classificação dos indivíduos, o que veiculou sua face “sócio-hierarquizada”; uma terceira, a qual se torna paradigmática nas pesquisas de Foucault, trouxe à tona as tecnologias sociais responsáveis por docilizar os corpos, o que indica sua face “sociopolítica”. Conquanto cruciais para a desvinculação entre corpo e biologia, essas três linhas tomaram-no um “objeto social” (Flores-Pereira, 2010Flores-Pereira, M. T. (2010). Corpo, pessoa e organizações. Organizações & Sociedade, 17(54), 417-438. doi: 10.1590/S1984-92302010000300002
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, p. 421). Dessa forma, elas não conseguiram libertar o corpo de uma concepção objetificada e apassivada. De acordo com a autora, foi apenas com uma quarta linha de estudo, derivada das reflexões fenomenológicas, especialmente as de Merleau-Ponty, que se pôde “resgatar a dimensão incorporada do ambiente sociocultural” (Flores-Pereira, 2010Flores-Pereira, M. T. (2010). Corpo, pessoa e organizações. Organizações & Sociedade, 17(54), 417-438. doi: 10.1590/S1984-92302010000300002
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, p. 422), isto é, que adveio a compreensão de que a pessoa não habita o corpo, mas é, ela mesma, o corpo.

Assim, o impacto provocado por essas quatro linhas de estudo identificadas por Flores-Pereira (2010)Flores-Pereira, M. T. (2010). Corpo, pessoa e organizações. Organizações & Sociedade, 17(54), 417-438. doi: 10.1590/S1984-92302010000300002
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foi de ordem metafísica. A autora apresenta um apanhado geral da multiplicidade de investigações que foram fruto de tal desconstrução, mas o que nos interessa frisar é que, fundamentalmente, o que se conseguiu afastar dos Estudos Organizacionais foi o fosso ontológico, erigido desde Descartes, entre mente e corpo. Desse modo, a conquista de tais investigações foi a concepção de “uma pessoa incorporada (embodied)” (p. 428), quer dizer, uma pessoa em que mente e corpo formam um todo indistinto.

Por outro lado, como indicam Souza, Costa e Pereira (2015)Souza, E. M., Costa, A. S. M., & Pereira, S. J. (2015). A organização (in)corporada: Ontologia organizacional, poder e corpo em evidência. Cadernos EBAPE.BR, 13(4), 727-742. doi: 10.1590/1679-395118624
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, os próprios Estudos Organizacionais passaram a contribuir para a investigação da corporalidade desde o momento em que eles reconsideraram seu próprio objeto. A partir do advento da compreensão da organização não mais como estrutura, e sim como o exato oposto - processo ou organizing, isto é, transmissões de eventos mutáveis -, não se tornou mais possível considerá-la da maneira tradicional, qual seja positivista e funcionalista. Visto que essa mudança determinou que “os estudos organizacionais têm como objeto de análise os processos de ordenamento e não empresas” (Souza et al., 2015Souza, E. M., Costa, A. S. M., & Pereira, S. J. (2015). A organização (in)corporada: Ontologia organizacional, poder e corpo em evidência. Cadernos EBAPE.BR, 13(4), 727-742. doi: 10.1590/1679-395118624
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, p. 732), tudo que fosse dessa natureza poderia ser do interesse do campo. Visto que o corpo é “performance - não inerte, ativo, particular, subjetivo, contingente e histórico [...]” (p. 734), ou seja, “não é uma coisa ou substância, mas a criação contínua de eventos ou acontecimentos [...]” (p. 735), ele, sem dúvida, figura entre os objetos de pesquisa dos Estudos Organizacionais. Como se vê, a reconfiguração verificada nesse campo permitiu que ele também passasse a contribuir para a investigação da corporalidade.

Desde então, várias frentes de pesquisa foram desenvolvidas no interior desses estudos. Gärtner (2013)Gärtner, C. (2013). Cognition, knowing and learning in the flesh: Six views on embodied knowing in organization studies. Scandinavian Journal of Management, 29(4), 338-352. doi: 10.1016/j.scaman.2013.07.005
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fez um levantamento dos trabalhos sobre corporalidade, cognição e aprendizagem publicados desde 1990 e encontrou seis abordagens. Sumariamente, numa primeira (Brute embodiment), concebe-se o corpo como à maneira de um hardware e a mente, de um software, o que representa a popularização da visão computacional cognitivista no interior dos Estudos Organizacionais; numa segunda (Physiological embodiment), a importância da atividade neural e da fisiologia no funcionamento do corpo é enfatizada; numa terceira (Enactive lived embodiment), o papel do corpo sensório-motor na aquisição tácita do conhecimento é destacado; numa quarta (Intelligible embodiment), explora-se o quanto as experiências corporais modelam a aquisição de conhecimento; numa quinta (Situated embodiment), frisa-se a importância do corpo em situar, no tempo e no espaço, no aqui e no agora, o processo de aquisição de conhecimento; num sexto (Social embodiment), por fim, visa-se a mostrar a relação entre estruturas sociais e corpo. Um levantamento como esse indica tanto a difusão da temática da corporalidade nos Estudos Organizacionais quanto a pluralidade de formas com que ela tem sido desenvolvida.

Da ausência das considerações psicanalíticas sobre o corpo nos Estudos Organizacionais

Pela trajetória da introdução da temática da corporalidade retomada brevemente acima, já se pôde notar a ausência da perspectiva psicanalítica. Por um lado, conforme indicamos, essa perspectiva em geral mostrou-se presente nos Estudos Organizacionais. Para não ficarmos apenas com os estudos clássicos arrolados anteriormente, deve-se ressaltar que a interlocução com a psicanálise continua se fazendo, abordando concepções para além das clássicas freudianas, como as de Lacan (Paes & Dellagnelo, 2015Paes, K. D., & Dellagnelo, E. H. L. (2015). O sujeito na epistemologia lacaniana e sua implicação para os estudos organizacionais. Cadernos EBAPE.BR, 13(3), 530-546. doi: 10.1590/1679-395115872
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) e as dos frankfurtianos (Paula, 2013Paula, A. P. P. (2013). Abordagem freudo-frankfurtiana, pesquisa-ação e socioanálise: Uma proposta alternativa para os estudos organizacionais. Cadernos EBAPE.BR, 11(4), 520-542. doi: 10.1590/S1679-39512013000400004
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), e aspectos mais específicos das organizações à luz da teoria psicanalítica, como o da liderança (Godoi, Cargnin, & Uchôa, 2017Godoi, C. K., Cargnin, F. R. G., & Uchôa, A. G. F. (2017). Manifestações inconscientes na relação líder-liderado: Contribuições da teoria psicanalítica aos estudos organizacionais. Cadernos EBAPE.BR, 15(3), 599-614. doi: 10.1590/1679-395164894
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). Essa interlocução recente, por outro lado, continua carecendo da retomada da abordagem psicanalítica do corpo.

Reparar essa ausência faz-se necessário sobretudo porque a psicanálise traz uma perspectiva capaz de compreender e investigar a presença forte do plano somático nas patologias contemporâneas, relacionas ao trabalho ou não. Como atesta Fernandes (2003)Fernandes, M. H. (2003). Corpo. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., os chamados sintomas contemporâneos trazem especialmente o corpo e sua submissão ao centro:

os abundantes e variados transtornos alimentares, a compulsão para trabalhar, para fazer exercícios físicos, as incessantes intervenções cirúrgicas de modelagem do corpo, a sexualidade compulsiva, o horror do envelhecimento, a exigência da ação, o terror da passividade, a busca psicopatológica da saúde ou, ao contrário, um esquecimento patológico do corpo, e ainda a variedade dos quadros de somatização. Sintomas que [...] denotam a submissão completa do corpo. (p. 17).

Já no que diz respeito às doenças relacionadas ao trabalho, as que se mostram em ascensão desde a consolidação do pós-fordismo, o qual trouxe precarizações ao mundo do trabalho em diferentes níveis (Franco, Druck, & Seligmann-Silva, 2010), apresentam acometimentos do corpo de maneira, ao mesmo tempo, enigmática e alarmante: “quadros depressivos; esgotamento profissional (Burnout); o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT); dependência de bebidas alcoólicas e outras substâncias (drogas ilegais e psicotrópicos)” (Franco et al., 2010Franco, T., Druck, G., & Seligmann-Silva, E. (2010). As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 35(122), 229-248. doi: 10.1590/S0303-76572010000200006
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, p. 239). Além de representarem um problema de saúde pública, essas doenças geram perdas fabulosas às organizações (Pfeffer, 2018Pfeffer, J. (2018). Dying for a paycheck: Why the American way of business is injurious to people and companies. New York, USA: HarperCollins Publishers.).

Os Estudos Organizacionais precisam de um arsenal nocional para dar encaminhamento a esse enorme problema. Apesar de a grande razão, no nível prático, do ingresso da corporalidade no campo em questão ter sido justamente a captura profunda, com o advento da organização do trabalho pós-fordista, de quem trabalha, no nível mesmo do corpo, deu-se atenção sobretudo aos aspectos representacionais e intelectuais de fenômeno. Como indicou Kerfoot (2000)Kerfoot, D. (2000). Body work: Estrangement, disembodiment and the organizational “other”. In J. Hassard, R. Holiday, & H. Willmott (Eds.), Body and organization (pp. 230-246). London, UK: Sage., “a necessidade dos gestores de serem atentos ao corpo e cientes de sua percepção pelos outros talvez nunca tenha sido tão premente, na medida em que o olhar do ‘outro’ na organização é intensificado pelos discursos do gerencialismo [managerialism]” (p. 231, grifos nossos). Uma série de autores do campo em questão tematizou essa reconfiguração e os efeitos nefastos do que ficou conhecido como gerencialismo ou ideologia gerencial sobre a subjetividade pós-fordista ou toyotista - por exemplo, Faria e Meneghetti (2007)Faria, J. H., & Meneghetti, F. K. (2007). Sequestro da subjetividade e novas formas de controle psicológico no trabalho: Uma abordagem crítica ao modelo toyotista de produção. In J. H. Faria (Org.), Análise crítica das teorias e práticas organizacionais (pp. 45-67). São Paulo, SP: Atlas., Gaulejac (2007)Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: Ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Aparecida, SP: Ideias & Letras., Kilkauer (2013)Klikauer, T. (2013). Managerialism: An ideology. London, UK & New York, USA: Palgrave Macmillan. e Clegg (2014)Clegg, S. (2014). Managerialism: Born in the USA. The Academy of Management Review, 39(4), 566-576. doi: 10.5465/amr.2014.0129
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. Contudo, nenhum deles indica ter dado atenção específica ao corpo e à maneira pela qual a organização pós-fordista o submete.

Tomemos a perspectiva de Faria e Meneghetti (2007)Faria, J. H., & Meneghetti, F. K. (2007). Sequestro da subjetividade e novas formas de controle psicológico no trabalho: Uma abordagem crítica ao modelo toyotista de produção. In J. H. Faria (Org.), Análise crítica das teorias e práticas organizacionais (pp. 45-67). São Paulo, SP: Atlas., por sua enorme relevância e difusão nos Estudos Organizacionais nacionais. Os autores designam o que denominam “sequestro da subjetividade”, verificado com a ascensão do toyotismo e que

consiste no fato desta apropriar-se, planejadamente, através de programas na área de gestão de pessoas, e de forma sub-reptícia, furtiva, às ocultas, da concepção de realidade que integra o domínio das atividades psíquicas, emocionais e afetivas dos sujeitos individuais ou coletivos que a compõem (trabalhadores, empregados). Estas atividades formam a base da percepção e da representação que permite aos sujeitos interpretar o concreto pela via do pensamento e tomar atitudes (agir). O sequestro da percepção e da elaboração subjetiva priva os sujeitos de sua liberdade de se apropriar da realidade e de elaborar, organizar e sistematizar seu próprio saber, ficando à mercê dos saberes e valores produzidos e alimentados pela organização sequestradora. (p. 52, grifos nossos).

Notemos como, apesar de ressaltarem a ampla gama de atividades dos sujeitos (psíquicas, emocionais e afetivas) determinadas por tal sequestro, os autores não dão destaque ao plano somático. Eles permanecem num plano intelectual, enfocando as dimensões do pensamento, da interpretação, da percepção. Assim, poderíamos concluir que não se tematiza um sequestro do corpo. Com isso, não queremos, de modo algum, sugerir que haja oposição entre corpo e subjetividade ou que o construto dos autores não seja de auxílio para pensarmos as formas de submissão no toyotismo. Afinal, como eles ressaltam, a “subjetividade do indivíduo não está apenas em sua consciência, mas também na circulação onde participa a mente, os afetos, o corpo, os vínculos, o trabalho, a casa e os outros [...]” (p. 50). De todo modo, eles deixam claro que o toyotismo apresenta “uma subordinação ‘formal-intelectual’” (p. 62, grifos nossos), e não mais corporal como no fordismo.

Ora, os dados clínicos e epidemiológicos que indicamos acima nos fazem concluir que é, no mínimo, arriscado supor tal primazia “formal-intelectual”. Mais abaixo, selecionamos uma longa etnografia, feita numa organização com características pós-fordistas mais do que típicas - um banco de investimentos -, com o intuito de mostrar como a captura da organização do trabalho se dá ao nível do corpo. Todavia, antes disso, é preciso retomar a questão do corpo dentro do referencial psicanalítico.

Psicanálise: do corpo biológico ao corpo erógeno

Tal questão sempre se colocou de maneira significativa para a psicanálise, cujo desenvolvimento teórico é acompanhado de modificações no papel que essa noção assume no interior de seu edifício teórico (Cukiert & Priszkulnik, 2000Cukiert, M., & Priszkulnik, L. (2000). O corpo em psicanálise: Algumas considerações. Psychê, 4(5), 53-63. doi: 10.1590/S0103-56652006000100014
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).

A relação que Freud estabelece com o corpo não deixa de ser, pelo menos em um primeiro momento, dúbia. Ao mesmo tempo que percebe que a histeria não tinha causa orgânica e que, portanto, o conhecimento médico tradicional, calcado em certos pressupostos organicistas determinísticos em relação às doenças, não lhe fornecia nem uma hipótese etiológica nem um tratamento adequado, Freud tinha em mente certo embasamento científico para a psicanálise. Esse embasamento era buscado a partir de bases biológicas e fisiológicas para suas propostas psicológicas (Freud, 1995Freud, S. (1995). Projeto de uma psicologia (O. F. Gabbi Jr., Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra original publicada em 1895)). A ruptura com esse ideal de cientificidade culminará com a recusa desse modelo médico de diagnóstico, tratamento e organicidade pura e simples, dando lugar ao psíquico, sempre a partir do estudo da histeria. É interessante cruzar o desenvolvimento da teoria freudiana acerca do corpo com o abandono, por Freud, primeiro do método hipnótico de Charcot e, depois, do método catártico de Breuer. É a partir da determinação das leis do inconsciente que buscará técnicas para interpretá-lo.

Freud estudou na Salpêtrière, onde tomou contato com Charcot, que, com a hipnose e a sugestão, fazia surgir e desaparecer sintomas apenas a partir da fala. A hipótese que subjaz a essa prática é de que existe uma instância de pensamento que não aquela consciente. Eis uma primeira ruptura com o orgânico: para Freud, “ideias” sexuais reprimidas poderiam causar efeitos sintomáticos no corpo - o mecanismo de conversão -, e esses sintomas poderiam ser tratados a partir de uma terapia da fala - catarse e ab-reação.

Freud afirma que a manifestação dos ataques de angústia pode estar ligada ao “distúrbio de uma ou mais funções corporais - tais como a respiração, a atividade cardíaca, a inervação vasomotora e a atividade glandular” (Freud, 1974aFreud, S. (1974a). Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome particular intitulada “neurose de angústia”. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. III, pp. 107-135). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra original publicada em 1895), p. 111). Parece haver uma relação direta, portanto, entre a manifestação da angústia e o corpo, ainda que, nesse momento, estejam em questão apenas funções orgânicas do corpo afetadas por estados psicológicos, sem referência a um corpo “erógeno”.

Se os desarranjos somáticos dizem respeito às perturbações de funções orgânicas do corpo, ainda assim este já se encontra afastado de uma concepção que o considera como puramente organismo biológico, apontando para uma delicada e sutil interação entre mental e somático por meio dos mecanismos de conversão. Como diz Fernandes (2003)Fernandes, M. H. (2003). Corpo. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.:

se o corpo que a construção teórica de Freud anuncia não se confunde com o organismo biológico, objeto de estudo e intervenção da medicina, ele se apresenta, ao mesmo tempo, como o palco onde se desenrola o complexo jogo das relações entre o psíquico e o somático, e como personagem integrante da trama dessas relações. (p. 55).

Nos Estudos sobre histeria (Breuer & Freud, 1974Breuer, J., & Freud, S. (1974). Estudos sobre a histeria. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. II, pp. 37-363). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra original publicada em 1895)), o caso de Anna O. estabeleceu-se como o mito fundador da disciplina, ainda que tenha sido conduzido e descrito por Breuer. Eis um breve resumo do caso: Anna O. apresentava parafasia, estrabismo e outras graves perturbações da visão, paralisias várias na parte superior direita do corpo e nas extremidades inferiores, bem como no pescoço, além de tosse, dores de cabeça e afecção do nervo oblíquo (Breuer & Freud, 1974Breuer, J., & Freud, S. (1974). Estudos sobre a histeria. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. II, pp. 37-363). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra original publicada em 1895), pp. 64-66). O primeiro exemplo de sucesso do método catártico é narrado por Breuer - a paciente ficou muda; a inibição aconteceu por conta de uma ofensa tomada por ela como gravíssima e, uma vez que a ofensa foi rememorada sob hipnose, a paciente voltou a falar. Sua contratura do braço direito estava relacionada a uma alucinação ao cuidar do pai, quando tentou espantar a “cobra” com sua mão direita, adormecida no espaldar da cama e, portanto, sem responder às suas intenções. Houve, então, a associação entre a alucinação da cobra com a paralisia e analgesia do braço. Tentou rezar, mas se lembrou apenas de uma prece em inglês - e desde então só se comunicava nesse idioma, sem compreender o idioma alemão materno. O caso apresentava também cisões temporais da consciência, quando a doente revivia exatamente o dia passado havia um ano; havia também absences (crises de ausência), e vários sintomas surgiam também nesse estado. Segundo Breuer, esses estados secundários tiveram grande influência na formação de sintomas, já que seus produtos, dado o estado frágil da doente, passaram a forçar sua entrada na consciência.

Estamos, nesse momento inicial da psicanálise, numa prática terapêutica que lança mão da hipnose para fazer com que os sintomas histéricos desapareçam. Freud emprega o método catártico tal como proposto por Breuer. Por trás da prática da hipnose e do método catártico, está subjacente o fenômeno da sugestão, baseado na existência de estados da consciência outros além da vigília e do sono.

A teoria por trás do método catártico afirmava que todo fenômeno histérico tinha origem em um trauma, uma manifestação emotiva de grande intensidade; no entanto, a ligação causal entre o sintoma histérico e o trauma que o desencadeou, muitas vezes, escapava à consciência do doente, o que tornava infrutífera qualquer indagação por parte do médico. Se o médico conseguisse fazer com que a lembrança do trauma viesse à tona e a emoção correspondente fosse revivida, mesmo que em um estado outro de consciência, o sintoma em questão desaparecia.

A partir desse novo modo de considerar a histeria, abre-se a possibilidade de que uma doença nervosa tenha origem psíquica - quer dizer, um trauma psíquico gera uma manifestação somática. É a revivescência dessa emoção e da situação que a causou, posta em palavras, que funda a eficácia do método catártico. Dizem os autores:

A reação da pessoa agravada em relação ao trauma somente exerce um efeito inteiramente “catártico” se for uma reação adequada - como, por exemplo, a vingança. Mas a linguagem serve de substituto para a ação; com sua ajuda, uma emoção pode ser “abreagida” quase que com a mesma eficácia. (Breuer & Freud, 1974Breuer, J., & Freud, S. (1974). Estudos sobre a histeria. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. II, pp. 37-363). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra original publicada em 1895), p. 49).

Tem-se aí o nascimento do assim chamado “corpo erógeno”, erotizável, para além do orgânico, do biológico e do somático: a terapia pela fala opera a partir de uma dimensão de representação do corpo, um corpo metafórico. A origem do sintoma histérico de conversão não é aleatória, tampouco se reduz à anatomia, mas está intrinsecamente relacionada à situação traumática vivida. Por exemplo, no caso de Elisabeth von R., descrito por Freud, um dos sintomas apresentados pela paciente era dor em determinada parte da perna, sem afecção orgânica aparente. Ora, no decorrer do tratamento catártico conduzido sob hipnose, veio à tona a lembrança da paciente de que era naquele ponto que a perna do pai doente se apoiava durante a troca das ataduras, troca essa realizada por ela própria.

Nessa articulação teórica sobre o corpo, o conceito de pulsão (Trieb) mostra-se fundamental: situa-se na “fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo” (Freud, 1915/2010Freud, S. (2010). Os instintos e seus destinos. In Sigmund Freud: Obra completa (Vol. 12, pp. 51-81). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1915), p. 55); e a fonte da pulsão é um processo somático que é representado na psique pela pulsão. Há um plano em que orgânico e psíquico não são opostos. O corpo, para a psicanálise, deve ser pensado para além de um modelo orgânico de causalidade de sintomas. É apenas a partir de sua conceituação para além do biológico que a “terapia pela palavra” pode fazer sentido enquanto constructo teórico. Já não é mais possível confundir corporalidade com organicidade. Para Fernandes (2003)Fernandes, M. H. (2003). Corpo. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., a partir do conceito de pulsão, “a teoria freudiana permitiria colocar em evidência que o somático, isto é, o conjunto das funções orgânicas em movimento, habita um corpo que é também o lugar da realização de um desejo inconsciente” (p. 34).

Não obstante a posição central do corpo para a psicanálise, Freud, segundo Nasio (2009)Nasio, J.-D. (2009). Meu corpo e suas imagens. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor., nunca utilizou a expressão “imagem do corpo”, que entrou na psicanálise apenas nas últimas décadas do século XX. Para Nasio, do ponto de vista da imagem, o eu designa o duplo mental formado pelo conjunto de sensações corporais, vivas e pungentes. O eu seria uma instância ao mesmo tempo identitária (nomeando o si de um sujeito), perceptiva (a fronteira do psiquismo entre a realidade externa e a realidade pulsional) e imaginária. Nasio baseia-se claramente na afirmação explícita de Freud (1974b)Freud, S. (1974b). O ego e o id. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XIX, pp. 23-76). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Obra original publicada em 1923): “o eu é antes de tudo um eu corporal” (p. 40). Em última análise, o eu seria a imagem do corpo, com o qual sempre nos relacionamos desse ponto de vista que podemos chamar de turvado, posto que idealizado e fantasiado.

Da necessidade de se incluir o corpo erógeno nos Estudos Organizacionais: exemplo de contribuição a partir da análise psicanalítica de um estudo etnográfico

Retomando o que havíamos anunciado no início, a despeito de as quatro linhas investigação apresentadas por Flores-Pereira (2010)Flores-Pereira, M. T. (2010). Corpo, pessoa e organizações. Organizações & Sociedade, 17(54), 417-438. doi: 10.1590/S1984-92302010000300002
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terem franqueado aos Estudos Organizacionais a enorme conquista referida anteriormente, parece-nos, portanto, que ainda falta a eles a consideração de uma quinta linha de investigação: a do corpo erógeno, tal como conceituado pela psicanálise e apresentado acima.

Convém ressaltar, como mostra Gabriel (1999)Gabriel, Y. (1999). Organizations in depth. London, UK: SAGE., que a psicanálise não ataca a racionalidade, mas, antes, a ilusão do controle. Desse modo, a comparação de Philip Rieff, que acabou por se tornar clássica, segundo a qual a psicanálise seria “um regime de gestão mental [...] no qual o ego desempenha funções não tão diferentes das dos gestores” (Gabriel, 1999Gabriel, Y. (1999). Organizations in depth. London, UK: SAGE., p. 284), é errônea. Ainda assim, caso se quisesse compreender o saber analítico nesses termos, então se trataria de um ego que “encara constantemente forças muito maiores do que as dele” (p. 285). Freud defendeu de modo intransigente o estatuto científico da psicanálise, partilhando amplamente dos cânones ocidentais da racionalidade. Todavia, ele salientou que, ante o inconsciente, só é possível criar certas regiões de ordem sujeitas sempre à desordem. Gabriel (1999)Gabriel, Y. (1999). Organizations in depth. London, UK: SAGE. mostra que aí há uma importante lição à gestão: “a húbris da administração reside em fingir que a Fortuna não existe ou que ela pode ser persuadida e aplacada pelo servilismo” (p. 286).

O longo estudo etnográfico realizado por Michel (2011)Michel, A. (2011). Transcending socialization: A nine-year ethnography of the body's role in organizational control and knowledge workers transformation. Administrative Science Quarterly, 56, 325-368. doi: 10.1177/0001839212437519
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em dois bancos de investimento auxilia-nos a evidenciar e compreender esse campo de questões. Seu estudo impressiona tanto pela duração (nove anos - ainda que afirme que se tratava de um estudo em andamento. A autora retoma essas questões em pelo menos outros dois momentos posteriores [Michel, 2014Michel, A. (2014). Participation and self-entrapment: A 12-year ethnography of Wall Street participation practices’ diffusion and evolving consequences. The Sociological Quarterly, 55, 514-536. doi: 10.1111/tsq.12064
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, 2015Michel, A. (2015). Dualism at work: The social circulation of embodiment theories in use. Signs and Society, 3(S1), S41-S69. doi: 10.1086/679306
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], sem acrescentar material novo para o que nos interessa aqui) quanto pelo material observado, coletado e analisado (aproximadamente 7 mil horas de observação, mais de 600 entrevistas formais, 200 entrevistas informais, além dos relatórios anuais de produtividade dos banqueiros envolvidos no estudo e material sobre seleção, treinamento e socialização dos bancos - pp. 334-335). É certo que a autora vivenciou os resultados que apresenta no próprio corpo: tento trabalhado primeiro em um banco alemão, como estagiária, e depois como analista no Goldman Sachs, onde experimentou jornadas de 80 a 100 horas semanais, ela descreve o estranhamento de sua própria experiência (Michel, 2016Michel, A. (2016). Entrevista por Christian Hampel e Derin Kent. The ASQ Blog. Recuperado de https://asqblog.com/2016/01/27/michel-2011-transcending-socialization-a-nine-year-ethnography-of-the-bodys-role-in-organizational-control-and-knowledge-workers-transformation/
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) na mudança de uma cultura para outra e também como essa experiência prévia abriu-lhe as portas que possibilitaram a realização do estudo.

A partir da constatação de que os chamados trabalhadores do conhecimento, categoria na qual se incluem os banqueiros de investimento observados, afirmam possuir autonomia a respeito de quando e quanto trabalham, mas apresentam uma carga horária que é, ao mesmo tempo, maior e mais uniforme do que um modelo de escolha pessoal indicaria (Michel, 2011Michel, A. (2011). Transcending socialization: A nine-year ethnography of the body's role in organizational control and knowledge workers transformation. Administrative Science Quarterly, 56, 325-368. doi: 10.1177/0001839212437519
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, p. 326), a autora apresenta o que enxerga como um paradoxo: onde os trabalhadores indicam haver autonomia para fazer seus próprios horários e administrar sua carga de trabalho, eles encontram-se sob controles organizacionais que os levam a trabalhar mais, por longos períodos, durante noites, feriados e finais de semana.

Eis aí um primeiro aspecto importante a ser destacado: a dimensão de um desconhecimento que envolve o que parece mais passível de controle aos trabalhadores. Eles se julgam autônomos, mas não o são, e quem lhes mostra isso é seu próprio corpo. Trata-se de uma ilustração do que designamos acima como o ponto de vista turvado imposto pelo estatuto do corpo. É importante salientar esse aspecto, pois ele não é reconhecido por quem trabalha e não é enfatizado, ao que tudo indica, por nenhuma das quatro linhas de estudo arroladas por Flores-Pereira (2010)Flores-Pereira, M. T. (2010). Corpo, pessoa e organizações. Organizações & Sociedade, 17(54), 417-438. doi: 10.1590/S1984-92302010000300002
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. Dessa forma, por mais que a corporalidade tenha sido reconhecida, ainda é preciso mostrar por que ela não costuma ser reconhecida. Esse é justamente o ponto enfatizado pelo enfoque psicanalítico do corpo, que ressalta sempre a dimensão inconsciente, fantasiada e idealizada.

Um segundo aspecto a ser destacado é o desconhecimento expresso na maneira como a própria autora percorre as explicações mais correntes sobre o engajamento dos trabalhadores. Ele retoma a literatura sobre motivação, a qual aponta que os trabalhadores trabalham muito para “empresas que satisfazem necessidades de autonomia e assim aumentam a motivação intrínseca” (Michel, 2011Michel, A. (2011). Transcending socialization: A nine-year ethnography of the body's role in organizational control and knowledge workers transformation. Administrative Science Quarterly, 56, 325-368. doi: 10.1177/0001839212437519
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, p. 327) desses indivíduos, e destaca que algumas das condições presentes naqueles ambientes lembram aquelas usadas nos laboratórios de Psicologia para diminuir autonomia e motivação intrínseca, como alta pressão e prazos curtos. Ela, então, retoma as teorias cognitivas sobre controle, que explicam mais adequadamente o motivo de os trabalhadores do conhecimento trabalharem tanto, mas falham em explicar o dito “paradoxo da autonomia”. Isso a faz recorrer aos enfoques socializantes, que se centram no foco nos processos de aculturação. É então que aparece claramente o pressuposto da autora: “Ela [a socialização] acontece quando empregados aceitam a cultura da empresa. As organizações miram as mentes dos empregados. [...] Os trabalhadores então se esforçam em nome da empresa mesmo sem controle externo” (p. 327, grifos nossos). Não nos impressiona que, sob esse enfoque, permaneça “obscuro por que trabalhadores experienciam esforço como sendo de própria escolha versus submissão a uma cultura projetada coletivamente” (p. 327). Há um pressuposto de que há um sujeito indiviso. Por isso, designa-se o que se obtém como um paradoxo. Ao mesmo tempo, continua-se, de maneira sub-reptícia, a sustentar uma visão dualista: “A resposta pode ser que alguns controles não são cognitivos, mas evitam a mente - o domínio das teorias cognitivas do controle - e miram um domínio negligenciado: o corpo” (p. 327).

Nesse ponto, parece-nos pertinente retomar a questão do corpo tal como conceituada pela psicanálise. Como afirma Fernandes (2003)Fernandes, M. H. (2003). Corpo. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.:

Ora, se o corpo aparece como lugar, palco onde se encenam as relações entre o psíquico e somático, isso equivale a dizer que Freud produz aqui uma importante ruptura na concepção de corpo ao distingui-lo do somático, isto é, o corpo em Freud não se confunde com o organismo biológico. [...] o corpo em Freud não se rege segundo uma racionalidade única e determinada, a racionalidade somática. Ele se rege segundo uma dupla racionalidade, a do somático e a do psíquico. (p. 112).

Não se pode, portanto, considerar o corpo como um domínio separado. Insistir em um modelo baseado em uma distinção ontológica, ilustrado pela diferença entre controles corporais e controles mentais ou cognitivos, faz perdurar uma dicotomia de inspiração cartesiana que, como apresentamos, tem sua origem em um racionalismo que é alvo de questionamentos e críticas pelo próprio campo dos Estudos Organizacionais, ou ao menos por uma de suas vertentes.

Dado que esses “controles incorporados” não são visíveis, sua influência é apenas indireta na percepção da autonomia relatada pelos trabalhadores e, considerando o tempo necessário para que o corpo “quebre”, se “desgaste” ou “falhe”, a relação entre os controles incorporados e adoecimento pode ter sido ignorada pela literatura simplesmente porque os estudos observacionais não duraram o tempo necessário para que esses dados aparecessem. Nesse sentido, mais uma vez, a noção de corpo erógeno permite-nos enxergar uma outra resposta possível. Como afirma Fernandes (2007)Fernandes, M. H. (2007). Transtornos alimentares. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.: “observa-se um imperativo constante de superação imediata de todo sofrimento, como se as marcas das dores da vida não pudessem mais encontrar uma inscrição psíquica, ficando destinadas a uma inscrição corporal” (p. 342). O que aparece, portanto, é o caráter representacional do corpo erógeno, último refúgio daquilo que escapa aos controles mentais incutidos pela socialização no modelo proposto por Michel (2011)Michel, A. (2011). Transcending socialization: A nine-year ethnography of the body's role in organizational control and knowledge workers transformation. Administrative Science Quarterly, 56, 325-368. doi: 10.1177/0001839212437519
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. Esta destaca, ainda, que as pesquisas organizacionais sobre o corpo “são raras” e “frequentemente tomam uma ‘lente fisiológica’ realista, a qual assume que o corpo é um objeto biológico” (Michel, 2011Michel, A. (2011). Transcending socialization: A nine-year ethnography of the body's role in organizational control and knowledge workers transformation. Administrative Science Quarterly, 56, 325-368. doi: 10.1177/0001839212437519
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, p. 331). Numa tentativa de cobrir esse buraco teórico, ela apresenta um modelo da relação entre os sujeitos observados com seus próprios corpos, desde o ponto de vista do controle organizacional incorporado e suas consequências tanto para os sujeitos quanto para a organização. Esse modelo prevê três momentos distintos:

O corpo como objeto: neste primeiro momento, entre os anos 1 e 3, o corpo é compreendido como um objeto que a mente controla. “[Os banqueiros] trabalharam longas horas, negligenciaram família e hobbies e lutaram contra as necessidades de seus corpos para aumentar a produtividade. Eles suprimiram a necessidade de sono prolongado [...] Eles ignoraram doenças e não deram prioridade à sua saúde” (p. 340). De acordo com as avaliações anuais dos bancos, os sujeitos apresentaram elevada performance técnica e de julgamento. O também elevado controle organizacional sobre os sujeitos, ainda que não percebido, apresentou resultados positivos para a organização.

Do ano 4 em diante: o corpo como antagonista. “Começando no ano 4, os corpos forçaram-se na consciência por meio de problemas eventualmente incapacitantes. [...] O corpo aqui é separado do, e inferior ao, ‘Eu’, como um objeto que alguém pode chutar” (p. 342). Os banqueiros desenvolveram tiques embaraçosos, como roer unha, cutucar o nariz ou enrolar cabelo. Eles experienciaram seus corpos de maneira antagonista “tomando o controle”, “se vingando” ou “lutando de volta”: “Uma banqueira combateu seu transtorno alimentar jejuando e fazendo mais exercício, treinando para uma maratona mesmo depois da meia-noite. [...] Os banqueiros também buscaram distração. Eles foram às compras, festas e consumiram pornografia para neutralizar dormência, conseguir controle e escapar” (p. 343). Neste momento, os sujeitos experienciaram controle organizacional alto, mas com consequências inesperadas e negativas para si e para a organização, incluindo lapsos em julgamentos éticos e criatividade reduzida.

Do ano 6 em diante: corpo como sujeito. “No ano 6, por volta de 40 por cento da amostra tratava o corpo como sujeito que poderia guiar a ação (‘corpos como sujeito’), desistiram do controle sobre o corpo e escutaram suas pistas. Os 60 por cento restantes continuaram no papel ‘corpo como antagonista’” (p. 347). No lugar da antagonização com o próprio corpo, que deveria ser controlado e domado nos momentos anteriores, os banqueiros “desenvolveram as seguintes três estratégias: (1) eles se tornaram desconfiados e deram um passo para trás em relação à mente; (2) eles renunciaram à agência enquanto atuando; e (3) eles desenvolveram uma orientação relacional com o corpo” (p. 348). O corpo, então, “ajudou os banqueiros a reconhecer e transcender o controle” (p. 350). Neste momento, o baixo controle organizacional apresentou consequências positivas para a organização, como aumento de julgamentos éticos e de criatividade.

Note-se o caráter desenvolvimentista do esquema apresentado: além da ordem cronológica (do primeiro ao terceiro ano, do terceiro ano em diante e do sexto ano em diante), há também o fato de que apenas alguns atingem o estágio do corpo entendido como sujeito. Dessa forma, supõe-se que, num momento de redenção, teríamos uma espécie de domínio e conhecimento do corpo. Além disso, este é entendido como um outro, ora objeto controlável e controlado, ora objeto rebelado, ora sujeito, ainda dentro das coordenadas do projeto cartesiano. As quatro linhas de investigação nos Estudos Organizacionais retomadas acima mostram como se trata de uma premissa equivocada, pois o corpo é sempre social, mas nosso ponto é outro: esse corpo é inapreensível se considerado como puramente biológico ou somático. É isso que está em jogo quando “[o] regime de urgência e a intolerância para com as exigências da realidade levam a uma espécie de abolição da temporalidade, abrigo do desejo, das contradições e das interdições. Desse modo, ganham lugar de destaque os mecanismos de recusa e evitamento do pensamento reflexivo” (Fernandes, 2007Fernandes, M. H. (2007). Transtornos alimentares. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., p. 341), mecanismos esses que encontram seu destino no próprio corpo que, em meio aos discursos, ideais e técnicas descritos pelos participantes do estudo para controlá-lo, enquadrá-lo e melhorá-lo, insiste em quebrar, falhar e adoecer apesar dos controles corporais e mentais destacados.

De acordo com Parker (2016)Parker, I. (2016). Obsessionality, order, management: Psychoanalysis and capitalism. CUSP: Culture-Subjectivity-Psyche, 1(2), 18-47. doi: 10.1177/0003065116673052
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, uma audiência de psicanalistas lacanianos em uma conferência de estudos críticos em Administração (CMS) vibrou com uma apresentação e discussão sobre o texto de Michel (2011)Michel, A. (2011). Transcending socialization: A nine-year ethnography of the body's role in organizational control and knowledge workers transformation. Administrative Science Quarterly, 56, 325-368. doi: 10.1177/0001839212437519
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apresentado aqui: “A audiência na conferência ‘Re-working Lacan at Work’ ficou mesmerizada e encantada pelo modo como os banqueiros usaram, abusaram e em muitos casos terminaram por destruir seus corpos [...]” (p. 34). A questão, então, tornou-se como sair dessa mesmerização para compreender o limite da crítica apresentada por Michel (no último estágio, lembremos, tanto os sujeitos se alinham com as demandas apresentados por seus corpos quanto a organização se beneficia da mudança da relação dos sujeitos com controle) e qual a contribuição da psicanálise para o alargamento desse horizonte:

A lição aqui não é tanto que há aspectos do “controle organizacional” de seus corpos no real que os empregados reconhecem apenas tardiamente, mas que há um hiato necessário entre o reino experiencial, imaginário que Michel (2011)Michel, A. (2011). Transcending socialization: A nine-year ethnography of the body's role in organizational control and knowledge workers transformation. Administrative Science Quarterly, 56, 325-368. doi: 10.1177/0001839212437519
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está acessando, e a partir do qual está construindo sua “teoria fundamentada”, e os processos simbólicos que só podem ser compreendidos teoricamente como manifestações da estrutura, como real. (Parker, 2016Parker, I. (2016). Obsessionality, order, management: Psychoanalysis and capitalism. CUSP: Culture-Subjectivity-Psyche, 1(2), 18-47. doi: 10.1177/0003065116673052
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, p. 36).

É nesse hiato que opera a psicanálise, pois o corpo é o lócus em que se desenvolve uma “complexa trama das relações entre o psíquico e o somático, ou, dito de outro modo, o conjunto das funções orgânicas em movimento habita um corpo que, atravessado pela pulsão e pela linguagem constituída pela alteridade, é também o lugar da realização de um desejo inconsciente” (Fernandes, 2003Fernandes, M. H. (2003). Corpo. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., p. 116). Que esse desejo inconsciente possa se expressar no corpo apesar dos mecanismos de controle, sejam corporais, sejam mentais, frutos da socialização fomentada pelas organizações e a despeito da vontade enunciada pelos próprios sujeitos, eis aí a presença do corpo erógeno.

Dessa forma, nem mesmo os indivíduos que atingem o suposto “estágio” do “corpo como sujeito” de fato o fazem. Há aqui o pressuposto de um domínio de si mesmo que não ocorre de fato, que fica claro nesta passagem:

Controles discretos então administraram tempo, espaço e energia. Ao contrário de controles cognitivos explícitos, eles foram incorporados ao ambiente e às rotinas, às vezes por motivos não relacionados ao controle. Enquanto estivessem em uma posição júnior, os banqueiros na maioria das vezes notaram mensagens verbais sobre autonomia e minimizaram a importância de controles incorporados, o que tornou a resistência menos provável. Conforme foram ocupando posições seniores, alguns banqueiros notaram controles incorporados: ‘Eu sempre pensei que minhas escolhas fossem minhas. Agora percebo que o banco escolhe sutilmente por você’ (diretor do banco A). Mas os controles discretos tiveram efeitos que se transformaram no modo como os banqueiros se relacionavam com seu corpo, o que teve consequências para a organização. (Michel, 2011Michel, A. (2011). Transcending socialization: A nine-year ethnography of the body's role in organizational control and knowledge workers transformation. Administrative Science Quarterly, 56, 325-368. doi: 10.1177/0001839212437519
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, p. 340).

Desde a noção psicanalítica de corpo erógeno, o corpo é uma miragem. Ademais, há aqui não apenas uma lição ontológica como também metodológica: assim como o corpo não pode ser apreendido dessa maneira, a pesquisa em organizações deve compreender que não é “pela acumulação de uma quantidade enorme de dados empíricos a qual deve ser reunida e obsessivamente ordenada” (Parker, 2016Parker, I. (2016). Obsessionality, order, management: Psychoanalysis and capitalism. CUSP: Culture-Subjectivity-Psyche, 1(2), 18-47. doi: 10.1177/0003065116673052
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, p. 36) que se pode resolver o problema de pesquisa. Por mais extensa e profusa que tenha sido a etnografia de Michel, ela, ainda assim, não consegue resolver o “paradoxo da autonomia”, embora o realce. Reconhecer que há uma impossibilidade fundamental de aceder ao real é uma lição ainda a ser incorporada pela academia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, procuramos mostrar que uma quinta dimensão do corpo precisa ser considerada no âmbito dos Estudos Organizacionais: o corpo erógeno, tal como descrito e formulado pela psicanálise. Se, em um primeiro momento, mostramos como a corporalidade veio sendo tematizada nessa área de pesquisa, revelamos, em seguida, como ainda há uma dimensão crucial a ser considerada.

A etnografia realizada por Michel (2011)Michel, A. (2011). Transcending socialization: A nine-year ethnography of the body's role in organizational control and knowledge workers transformation. Administrative Science Quarterly, 56, 325-368. doi: 10.1177/0001839212437519
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é um material fecundo pelo que ele mostra e pelo que oculta. Ele evidencia, de maneira robusta, como as formas de controle organizacionais aparecem no corpo e como elas não precisam ser explícitas nem conscientes para que estejam atuantes. O material revela, ainda, que nem as tradicionais teorias motivacionais nem as teorias cognitivas do controle conseguem explicar o que se observa, encarado como um paradoxo porque o que se pressupõe é um sujeito indiviso. E é aí que adentramos o território do desconhecimento, tanto dos trabalhadores quanto da própria autora. Tal indivisão é admitida por ambas as partes. Uma vez que a mente dá lugar ao corpo no centro de um modelo teórico que busca explicar as relações de mútua determinação entre os participantes da organização e a própria organização, torna-se necessário um refinamento conceitual a respeito do que é esse corpo. Mesmo na impressionantemente extensa etnografia em tela, que toma o corpo como centro, este não deixa de ser, bem, um corpo orgânico, somático, que apresenta dores inexplicáveis e doenças debilitantes, ora objeto de controle, ora algo a ser conquistado, ora algo cujas próprias demandas, inexplicáveis, podem ser alinhadas com as da organização.

É nesse ponto de incidência que a definição aparentemente em jogo de corpo, herança ainda, mais ou menos explícita, do projeto cartesiano e suas coordenadas dualistas, não dá conta daquilo a que se propõe explicar e também ultrapassar, que percebemos como fundamental a contribuição da psicanálise e sua concepção de corpo erógeno como fundamentação da corporeidade.

  • Avaliado pelo sistema double blind review.

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Editado por

Editores convidados: Adriana Vinholi Rampazo, Luiz Alex Silva Saraiva, Eloísio Moulin de Souza, Jo Brewis e Saoirse Catlin O'Shea

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Jan 2021
  • Aceito
    14 Out 2021
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