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BDSM: CORPOS E JOGOS DE PODER

BDSM: Cuerpos y juegos de poder

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar como se configuram as relações de poder que regem corpos e condutas entre praticantes do BDSM erótico. Adota uma perspectiva foucaultiana, buscando ancorar a análise das práticas fetichistas sob o fulcro dos jogos e relações de poder. Metodologicamente, foram realizados observações, entrevistas e diário de campo. A análise do corpus de pesquisa baseou-se na análise enunciativa foucaultiana, evidenciando o rol de enunciados, práticas e regras de conduta que se articulam a uma densa trama de relações de poder entre os sujeitos praticantes. À guisa de conclusão, problematiza-se o grau de ruptura e reprodução da matriz sexual hegemônica vivenciado pelos praticantes. Além disso, destaca-se a importância para os Estudos Organizacionais de abarcar estudos sobre a multiplicidade das sexualidades dissidentes, em seu processo de luta e resistência.

Palavras-chaves:
BDSM; corpos; poder; Estudos Organizacionais; análise do discurso foucaultiana

RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo analizar cómo se configuran las relaciones de poder que rigen los cuerpos y comportamientos entre los practicantes del BDSM erótico. Adopta una perspectiva foucaultiana, buscando anclar el análisis de las prácticas fetichistas bajo el fulcro de los juegos y las relaciones de poder. Metodológicamente, se realizaron observaciones, entrevistas y un diario de campo. El análisis del corpus de investigación se basó en el análisis enunciativo foucaultiano, mostrando un listado de enunciados, prácticas y reglas de conducta que se articulan en una densa red de relaciones de poder entre sujetos practicantes. A modo de conclusión, se discute el grado de ruptura y reproducción de la matriz sexual hegemónica que experimentan los practicantes. Además, destaca la importancia de que los Estudios Organizacionales abarquen estudios sobre la multiplicidad de sexualidades disidentes, en su proceso de lucha y resistencia.

Palabras clave:
BDSM; cuerpos; poder; Estudios Organizacionales; análisis del discurso foucaultiana

ABSTRACT

The aim of this study is to analyze how the power relations that govern bodies and conduct among erotic BDSM practitioners are configured. It adopts a Foucauldian perspective in that it seeks to link its analysis of fetishistic practices to Foucault’s theories of power relations. Methodologically, field observation and interviews were carried out and a field diary was kept. The analysis of the research corpus was based on Foucault’s enunciative analysis, and it shows a set of statements, practices and rules of conduct that connect to a dense web of power relations between practicing subjects. By way of conclusion, their degree of rupture with and reproduction of the hegemonic sexual matrix is discussed. Finally, we emphasize the importance of Organizational Studies taking on further research into the multiplicity of dissident sexualities, in their process of struggle and resistance.

Keywords:
BDSM; bodies; power; Organizational Studies; Foucauldian discourse analysis

INTRODUÇÃO

No campo das Ciências Sociais Aplicadas, em especial nos Estudos Organizacionais, o tema da sexualidade frequentemente é endereçado sob o prisma das relações de discriminação e assédio no ambiente de trabalho, como evidenciam os trabalhos de Souza e Pereira (2013)Souza, E. M. de, & Pereira, S. J. N. (2013). (Re)produção do heterossexismo e da heteronormatividade nas relações de trabalho: A discriminação de homossexuais por homossexuais. RAM, Revista de Administração Mackenzie, 14(4), 76-105. doi: 10.1590/S1678-69712013000400004
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e Pompeu e Souza (2018)Pompeu, S. L. E., & Souza, E. M. (2018). A produção científica sobre sexualidade nos Estudos Organizacionais: Uma análise das publicações realizadas entre 2005 e 2014. Organizações & Sociedade, 25(84), 50-67. doi: 10.1590/1984-9240843
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. Tais perspectivas são oportunas e necessárias para se refletir a respeito de práticas opressoras vigentes nos ambientes organizacionais. Contudo, fica evidente que ainda existe espaço para que outros olhares sejam direcionados para o tema da sexualidade.

Nesse sentido, o presente estudo tem por objetivo analisar como se configuram as relações de poder que regem corpos e condutas no contexto do BDSM erótico, praticado na cidade de Belo Horizonte. O acrônimo BDSM deve ser lido em pares e pode ser traduzido como: (BD) Bondage (Amarração/Imobilização) e Disciplina; (DS) Dominação e Submissão; (SM) Sadismo e Masoquismo (Silva, 2018Silva, V. L. M. da. (2018). Sexualidades dissidentes: Um olhar sobre narrativas identitárias e estilo de vida no ciberespaço. Ciência & Saúde Coletiva, 23(10), 3309-3317. doi: 10.1590/1413-812320182310.18642018
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).

É válido registrar que o BDSM erótico será aqui entendido como um conjunto de princípios e práticas situadas nos universos do sadomasoquismo e do fetichismo. Apesar de não serem inerentemente sexuais, as práticas BDSM estão ligadas à erotização e ao alcance do prazer por meio da utilização de acessórios e do engajamento consensual em performances eróticas. Não se trata de um prazer solitário, mas uma prática que necessita de espaços sociais e de pessoas devidamente inicializadas no conjunto de regras e condutas que sustentam o BDSM (Simula, 2019Simula, B. L. (2019). Pleasure, power, and pain: A review of the literature on the experiences of BDSM participants. Sociology Compass, 13(3), 1-24. doi: 10.1111/soc4.12668
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). Para Silva, Paiva e Moura (2013)Silva, M. J., Paiva, A. C. S., & Moura, A. A. (2013, agosto). Da submissão à feminização masculina: Subversões de gênero no BDSM. Anais do Seminário Internacional Desfazendo Gênero: Subjetividade, Cidadania e Transfeminismo, Natal, RN., os adeptos de tais práticas constituem-se como uma comunidade, que se identifica e compartilha das mesmas preferências sexuais e atitudes perante o mundo. Essa comunidade interage em espaços privados de acesso restrito aos membros, que trocam, além de prazeres, informações e técnicas de como aperfeiçoar e tornar as práticas mais seguras (Weiss, 2011Weiss, M. D. (2011). Techniques of pleasure: BDSM and the circuits of sexuality. New York: Duke University Press.).

Ao analisarmos o conjunto de enunciados, condutas e vivências nesses espaços, esta pesquisa busca contribuir para o estudo de novos loci no cerne dos Estudos Organizacionais, onde se possa evidenciar a inequívoca interface entre sexualidade e organizações. Paralelamente, ao problematizarmos as relações de poder presentes em tais espaços, buscamos contribuir para a problematização de práticas relacionadas à ruptura com a matriz hegemônica de sexualidade e de sua ação sobre os corpos que regula (e que resistem).

BDSM E RELAÇÕES DE PODER

Para Simula (2019)Simula, B. L. (2019). Pleasure, power, and pain: A review of the literature on the experiences of BDSM participants. Sociology Compass, 13(3), 1-24. doi: 10.1111/soc4.12668
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, nos últimos anos, tem se observado a proliferação de referências ao BDSM na mídia, acompanhada de um interesse crescente da academia nacional (Barp, 2019Barp, L. F. G. (2019). O discurso dos perversos: Praticantes BDSM em busca de legitimação. Revista Estudos Feministas, 27(3), 1-5. doi: 10.1590/1806-9584-2019v27n361986
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; Grunvald, 2021Grunvald, V. (2021). Ensaio esquizo-analítico com textos e imagens sobre corpos, fantasias e retratos ou O que o espelho nos reflete? G.I.S - Gestos, Imagens e Sons, 6(1), 1-35. doi: 10.11606/issn.2525-3123.gis.2021.185456
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; Nunes & Pereira, 2017Nunes, A. C. N., & Pereira, R. D. (2017). Conflitos e tensões entre BDSM e feminismo: Algo mudou? Teoria & Sociedade, 25(2), 73-95. doi: 10.1177/1363460719839914
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; Silva, 2018Silva, V. L. M. da. (2018). Sexualidades dissidentes: Um olhar sobre narrativas identitárias e estilo de vida no ciberespaço. Ciência & Saúde Coletiva, 23(10), 3309-3317. doi: 10.1590/1413-812320182310.18642018
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) e internacional (Fanghanel, 2020Fanghanel, A. (2020). Asking for it: BDSM sexual practice and the trouble of consent. Sexualities, 23(3), 269-286. doi: 10.1177/1363460719828933
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; Lawson & Langdridge, 2020Lawson, J., & Langdridge, D. (2020). History, culture and practice of puppy play. Sexualities, 23(4), 574-591. doi: 10.1177/1363460719839914
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; Thomas, 2020Thomas, J. N. (2020). BDSM as trauma play: An autoethnographic investigation. Sexualities, 23(5-6), 917-933. doi: 10.1177/1363460719861800
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) sobre o tema. Logo, em relação à trajetória histórica do BDSM, em vez da busca de qualquer pretensa origem, deslocaremos o foco para a identificação de algumas tendências nos estudos sobre a temática.

Desde os séculos XVIII e XIX, observou-se o processo de medicalização do desejo, pois os estudos conduzidos nesse período tratavam o BDSM primariamente como “anormal e desviante” e procuravam “explicar a etimologia sadomasoquista e estabelecer ‘curas’” (Simula, 2019Simula, B. L. (2019). Pleasure, power, and pain: A review of the literature on the experiences of BDSM participants. Sociology Compass, 13(3), 1-24. doi: 10.1111/soc4.12668
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, p. 4). Somente a partir das décadas de 1940 e 1950, a inclusão das práticas BDSM nos catálogos de comportamentos sexuais humanos foi gradativamente substituindo a perspectiva patologizante por uma visão que considera o BDSM como interesse pessoal e estilo de vida (Simula, 2019Simula, B. L. (2019). Pleasure, power, and pain: A review of the literature on the experiences of BDSM participants. Sociology Compass, 13(3), 1-24. doi: 10.1111/soc4.12668
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). Já na década de 1980, Simula (2019)Simula, B. L. (2019). Pleasure, power, and pain: A review of the literature on the experiences of BDSM participants. Sociology Compass, 13(3), 1-24. doi: 10.1111/soc4.12668
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aponta o deslocamento dos estudos do movimento leather (ou BDSM gay) para a inclusão de participantes heterossexuais. Por sua vez, na década de 1990, os estudos passaram a considerar o coletivo social, explorando a organização dos praticantes BDSM em subculturas e comunidades. Nosso estudo encontra-se articulado a essa última tendência de trabalhos, alinhado às pesquisas de Weiss (2011)Weiss, M. D. (2011). Techniques of pleasure: BDSM and the circuits of sexuality. New York: Duke University Press., Facchini (2013)Facchini, R. (2013). Praticamos SM, repudiamos agressão: Classificações, redes e organização comunitária em torno do BDSM no contexto brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad, Revista Latinoamericana, (14), 195-228. doi: 10.1590/S1984-64872013000200014
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, Silva (2018)Silva, V. L. M. da. (2018). Sexualidades dissidentes: Um olhar sobre narrativas identitárias e estilo de vida no ciberespaço. Ciência & Saúde Coletiva, 23(10), 3309-3317. doi: 10.1590/1413-812320182310.18642018
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e Lawson e Langdridge (2020)Lawson, J., & Langdridge, D. (2020). History, culture and practice of puppy play. Sexualities, 23(4), 574-591. doi: 10.1177/1363460719839914
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, entre outros.

Mais do que os estímulos físicos, as relações BDSM incluem situações de dominação e submissão em contextos consensuais, praticadas por adultos e regidas por um conjunto de regras relacionadas à sanidade, segurança e consensualidade, representadas pela sigla “SSC” (São, Seguro, Consensual) (Facchini, 2013Facchini, R. (2013). Praticamos SM, repudiamos agressão: Classificações, redes e organização comunitária em torno do BDSM no contexto brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad, Revista Latinoamericana, (14), 195-228. doi: 10.1590/S1984-64872013000200014
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; Silva, 2018Silva, V. L. M. da. (2018). Sexualidades dissidentes: Um olhar sobre narrativas identitárias e estilo de vida no ciberespaço. Ciência & Saúde Coletiva, 23(10), 3309-3317. doi: 10.1590/1413-812320182310.18642018
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). Como as possibilidades de se praticar BDSM são amplas, percebe-se a inclusão desde brincadeiras eróticas leves até o engajamento e participação intensa no “meio” SM - que pode envolver presença em demonstrações e eventos (Simula, 2019Simula, B. L. (2019). Pleasure, power, and pain: A review of the literature on the experiences of BDSM participants. Sociology Compass, 13(3), 1-24. doi: 10.1111/soc4.12668
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).

Nessas relações, ocorre a negociação de scripts eróticos, havendo dois papéis principais: Top/Sádico(a)/Dominador(a) e bottom/masoquista/submisso(a) (Freitas, 2010Freitas, F. R. A de. (2010, August). Bondage, dominação/submissão e sadomasoquismo: Uma etnografia sobre práticas eróticas que envolvem prazer e poder em contextos consensuais. Fazendo gênero 9: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. Retrieved from http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1278250077_ARQUIVO_FG2010.pdf
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), comumente estilizados em letras maiúsculas para Dominantes e minúsculas para submissos, evidenciando as dinâmicas de poder que os papéis se engajam. Um terceiro papel, do Switcher, também é possível de ser exercido, caracterizando-se como alguém que se movimenta entre as duas outras categorias a depender do(a) parceiro(a), da situação ou da sua vontade (Simula, 2019Simula, B. L. (2019). Pleasure, power, and pain: A review of the literature on the experiences of BDSM participants. Sociology Compass, 13(3), 1-24. doi: 10.1111/soc4.12668
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). Enquanto o adjetivo “sádico” enfatiza os aspectos relacionados ao estímulo físico e ao teste dos limites do corpo, o termo “dominador” refere-se ao caráter psíquico das relações, ao controle sobre o outro, à tortura psicológica, à humilhação deliberada e consentida (Freitas, 2010Freitas, F. R. A de. (2010, August). Bondage, dominação/submissão e sadomasoquismo: Uma etnografia sobre práticas eróticas que envolvem prazer e poder em contextos consensuais. Fazendo gênero 9: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. Retrieved from http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1278250077_ARQUIVO_FG2010.pdf
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).

Nas palavras de Foucault (2004a)Foucault, M. (2004a). Michel Foucault, uma entrevista: Sexo, poder e a política de identidade. Verve, 5, 260-277. doi: Sem DOI.
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,

o S/M é mais que isso, é a criação real de novas possibilidades de prazer, que não se tinha imaginado anteriormente. A ideia de que o S/M é ligado com uma violência profunda e que essa prática é um meio de liberar essa violência, de dar vazão à agressão é uma ideia estúpida. (pp. 263-264).

Para o autor, pensar que os praticantes são agressivos entre si seria um erro, uma vez que, em sua perspectiva, eles criam novas possibilidades de prazer, utilizando os objetos mais inusitados para estimular qualquer parte do corpo nas situações mais insólitas a fim de produzir prazer (Foucault, 2004aFoucault, M. (2004a). Michel Foucault, uma entrevista: Sexo, poder e a política de identidade. Verve, 5, 260-277. doi: Sem DOI.
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). Em suma, busca-se erotizar os corpos ao deslocar a ideia do prazer genital para um conjunto difuso de prazeres, capaz de ressignificar corpos, sensações e objetos.

Embora a referência à dor seja bastante proeminente nos debates acerca das práticas BDSM, Freitas (2010)Freitas, F. R. A de. (2010, August). Bondage, dominação/submissão e sadomasoquismo: Uma etnografia sobre práticas eróticas que envolvem prazer e poder em contextos consensuais. Fazendo gênero 9: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. Retrieved from http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1278250077_ARQUIVO_FG2010.pdf
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argumenta que “o que une as letras e dá sentido às práticas são as relações de poder” (p. 4). Foucault (2004a)Foucault, M. (2004a). Michel Foucault, uma entrevista: Sexo, poder e a política de identidade. Verve, 5, 260-277. doi: Sem DOI.
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já acenava na mesma direção ao asseverar que o jogo proposto pelo S/M

é muito interessante enquanto fonte de prazer físico. Mas eu não diria que ele reproduz, no interior de uma relação erótica, a estrutura de uma relação de poder. É uma encenação de estruturas do poder em um jogo estratégico, capaz de procurar um prazer sexual ou físico. (p. 271).

Nesse sentido, é válido resgatar sinteticamente a concepção de Foucault acerca das relações de poder. O primeiro ponto é que não há em Foucault uma teoria geral sobre o poder, e o mais sensato é aludirmos a uma analítica foucaultiana do poder, pois, para o pensador, o que está em jogo é evidenciar quais são os mecanismos, dispositivos e efeitos que se desdobram do exercício do poder (Foucault, 1998Foucault, M. (1998). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal.). Outro ponto fundamental é que, em Foucault, o poder tem caráter relacional e funciona como uma rede ou emaranhado. Ou seja, na concepção foucaultiana, o poder é uma matriz geral de relações de força em uma sociedade e em um tempo específicos. As relações de poder enraízam-se profundamente no nexo e no conjunto da rede social, cujos jogos de forças tomam vulto e evidência nos aparelhos organizacionais, na produção do saber, na formulação das leis e nas hegemonias sociais (Alcadipani, 2008Alcadipani, R. (2008). Dinâmica de poder nas organizações: A contribuição da governamentalidade. Comportamento Organizacional e Gestão, 14, 97-144. Retrieved from https://pesquisa-eaesp.fgv.br/sites/gvpesquisa.fgv.br/files/arquivos/alcadipani_-_dinamicas_de_poder_nas_organizacoes_a_contribuicao_da.pdf
https://pesquisa-eaesp.fgv.br/sites/gvpe...
).

Outro ponto fundamental diz respeito às dimensões negativa e positiva do poder, que podem ser apreendidas a partir dos sentidos de sua efetividade, como repressão versus formação ou, ainda, caráter punitivo versus caráter produtivo. Assim, na medida em que o poder não apenas reprime como também fabrica realidade, o indivíduo representa um dos mais importantes efeitos do poder, constituindo-se enquanto sujeito na arena das relações de poder. Contudo, é válido ressaltar que para Foucault não existe poder sem resistência.

Veja que se não há resistência, não há relações de poder. Porque tudo seria simplesmente uma questão de obediência. [...] A resistência vem em primeiro lugar e ela permanece superior a todas as forças do processo, seu efeito obriga a mudarem as relações de poder. Eu penso que o termo “resistência” é a palavra mais importante, a palavra-chave dessa dinâmica. (Foucault, 2004bFoucault, M. (2004b). Por uma vida não fascista. Org: Coletivo Sabotagem. Coletânea Michel Foucault Sabotagem., pp. 9-10).

Em suma, Foucault considera que o sujeito se constitui historicamente a partir das relações de poder, dos regimes de verdade, das práticas de si e dos discursos que sustentam essas relações, intimamente vinculadas aos arranjos de poder e de saber de sua época (Foucault, 1998Foucault, M. (1998). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal., p. XIX).

CORPOS, LIBERDADE E SEXUALIDADES DISSIDENTES

Para Foucault (2006)Foucault, M. (2006). Ditos e escritos IV: Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., desde os anos 1960, descobrimos que a sexualidade, assim como um bom número de tópicos que antes considerávamos menores e marginais, ocupa um lugar completamente central no domínio político. Foucault (2006)Foucault, M. (2006). Ditos e escritos IV: Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. reverbera que “o poder não opera em um único lugar, mas em lugares múltiplos: a família, a vida sexual, a maneira como se tratam os loucos, a exclusão dos homossexuais, as relações entre os homens e as mulheres [...] todas essas relações são relações políticas” (p. 262). Dessa forma, Foucault considera a sexualidade também perpassada pelo poder, em que as relações travadas entre os sujeitos sociais constituem parte do domínio social e evidenciam o investimento político dos corpos. Mais do que isso, Foucault enxerga na sexualidade uma via de criação para novos modos de existência, por meio do trabalho que os sujeitos realizam sobre si mesmos. Nas palavras de Foucault:

Ao analisar a experiência da sexualidade [...] fiquei cada vez mais consciente de que, em todas as sociedades, existem outros tipos de técnicas, que permitem aos indivíduos efetuarem um certo número de operações sobre os seus corpos, sobre as suas almas, sobre o seu próprio pensamento, sobre a sua própria conduta, e isso de tal maneira a transformarem a si próprios [...]. Chamemos a estes tipos de técnicas de técnicas de si ou tecnologias do eu. (Foucault, 1993Foucault, M. (1993). Verdade e subjetividade. Revista de Comunicação e Linguagem, (19), 203-223. Retrieved from https://www.academia.edu/15074670/Subjetividade_e_Verdade_Foucault
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, p. 207).

Em seu texto seminal, “Thinking sex”, Rubin (1984)Rubin, G. S. (1984). Thinking sex: Notes for a radical theory of the politics of sexuality. In C. Vance (Org.), Pleasure and danger: Exploring female sexuality (pp. 143-178). Boston, USA: Routledge and Kegan. doi: Livro.
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parte de uma revisão histórica a respeito das intervenções na sexualidade, afirmando que o território da “sexualidade também dispõe de suas próprias políticas internas, desigualdades e modos de opressão. Assim como em outros aspectos do comportamento humano, as concretas formas institucionais de sexualidade em qualquer tempo e lugar são produtos da atividade humana” (Rubin, 1984Rubin, G. S. (1984). Thinking sex: Notes for a radical theory of the politics of sexuality. In C. Vance (Org.), Pleasure and danger: Exploring female sexuality (pp. 143-178). Boston, USA: Routledge and Kegan. doi: Livro.
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, p. 143). A sexualidade encontra-se imbuída de conflitos de interesse e de manobras políticas, de maneira deliberada, fazendo do sexo algo sempre político. Nos períodos históricos nos quais a sexualidade é mais nitidamente contestada e publicamente politizada é que o domínio da vida erótica se faz renegociado (Rubin, 1984Rubin, G. S. (1984). Thinking sex: Notes for a radical theory of the politics of sexuality. In C. Vance (Org.), Pleasure and danger: Exploring female sexuality (pp. 143-178). Boston, USA: Routledge and Kegan. doi: Livro.
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).

É importante refletir sobre as exclusões que se abatem sobre grupos sociais e corpos que não se encontram alinhados a um determinado padrão social preestabelecido, a saber: masculino, branco, heteronormativo, jovial, magro, não deficiente e “ocidental” (Souza & Pereira, 2013Souza, E. M. de, & Pereira, S. J. N. (2013). (Re)produção do heterossexismo e da heteronormatividade nas relações de trabalho: A discriminação de homossexuais por homossexuais. RAM, Revista de Administração Mackenzie, 14(4), 76-105. doi: 10.1590/S1678-69712013000400004
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). Essa observação é especialmente pertinente para grupos representantes das “sexualidades dissidentes”, termo adotado por Rubin (1984)Rubin, G. S. (1984). Thinking sex: Notes for a radical theory of the politics of sexuality. In C. Vance (Org.), Pleasure and danger: Exploring female sexuality (pp. 143-178). Boston, USA: Routledge and Kegan. doi: Livro.
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para abarcar sexualidades que se encontram à margem, fora dos padrões que são considerados socialmente legítimos e aceitáveis: as “sexualidades não-reprodutivas, homossexuais, fora do casamento, em lugares públicos, intergeracionais, pornográficas, sadomasoquistas” (Freitas, 2011Freitas, F. R. A de. (2011, November). Sexualidades: Prazeres, poderes e redes sociais. In Anais do Seminário de Pesquisa da Faculdade de Ciências Sociais UFG, Goiânia, 2., p. 2). Ou seja, as sexualidades que diferem do modelo heteronormativo binário, que separa homens e mulheres, organizando e controlando a vida social, equacionam o sexo à função reprodutiva e institucionalizam a heterossexualidade como uma forma compulsória de ser (Souza & Carrieri, 2010Souza, E. M. de, & Carrieri, A. de P. (2010). A analítica queer e seu rompimento com a concepção binária de gênero. RAM, Revista de Administração Mackenzie, 11(3), 46-70. doi: 10.1590/S1678-69712010000300005
https://doi.org/10.1590/S1678-6971201000...
).

Vale apontar que o dispositivo de sexualidade, segundo Foucault (2011)Foucault, M. (2011). História da sexualidade I: A vontade de saber. São Paulo, SP: Edições Graal., é constituído por mecanismos de poder que não somente interrogaram o sexo sobre a verdade dos seus prazeres e a verdade sobre o indivíduo, mas que também inscreveram nos corpos a sexualidade revelada, diagnosticada e normalizada pelos discursos da Psiquiatria/Medicina, multiplicando as sexualidades existentes e nomeando as “perversões”. Ou seja, a caça às sexualidades periféricas por meio da produção de verdades sobre o sexo por parte do discurso científico fez intensificar os efeitos desses mecanismos de poder nos corpos sexuados. Logo, a separação, a classificação moral e a organização espacial são efeitos-instrumentos desse novo dispositivo de poder em operação sobre a sexualidade e estão inseridas na dinâmica de poder-resistência foucaultiana.

Como bem observado por Weiss (2011)Weiss, M. D. (2011). Techniques of pleasure: BDSM and the circuits of sexuality. New York: Duke University Press., o circuito BDSM é formado por uma comunidade que compartilha desejos, prazeres e técnicas, como também por uma economia que se sustenta na aquisição de aparelhos, adereços e entradas para frequentar os eventos temáticos. Ou seja, são espaços em que não somente está em jogo a vivência da sexualidade dissidente, mas também a sustentação de toda uma economia dos corpos e do sexo que permite, ainda, sua análise pelo viés organizacional. Daí emerge um conjunto de “organizações erógenas” (Pereira, 2016Pereira, R. D. (2016, outubro). Organizações erógenas e sexualidade: As casas de swing como lócus de pesquisa nos Estudos Organizacionais. Anais IV CBEO, Porto Alegre, RS.), espaços cujos aspectos organizacionais articulam-se diretamente ao fenômeno da sexualidade. Sob o amplo espectro do conceito, uma pluralidade de espaços e experiências que envolvem a sexualidade pode ser agrupada, entre elas os bordéis, motéis, casas de swing, saunas gays, produtoras de filmes eróticos, cinemas pornôs, boates de strip-tease, casas de massagem e espaços de prática dedicados ao BDSM.

Nesse sentido, tais espaços podem ser apreendidos “como apêndices concreto-simbólicos de nossa sociedade, cujo lugar reservado à margem vem acompanhado de um conjunto de possibilidades de ressignificação ou ruptura que permitem aos sujeitos que os povoam transformar, criar ou recriar seus modos de vida” (Pereira, 2016Pereira, R. D. (2016, outubro). Organizações erógenas e sexualidade: As casas de swing como lócus de pesquisa nos Estudos Organizacionais. Anais IV CBEO, Porto Alegre, RS., p. 16), e cujos traços podem ser claramente visualizados nos espaços de prática BDSM. Tal visão articula-se à noção de liberdade presente em Foucault, podendo ser, para autores como Orellana (2008)Orellana, R. C. (2008). Foucault y el cuidado de la libertad. Santiago: Lom Ediciones., o pensamento foucaultiano considerado como “filosofia da liberdade”, na qual a liberdade não é o oposto do poder. Nessa perspectiva, só há poder onde há liberdade, uma vez que, para Foucault, poder é um modo de ação sobre a ação do outro. Assim, é necessário que o outro seja livre para agir, pois, caso contrário, não seria possível pensar em uma relação de poder, mas sim de violência, dominação ou repressão (Foucault, 1998Foucault, M. (1998). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal.).

Meu papel - e este é um termo por demais pomposo - consiste em mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam; que elas tomam por verdade, por evidência alguns temas que foram fabricados em um momento particular da história; e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída. Mudar algo no espírito das pessoas: esse é o papel de um intelectual. (Foucault, 2004bFoucault, M. (2004b). Por uma vida não fascista. Org: Coletivo Sabotagem. Coletânea Michel Foucault Sabotagem., p. 52).

NOTAS METODOLÓGICAS

Neste estudo, adotamos uma abordagem qualitativa apoiada em perspectivas críticas, principalmente ao considerarmos o seu potencial de questionamento e desconfiança em relação à ciência hegemônica. Conforme aponta Gamson (2006)Gamson, J. (2006). As sexualidades, a teoria queer e a pesquisa qualitativa. In N. K. Denzin, & Y. S. Lincoln (Orgs.), Planejamento da pesquisa qualitativa: Teorias e abordagens (2a ed.). Porto Alegre, RS: Artmed Bookman., é importante atentar para o uso político das ciências positivistas contra os interesses daqueles sujeitos que se autodeclaram pertencentes a minorias sexuais e de gênero. Portanto, a adesão ao modelo qualitativo de pesquisa aqui representa um posicionamento tanto político quanto acadêmico, dada a possibilidade de abordagem de temáticas (antes) marginais.

Recorrer à pesquisa qualitativa também significa reunir sob o guarda-chuva do termo um conjunto de práticas de pesquisa que permitiram a amarração metodológica aqui proposta e que possibilitaram a abordagem de uma temática ao mesmo tempo complexa e oportuna no tocante aos Estudos Organizacionais. Para este estudo, destacamos a observação não participante, o diário de campo e a realização de entrevistas semiestruturadas para a coleta de informações e construção do corpus de pesquisa.

Dessa forma, a observação não participante envolveu o registro de observações no seio do grupo pesquisado, por pesquisadores que não faziam parte do grupo previamente à pesquisa e não eram familiarizados com o universo BDSM. Durante 10 meses de campo, foram realizadas observações em 12 eventos diferentes ocorridos no âmbito da comunidade BDSM de Belo Horizonte.

Por sua vez, também foi mantido um diário de campo no qual registros foram tomados após o comparecimento aos 12 eventos anteriormente citados e logo após cada entrevista. Durante os eventos, a intenção voltou-se para a observação dos locais, das dinâmicas entre os participantes, suas regras de conduta e como eles se portavam em suas respectivas posições, marcadas pelos jogos de poder. É válido ressaltar que um contato prévio foi realizado com cada organizador dos eventos, a fim de apresentar a pesquisa e solicitar acesso aos espaços, obtendo respostas positivas de todos.

No tocante às entrevistas semiestruturadas, elas foram adotadas como meio de registro oral dos relatos dos BDSMers. Foram realizadas, ao todo, sete sessões de entrevistas com nove sujeitos praticantes de BDSM (duas delas realizadas em duplas), resultando em, aproximadamente, 16 horas de gravação ou 173 páginas de transcrição. No total, foram elaboradas 37 perguntas para o roteiro semiestruturado, que nortearam a abordagem dos aspectos das trajetórias de descoberta, inserção e interação no meio BDSM dos participantes.

O critério de seleção para os sujeitos entrevistados considerou as posições que eles ocupavam no meio BDSM e sua disponibilidade em participar. A garantia de anonimato e segurança na obtenção das falas dos sujeitos foi-lhes transmitida por meio da apresentação e da assinatura de um “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, concomitantemente à observação dos parâmetros éticos para Ciências Humanas e Sociais, estabelecidos pela Resolução do CNS n. 510, de 7/4/2016.

O Quadro 1 a seguir apresenta os perfis demográficos dos entrevistados, para os quais foi apresentada a opção de escolherem os nomes/apelidos com os quais seriam endereçados ao longo da pesquisa:

Quadro 1
Dados demográficos dos entrevistados

A analítica proposta para este trabalho toma por base alguns aspectos e elementos tanto da arqueologia quanto da genealogia de Foucault (1998Foucault, M. (1998). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal., 2008Foucault, M. (2008). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.), sendo esboçada a fim de viabilizar uma arquitetura analítica voltada para a apreciação das relações de poder, dos enunciados e das posições de sujeito ocupadas pelos BDSMers. Essa aproximação não é inédita, ao considerarmos que autores como Araújo (2008)Araújo, I. L. (2008). Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba, PR: Editora UFPR. defendem que a abordagem genealógica não substituiu a abordagem arqueológica, mas, ao contrário, ambas encontram-se diretamente articuladas nas obras de Foucault.

Na perspectiva foucaultiana, a análise dos enunciados vai além de uma análise formal ou gramatical, vinculando-se ao exame das relações entre discursos, enunciados e a produção de efeitos de verdade em determinado contexto. Para Foucault (1998)Foucault, M. (1998). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal., cada sociedade sustenta determinados regimes de verdades, evocados para diferenciar os discursos acolhidos como verdadeiros daqueles desqualificados como falsos, conferindo aos primeiros seus efeitos específicos de poder.

A afirmação de que a terra é redonda ou de que as espécies evoluem não constitui o mesmo enunciado antes e depois de Copérnico, antes e depois de Darwin; não é que, para formulações tão simples, o sentido das palavras tenha mudado; o que se modificou foi a relação dessas afirmações com outras proposições, suas condições de utilização e de reinvestimento, o campo da experiência, de verificações possíveis, de problemas a serem resolvidos, ao qual podemos remetê-las. (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., p. 116).

Assim, o enunciado representa um recurso raro, que aparece como um bem de disputa, útil e desejável, “[...] que tem suas regras de aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização; um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência [...] a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objeto de uma luta, e de uma luta política” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., pp. 136-137). Por esse motivo, Foucault ressalta a importância dos regimes de apropriação e das posições de sujeito. Ou seja, não é qualquer indivíduo que pode enunciar qualquer coisa, em qualquer lugar, pois “[...] ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer certas exigências, ou se não estiver, à partida, qualificado para o fazer” (Foucault, 1996Foucault, M. (1996). A ordem do discurso: Aula inaugural no College de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo, SP: Loyola., p. 10).

Além disso, é a partir de determinados fundos de saber que alguns sujeitos tomam posição para falar dos objetos que povoam seu discurso. Tais fundos de saber podem remeter-se, por exemplo, ao discurso das ciências; para Foucault (2008)Foucault, M. (2008). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., podemos nomear um sistema de dispersão e de regularidades, que articula determinados conjuntos de enunciados, como formação discursiva “evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e consequências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como ‘ciência’, ou ‘ideologia’, ou ‘teoria’, ou ‘domínio de objetividade’” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., p. 44).

Partindo dos conceitos apresentados, a análise enunciativa será estruturada a partir de três dimensões, que serão aqui apresentadas separadamente apenas para fins metodológicos, sendo elas: 1 - os discursos e fundos de saber, que recaem sobre os sujeitos BDSMers e os contradiscursos emergentes; 2 - as relações de poder travadas entre os sujeitos praticantes; 3 - a encenação dos jogos de poder inserida nas práticas de BDSM.

ENTRE A LUZ E A SOMBRA: CORPOS, PRAZER E RELAÇÕES DE PODER

Analisar os eventos da comunidade BDSM como espaços onde múltiplas possibilidades eróticas são exploradas significa, também, decifrar os enunciados que se articulam às regras de conduta próprias que regem essas práticas, que regulam os corpos, que organizam as interações e que se articulam aos jogos estratégicos de poder-resistência que ocorrem em seu cerne. Assim, cabe iniciarmos por um de seus mais caros pilares, representado pela sigla “SSC” (São, Seguro, Consensual). Este é comumente apresentado como o princípio norteador do BDSM contemporâneo, reforçado pelos praticantes a fim de garantir a legitimidade das práticas realizadas por meio da exigência de critérios mínimos de segurança, consentimento e sanidade entre os parceiros.

Ariel: O SSC é uma base, é um pilar de sustentação do BDSM, e eu saliento isso sempre. É a única coisa que nos separa do manicômio. É a única coisa, é o SSC. Se você violar o SSC e eu quiser te internar eu dou um jeito. Se você violar constantemente [...] ou você vai parar no manicômio ou você vai parar no xilindró ­- você estará cometendo crimes.

O SSC pode ser apreendido como enunciado da licitude, buscando resguardar e legitimar o BDSM contemporâneo, agindo com um filtro divisor que o diferencia do crime e das parafilias sexuais classificadas pelos manuais de Psiquiatria, como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais [DSM-5] (2014Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, DSM-5. (2014). American Psychiatric Association (Nascimento, M. I. C., trad.). Porto Alegre, RS: Artmed.). Assim, do ponto de vista enunciativo, o princípio do “SSC” representa mais do que uma regra de conduta na comunidade BDSM, trata-se de um enunciado essencial para alimentar contradiscursos (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.) no cerne da comunidade praticante e contrapô-los, por exemplo, aos discursos normalizadores da Medicina e do Direito. O enunciado da licitude gera e consubstancia uma outra relação com a verdade para os sujeitos praticantes, municiando suas práticas de resistência em relação à normatização de sua sexualidade. Assim, uma vez revestidas pela consensualidade, segurança e sanidade, as práticas BDSM descolam-se de condutas criminais previstas no Código Penal Brasileiro (2017)Código penal (2017). Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, p. 138. e das patologias sexuais, já referenciadas.

De modo inerente ao SSC, também são recorrentes menções ao mecanismo da “safeword” ou “safe gesture” - sendo um mecanismo previamente acordado entre as partes e acionado, por meio de palavra proferida ou gesto realizado pelo(a) submisso(a), a fim de interromper a prática executada caso o(a) submisso(a) alcance seu limite físico, psicológico ou se sinta desconfortável. Nesse sentido, a palavra ou o gesto emergem como elementos estratégicos para as relações de poder estabelecidas entre os praticantes BDSMers, pois, a partir deles, reforça-se para o submisso uma posição de sujeito na qual ele detém a palavra final e o controle dos limites aceitáveis para cada prática. Isso possibilita que a cena performada pelos sujeitos se mantenha no nível de uma encenação de estruturas de poder, como bem apontado por Foucault (2004a)Foucault, M. (2004a). Michel Foucault, uma entrevista: Sexo, poder e a política de identidade. Verve, 5, 260-277. doi: Sem DOI.
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.

Outro mecanismo que se articula ao princípio “SSC” é o aftercare - caracterizado por cuidados físicos e afetivos prestados a(o) submisso(a) após uma cena/sessão - que também é tido como uma norma de conduta, uma importante parte da dinâmica entre dominadores e submissos.

Ares: O aftercare, ele é importantíssimo, porque ele é a base do “Consensual”. Se você pega a pessoa e [...] maltrata, trata mal, humilha - bate a ponto de machucar, e não cuida dela, ela não volta. Então o aftercare é também uma forma de reter a pessoa. Por quê? O submisso reconhece que o Dominador fez uma prática com ele, porque o submisso é posse. E ele deu ao Dominador esse direito. Só que o Dominador tem que reconhecer o valor dessa entrega e depois da brincadeira falar com ele: “olha, eu fiz a sessão. Foi muito boa. E agora eu vou cuidar de você, porque eu quero brincar com você assim numa outra situação”. O que é diferente de pedir desculpas, entendeu? O Dominador não se arrepende do que ele fez. Mas ele cuida das consequências do que ele fez.

Considerado elemento final da cena/sessão, o aftercare possui valor de retribuição e reconhecimento da entrega do(a) bottom/submisso(a); mas é resguardado, também, como regra de conduta para o(a)s dominantes, que devem assumir as responsabilidades sobre as práticas executadas. Também chama a atenção a dinâmica de poder estabelecida entre os corpos durante e após as práticas fetichistas, que pendulam de um regime de apropriação que vai da posse do(a) dominador(a) para infligir a dor sobre o corpo do outro, deslocando-se, ao término da sessão, para o corpo marcado do(a) submisso(a)como signatário dos cuidados de si e do outro (Foucault, 1993Foucault, M. (1993). Verdade e subjetividade. Revista de Comunicação e Linguagem, (19), 203-223. Retrieved from https://www.academia.edu/15074670/Subjetividade_e_Verdade_Foucault
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). No excerto anterior, é possível evidenciar a articulação entre o aftercare e o SSC, em que a dimensão do consensual se transmuta em um enunciado de comunhão, traduzido pela reciprocidade entre os praticantes e contribuindo para reforçar o efeito de verdade e a materialidade dos princípios de sanidade, segurança e consensualidade das práticas do BDSM erótico.

Partindo para os regimes dos corpos no contexto do BDSM, é válido apontar para o jogo de luz e sombra, ocultação e exibição, que demarca os espaços e regula os corpos nesses ambientes. Tal regime justifica-se pelo fato de a maioria de seus praticantes transitar entre sua vida “baunilha” (cotidiana) e a persona BDSMer (oculta). Partindo de Foucault, essa suposta dualidade cede lugar para a complexa trama de relações de poder, na qual as diferentes posições de sujeito ocupadas pelos praticantes (por exemplo: profissional, cristão, pai, mãe, fetichista) exigem que se satisfaça um conjunto difuso e até conflitante de condições e requisitos para se enunciarem. Assim, opera-se um deslocamento estratégico para a assunção da posição de sujeito fetichista, buscando, na medida do possível, temporariamente distanciá-la de outras dimensões de suas vidas. Isso reflete diretamente na natureza dos locais dos eventos, cujos organizadores priorizam espaços anônimos e de pouco visibilidade ou afastados do centro da cidade, a fim de primar pelo máximo de discrição e manter ocultos os corpos que os habitam.

Para princípio de conversa, o lugar da festa não era nem identificado por uma placa ou letreiro, somente uma simples porta de loja (daquelas de correr para cima) que esconde uma outra porta (essa de madeira) que dá acesso ao ambiente interno, o que acredito demonstrar a discrição e o segredo que envolve a comunidade no geral. (Diário de campo - 1ª visita).

Portas adentro, os espaços dedicados ao BDSM permitem que os corpos realizem sua transmutação e se engajem nas práticas dissidentes, cujos sujeitos em seus diferentes papéis se valem de todo um conjunto de adereços, instrumentos, vestimentas e técnicas variadas. No geral, percebe-se a dominância de corpos brancos, heterossexuais e alinhados aos padrões estéticos atuais. Para balizar o deslocamento da posição “cotidiana” para “fetichista”, os sujeitos recorrem à utilização de máscaras que cobrem o rosto (as máscaras de gás, de gato, de cachorro, de couro etc.); as vestimentas próprias como o catsuit/full bodysuit (vestimenta em couro ou látex, cobrindo todo o corpo); a “montagem” com roupas femininas, perucas, botas etc. das Sissies (homens que usualmente se trasvestem de mulheres); ou a utilização de outras indumentárias. Todos esses adereços facilitam o trânsito dos corpos de uma posição social vigente na vida “baunilha” para a posição de sujeito assumido na vida BDSM.

Observei somente recentemente esta divisão entre os exibicionistas e os voyeuristas. Há pessoas que realmente gostam de se exibir e exibir seus subs nas festas, mas essa não é a norma. Logo, vários praticantes ficaram fazendo coisas diversas nos espaços abertos, ou no dark room, ou nas "bordas" da festa, como o Dom ensinando técnicas de amarração, a Domme Jhuh e o Igg realizando suas práticas de costume (já o vi pelado tantas vezes, que é a mesma coisa que vê-lo com roupas agora, para ser sincera), chegando até a utilizar a gaiola de ferro disponível como um componente da cena deles [...] Outras pessoas utilizaram o spanking bench [banco para espancamento], e outras, como a [Leona] e aquela Domme que eu não conheço pessoalmente, brincaram com seus subs normalmente [...] No mais, notei que a discrição do mineiro (se é que se pode atribuir tal discrição a uma “mineirice” simplesmente) está bem arraigada nessas dinâmicas de mostra/esconde, nesse jogo que acompanha o jogo de luzes da festa também, que ora faz sombra, ora mostra as coisas ocorrendo bem nitidamente, ora esconde rostos e corpos, ora mostra-os sem pudor (Diário de campo - evento SM Culture).

Ariel se encontrava toda vestida em trajes próprios. Bota de salto alto, catsuit, saia envernizada, máscara de couro cobrindo a face, tudo. Uma pessoa completamente diferente. Finalmente pude presenciar a Ariel sádica de que tanto me falaram à respeito. [...] Notei, com maior atenção, o peso que as roupas têm no meio, pois as pessoas realmente tendem a se vestir conforme o propósito delas na festa. Por exemplo, somente com a presença da Ariel que fui notar a importância de um bodysuit completo na indicação de intenção e propósito. Ela estava vestida para brincar (e ser má) mesmo. Para se descaracterizar da sua fisionomia masculina, incorporar uma identidade feminina e assim conseguir brincar do jeito que ela quisesse. (Diário de campo - evento Nosso Encontro).

Os excertos anteriores sinalizam para o vasto conjunto de práticas que permeiam o universo BDSM. As vestimentas caracterizam a posição de sujeito no meio, carregam intenção ou propósito e comunicam o seu “lugar”/hierarquia nos espaços. Partindo da noção foucaultiana de que os enunciados não se manifestam apenas por textos ou palavras, pois “um gráfico, uma curva de crescimento, uma pirâmide de idades, um esboço de repartição, formam enunciados” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., p. 93), é possível identificar um enunciado corpo, amalgamado à indumentária e aos adereços próprios da prática fetichista que confere materialidade e se articula ao processo de constituição dos sujeitos BDSMers. Assim, os excertos acima evidenciam que o corpo do submisso “Igg”, desnudo, exposto, subjugado, encarcerado em uma gaiola de ferro se enuncia, tal qual o corpo de “Ariel”, coberta em couro, mascarada e transmutada no intento de dominar e/ou infligir dor.

Contudo, é válido refletir que os espaços e os adereços (apesar de sua importância) não representam a raiz das práticas de BDSM, mas apenas os meios para incorporá-las e enunciá-las por meio dos corpos. Dito de outra forma, o melhor tradutor para o “ethos” do BDSM seria o valor de verdade conferido às regras de conduta presentes nas interações. Para alguns, todo esse corpo de enunciados remete à “Liturgia”.

Leona: Pessoal, a Liturgia é um dos temas mais polêmicos do BDSM. Porque a maioria das pessoas que estão começando [...] “ah, a Liturgia, esse negócio é uma bobagem - isso é uma besteira” - gente, a Liturgia é o que torna o jogo real! [...] O BDSM é um jogo, tá? É um jogo onde a gente - alguém concede poder a alguém para fazer aquilo que a pessoa quer. Essa que é a realidade! [...] Então, o que torna o jogo real? São as regras, são os comportamentos, são as condutas, são o que se vai falar [...] O BDSM é isso. É um jogo. Que vamos jogar - vamos jogar usando a Liturgia, que é o que torna o jogo real. (Evento Tertúlia: Introdução ao BDSM).

Nesse sentido, a Liturgia ou os enunciados litúrgicos materializam-se como um saber, um nexo discursivo, um léxico da verdade, que estabelece as regras e os parâmetros para o jogo estratégico de poder-saber-resistência envolvido nas dinâmicas BDSM. Os enunciados litúrgicos não apenas estruturam e organizam a encenação dos jogos de poder, como também agem como fios de tessitura, buscando aglutinar o amplo e difuso conjunto de práticas agrupadas pelo acrônimo BDSM em um todo razoavelmente coerente. Tal operação é fundamental para conferir inteligibilidade e sustentar uma noção de “comunidade BDSM”, permitindo que os diferentes sujeitos praticantes se aproximem e resistam coletivamente à imposição da matriz sexual hegemônica.

Relatos de praticantes indicam que, com base na Liturgia, contratos entre dominadores e submissos costumam ser firmados e até registrados em cartório. A celebração do contrato engloba a conversa a respeito dos fetiches, dos comportamentos a serem adotados, do que cada parte espera do relacionamento a negociação dos limites, e, por fim, a assinatura do contrato. No mesmo ínterim, também são referenciadas pelos entrevistados cerimônias de “encoleiramento”.

Mr. Green: O contrato você sabe que ele não tem valor jurídico, né? Eu acredito que ele vai pesar se você for acusado de uma Maria da Penha - e apesar dele não ter valor jurídico, mas vai mostrar que tem isso aqui, que foi assinado, assim, assim e assado. A negociação eu vou começar antes do contrato. Porque o contrato, para mim, ele finda uma negociação. Acordamos tudo? Vamos contratar. [...] Porque é muito cerimonioso - tem o contrato, tem a cerimônia de encoleiramento, você sabia disso?

P: Fiquei sabendo.

Mr. Green: Belíssimas! Você sabe o significado de uma coleira?

P: Muito vagamente, muito superficialmente.

Mr. Green: Você tem uma coleira de compromisso, você tem uma coleira de negociação, você tem uma coleira que a cor dela - parece que é azul - que é de proteção. Que ela não é a sub, mas está sob a proteção daquele Dom. Você tem uma coleira social, e você tem a coleira de encoleiramento mesmo.

P: E tudo parte da Liturgia...

Mr. Green: Tudo faz parte da Liturgia! E quem sabe vai saber identificar, por exemplo: “Nossa, a sub tal tá com uma coleira assim, assim, assado no pescoço. Não me aproximo”. Para eu chegar nela, eu tenho que chegar no Dom primeiro... Então, depois de feito toda essa negociação, a própria sub vai fazer esse contrato. Tem gente que até registra isso em cartório. [...] Tem um peso moral - cerimonial, muito grande.

No excerto anterior, inicialmente, o contrato de encoleiramento é apresentado como um mecanismo de salvaguarda, de modo similar ao SSC, ao representar um instrumento formal para legitimar as práticas acordadas livremente entre os sujeitos. Paralelamente, a coleira emerge como um enunciado de posse e representa a manifestação material do sentimento de propriedade por parte dos dominadores em relação aos corpos de seus submissos. Assim, a presença da coleira no pescoço do submisso enuncia-se, exigindo dos demais praticantes a adoção de uma conduta diferenciada tanto em relação a(o) submissa(o) quanto em relação a(o) seu dominador(a). Contudo, os enunciados litúrgicos e as práticas que os apoiam não garantem que o processo de negociação entre as partes seja sempre simples ou livre de tensões, conforme explícito no relato a seguir:

P: Você já esteve em algum processo de negociação?

Natasha: Já.

P: Como foi?

Natasha: Ah, alguns absurdos. Alguns absurdos, do tipo: eu conversei com um Dominador - até conhecido no meio, mas eu vou poupar o nome dele, por motivos óbvios [...] Mas - da gente sentar e ele falar: “olha, se você aceitar ser minha você vai ter que tirar todos os seus piercings, você vai ter que pintar o seu cabelo e as tatuagens que você tem hoje, você não vai poder fazer mais nenhuma”. Eu falei: “Valeu! Falou! Até mais! Muito obrigado”, porque eu acho que existe um limite do que você pode controlar ou não.

Em termos foucaultianos, o processo de negociação mostra-se como um jogo estratégico de poder-resistência em que, a todo momento, os praticantes se utilizam de estratégias discursivas para se posicionarem e conseguirem o que querem, para estabelecerem os limites, para conseguirem concessões e trocas. A disputa dá-se nas bordas, nos limites de cada parte. Logo, o enunciado de posse ganha relevos diferentes a depender do plano considerado. No nível das relações de poder entre praticantes, a assinatura e a existência do contrato firmam um acordo entre partes iguais, equalizam, por um momento, as posições dos sujeitos tratantes a partir de um instrumento legitimado pelo tom jurídico. Por sua vez, no plano das práticas fetichistas de encenação do poder, a cerimônia do “encoleiramento” representa a entrega do corpo do submisso para sua nova dona ou dono, da aceitação do seu rebaixamento quase animalesco e objetificado diante do dominante que se eleva.

Outro ponto que merece destaque diz respeito ao potencial de ruptura do meio BDSM em relação aos padrões dominantes e à matriz heterossexual hegemônica. Embora a celebração dos contratos permita que um(a) dominador(a) possua mais de um(a) submisso(a), em alguns casos observou-se que o modelo monogâmico foi reproduzido, celebrando acordos de exclusividade mútua entre os sujeitos. Além disso, como já citado, foi possível identificar uma primazia branca, heterossexual e de estética padrão. Outros elementos também foram identificados nos relatos, conforme o exposto a seguir.

Dom L: Olha, a minha visão é um pouco diferente. Eu vejo o meio brasileiro um meio muito machista, o que ele não é na Europa. Eu vejo que ele é homofóbico, o que é uma contradição, porque ele nasceu da Leather Fetish Gay. [...] aqui parece que, se você for fazer um spanking num homem aqui em festa, você é gay, tentam te diminuir de qualquer jeito.

No excerto anterior, o sujeito entrevistado relata que a homofobia e o machismo se encontram presentes nas comunidades de BDSM brasileiras. Seu relato traz em seu bojo todo um emaranhado de questões políticas próprias da matriz heteronormativa presentes em nossa sociedade, que colocam em xeque, ao menos em parte, o BDSM como espaço de rupturas discursivas e normativas. Dessa forma, vemos como o jogo de diferenças operado por meio da separação baunilha/BDSM pode ser problematizado e como os sujeitos podem trazer consigo tamanho grau de internalização dessa matriz heteronormativa. Assim, algumas rupturas, apesar de possíveis, não ocorrem durante o processo de constituição enquanto sujeito BDSMer.

Por outro lado, também foram colhidos relatos sobre vivências no âmbito do BDSM que levaram os sujeitos a acessarem ou criarem novos modos de existência:

Com a [Fernanda] nossa conversa se voltou mais para nos conhecermos. Assim como outros, ouvi ela dizer que: "Sentia em mim uma vontade que não tinha nome até que descobri o BDSM". (Diário de campo - evento Tertúlia: Bondage).

P: É possível dizer que o BDSM remete a libertação?

Natasha: Essa pergunta é difícil. É difícil, porque é complicado botar em palavras - porque é a libertação, sabe? No meio, eu consigo ser eu mesma da forma mais, sei lá...

P: Completa?

Natasha: Não completa, da forma mais crua. Porque, querendo ou não, quando a gente vive no mundo baunilha a gente se enche de máscaras. E lá não, lá você pode ser você mesma, e não precisa ser fulana que trabalha em tal lugar, não - você tem um nome que não precisa ser o seu necessariamente [...] Então é uma liberdade, para mim o BDSM é igual uma liberdade.

Ariel: O BDSM, ele propõe, inevitavelmente, uma quebra de tabus constante. São muitos tabus que a gente tem e não sabe. Da própria sexualidade. [...] O BDSM me levou a buscar a quebra de tabus. [...] e aí eu encontrei uma certa pessoa, uma certa vez, tanta sensibilidade, tanta afetividade, tanto carinho, tanto amor, tanta delicadeza, que eu não enxergava sexo nessa pessoa. E isso me fez enxergar que realmente as pessoas não têm sexo. Essa foi a minha maior quebra de tabu até hoje. [...] Transcender os sexos.

Os relatos apresentados evidenciam a utilização de um enunciado de libertação por parte dos entrevistados, de modo a exaltar o BDSM como potencializador da possibilidade de viver a sexualidade, de fazer uso dos corpos e dos prazeres de uma forma menos restritiva, em que não se deve “ter vergonha” dos desejos e dos fetiches manifestados. Ao mesmo tempo, justifica a existência da comunidade e das práticas, reforçando o seu status de dissidência diante da matriz heteronormativa, produzindo sujeitos e espaços. Esse ponto nos remete a Foucault (2004a)Foucault, M. (2004a). Michel Foucault, uma entrevista: Sexo, poder e a política de identidade. Verve, 5, 260-277. doi: Sem DOI.
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, que afirma a sexualidade como parte da nossa conduta e como parte da nossa liberdade, sendo por meio do sexo, dos nossos desejos que se instauram novas formas de relações e novas formas de criação de vida. Mais do que isso, para alguns praticantes, o BDSM é um espaço de resistência e de constituição de si, em que conseguem ampliar sua liberdade, mesmo que temporariamente, para serem como gostariam, relacionando-se com verdades que melhor os caracterizam. Assim, desenvolvem, a partir do BDSM, um conjunto de técnicas de si (Foucault, 1993Foucault, M. (1993). Verdade e subjetividade. Revista de Comunicação e Linguagem, (19), 203-223. Retrieved from https://www.academia.edu/15074670/Subjetividade_e_Verdade_Foucault
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), que contrastam com o regime de verdade dominante que lhes é incutido na vida “baunilha”, normatizando seus corpos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo buscou analisar como se configuram as relações de poder que regem corpos e condutas no contexto do BDSM erótico praticado na capital mineira. Assim, foi possível evidenciar como o BDSM abarca um conjunto de práticas e uma rede de relações que não se encontram à parte do dispositivo de sexualidade proposto por Foucault (2011)Foucault, M. (2011). História da sexualidade I: A vontade de saber. São Paulo, SP: Edições Graal., mas completamente imbricadas nele. Trata-se de corpos que habitam entre a luz e a sombra, transitando entre suas vidas cotidianas e suas vivências fetichistas.

É fundamental destacar que o objetivo desta pesquisa não foi romantizar a existência de um grupo marginalizado da sociedade, pintando um belo quadro de resistência aos discursos dominantes que os estigmatiza e exclui, ou, então, condená-los em suas práticas e comportamentos, utilizando-se de discursos científicos que associam seu comportamento à parafilia ou ao crime. Ao contrário, este trabalho teve por objetivo situá-los no campo das relações de poder-resistência, distante da lógica opressor/oprimido, e mais próximo de um jogo estratégico de saber-poder-sexualidade no qual a comunidade como um todo se insere. São relações de poder que produzem tanto interdições e exclusões quanto sujeitos e verdades.

O que se fez emergir foi um determinado olhar, situado e contingente, sobre a comunidade BDSM e os sujeitos que dela fazem parte, evidenciando as relações de poder e seu conjunto de práticas, de acessórios, de regras de conduta que, juntos, representam um movimento expressivo de criação de novas possibilidades de usos dos prazeres, de vivências da sexualidade e do erotismo, que são impulsionadas pelas suas escolhas sexuais, éticas e políticas. Assim, ficaram evidentes as múltiplas dobras existentes no campo relacional de poder no qual se insere a comunidade BDSMer de Belo Horizonte. Um conjunto variado de resistências e rupturas contrasta com a reprodução de determinados elementos claramente presentes na matriz heteronormativa dominante.

Por um lado, foi possível evidenciar a resistência dessa comunidade à classificação como sujeitos perversos. Resistência aos efeitos de poder de discursos que tomam os sujeitos e suas práticas como parafílicos, como doentes e, dessa forma, como marginais à sociedade. Resistência à imposição de uma norma sexual hegemônica que limita o uso dos prazeres e o usufruto de seus corpos como bem entendam. Transgressão à ideia de prazeres reduzidos à estimulação genital, em contraste à erotização plena dos corpos a partir de toda sorte de instrumentos e estímulos.

Por outro lado, há questões que sinalizam para uma ruptura incompleta ou para a franca reprodução de padrões dominantes, como no caso das questões de gênero, a monogamia e o preconceito quanto à orientação sexual dos praticantes, traduzido por menções ao machismo e à homofobia nos relatos coletados. O próprio princípio de discrição que oculta espaços de prática e resguarda os papéis sociais de seus praticantes contrasta com outros movimentos, como o LGBTQIA+, cujo exercício político demanda a contínua visibilidade e ocupação dos espaços públicos e abarca a luta social por seus direitos. Desse modo, a pendulação entre vida “baunilha” e vida “fetichista”, expressada pelos sujeitos entrevistados, seria utilizada mais como um eixo de diferenciação entre praticantes e não praticantes do que como a indicação de uma ruptura brusca com os discursos e com certos regimes de verdade dominantes. Tais reflexões sinalizam para o potencial de futuras pesquisas que analisem questões de gênero, raça e classe social no contexto do BDSM.

No tocante aos Estudos Organizacionais, este trabalho contribui para ampliação dos loci de pesquisa ao abarcar as comunidades BDSM e pelo incentivo às agendas de pesquisas acerca dos espaços ocupados por sujeitos “desviantes”, enquanto espaços organizacionais que se articulam à sexualidade e que permitem um olhar sobre os modos de vida de sujeitos pertencentes às sexualidades dissidentes, suas formas de organização, luta e resistência. Em segundo lugar, esperamos que esta pesquisa contribua para problematizar e ampliar o debate sobre outras formas de expressões sexuais que fogem à matriz heteronormativa e que são, ao mesmo tempo, tão inerentes às relações sociais quanto silenciadas e privadas de discussão. Em última instância, é necessário colocar em questão a moral excludente e dominante em nossas sociedades e evidenciar outras formas de criação de modos de vida dos sujeitos, que possam tornar suas existências mais realizadas e contribuir para o campo político das lutas sociais, nas quais a ampliação dos direitos sexuais no Brasil figura.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2021
  • Aceito
    20 Set 2021
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