Acessibilidade / Reportar erro

COLONIZAÇÃO DO CORPO E DESPERSONIFICAÇÃO DA MULHER NO SISTEMA OBSTÉTRICO

Colonizacíon corporal y despersonificación de la mujer en el sistema obstétrico colonizado

RESUMO

O presente trabalho tem o objetivo de construir uma inteligibilidade sobre a sujeição da mulher à autoridade médico-hospitalar nos momentos de gestação e parto. O sistema obstétrico vigente no Brasil, estudado a partir de uma abordagem qualitativa, envolvendo narrativas de 24 mulheres que contam histórias sobre como elas se sentiram despersonificadas no momento do parto, denota que este tem se constituído de modo colonizado e violento. Na relação dessas mulheres com o sistema obstétrico, impera toda forma de objetificação do corpo, de violência obstétrica e de não atendimento às vontades da mulher enquanto ser protagonista do parto. Impera a tutela profissional em detrimento da atuação do saber do corpo, do sensível, do comum. A alternativa à excessiva autoridade médica/hospitalar no processo tradicional têm sido a busca por equipes humanizadas, desarticulando o procedimento hegemônico a partir do desejo de viver o parto como uma experiência de protagonismo.

Palavras-chave:
colonização do corpo; despersonificação; sujeição; parto; violência obstétrica

RESUMEN

El presente trabajo tiene como objetivo construir una inteligibilidad sobre el tema de la mujer a la autoridad médico-hospitalaria en los momentos del embarazo y parto. El sistema obstétrico vigente en Brasil, estudiado desde un enfoque cualitativo, involucrando narrativas de veinticuatro mujeres que cuentan historias sobre cómo se sintieron despersoficadas en el momento del parto, denota que se ha constituido de manera colonizada y violenta. En la relación de estas mujeres con el sistema obstétrico, prevalece toda forma de objetivación del cuerpo, violencia obstétrica e incumplimiento de la voluntad de la mujer siendo protagonista del parto. La tutela profesional prevalece a costa de actuar sobre el conocimiento del cuerpo, lo sensible, lo común. La alternativa a la excesiva autoridad médico/hospitalaria en el proceso tradicional ha sido la búsqueda de equipos humanizados, desmantelando el procedimiento hegemónico del deseo de vivir el parto como una experiencia de protagonismo.

Palabras clave:
colonización corporal; despersonificación; sometimiento; parto; violencia obstétrica

ABSTRACT

This research aims to offer a rationale on the subjection of women to the medical-hospital authority during pregnancy and childbirth. The study analyzes the current obstetric system in Brazil from a qualitative approach, based on narratives of twenty-four women who tell stories about how they felt objectified at the time of childbirth. The analysis shows that this system has been constituted in a colonized and violent way. The relationship of these women with the obstetric system is ruled by every form of body objectification, obstetric violence, and non-attendance to the woman’s wishes as the protagonist of childbirth. Professional tutelage prevails to the detriment of the body’s knowledge, of sensitiveness, of what is natural. The alternative to excessive medical/hospital authority in the traditional process has been the search for humanized teams, dismantling the hegemonic procedure from the desire to live childbirth as an experience of protagonism.

Keywords:
body colonization; objectification; subjection; childbirth; obstetric violence

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem o objetivo de construir uma inteligibilidade sobre a sujeição da mulher à autoridade médico-hospitalar no momento da gestação e do parto, como um processo de colonização do corpo, ou seja, de violência obstétrica. Trata-se de um processo que envolve sua despersonificação inscrita por um ambiente operado pela linguagem da ciência moderna, que prevalece no sistema obstétrico brasileiro.

A cultura de medicalização da gestação e parto trata-se de um dos primeiros atos institucionalizados por um sistema obstétrico que permite a fragilização da mulher enquanto ser constituinte de um corpo, que necessita de assistência e cuidados médicos para funcionar “normalmente”. A sujeição do corpo feminino às normas institucionais da ciência moderna é facilitada quando este é acometido de desequilíbrios que fogem do “normal”, configurando-se, assim, o objeto de estudo dos teóricos da saúde, de acordo com Canguilhem (1995Canguilhem, G. (1995). O normal e o patológico (M. T. R. Barrocas, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., p. 13), quando esses desequilíbrios são catalogados como doenças.

Ao admitir os processos de gestação e parto como potencialmente patológicos, e não como eventos fisiológicos, permite-se o acesso a esse corpo como objeto do sistema de saúde que necessita dos procedimentos institucionais para voltar ao seu estado de equilíbrio “normal”. Admitidas às instituições de saúde, esse viés sobre o indivíduo (corpo) como um objeto da ciência constitui o que Goffman (1961)Goffman, E. (1961). Manicômios, prisões e conventos. In Manicômios, prisões e conventos (pp. 316-316). São Paulo: Editopra Perspectiva. denomina despersonificação (ou objetificação), uma abordagem que naturaliza a prática de eventos violentos nos processos de gestação, parto e pós-parto, ou seja, a violência obstétrica.

Apesar de não haver um consenso global entre quais práticas podem ser consideradas violência obstétrica, Bohren et al. (2015)Bohren, M. A., Vogel, J. P., Hunter, E. C., Lutsiv, O., Makh, S. K., Souza, J. P., & Gülmezoglu, A. M. (2015). The mistreatment of women during childbirth in health facilities globally: A mixed-methods systematic review. PLoS Medicine, 12(6), e1001847. doi: 10.1371/journal.pmed.1001847
https://doi.org/10.1371/journal.pmed.100...
sintetizam os maus-tratos às mulheres durante o parto, evidenciados por estudos em 34 países, e organiza tais práticas em sete domínios: abuso físico (uso de força e restrição física), sexual, verbal (linguagem rude, ameaças e culpas), estigma e discriminação, falha no atendimento aos padrões preestabelecidos profissionalmente (falta de consentimento informado e de confidencialidade, procedimentos excessivos e dolorosos sem consentimento ou comunicação, negligência e abandono), falha de relacionamento entre mulheres e profissionais (comunicação ineficaz, falta de suporte e de autonomia da mulher) e condições e restrições do sistema de saúde (falta de recursos, falta de política, cultura institucional). No Brasil, o Ministério da Saúde (2018)Ministério da Saúde. (2018). Você sabe o que é violência obstétrica? Recuperado de http://www.blog.saude.gov.br/index.php/promocao-da-saude/53079-voce-sabe-o-que-e-violencia-obstetrica
http://www.blog.saude.gov.br/index.php/p...
evidenciou que a violência obstétrica pode ocorrer de diversas formas, inclusive com a submissão das mulheres a um conjunto de normas e procedimentos padronizados, colocando o parto como parte de um processo-padrão de um evento hospitalar:

A violência obstétrica é aquela que acontece no momento da gestação, parto, nascimento e/ou pós-parto, inclusive no atendimento ao abortamento. Pode ser física, psicológica, verbal, simbólica e/ou sexual, além de negligência, discriminação e/ou condutas excessivas ou desnecessárias ou desaconselhadas… Essas práticas submetem mulheres a normas e rotinas rígidas e muitas vezes desnecessárias, que não respeitam os seus corpos e os seus ritmos naturais e as impedem de exercer seu protagonismo. (para. 3)

Em 3 de maio de 2019, o Ministério da Saúde encaminhou o Despacho/Ofício nº 017/19 - JUR/SEC divulgando seu posicionamento contra o uso do termo “violência obstétrica”, alegando conotação inadequada. Para tal posicionamento, tanto o Ministério Público Federal (2019)Ministério Público Federal. (2019). Nota pública: Violência obstétrica. Recuperado de http://www.mpf.mp.br/am/sala-de-imprensa/docs/nota-publica-violencia-obstetrica/view
http://www.mpf.mp.br/am/sala-de-imprensa...
, em Nota Pública, quanto a Comissão de Seguridade Social e Família, por meio da Câmara de Deputados (2019), posicionaram-se de maneira crítica ao despacho. Este estudo mantém a definição do Ministério da Saúde (2018)Ministério da Saúde. (2018). Você sabe o que é violência obstétrica? Recuperado de http://www.blog.saude.gov.br/index.php/promocao-da-saude/53079-voce-sabe-o-que-e-violencia-obstetrica
http://www.blog.saude.gov.br/index.php/p...
, haja vista o processo de conquista (Sadler et al., 2016Sadler, M., Santos, M. J., Ruiz-Berdún, D., Rojas, G. L., Skoko, E., Gillen, P., & Clausen, J. A. (2016). Moving beyond disrespect and abuse: addressing the structural dimensions of obstetric violence. Reproductive health matters, 24(47), 47-55. doi: 10.1016/j.rhm.2016.04.002
https://doi.org/10.1016/j.rhm.2016.04.00...
) do reconhecimento do termo como um dos primeiros passos para combatê-lo enquanto prática.

Nesse contexto, e como forma de resistência e de atuação micropolítica, movimentos de humanização do parto vêm ganhando força nesta última década, motivados por uma série de fatores como: amplo acesso às informações, reunião de pessoas com as mesmas motivações para discutir objetivos, caminhos e alternativas de embate à violência obstétrica e, ainda, ao excessivo número de cesarianas. Esse último posiciona o Brasil como um dos países com maiores taxas de cesarianas do mundo, contando com 58,69% dos nascimentos por via cirúrgica (Portal ODS, 2017Portal ODS. (2017). Indicadores. ODS 03: Saúde e bem-estar. Mortalidade materna. Recuperado de http://rd.portalods.com.br/relatorios/12/saude-e-bem-estar/BRA004041095/curitiba---pr
http://rd.portalods.com.br/relatorios/12...
), enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2018Organização Mundial da Saúde. (2018). Declaração da OMS sobre taxas de cesáreas. Genebra, Suíça. Recuperado de https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/161442/WHO_RHR_15.02_por.pdf;jsessionid=5A2473527A018EB607D6EC064D6A36A0?sequence=3
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
) declara uma taxa ideal de cesáreas entre 10% e 15% dos nascimentos.

Essa confluência de elementos institucionais que culminam em um movimento de desterritorialização da mulher (quando seu corpo é colonizado pela linguagem e lançado em outro território) no momento do parto ocorre quando o evento fisiológico, pertencente à mulher, torna-se um evento médico, onde ela é objeto do processo e o bebê, um produto final.

A sujeição se estabelece de maneira facilitada quando a mulher se encontra abalada devido ao processo de despersonificação, o que acontece ao despir-se de suas vestes, ao entrar em um sistema de rotina predeterminado, institucionalmente, quando participa de atividades simbólicas incompatíveis com o seu desejo. A mortificação da individualidade, do corpo e a colonização da própria vida instauram-se pela linguagem institucional (Goffman, 1961Goffman, E. (1961). Manicômios, prisões e conventos. In Manicômios, prisões e conventos (pp. 316-316). São Paulo: Editopra Perspectiva.), o que chamamos aqui de desterritorialização, ou seja, o movimento pelo qual "se" abandona o território ao passo que se estabelece em outro, neste caso, de modo a sobrecodificar o corpo pelos circuitos da linguagem obstétrica e pelas camadas de valores e controles instituídos como atributos profissionais (Deleuze & Guattari, 2017Deleuze, G., &. Guattari, F. (2017). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1044924/mod_resource/content/1/O%20%E2%80%9Ccorte%20por%20cima%E2%80%9D%20e%20o%20%E2%80%9Ccorte%20por%20baixo%E2%80%9D.pdf
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
).

Para construir uma inteligibilidade sobre a sujeição da mulher à autoridade médico-hospitalar, conforme anunciado nesta introdução, partimos de uma leitura sobre a sujeição e despersonificação da mulher no processo de gestação e do parto, como um modo de colonização do corpo pela violência obstétrica. No momento seguinte, na terceira seção, o leitor encontra a abordagem metodológica, a qual categoriza a pesquisa como uma abordagem qualitativa, pautada em entrevistas a partir de uma pergunta aberta, tendo seus registros tratados pela técnica de análise de conteúdo. A quarta seção ocupa-se da construção de uma narrativa em multiplicidades de histórias e discursos, concebendo uma inteligibilidade sobre a questão central deste trabalho. Por fim, uma breve discussão sobre os resultados e contribuições da pesquisa imprime os contornos das considerações finais.

A COLONIZAÇÃO DO CORPO: MULHER EM PROCESSO DE PARTO NO SISTEMA OBSTÉTRICO

Assujeitamento do corpo

Deleuze e Guattari (2011)Deleuze, G., & Guatarri, F. (2011). O anti-édipo. São Paulo: Editora 34. e Foucault (1979)Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Graal. argumentam que o sujeito se inscreve em sociedade a partir de um aprisionamento que ocorre pelas dimensões da linguagem, da cultura e de valores morais, desde o seu nascimento, produzidas por meio do que se pode denominar vetores institucionais, a começar pela família, escola, comunidade etc. Tais instituições, na relação com o sujeito, o deslocam do devir, da dimensão de um corpo livre e sem órgãos, inscrevendo-o em contornos identitários, de modos de vida, legitimando autoridades, instituições, pronunciamentos de verdades e regimes disciplinares. Essas estruturas encontram-se, inclusive, na saúde pública, o que abarca a especialidade da obstetrícia, operadas pelos profissionais e serviços médico-hospitalares.

Em meio à visão “gramatical”, disciplinada, Canguilhem (1995)Canguilhem, G. (1995). O normal e o patológico (M. T. R. Barrocas, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. situa as vivências do corpo entre o que é denominado normal e o patológico; embora não esteja seguro em colocar esses dois conceitos como opostos, ele explica que, quando o normal entra em desarmonia, torna-se patológico. Assim, os fenômenos vitais normais situam-se quase na linha oposta do que pode ser considerado patológico. E o que seria um processo de gestação e parto senão um fenômeno fisiológico vital e normal, não somente à fisiologia do corpo da mulher, mas ainda à sociedade?

A constante medicalização e patologização da gestação e do parto acabam por retirar o processo vital pertencente ao corpo feminino e colocam-no nas mãos de instituições, ao transformá-lo em evento médico, não pertencente ao corpo feminino. Análogo a esse comportamento, o que se vê nos relatos sobre violência obstétrica é justamente o não pertencimento ao próprio corpo e aos fenômenos a ele inerentes. A partir dessa intervenção, a mulher sente-se objetificada, manipulada em uma linha de produção, cujo produto final é o nascimento do bebê.

Para a doença, a ciência, e consequentemente a medicina, deveriam atuar sob o princípio de utilizar o fenômeno terapêutico como uma incitação à volta do seu estado natural, do qual havia se afastado: “A finalidade de qualquer processo curativo é apenas fazer as propriedades vitais alteradas voltarem ao tipo que lhes é natural” (Bichat, 1800, como citado em Canguilhem, 1995Canguilhem, G. (1995). O normal e o patológico (M. T. R. Barrocas, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., p. 41). Porém, no que tange aos processos vitais e fisiológicos do parto, as evidências mostram que esse princípio não é seguido, não somente em casos patológicos, quando o parto necessita de procedimentos médicos paliativos ou cirúrgicos como a cesariana. O processo curativo é utilizado mesmo quando o parto segue seu fluxo natural, de modo que a medicalização seja tomada como via de regra e em todas as situações, empregando meios artificiais e/ou mecânicos sob a forma de cura. Em suma, o normal, aqui estabelecido, é tomado como patológico e submetido a uma linha produtiva dotada de procedimentos e padronizações que “curam doenças”, existentes ou não.

É a patologização do parto que permite sua inclusão nos sistemas de saúde vigentes e sua sujeição aos saberes médicos. A atuação esperada seria um suporte médico, com monitoramento da saúde do binômio mãe-bebê durante o pré-natal, a serviço da pessoa, respeitando as decisões da mulher em relação às condutas que ela pode escolher, com informação e protagonismo. Porém, a gestação passa a ser um forte potencial de patologias, e os protocolos médicos atuam mais fortemente sobre esse potencial do que com o evento natural. Conforme cita o Caderno HumanizaSUS (Ministério da Saúde, 2014Ministério da Saúde. (2014). Humanização do parto e do nascimento. Cadernos HumanizaSUS Recuperado de https://www.redehumanizasus.net/sites/default/files/caderno_humanizasus_v4_humanizacao_parto.pdf
https://www.redehumanizasus.net/sites/de...
), a exclusão da subjetividade do indivíduo foi o produto de um processo de reconhecimento do que é ciência e do que é saúde, sendo a doença o principal objeto de estudo, e a saúde um conceito constantemente em risco.

A necessidade de humanização não é um achado recente, apesar de sua maior evidência nos últimos anos. Em 1948, esse problema médico já tinha sido evidenciado e determinado que o conceito de saúde fosse substituído pelo conceito de bem-estar, que é relativo a cada pessoa, e assim, individualizado, fortalecendo a dimensão da subjetividade (Ministério da Saúde, 2014Ministério da Saúde. (2014). Humanização do parto e do nascimento. Cadernos HumanizaSUS Recuperado de https://www.redehumanizasus.net/sites/default/files/caderno_humanizasus_v4_humanizacao_parto.pdf
https://www.redehumanizasus.net/sites/de...
, p. 25). No entanto, o sistema obstétrico atual ainda aproxima-se do conceito anterior, que trata da objetificação do indivíduo como portador de doença, e esta como objeto de estudo.

Com a Reforma Sanitária de 1988, a Constituição passa a rever o atendimento humanizado ao parto, considerando as perspectivas de universalidade, integralidade, equidade, descentralização, regionalização e participação social, as quais deveriam estar presentes na efetivação de um novo modelo obstétrico, de modo a produzir ações integrais de saúde em função das necessidades materno-infantis, de parto, nascimento seguros e humanizados, e da construção e sustentação de redes perinatais. O nascimento, assim, passa a ser considerado um evento biopsicossocial, reconhecido como evento biológico - anatômico, psicológico e bioquímico, integrado a componentes mentais e espirituais, que é por natureza feminino, intuitivo, sexual e espiritual (Ministério da Saúde, 2014Ministério da Saúde. (2014). Humanização do parto e do nascimento. Cadernos HumanizaSUS Recuperado de https://www.redehumanizasus.net/sites/default/files/caderno_humanizasus_v4_humanizacao_parto.pdf
https://www.redehumanizasus.net/sites/de...
, p. 25). Essa diferenciação de paradigma foi classificada em três modelos, conforme o Quadro 1, por Davis-Floyd (2001, como citado em Ministério da Saúde, 2014Ministério da Saúde. (2014). Humanização do parto e do nascimento. Cadernos HumanizaSUS Recuperado de https://www.redehumanizasus.net/sites/default/files/caderno_humanizasus_v4_humanizacao_parto.pdf
https://www.redehumanizasus.net/sites/de...
). Esses modelos não são excludentes, mas sinérgicos, e o modelo de assistência pode transitar entre eles de acordo com as necessidades e características individuais.

Quadro 1
Modelos assistenciais de atenção ao atendimento médico-institucional

Além do modelo de atenção à assistência médica, existem alterações estruturais importantes que atuam de maneira benéfica ao modelo humanista ou holístico. Quando se trata de modelo de assistência obstétrica, algumas delas, a exemplo de países que mudaram suas taxas de cesáreas, são a desvinculação do parto das instituições de saúde e a sujeição do médico, de modo que novos espaços sejam criados, como as casas de parto, também presentes no Brasil. No entanto, esses novos espaços ainda se encontram em quantidade insuficiente para a demanda. Com atuação multidisciplinar da enfermagem obstétrica, terapeutas, doulas, entre outros, o parto de gestantes de baixo risco ocorre de maneira fisiológica, e não patológica, e os demais casos podem ser transferidos para um hospital, geralmente anexo ou próximo.

Os modelos humanista e holístico propõem um caminhar por práticas construídas pela dimensão do sentir, do corpo, não exclusivas à racionalidade técnica. A autoridade e o poder construídos na relação entre a mulher, o médico e os serviços hospitalares (ou de saúde) são horizontalizados. A mulher passa a ocupar outro lugar, deslocando-se da dimensão do paciente passivo. De acordo com Deleuze e Guattari (2011)Deleuze, G., & Guatarri, F. (2011). O anti-édipo. São Paulo: Editora 34., produzir o corpo sem órgãos, a partir da suspensão da autoridade e da linguagem médicas como referenciais, é driblar a captura e as verdades disseminadas pela máquina do sócius, moderna e transcendente. A partir desse despir-se do discurso hegemônico (grade cultural e referencial) e acessar o desejo na dimensão da vontade de potência (e não pela falta do saber médico), a mulher afirma diferença ao produzir pelos afectos, na relação com o saber médico-hospitalar que também passa a se diferenciar (devir) (Deleuze & Guattari, 2011Deleuze, G., & Guatarri, F. (2011). O anti-édipo. São Paulo: Editora 34.; Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições.).

Sujeição do indivíduo

Antecedendo a sujeição, é necessário falar de poder e dos seus emaranhados de atuação social. O porquê se deve ao fato de que o controle da sociedade sobre os indivíduos não começa pela ideologia ou pela consciência, mas começa no corpo e com o corpo (Foucault, 1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Graal., p. 80). Tanto o esquema capitalista como a medicina utilizam-se do corpo, e consequentemente da sua sujeição, como estratégia biopolítica. É no controle do corpo, das formas de vivências, na sujeição deste a um sistema ou a uma máquina social (Deleuze & Guattari, 2011Deleuze, G., & Guatarri, F. (2011). O anti-édipo. São Paulo: Editora 34.) que o poder se alastra e desenvolve.

A sujeição começa com o poder disciplinante dos corpos - sistematizados, categorizados, colocados em ordem e padrão, desejando a autorrepressão. A disciplina é senão a primeira forma de destituição dos próprios corpos, pois, ao colocá-los à disposição de regras e verdades institucionais (circuito moral-científico, por exemplo), sujeitados à autoridade médico-hospitalar, obedientes à vigilância e ao registro contínuo, os corpos dóceis passam a se conceber na dimensão passiva, inscritos na linguagem (grade referencial), legitimando a autoridade da medicalização, objetificados (Foucault, 1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Graal.). É nesse contexto que “o indivíduo emerge como objeto do saber e da prática médicos” (Foucault, 1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Graal., p. 111).

Para Foucault, a constituição do sujeito como objeto de conhecimento para si mesmo é o cerne do que podemos chamar de subjetividade, que é a maneira pela qual o sujeito faz uma experiência de relacionamento consigo mesmo (Foucault, 1984Foucault, M. (1984). História da sexualidade (Vol. II: O uso dos prazeres). Rio de Janeiro, RJ: Graal., p. 230). Ainda, o processo de subjetivação é o reconhecimento de si como sujeito e fora do sujeito, ao mesmo tempo (dimensão coextensiva), movimento em que o sujeito está em relacionamento com o mundo externo e com seu mundo interno, por meio do pensamento e da constituição de si em um circuito de afectos que o convoca à dimensão do estranho-familiar. E é nessa rede de relacionamentos em que o sujeito sente se a subjetividade instalada em seu corpo o sobrecodifica em constante assujeitamento ou se o desterritorializa enquanto processo constante de subjetivação sem sujeito, como potência em vir a ser, em um devir micropolítico ativo (Deleuze & Guattari, 2011Deleuze, G., & Guatarri, F. (2011). O anti-édipo. São Paulo: Editora 34., 2017Deleuze, G., &. Guattari, F. (2017). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1044924/mod_resource/content/1/O%20%E2%80%9Ccorte%20por%20cima%E2%80%9D%20e%20o%20%E2%80%9Ccorte%20por%20baixo%E2%80%9D.pdf
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
; Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições.). No entanto, na condição de sujeito, a mulher vê-se agindo de acordo com normas institucionais, com a cultura aceita, ou na condição de se inserir na forma de ser que lhe é imposta socialmente.

Nesse estudo, a forma de sujeição normatizada está na relação paciente e instituição médica, onde o poder está constituído para aquele que detém os procedimentos e o saber técnico, uma autoridade já estabelecida por um conjunto de práticas de poder que não precisa necessariamente agir sobre o outro, mas sobre as ações do outro (Foucault, 1984Foucault, M. (1984). História da sexualidade (Vol. II: O uso dos prazeres). Rio de Janeiro, RJ: Graal.). A palavra paciente fala muito por si só. De origem latina, “paciente” significa aquele que suporta, que resiste. A palavra em si já denota a passividade, a própria sujeição a outrem, ou seja, a despersonificação.

Despersonificação da mulher no momento do parto

Goffman (1961)Goffman, E. (1961). Manicômios, prisões e conventos. In Manicômios, prisões e conventos (pp. 316-316). São Paulo: Editopra Perspectiva. descreve as formas de despersonificação dentro de instituições totais, ou seja, aquelas onde os indivíduos se encontram sujeitados, realizando suas atividades cotidianas por um certo período, com características de enclausuramento, ou seja, de não contato com a vida externa. São elas: os conventos, hospitais psiquiátricos, prisões, mosteiros, entre outros. Nessas organizações, a primeira violação de privacidade ocorre, segundo Goffman (1961Goffman, E. (1961). Manicômios, prisões e conventos. In Manicômios, prisões e conventos (pp. 316-316). São Paulo: Editopra Perspectiva., p. 31), no momento da admissão às instituições, mesmo que voluntária. Para admissão em um hospital, é necessário registrar um conjunto de informações pessoais, as quais atendem o controle da burocracia e também o serviço prestado pela equipe médica e diretiva da instituição. Para o referido autor, nesse momento, a fronteira entre o indivíduo e a organização já é invadida pela segunda. A partir desses registros, o indivíduo-sujeito (a mulher), ao ter que se vestir com roupas próprias da instituição, ser categorizado em alas, expor sua nudez e necessidades fisiológicas ao conhecimento da instituição, ter suas visitas e acompanhamentos controlados, realizar exames onde “tanto o examinador quanto o exame penetram a intimidade do indivíduo e violam o território do seu eu” (Goffman, 1961Goffman, E. (1961). Manicômios, prisões e conventos. In Manicômios, prisões e conventos (pp. 316-316). São Paulo: Editopra Perspectiva., p. 35), como o caso dos toques vaginais, por exemplo, e ao sujeitar-se a uma relação de poder-saber científico inerente à equipe médico-hospitalar, efetua-se a sua despersonificação.

Embora não haja muros altos, portas fechadas ou nenhum mecanismo físico de contenção, as internas, em grande maioria, passam a obedecer a um mecanismo de “alta hospitalar” para que possam ausentar-se da instituição. Outros pontos em comum entre as instituições de fechamento de Goffman e as maternidades são: 1) a constante supervisão; 2) a autoridade de quem detém o poder, que se estabelece por meio do conhecimento técnico (também descrito por Foucault, 1987Foucault, M. (1987). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.); 3) a distância social entre os estratos sociais de quem é interno e quem os supervisiona, como a equipe médica e de enfermagem; 4) a padronização de procedimentos e atendimentos às demandas; e 5) a sujeição do interno às rotinas e modos de vida da instituição, como horários que devem ser obedecidos.

METODOLOGIA

Para desenvolver essa leitura, o presente trabalho pautou-se em uma abordagem construcionista social (Gergen, 2009Gergen, K. J. (2009). An invitation to social construction. London: Sage Publications Ltd.), o que envolveu a imersão em um campo-tema (Spink, 2003Spink, P. K. (2003). Pesquisa de campo em psicologia social: Uma perspectiva pós-construcionista. Psicologia & Sociedade, 15(2), 18-42. doi: 10.1590/S0102-71822003000200003
https://doi.org/10.1590/S0102-7182200300...
) dimensionado como gestação e experimentação do parto na relação com a linguagem médico-hospitalar tradicional/hegemônica e a linguagem alternativa humanizada.

A narrativa (linguagem) é um modo de produção de sentidos que constrói a realidade. Por isso, a pesquisa realizada por meio da construção social de realidades considera as diferentes narrativas, a partir de diferentes vozes e registros, que contam as específicas e pequenas histórias e, a partir destas, constroem a história principal que responde ao problema de pesquisa proposto (Borges, 2013Borges, W. A. (2013). Gestão metropolitana: Sua construção a partir de duas experiências de associativismo territorial na região metropolitana de Curitiba (Tese de doutorado em Administração Pública e Governo, Programa de Pós-Graduação em Administração, Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo, São Paulo).). Pela abordagem construtivista social, trata-se de uma pesquisa qualitativa, a qual desenvolve uma inteligibilidade sobre a sujeição da mulher à autoridade médica e hospitalar no momento do parto, a partir de 24 narrativas de mulheres, sendo 23 escritas e uma gravação.

A pergunta que norteou a pesquisa foi: “Em qual momento da sua gestação/parto/pós-parto você se sentiu tratada como um objeto do sistema sem autonomia do seu corpo?”. Os dados foram coletados em janeiro de 2019, com a utilização de um link direcionado a um formulário, com a possibilidade de envios de aúdio, vídeo, fotos e relatos, e ainda a possibilidade de contato telefônico, que foi utilizado por algumas mulheres como complementação da coleta. Após o período de imersão, fez-se necessário um afastamento do campo-tema para a desassociação dos sentimentos evidenciados à exposição dos materiais coletados. As respostas vieram de diversas regiões do Brasil e uma, de Portugal. Foram relatadas experiências tanto de partos hospitalares públicos e privados quanto de partos domiciliares. Os dados demográficos não foram coletados, uma vez que não foi foco do estudo categorizar as respondentes de alguma forma, respeitando, assim, o seu protagonismo e multiplicidade. Os nomes foram suprimidos de modo que os relatos são citados sob a alcunha de “Entrevistada E(n)”, a fim de manter o sigilo das informações prestadas.

Dos 24 relatos recebidos, apenas um foi descartado por não ter atendido o objetivo da pergunta e, consequentemente, da pesquisa. Com base na análise de conteúdo, segundo Bardin (1977)Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Lisboa, Portugal: Edições 70., os relatos foram transcritos e organizados em um único documento, o qual serviu de base para o reconhecimento das situações de colonização do corpo e despersonificação e a emergência de conceitos como violência obstétrica.

As diferentes narrativas encontram-se na dimensão de uma voz múltipla e uníssona, de algo que as mulheres desejam contar sobre a violência de assujeitamento ao experimentar a vivência da gravidez e do parto. Trata-se aqui de fundamental atuação micropolítica em luta pelo deslocamento da objetificação da mulher durante a gestação e o parto, ou seja, de um grito decolonial, que desterritorializa a mulher dos seus registros concebidos na sua relação de assujeitamento à linguagem e ao saber médico-hospitalar.

ANÁLISE DOS DADOS E RESULTADOS: INTELIGIBILIDADE SOBRE A SUJEIÇÃO DA MULHER GRÁVIDA À AUTORIDADE MÉDICO-HOSPITALAR

O encontro com diferentes vozes de mulheres que experienciaram a gravidez e o parto ritmiza dor, angústia, medo, abuso, um estado de objetificação institucionalizado, produzido por um sistema hegemônico operador da especialidade obstétrica, vigente no país e na cultura.

A mulher grávida vê-se capturada por um circuito moral e autoritário, legitimado e produzido pela racionalidade científica e profissional que a constrange. Um constrangimento que se inscreve pelo corpo, por este se encontrar colonizado, ou seja, sobrecodificado por vetores disciplinares, institucionalizados por normativas e procedimentos construídos por um saber que desautoriza a pessoa, transformando-a em um sujeito dócil, desprovido de liberdade e de protagonismo na relação com o profissional.

No entanto, é exatamente a partir da angústia, de um desconforto, que as mulheres então submetidas aos códigos médico-hospitalares encontram motivações para renarrar suas experiências e discursar sobre a violência sofrida. É um desenvolvimento do pensar a partir do corpo, de uma ferida difícil de elaborar, mas que demanda enfrentamento por somente assim promover a efetuação da saúde mental e de necessária atuação micropolítica.

Por meio da leitura dos 24 relatos, repletos de emoção, de lutas e de lutos, emergiram algumas inteligibilidades importantes que evidenciam a despersonificação durante o parto, quais sejam:

  1. O uso do poder-saber médico para desconsiderar os desejos da gestante por um tipo de parto;

  2. A culpabilização ou responsabilização das mulheres em um processo onde elas, sem perceber, encontram-se como vítimas de violência em um sistema tecnocrata (Modelo Tecnomédico, Quadro 1);

  3. A objetificação das mulheres com desconsideração às suas subjetividades, emoções e anseios psíquicos;

  4. A despersonificação em si.

A violência obstétrica, que atua como um grande guarda-chuva e que envolve todos os modos de sujeição acima, ocorre de maneira implícita ou explícita, física, moral, emocional ou psíquica e faz sofrer muitas mulheres, vítimas de um sistema obstétrico que ainda desconsidera a subjetividade humana nas práticas médicas, tratando os pacientes de maneira objetificada, alienada, disfuncional, padronizada e com as demais características do modelo tecnomédico ou biomédico.

O desconhecimento das reais causas de indicação médica para cesarianas está presente em muitos relatos, inclusive quando o médico desconsidera a vontade da gestante já no pré-natal, alegando que a gestante não poderá ter um parto normal, pois: “quebrei o meu braço na gestação” (Entrevistada E4), “o bebê é muito grande” (Entrevistada E13), “que só pode até as 39 semanas” (Entrevistada E16), “você está acima do peso” (Entrevistada E21); evidenciando que:

O poder médico encontra suas garantias e justificações nos privilégios do conhecimento. O médico é competente, o médico conhece as doenças e os doentes, detém um saber científico que é do mesmo tipo que o do químico e do biólogo, eis o que permite a sua intervenção e a sua decisão. (Foucault, 1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Graal., p. 122-23)

As indicações de cesárea, citadas acima, denunciam mais um não desejo da equipe médica em acompanhar um parto que uma indicação real. Durante um momento delicado, envolvendo o nascimento de um bebê, dificilmente a mulher ou a família estão dispostas a enfrentar o posicionamento médico, prevalecendo a sujeição, como a Entrevistada E22 narra: “no momento em que o médico disse 'tem que ser cesárea’, tive que aceitar o que ele dizia. Pra mim ele estava no comando. Não chamaram meu marido para a sala de parto e não colocaram o bebê no meu peito” (Entrevistada E22).

As gestantes que não foram bem informadas na gravidez, sobre o parto e seus processos, e principalmente pelas patologizações que podem vir a surgir e que culminam em uma cesariana, acabam não tendo recursos para se posicionarem diante de uma alegação que desvia a conduta previamente combinada (como no caso das gestantes que optam pelo parto normal e acabam sendo direcionadas para a cesariana).

Os relatos evidenciam, ainda, uma culpabilização constante e responsabilização das mulheres, de modo que elas vão se fragilizando pouco a pouco e se sujeitando para evitar a culpabilização:

  1. Passamos por três pediatras durante essas horas até que a última me disse que a culpa era minha porque minha filha não tinha tomado o tal banho de sol e estava com icterícia. (Entrevistada E3);

  2. Se eu me mexesse eu poderia contaminar o campo. (Entrevistada E10);

  3. (Quando eu optei pelo parto normal) meu médico já me assustou dizendo que era muito perigoso uma rotura uterina, que não tinha como saber se iria acontecer e então eu e o bebê morreríamos. (Entrevistada E13);

  4. Eu seria responsável por algo que desse errado (Entrevistada E16);

  5. Fui humilhada por estar acima do peso, ouvindo um “engravidou assim porque quis, assumiu o risco”. (Entrevistada E21).

Isso evidencia uma ausência de acolhimento, em que a mulher precisa ser integrada às decisões e informada dos potenciais riscos realmente existentes em cada decisão, não de modo a culpá-la pelo risco (item 3 acima), mas para atuar como protagonista na tomada de decisões.

Ao integrar realmente a mulher como protagonista do parto e colocá-la em uma posição que faz parte de um conjunto, a culpabilização, como evidenciado, não teria justificação para acontecer. Os argumentos, previamente mencionados, ainda estão fortemente relacionamos com a violência obstétrica de maneira verbal, psíquica e emocional sofrida por essas mulheres. Além disso, por evidenciarem sentimento de culpa por algo, assim foram categorizados, indicando explicitamente um dos elementos constituintes da despersonificação, segundo Goffman (1961)Goffman, E. (1961). Manicômios, prisões e conventos. In Manicômios, prisões e conventos (pp. 316-316). São Paulo: Editopra Perspectiva., e também da violência obstétrica.

Durante as internações, algumas mulheres relataram o que as fez se sentirem como um objeto, destituídas da própria subjetividade. É percebido por elas muito mais quando acontecem situações de descaso do que quando a objetificação ocorre a partir dos meios evidenciados por Goffman (1961)Goffman, E. (1961). Manicômios, prisões e conventos. In Manicômios, prisões e conventos (pp. 316-316). São Paulo: Editopra Perspectiva., os quais se referem às normas institucionais e ao cotidiano das internações, como mostra a teoria. Talvez a objetificação seja percebida de maneira muito subjetiva e inconsciente desde o momento da internação, mas culmine em uma real percepção, justamente nos momentos de desamparo, como indicam os relatos a seguir:

  1. Então me deixaram sozinha na sala com as pernas levemente inclinadas, meu marido acompanhou nosso bebê e eu fiquei ali... Me sentindo como uma “máquina de retirar bebê”... Era como se já tivessem retirado o que importava de mim e naquele momento eu era nem um corpo inteiro. (Entrevistada E4);

  2. Quando me deixaram no corredor quase duas horas esperando pela liberação do plano de saúde e minha filha ficou no berçário. (Entrevistada E9);

  3. Comecei a perguntar para a enfermeira sobre quanto tempo durava a anestesia, e por que eu estava sentindo tanto frio. Ela respondeu e pediu para que eu parasse de fazer tantas perguntas. Foi aí que eu comecei a sentir que naquele momento eu não tinha autonomia nenhuma... No momento de sair da sala de parto as enfermeiras me pegaram, levaram para o quarto e me colocaram na cama de um jeito bruto, me senti um objeto, pois além disso ninguém conversava comigo. (Entrevistada E11);

  4. Percebi que as técnicas haviam trazido uma dose errada de medicamento. Reclamei e elas simplesmente não me deram ouvidos. Ao longo do dia comecei a sentir dores e na outra dose do medicamento, reclamei de novo. Fingiram que ouviram e que iam confirmar no prontuário. Falei com a obstetra, ela confirmou que eu estava certa e foi preciso que ela intervisse para que dessem o medicamento na dose certa... Fui reduzida a um prontuário que sequer era lido de forma correta. (Entrevistada E15).

Nos relatos, fica evidente a não atuação da mulher no processo de parto. Após o nascimento do bebê - “produto final” -, a mulher, na condição de não protagonista do parto, não é legitimada como um indivíduo portador de subjetividades, mas principalmente atua como um meio (corpo sujeitado) que possibilita o nascimento, que se vê em uma posição de descarte (relatos 1, 2 e 3 acima). No pós-parto, a entrevistada E15 (item 4 acima) mostra como ela se sentiu reduzida a um prontuário, quando por diversas vezes ela denunciou o erro ao ministrarem um medicamento, e ela se sentiu desconsiderada pela equipe de enfermagem.

Os mecanismos de despersonificação de Goffman (1961)Goffman, E. (1961). Manicômios, prisões e conventos. In Manicômios, prisões e conventos (pp. 316-316). São Paulo: Editopra Perspectiva. são evidenciados nos relatos, onde a instituição impõe à mulher a sujeição à rotina institucional. Por mais que pareça uma organização da rotina de uma instituição, autores como Foucault (1979)Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Graal., Deleuze e Guattari (2011Deleuze, G., & Guatarri, F. (2011). O anti-édipo. São Paulo: Editora 34., 2017Deleuze, G., &. Guattari, F. (2017). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1044924/mod_resource/content/1/O%20%E2%80%9Ccorte%20por%20cima%E2%80%9D%20e%20o%20%E2%80%9Ccorte%20por%20baixo%E2%80%9D.pdf
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
) e Goffman (1961)Goffman, E. (1961). Manicômios, prisões e conventos. In Manicômios, prisões e conventos (pp. 316-316). São Paulo: Editopra Perspectiva. mostram como esses mecanismos estruturais da instituição (operadores da linguagem) atuam de modo a disciplinar o indivíduo e docilizá-lo, como uma forma de atuação de poder ou, em outras palavras, como o sujeito é capturado e sobrecodificado pelo regime moral, de valores (saber médico, profissional), a partir de uma racionalidade binária, em detrimento do saber do corpo, do plano do vivo.

Sendo o regime disciplinar às normativas umas das primeiras formas de sujeição do indivíduo, ao colocá-lo na obediência, rotinas, vestes, processos e procedimentos médico-hospitalares, o paciente é um recém-chegado que deve adequar-se à instituição, que funciona e existe independentemente das particularidades dos internos que chegam e que saem. E não é exatamente essa organização institucional que é questionada, mas a força de atuação como uma estrutura de poder, de linguagem, capaz de não legitimar as subjetividades que se encontram no indivíduo, ao enquadrá-lo de maneira objetivada, ao reduzi-lo ao sujeito reativo (Deleuze & Guattari, 2011Deleuze, G., & Guatarri, F. (2011). O anti-édipo. São Paulo: Editora 34., 2017Deleuze, G., &. Guattari, F. (2017). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1044924/mod_resource/content/1/O%20%E2%80%9Ccorte%20por%20cima%E2%80%9D%20e%20o%20%E2%80%9Ccorte%20por%20baixo%E2%80%9D.pdf
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
; Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições.). Os relatos que seguem exemplificam as formas de sujeição à estrutura pela qual os corpos das mulheres se inscrevem em perda de subjetividade:

  1. Ao chegar ao hospital, na data e horário marcados, fui orientada a tomar banho (eu já havia tomado, mas essa orientação não me dava escolha e tomei novamente), coloquei as roupas do hospital... meu filho nasceu, então me mostraram meu filho e ele foi levado ao pediatra fazer os procedimentos-padrão. (Entrevistada E4);

  2. Quando durante o trabalho de parto eu pedi um copo de água e não me permitiram beber. (Entrevistada E8);

  3. Eu fui privada de comer. Privada de parir na posição mais confortável. Tive minhas pernas seguradas enquanto o médico tentava puxar o Vincent com os próprios dedos, enquanto eu gritava apavorada. Tive a barriga empurrada em uma manobra proibida, fora do período expulsivo e sem estar com dilatação total. Perdi a estabilidade, me botaram oxigênio e com o sonar ouvi os batimentos do meu filho sumindo. Foi apavorante. (Entrevistada E21).

O silenciamento da subjetividade decorre da forte evidência de sujeição e desconsideração da condição de vivente a que a Entrevistada E21 foi submetida. Todas essas formas de sujeição, de despersonificação e objetificação culminam de maneira mais explícita com a violência obstétrica:

  1. Na hora de fazer o toque, foram seis pessoas colocando a mão para ver a dilatação. Me senti constrangida, por mais que o HU seja um Hospital Universitário, são muitas pessoas tocando em você sem nem perguntar se está tudo bem. (Entrevistada E1);

  2. No meu primeiro filho, aos 21 anos... cansei de ouvir em trabalho de parto normal, algo do tipo “Ahhh ela é novinha, ela aguenta ter o bebê de parto normal, foi fácil fazer”. (Entrevistada E2);

  3. Quando eu pedi para não me cortarem (episiotomia) e mesmo assim fizeram. (Entrevistada E8);

  4. No parto, quando amarraram minhas pernas mesmo eu pedindo pra não fazer, quando fizeram episiotomia mesmo eu não querendo, quando a enfermeira subiu e empurrou minha barriga. (Entrevistada E9);

  5. Meu parto foi normal, pedi pra não fazerem a episiotomia e o médico riu, fez e usou o fórceps. Depois o anestesista subiu em mim pra empurrar o bebê, não podia me mexer pra não contaminar o campo e uma enfermeira reclamava o tempo todo do tempo, porque o filho não parava de ligar perguntando por que ela não estava em casa. (Entrevistada E10);

  6. Na primeira gestação, com 37 semanas a obstetra fez “exame de toque” que na verdade era forçar a dilatação para o parto normal. (Entrevistada E12);

  7. Quebraram duas costelas numa cesariana. (Entrevistada E20);

  8. Fui humilhada por estar acima do peso, ouvindo um "engravidou assim porque quis, assumiu o risco" enquanto chorava com medo de perder o Vincent. Mas a culpa não era do meu corpo. Ser gorda ou magra não impede o corpo de fazer seu trabalho. A culpa era a pressa do médico em me fazer dar à luz..."Cesária em você só em último caso, vai ficar toda aberta e infeccionada". Ouvir isso no momento mais frágil da minha existência me desmontou. Ao subir para o quarto após a cesariana de emergência, eu só chorava repetindo que ficaria infeccionada, e a enfermeira-chefe teve de vir me tranquilizar. A praga pegou e eu realmente fiquei toda aberta e infeccionada um mês. A humilhação não foi a única violência que sofri. (Entrevistada E21);

  9. Um médico da ultrassonografia perguntou se essa gestação era do mesmo pai do meu primeiro filho, e disse que eu deveria ser internada por ter dois filhos com 24 anos. Eu, por estar passando por um problema de aceitação com a gravidez, sofri muito com o comentário! (Entrevistada E17);

  10. Você não tá com dor a ponto de gritar desse jeito! (Entrevistada E18).

A violência obstétrica pode ocorrer de maneira verbal, física, psíquica e emocional, e, como todas as formas de atuação que firam a dignidade da mulher, no momento do pré-parto, parto e pós-parto. Como violência verbal, ficam evidentes os discursos dos itens 2, 5, 8, 9 e 10. Qualquer forma de depreciação verbal, risos, desconsideração e apropriação de algo tão subjetivo como a dor (item 10) faz parte do que é considerado violência obstétrica. O toque vaginal é um procedimento que pode ser utilizado em trabalho de parto para avaliar a progressão da dilatação, trata-se de um procedimento que auxilia, mas não se faz necessário; se feito de maneira dolorida, excessiva ou sem consentimento, pode ser considerado violência obstétrica (Ministério da Saúde, 2014Ministério da Saúde. (2014). Humanização do parto e do nascimento. Cadernos HumanizaSUS Recuperado de https://www.redehumanizasus.net/sites/default/files/caderno_humanizasus_v4_humanizacao_parto.pdf
https://www.redehumanizasus.net/sites/de...
).

Procedimentos realizados no parto normal dificilmente são feitos de maneira isolada, por exemplo, o uso da ocitocina sintética aumenta muito a intensidade da dor devido à força das contrações, e os efeitos secundários vão desde o pedido de analgesia até uma cesárea intraparto. Isso se deve às alterações do batimento cardíaco do bebê e, no caso das analgesias, elas podem culminar em um descontrole no período expulsivo, que geralmente fica associado ao uso de outros procedimentos considerados violência, como a manobra de Kristeller (itens 4 e 5 acima), uma manobra em que se empurra a barriga da parturiente com o objetivo de expelir o bebê, e a episiotomia (itens 3, 4 e 5 acima), um corte feito no períneo com o objetivo de aumentar a amplitude de passagem vaginal. Desde 1980, existem evidências científicas suficientes para desaconselhar seu uso, no entanto a episiotomia ainda é realizada rotineiramente nos partos vaginais. Seu uso recomendado deve limitar-se no máximo a de 15% a 30% dos casos e com justificativas de sofrimento fetal ou materno (Diniz & Chacham, 2006, p. 85).

Desautorizar a preambulação, movimentação (item 5 acima) ou obrigar a posição litotômica (itens 4 e 5) também são violências obstétricas que ocorrem de modo muito comum. O Ministério da Saúde (2014)Ministério da Saúde. (2014). Humanização do parto e do nascimento. Cadernos HumanizaSUS Recuperado de https://www.redehumanizasus.net/sites/default/files/caderno_humanizasus_v4_humanizacao_parto.pdf
https://www.redehumanizasus.net/sites/de...
, no Caderno HumanizaSUS, dispõe de algumas recomendações para um atendimento respeitoso com a parturiente, para que exista, principalmente, uma mudança de cenário hospitalocêntrico para um atendimento humanizado:

Implica, sobretudo, uma mudança de postura das equipes e profissionais para que a fisiologia do parto seja respeitada, intervenções desnecessárias sejam evitadas (como ultrassonografias sem indicação clínica, episiotomia de rotina, cesariana eletiva sem indicação clínica e/ou sob falsos pretextos, exames de toque antes do trabalho de parto sem indicação clara, descolamento de membranas antes de semanas de gravidez, internação precoce, jejum, tricotomia e enema, restrição à liberdade de movimentos, uso rotineiro de soro com ocitocina, aspiração de rotina das vias aéreas do recém-nascido, entre outros). (Ministério da Saúde, 2014Ministério da Saúde. (2014). Humanização do parto e do nascimento. Cadernos HumanizaSUS Recuperado de https://www.redehumanizasus.net/sites/default/files/caderno_humanizasus_v4_humanizacao_parto.pdf
https://www.redehumanizasus.net/sites/de...
, pp. 239-240)

Para “fugir” do sistema obstétrico vigente, as mulheres geralmente buscam procedimentos alternativos por meio de doulas ou equipes humanizadas. A entrevistada E13 relata que conseguiu ter um parto humanizado, com o respeito e autonomia que ela buscava, após duas cesarianas em que ela conta que o sistema não lhe permitiu viver o parto. Após duas gravidezes em que sua busca e seus desejos não foram atendidos e sequer considerados, recebeu o terceiro filho por meio de uma equipe que a ouvia e a legitimava como uma mulher com autonomia perante o próprio corpo e as vidas ali presentes:

Minhas necessidades mais íntimas foram atendidas, as necessidades do meu corpo foram atendidas, da minha bebê foram atendidas, dos meus filhos mais velhos foram atendidas… e eu realmente me senti poderosa, forte, guerreira, empelicada pelo amor e delicadeza de uma equipe que me fez acreditar em mim e foi comigo até o final! (Entrevistada E13).

A produção do parto na dimensão do encontro responsivo permite a relação de escuta e acolhimento, em que essas mulheres aprendem e elaboram sobre a experiência vivida, sobre o que poderia ter acontecido ou não, de modo que não se trata de procurar culpados para o sofrimento, mas de principalmente retirar de si toda a culpa que carregam por terem se permitido sentir o desconforto em um momento travestido como algo tão sagrado. Nos relatos, elas citam que se sentem coagidas a não relatar que não gostaram de algo no parto, pois afinal o mais importante aconteceu, o bebê nasceu bem e saudável. Mas e a mãe?

As pessoas me acusavam com raiva e questionando o porquê de estar assim (chorando), que não pode haver motivo para estar assim, era ingratidão de minha parte chorar, porque o bebê não merece uma mãe como eu, que não fica alegre e feliz de ver o seu próprio bebê (Entrevistada E12).

Dentro desse processo de elaboração, algumas mulheres chegam a ir às maternidades buscar o prontuário para confrontar se tudo o que a equipe médica fez foi relatado nos documentos; tal comportamento faz parte de um processo que se inicia com o intuito de cura e acaba, em muitos casos, em desejo de informar e ajudar outras mulheres, seja nos círculos de amizades ou nos grupos de apoio, para que a violência sofrida não se repita com outras. A grande maioria deseja e luta por uma mudança no sistema obstétrico:

Além de não submeter-se à institucionalização, o novo tipo de ativismo não restringe o foco de sua luta a uma ampliação de igualdade de direitos - insurgência macropolítica -, pois a expande micropoliticamente para a afirmação de um outro direito que engloba todos os demais: o direito de existir ou, mais precisamente, o direito à vida em sua essência de potência criadora. Seu alvo é a reapropriação da força vital, frente a sua expropriação pelo regime colonial-capitalístico. (Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições., p. 24)

Muitos relatos vieram repletos de incentivo e agradecimento com palavras que se referem à luta, às vozes que não devem se calar e às reinvindicações ao protagonismo que lhes foi retirado nesse momento. Esse movimento atua de uma forma micropolítica muito importante, seja nas pequenas atuações em grupo ou no que parece ser simples, o reconhecimento de si mesma após a vivência desses momentos e a elaboração do que foi vivido de uma forma que possa ser usada para si e para ajudar outras mulheres, ajuda essa que chamam de ativismo, mas que se pode entender como sororidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho está para além do caráter informativo e explicativo sobre as formas de despersonificação que a mulher sofre dentro das instituições, no momento de gestação, parto e pós-parto, se constitui em micropolítica, em resistência diante das imposições advindas das autoridades médico-hospitalares, de categorias profissionais. São necessários, cada vez mais, mecanismos que atuem a favor da desconstrução da passividade da mulher enquanto sujeição a um sistema que, na maioria dos casos, ainda ocorre de maneira tecnocrata e mecânica, e desautoriza as mulheres do protagonismo nas relações a partir do acionamento do corpo.

A despersonificação ocorre com a colonização desse evento biopsicossocial. Com o surgimento das cidades e vida moderna, do modo de vida industrial, a saúde passou a ser assistida dentro desse modelo social que se desenvolvia por meio de técnicas, procedimentos, padronizações, e o parto passou, progressivamente, a pertencer ao modelo institucional, e cada vez menos aos saberes ancestrais. A tecnologia e o avanço da medicina possibilitaram a cura de diversas patologias, inclusive aquelas desenvolvidas a partir da gestação ou atreladas ao parto. No entanto, a sobrecodificação foi evidente, o parto não pertencia mais às mulheres, tampouco seus corpos e desejos. O modelo tecnomédico treinou o olhar dos seus profissionais para a objetificação dos corpos e dos indivíduos e, por mais que existam tentativas de humanização e de atenção ao modelo holístico, os relatos ainda evidenciam fortemente a vigência do modelo tecnomédico como regime disciplinar e linguagem hegemônica.

A humanização do parto simboliza, assim, um retorno de práticas que foram oprimidas pela linguagem hegemônica construída como projeto de modernidade da sociedade capitalista. As propostas de atuação e resistência, por meio das micropolíticas ativas, ocorrem ao travar um encontro dessas mulheres com suas experiências vividas, de modo que elas possam elaborar de maneira “pessoal-sensorial-sentimental-cognitiva” (Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições.) suas experiências e o reconhecimento das subjetividades reprimidas, com objetivo de cura e de atuação social, para que outras mulheres se beneficiem de uma experiência de autonomia e liberdade no parto, vivendo esse momento na sua potência máxima de devir.

No campo macropolítico, é possível ver que existem ações que remontam a três décadas sobre a humanização do parto mas, dados os últimos relatos e tantos estudos que mostram que a violência obstétrica, em todas as suas faces, ainda ocorre nos ambientes institucionais, dados os últimos números que colocam o Brasil como um dos líderes na quantidade de cesarianas realizadas, percebe-se que essas políticas precisam de mais atuação e de maior alcance, pois muitas mulheres ainda chegam à maternidade com pouco ou nenhum conhecimento sobre a fisiologia do parto e sobre como lidar com os procedimentos. Os relatos evidenciam que a sujeição ainda ocorre e, muitas vezes, culmina na violência obstétrica e na despersonificação das mulheres enquanto protagonistas do próprio corpo.

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2021
  • Aceito
    17 Jan 2022
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rae@fgv.br