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Irrelevância da incerteza institucional e desempenho da economia

SEÇÃO ESPECIAL

A CONJUNTURA DAS ESCOLHAS PÚBLICAS

Irrelevância da incerteza institucional e desempenho da economia

Jorge Vianna Monteiro

Professor de políticas públicas da Ebape/FGV e professor associado do Departamento de Economia da PUCRio. Endereço: PUC-Rio — Departamento de Economia — Rua Marquês de São Vicente, 225 — Gávea — CEP 22453-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jvinmont@econ.puc-rio.br

"Um comentário estabelecido a partir do modelo analítico da 'public choice' — uma vertente da moderna economia política que considera as políticas públicas resultado da interação social, sob instituições de governo representativo."

Coordenação: Jorge Vianna Monteiro

1. Introdução

Associada à intensa crise política que transcorre em Brasília desde meados de 2005 pode-se notar a fragilidade institucional com que opera a economia brasileira. O debate econômico nacional ocupa amplo espaço na mídia, especialmente porque ele se embaralha inescapavelmente com permanentes querelas políticas. O Congresso vem atuando preponderantemente como estranha mistura de instância investigativa e judicial — o que acaba por contaminar sua precípua função legislativa.1 1 Mesmo o projeto de lei do orçamento da União para o ano corrente só veio a ser aprovado após já ter decorrido quase um quarto do ano fiscal. Sem o orçamento aprovado, a sociedade não tem a possibilidade de perceber objetivamente para onde os políticos a conduzem e a que custo essa trajetória é percorrida! Portanto, muito mais do que um contratempo gerencial-administrativo, essa é uma perversão institucional. Ao mesmo tempo, as extensas agendas de comissões parlamentares de inquérito e a atividade tão intensiva da Comissão de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados cobram um preço ao sistema da separação de poderes: abriu-se um contencioso com o Judiciário o que, por fatores exógenos, acabou por colocar em destaque a questão da supremacia judicial do STF.2 2 Questão política & supremacia judicial, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 339, 27 mar. 2006; Regras do jogo instáveis & mais um dilema contramajoritário, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 338, 13 mar. 2006; A política no julgamento constitucional, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 336, 13 fev. 2006. Ver, igualmente, a referência ao dilema da revisão judicial adiante.

Nesse âmbito, é grande a variedade de argumentos que relacionam instituições a resultados macroeconômicos, muitos dos quais erguidos sobre frágeis fundações, quando não ignoram de todo essa interação.

Isso pode ser constatado, por exemplo, na entrevista do economista norte-americano Dani Rodrick3 3 Custo do crédito é o que compromete o avanço, diz Rodrick, Valor Econômico, 2 maio 2006, Especial: Rumos da Economia, p. F16. em que há um estranho diagnóstico: "na economia brasileira o custo do crédito é que compromete o avanço (...), portanto, devemos gastar menos tempo nas reformas institucionais (...) e gastar um pouco mais de tempo no diagnóstico do porquê o crédito é tão caro (...)". Ou, ainda mais cruamente, a fragilidade das instituições políticas não assusta os investidores estrangeiros.4 4 Mais adiante, é retomada a perspectiva analítica dessas afirmações do professor Rodrick.

Eis aí uma visão de mundo que demanda muita qualificação, especialmente porque o alto custo do crédito está associado às formas segundo as quais o governo se financia e que são direta (participação no processo eleitoral) e indiretamente (políticas públicas articuladas no eixo Executivo-Legislativo) sancionadas pelo cidadão-eleitor-contribuinte.

Igualmente, a abolição do voto secreto nas deliberações do Congresso Nacional e o recorrente problema da fronteira legislativa entre legislatura e Executivo fornecem elementos para a análise aqui apresentada.5 5 A seção 3, adiante, explora esses dois temas.

Por outro lado, acena-se com a possibilidade de uma revisão constitucional, de conteúdo e extensão ainda desconhecida, que poderá se iniciar com a nova legislatura, em fevereiro de 2007.6 6 A PEC no 157-03 que propõe uma Assembléia de Revisão Constitucional e, igualmente, uma outra proposta que redefine regras que incidem sobre a separação de poderes (PEC no 511-06), ora em discussão na Câmara dos Deputados, tornam ainda mais denso o horizonte de incertezas em que, já a partir de agora, são feitas as escolhas de estratégia pelos participantes do jogo de políticas. Neste início do segundo quadrimestre de 2006, as alianças político-partidárias que vêm sendo feitas ou negociadas dispensam a identificação com uma proposta comum de futuras políticas públicas, para se concentrarem puramente nas possibilidades de derrotar o governo incumbente. O próprio andamento da atividade legislativa é nomeadamente vinculado a tal circunstância, para o que pode estar reservado o trunfo de um processo de impeachment do presidente da República.

2. "Sucesso" econômico com fragilidade institucional

Todavia, por que todas essas ocorrências não se refletem no "sucesso" do desempenho macroeconômico dos indicadores sumários de inflação, geração de superávit nas contas públicas, comércio externo ou mesmo de crescimento (ainda que reduzido) do PIB?

Essa é a questão que tem ficado sem resposta convincente no debate econômico nacional.

Creio que uma linha de argumentação para tratar esse tipo de paradoxo é que as fragilidades do Estado constitucional, como exemplificadas acima, vêm sendo neutralizadas, em certa medida, pela ativação de mecanismos gerenciais-administrativos que bloqueiam as repercussões negativas que um quadro de regras constitucionais instáveis ou mesmo inoperantes poderia trazer para o desempenho econômico, como um todo.

Uma vez se reconheça uma complexa teia de delegações na formação das escolhas públicas (também rotuladas relações do tipo agente-patrocinador), boa parte dessas escolhas corre por conta da substancial autonomia decisória que a alta gerência do Executivo (os burocratas) detém: os legisladores optam por transferir responsabilidades por temas de políticas que envolvam benefícios difusos e custos concentrados, de vez que tal padrão de comprometimento lhes é politicamente oneroso (Komesar, 1994; Fiorina, 1985).

Isso explicaria a tolerância desses legisladores não apenas para com o intenso esforço fiscal associado à política de estabilização de preços, assim como para com o formato legal empregado em muitas decisões relevantes: medidas provisórias, decretos, portarias, resoluções — atos sobre cuja emissão é substancial a ingerência dos burocratas.

Ainda que possa transparecer que são decisões legislativas mais amplas que servem de moldura à ação dos burocratas nos ministérios e agências reguladoras (Banco Central, Tesouro Nacional, Secretaria da Receita Federal e unidades substantivas como Anatel, ANP, entre outras), os detalhes dessa ação são de percepção muito vaga pelos eleitores.

Desse modo, a delegação de poderes, funções e recursos é duplamente conveniente aos políticos.

t Eles ganham indiretamente, com o atendimento a interesses privados que se mobilizam para minimizar os custos que a política econômica transfere a esses interesses.

Para tanto, grupos privados articulam-se pouco transparentemente junto às instâncias decisórias do Executivo, podendo atenuar ou mesmo bloquear o ônus que uma política possa lhes trazer.

t E, mais diretamente, os legisladores podem obter reconhecimento dos dois segmentos da sociedade atingidos: junto aos minoritários, a culpa pelo ônus — se de todo vier a ser percebido — sempre poderá ser atribuída ao Executivo; junto aos majoritários, cabe aos políticos ressaltarem os benefícios e com eles se identificarem.

Em um ano eleitoral, políticos de todos os matizes saberão fazer uso apropriado desses atendimentos preferenciais. Tal constatação é, ademais, qualificada pela configuração partidária que o governo exibe. Não obstante o fato de que desde 2003 a administração federal venha sendo comandada pelo Partido dos Trabalhadores, há uma variedade de unidades decisórias em diferentes níveis que estão sob o comando de alguns outros partidos políticos.

Sob essa perspectiva, é igualmente complexa a questão da responsabilização eleitoral que está associada à provisão de políticas públicas (Bawn e Rosenbluth, 2006).

t Em certa extensão, essas políticas são percebidas como de responsabilidade do PT e, como tal, ele deve buscar construir uma base de apoio, de modo a obter o sucesso eleitoral em outubro próximo. t Todavia, outros segmentos de políticas públicas são delegados ou atribuídos aos demais partidos da coalizão que operam em diversas instâncias da administração federal tais como transportes, comunicações e agricultura.

Tal fato não apenas resulta em diferenças sistemáticas entre as várias frentes de políticas públicas (Bawn e Rosenbluth, 2006:251), mas também torna mais difícil para os eleitores chegarem a uma percepção unificada quanto ao resultado líquido da política econômica.

O partido majoritário no governo, o PT, pode reivindicar o patrocínio daqueles segmentos de política que têm mostrado "bons resultados", não obstante tais variedades de política estarem a cargo de unidades decisórias que detêm grande autonomia operacional e liderança técnica (Banco Central, por exemplo), sem vinculação partidária (caso do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior), ou operam como programas e ações pontuais (Bolsa-Família, expansão do acesso ao ensino superior, por exemplo). Outra vez, o ponto central dessa argumentação é: como a responsabilização política traduz as preferências dos redutos eleitorais?

3. Voto secreto e MP: dois temas não–triviais

Dois exemplos das precárias fundações em que se discutem no Brasil temas institucionais-constitucionais são: a campanha "ética" pela adoção do voto aberto, em todas as instâncias decisórias do Congresso, muito especialmente nas votações de relatórios de cassação de mandatos eletivos, e a posição de lideranças políticas quanto ao fenômeno da emissão de medidas provisórias.

No primeiro exemplo, é dominante a percepção de que o voto deve ser "aberto", tendo em conta a transparência do comportamento do legislador perante o seu eleitorado; no segundo, a disposição do Executivo em operar por emissão de MP, na circunstância de que, decorrido mais de 1/3 do ano fiscal, o Congresso ainda não aprovara a proposta orçamentária da União para o ano corrente.7 7 O que chegou a ser equivocadamente tratado como episódio ímpar, na longa e complexa trajetória desse mecanismo de feitura de leis no Brasil. Para variados precedentes do uso de MP em assuntos orçamentários, bem como de atraso na aprovação da LOA, ver Monteiro (1997, 2000).

t Conquanto seja desejável a transparência do comportamento do representante eleito perante o seu reduto eleitoral, tal atributo é uma quimera, na teia tão complexa de intermediação da qual resultam as escolhas públicas.

Verdadeiramente, tem-se em operação um "governo de intermediários" (Ortiz e Issacharoff, 1999): entre o cidadão-contribuinte-eleitor e o resultado final de políticas públicas ocorrem, entre outras, decisões majoritárias tomadas em comissões legislativas, acordos de lideranças partidárias e a atuação de grupos de interesses preferenciais. Nessa ordem de considerações, a relação eleitor-legislador torna-se opaca, não apenas do ponto de vista do eleitor, mas igualmente da perspectiva do próprio político, como mostra a figura.

O eleitor dispõe de dois instrumentos de participação no processo político: o voto individual (1) e a ação coletiva (3) (2) de lobbying, financiamento de campanhas eleitorais e uso da mídia. Enquanto o instrumento (1) é de uso eventual e a custo zero, (2) é de uso contínuo e opera a custo elevado. Para o político, essas duas vertentes têm implicações distintas, na autonomia com que ele participa das votações no Congresso. Em quase todas as votações puramente legislativas, é adotado o voto aberto, por ser uma precondição para que se ponham em marcha acordos de troca de votos (logrolling) entre os legisladores; sob voto secreto, tais acordos só poderiam ir adiante, em função do monitoramento do resultado final na votação, uma vez que seria impraticável verificar se o acordo estabelecido a priori (o "toma lá") terá sido cumprido (o "dá cá").8 8 Em um único tipo de votação legislativa adota-se voto secreto no Congresso: a apreciação de veto presidencial (art. 66, §3o da Constituição).

Todavia, se a transparência do voto aberto na vertente (1) pode ser considerada normativamente virtuosa, o mesmo não se pode dizer tão seguramente na vertente (2). Por via do uso da mídia, o voto aberto em (2) pode condicionar publicamente o legislador às pressões de grupos preferenciais, tornando o político muito menos autônomo em sua participação nas escolhas majoritárias. Sobretudo em um ano eleitoral, um mercado de mídia substancialmente concentrado, como é o caso brasileiro, pode ser usado muito efetivamente com tal propósito.

t Quanto à intensificação do uso de MP, não se deve esquecer que o fenômeno das MPs tem uma longa e variada trajetória que ajuda a retificar qualquer comentário avulso que se possa fazer em relação a esse instrumento de feitura das leis na economia brasileira.

Tome-se o seguinte exemplo. A celeuma mais recente em torno do mecanismo de MP é que, diante da demora da legislatura em aprovar o projeto de Lei Orçamentária da União para 2006 (o que se deu em 18 de abril de 2006), o Executivo ameaçava autorizar gastos públicos de mais de R$ 20 bilhões, por via da emissão de uma MP. A reação de alguns analistas da cena econômica nacional é ver nessa estratégia uma ocorrência sem paralelo.9 9 MP Jumbão, O Globo, 14 abr. 2006, Panorama Econômico, p. 22. De fato, parte da argumentação apresentada nessa coluna, assinada por famosa comentarista econômica, é insustentável perante os fatos. Porém, há que considerar que, no antigo regime de emissão de MP (anterior à EC nº 32, de 11 de setembro de 2001), legislar por MP sobre assunto orçamentário era uma ocorrência trivial, uma vez que as regras do jogo de MP eram, então, sumárias e genéricas. Sob o atual e detalhado regime instituído pela EC nº 32, no entanto, isso é especificamente vedado (art. 62, §1º, inciso I, alínea d).

Nesse tipo de contenda há que perceber, por um lado, lideranças partidárias que operam como um "cartel legislativo" (Cox e McCubbins, 1993) que, ramificado na atuação de governadores de estado, retiram autonomia à Comissão Mista de Orçamento e, por outro, a estratégia do Executivo de tentar induzir a aprovação do orçamento, com a ameaça de emissão de uma super-MP orçamentária.10 10 A propósito, o Orçamento da União de 1994 foi aprovado quando já eram decorridos 5/6 do ano fiscal (Monteiro, 1997, cap. 3).

Nos anos 1990 e aproximadamente até meados de 2001, o Congresso foi complacente com substancial perda de autonomia decisória diante do Executivo, somente vindo a reagir parcialmente em 2001, com a EC nº 32 (Monteiro, 1997, 2000). Ao mesmo tempo, como mostrado na tabela, em 2003-05, 37,4% da feitura de leis ainda tem origem em MPs.

Diante dessa trajetória, será válido admitir que o Executivo seja um invasor inesperado e não consentido da privacidade legislativa do Congresso? Ou, ainda, insistir que o fenômeno da representação política é tão trivial, a ponto de que desvios verificados entre as preferências de representante (agente) e representado (patrocinador) possam ser descontados ao comportamento pernicioso do agente e que o antídoto para tal síndrome seja necessariamente o voto aberto nas votações da legislatura?

4. Geração de incerteza

Um contra-exemplo de grande teor didático quanto às conseqüências do ambiente institucional em que opera a economia brasileira é a já referida entrevista do professor Dani Rodrick.11 11 Ver a seção 1. O que o professor Rodrick parece subestimar é a capacidade de os agentes privados, nacionais e estrangeiros, perceberem a operação das engrenagens políticas que estão subjacentes ao desempenho macroeconômico de baixa e controlada taxa de inflação e minguado e oscilante crescimento do PIB.

A seguir, algumas dessas engrenagens.

t A instabilidade das regras constitucionais que, por seu turno, habilita regras igualmente instáveis em todos os níveis das escolhas públicas.

Um exemplo marcante dessa propriedade é a facilidade com que os políticos podem sustentar a elevada carga tributária em vigor. Ainda recentemente, a emissão da MP nº 232, de 30 de dezembro de 2004, alterava regras do IR e da CSLL12 12 A MP no 243, de 31 de março de 2005, revogou substancialmente a MP no 232. e, assim, aumentava esses impostos. Na celeuma em torno dessa MP fica evidente que a reação ao aumento da carga de impostos é mais quanto à forma do que quanto ao seu conteúdo. A pretensa "revolta do contribuinte" quanto a mais esse confisco decorre do fato de que sua instrumentação se deu por meio de uma MP; no mais, os políticos estavam propensos a atender a interesses preferenciais em detrimento do interesse geral: a questão relevante centra-se em quem é onerado, e não no tamanho do ônus tributário em si.13 13 A MP no 232 e seu contexto institucional, Estratégia Macroeconômica, v. 13, n. 308, 17 jan. 2005, e Lições da revogação da MP no 232, Estratégia Macroeconômica, v. 13, n. 314, 11 abr. 2005.

Por seu turno, a incerta fronteira legislativa criada pelo poder de emissão de MP é isoladamente o mais alarmante sinal de deterioração institucional, uma vez que põe em suspenso o sistema da separação de poderes. Esse mesmo sistema que nos últimos meses tem evidenciado outra classe de fragilidades na interação do Congresso e o Judiciário.14 14 Questão política & supremacia judicial, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 339, 27 mar. 2006.

t O processo orçamentário é outra clássica fonte de incertezas: a aprovação, com ou sem atraso, da Lei Orçamentária da União, pouco significado tem, diante da elevada margem de contingenciamentos da despesa pública que, logo adiante, será estabelecida pela alta gerência do Executivo.15 15 Ministro: orçamento terá grande contingenciamento, O Globo, 4 maio 2006, 2. ed., O País, p. 15.

Em decorrência, não há parâmetro confiável para mapear a presença orçamentária pública e tampouco as prioridades de políticas que objetivamente o orçamento da União se propõe a definir.

t Mesmo o processo eleitoral não fica imune a essa volatilidade.

Restando cerca de cinco meses até a data das eleições, as coalizões partidárias ainda não se definiram claramente por força de uma significativa e inesperada mudança no regime eleitoral: o Judiciário — contrariamente à decisão legislativa — deliberou pela extensão dessas alianças na jurisdição federal (candidatura presidencial) à jurisdição estadual (candidaturas a governador de estado).16 16 Regras do jogo instáveis & mais um dilema contramajoritário, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 338, 13 mar. 2006.

Tal configuração da separação de poderes exemplifica um dilema que modernamente assume duas vertentes (Waldron, 2006): não haveria razão para supor que direitos do cidadãoeleitor fiquem mais bem protegidos por essa prática judicial do que ficariam por manifestações de legislaturas democráticas; e, que, de todo, a revisão judicial seria democraticamente ilegítima.17 17 Na primeira vertente, as verdadeiras questões envolvendo direitos do cidadão são enquadradas em problemas colaterais tratando de precedente e interpretação legal; quanto à segunda vertente, a ilegitimidade política decorre do privilégio do voto majoritário de um pequeno número de juízes que decide sem qualquer indução a levar em consideração princípios de representação política, quando aprecia esses direitos (Waldron, 2006:1353).

t Prospectivamente, há outras relevantes questões de políticas públicas situadas no horizonte pós-eleitoral, com ou sem a mudança da atual coalizão no poder, a partir de 2007.

A seguir, dois exemplos nesse sentido.

t A operacionalização de um novo mecanismo de atração de consórcios privados para a infra-estrutura econômica, no âmbito da legislação já aprovada das parcerias público-privadas (PPPs).

Em decorrência, haverá oportunidades de investimento de bilhões de reais e a delegação de fatias de poder decisório quanto a políticas de transportes, portos, irrigação, saneamento, entre outras variedades, à alçada privada — o que, por seu turno, põe em marcha um rent seeking de enorme repercussão, ainda mais num ano eleitoral, e a partir de 2007, quando se antecipa que o comprometimento com a política de PPP será mais firme do que tem sido até aqui (Monteiro, 2006).

t Independentemente de qual seja o resultado eleitoral de outubro próximo, prevê-se uma conjuntura de intensa pressão política para que se empreenda ampla redefinição das regras constitucionais.

Como já referido,18 18 Seção 1. o ponto de partida para tanto poderá ser a PEC nº 157-03, já em curso na Câmara dos Deputados, e que propõe o foro de uma "revisão constitucional".19 19 Regras instáveis & mais um dilema contramajoritário, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 338, 13 mar. 2006. Essa é uma moeda de troca de grande interesse para as duas principais forças políticas (PT e PSDB/PFL), quanto mais não seja para fortalecer o Congresso, sobretudo se a composição da nova legislatura, a se inaugurar em 2007, tiver maioria contrária ao comando do Executivo.

Desse modo, concluir, como o faz o professor Rodrick, que "com a taxa básica de juros no patamar em que está, o elemento que mais compromete o crescimento do Brasil é o custo do financiamento", é manter-se na superfície da economia política brasileira, deixando de lado o que mais essencialmente ocorre nas águas profundas20 20 Aí operam mecanismos geradores de incerteza e de credibilidade quanto a comprometimentos de política pública que o governo apresenta, tanto formalmente (como na Lei Orçamentária, e na política das PPPs) quanto nas declarações de seus líderes, policy makers e do próprio presidente da República. dessa economia (Monteiro, 2004).

5. Conclusão

É intensa a geração de incerteza que se origina em disfunções que alcançam simultaneamente os três poderes constitucionais. O ano eleitoral em nada contribui para que essa in certeza se atenue. O argumento aqui apresentado é que o surpreendente desempenho econômico observado é sustentado por razões endógenas às instituições representativas brasileiras: uma complexa teia de delegações torna viável e previsível que certas classes de políticas públicas continuem a ser operacionalizadas. Contudo, esse bypass institucional é, antes, um aspecto perverso do funcionamento do Estado constitucional que cede espaço ao Estado administrativo (Monteiro, 2004).

As constatações feitas pelo professor Rodrick de que "(...) há investidores inclinados a investir no país, apesar do ambiente institucional fragilizado" ou "a redução das altas taxas de juros é mais importante para impulsionar a economia do que a melhoria do ambiente institucional" não são lá muito convincentes, pois, afinal:

t o mercado em que se forma a taxa de juros é fortemente influenciado pelo modo segundo o qual o governo se financia e, assim, pelas regras do jogo de política econômica.

Uma menor autonomia da atuação da autoridade monetária, por exemplo, poderia levar a uma política monetária menos conservadora, com a taxa oficial de juros caindo mais acentuadamente ou em trajetória de queda que teria se iniciado há mais tempo.

t A questão do crescimento econômico no Brasil não é tanto a de se a economia cresce ou não cresce, mas de quanto ela poderá (e precisará) crescer.

Sem dúvida, o investidor nacional ou estrangeiro é atraído pelas potencialidades econômicas, porém, no horizonte de incerteza — que tem como principal determinante a instabilidade constitucional — é provável que os investimentos sejam menores do que o desejado para fazer o PIB seguir persistentemente por uma trajetória de taxas anuais de 5% ou mais, digamos.

Referências bibliográficas

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WALDRON, J. The core of the case against judicial review. Yale Law Journal, v. 115, n. 6, p. 1346-1406, Apr. 2006.

  • 1
    Mesmo o projeto de lei do orçamento da União para o ano corrente só veio a ser aprovado após já ter decorrido quase um quarto do ano fiscal. Sem o orçamento aprovado, a sociedade não tem a possibilidade de perceber
    objetivamente para onde os políticos a conduzem e a que custo essa trajetória é percorrida! Portanto, muito mais do que um contratempo gerencial-administrativo, essa é uma perversão institucional.
  • 2
    Questão política & supremacia judicial, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 339, 27 mar. 2006; Regras do jogo instáveis & mais um dilema contramajoritário, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 338, 13 mar. 2006; A política no julgamento constitucional, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 336, 13 fev. 2006. Ver, igualmente, a referência ao dilema da revisão judicial adiante.
  • 3
    Custo do crédito é o que compromete o avanço, diz Rodrick, Valor Econômico, 2 maio 2006, Especial: Rumos da Economia, p. F16.
  • 4
    Mais adiante, é retomada a perspectiva analítica dessas afirmações do professor Rodrick.
  • 5
    A seção 3, adiante, explora esses dois temas.
  • 6
    A PEC no 157-03 que propõe uma Assembléia de Revisão Constitucional e, igualmente, uma outra proposta que redefine regras que incidem sobre a separação de poderes (PEC no 511-06), ora em discussão na Câmara dos Deputados, tornam ainda mais denso o horizonte de incertezas em que, já a partir de agora, são feitas as escolhas de estratégia pelos participantes do jogo de políticas.
    Neste início do segundo quadrimestre de 2006, as alianças político-partidárias que vêm sendo feitas ou negociadas dispensam a identificação com uma proposta comum de futuras políticas públicas, para se concentrarem puramente nas possibilidades de derrotar o governo incumbente. O próprio andamento da atividade legislativa é nomeadamente vinculado a tal circunstância, para o que pode estar reservado o trunfo de um processo de impeachment do presidente da República.
  • 7
    O que chegou a ser equivocadamente tratado como episódio ímpar, na longa e complexa trajetória desse mecanismo de feitura de leis no Brasil. Para variados precedentes do uso de MP em assuntos orçamentários, bem como de atraso na aprovação da LOA, ver Monteiro (1997, 2000).
  • 8
    Em um único tipo de votação legislativa adota-se voto secreto no Congresso: a apreciação de veto presidencial (art. 66, §3o da Constituição).
  • 9
    MP Jumbão, O Globo, 14 abr. 2006, Panorama Econômico, p. 22. De fato, parte da argumentação apresentada nessa coluna, assinada por famosa comentarista econômica, é insustentável perante os fatos.
  • 10
    A propósito, o Orçamento da União de 1994 foi aprovado quando já eram decorridos 5/6 do ano fiscal (Monteiro, 1997, cap. 3).
  • 11
    Ver a seção 1.
  • 12
    A MP no 243, de 31 de março de 2005, revogou substancialmente a MP no 232.
  • 13
    A MP no 232 e seu contexto institucional, Estratégia Macroeconômica, v. 13, n. 308, 17 jan. 2005, e Lições da revogação da MP no 232, Estratégia Macroeconômica, v. 13, n. 314, 11 abr. 2005.
  • 14
    Questão política & supremacia judicial, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 339, 27 mar. 2006.
  • 15
    Ministro: orçamento terá grande contingenciamento, O Globo, 4 maio 2006, 2. ed., O País, p. 15.
  • 16
    Regras do jogo instáveis & mais um dilema contramajoritário, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 338, 13 mar. 2006.
  • 17
    Na primeira vertente, as verdadeiras questões envolvendo direitos do cidadão são enquadradas em problemas colaterais tratando de precedente e interpretação legal; quanto à segunda vertente, a ilegitimidade política decorre do privilégio do voto majoritário de um pequeno número de juízes que decide sem qualquer indução a levar em consideração princípios de representação política, quando aprecia esses direitos (Waldron, 2006:1353).
  • 18
    Seção 1.
  • 19
    Regras instáveis & mais um dilema contramajoritário, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 338, 13 mar. 2006.
  • 20
    Aí operam mecanismos geradores de incerteza e de credibilidade quanto a comprometimentos de política pública que o governo apresenta, tanto formalmente (como na Lei Orçamentária, e na política das PPPs) quanto nas declarações de seus líderes, policy makers e do próprio presidente da República.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2006
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