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Intermediação política, revisão judicial & MP nº 324

SEÇÃO ESPECIAL

A CONJUNTURA DAS ESCOLHAS PÚBLICAS

Intermediação política, revisão judicial & MP nº 324

Jorge Vianna Monteiro

Professor de políticas públicas da Ebape/FGV e professor associado do Departamento de Economia da PUC-Rio. Endereço: PUC-Rio — Departamento de Economia — Rua Marquês de São Vicente, 225 — Gávea — CEP 22453-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jvinmont@econ.puc-rio.br

"Um comentário estabelecido a partir do modelo analítico da 'public choice' — uma vertente da moderna economia política que considera as políticas públicas resultado da interação social, sob instituições de governo representativo."

Coordenação: Jorge Vianna Monteiro

1. Introdução

As interpretações do resultado eleitoral, especialmente quanto à renovação na composição das legislaturas estaduais e federal, se confronta com a quimera de que o eleitor deve e pode controlar o seu representante eleito que, por força dessa possibilidade, passará a observar comportamento virtuoso, diante da cobrança do eleitorado.1 1 Mesmo a campanha de mídia do Tribunal Superior Eleitoral, ao longo de todo o período eleitoral, enfatizava esse controle pelo voto, como fato, e não como idealização. A seção 2 explora essa perspectiva normativa que acaba confundida com um mecanismo institucional que operaria subjacente à economia política brasileira.

A conjuntura também revela uma significativa ocorrência, em torno da emissão da MP nº 324, de 4 de outubro de 2006.2 2 Por meio dessa MP, o presidente da República abre crédito extraordinário, em favor dos ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, da Fazenda, da Justiça, da Previdência Social, do Trabalho e Emprego, dos Transportes, da Defesa, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e das Cidades, no valor global de R$ 1,5 bilhão. Por ser uma MP, sua validade é imediata. Por provocação de deputado federal da oposição, o Judiciário Federal de Brasília concedeu liminar (18 de outubro de 2006), suspendendo os efeitos dessa MP. A argüição original é que o intento desse gasto público é estritamente eleitoral; a manifestação do Judiciário, por seu turno, não vê fatos urgentes e emergenciais que justifiquem essa decisão de política econômica.3 3 Posteriormente (27 de outubro de 2006), no entanto, o TRF da 1ª Região tornou sem efeito a liminar de 18 de outubro de 2006 (Justiça autoriza governo federal a gastar R$ 1,5 bilhão ( O Globo, 28 out. 2006, p. 9). Eis aí uma vantagem adicional de uma candidatura presidencial à reeleição: ter à mão um instrumento legal que viabiliza a promoção de atos de efeitos instantâneos. A seção 3 examina o conceito de revisão judicial, à margem da ocorrência da MP nº 324.

2. Ajuste de foco

A noção intuitiva de conexão eleitoral é a de que o eleitor vota, e o reflexo desse ato manifesta-se diretamente nos resultados do processo político. Ainda que se aceite que a tradução dos votos em resultados seja feita por condutos administrativos e eventualmente judiciais — ambos fora do controle pelo voto — permanece a percepção de que a conexão eleitoral opera com grande efetividade. Essa é, no entanto, uma concepção analítica muito limitada, comparativamente à configuração das instituições de governo representativo do mundo real.

O leitor deve imaginar desdobramentos desse fenômeno, com o fracionamento das delegações de poderes e funções, na operacionalização do processo político. Paralelo a isso, voltam à cena propostas de reforma política que deixam de lado essa ambientação institucional.

É nesse campo que reside o perigo de prosperarem — sob reduzida transparência — interesses preferenciais embutidos nas soluções propostas. A mídia — um mercado extremamente concentrado — prosseguirá pautando com excessiva ênfase o que deve ser feito, e não como pode ser feito.

Esse é o risco que está implícito no que, de outro modo, seria uma pura manifestação democrática: temas amplos e soluções pontuais sendo apresentadas, como genuínas saídas para o baixo crescimento econômico, os juros altos, a má distribuição de renda e o crítico estado das contas públicas. Nessa última perspectiva, deve prevalecer a visão de tesouraria, onde se pressupõe que o gasto público, que tanto se elevou, pode ser facilmente cortado. Ou então, que a carga tributária que, por razões muito complexas, alcança um patamar tão alto, possa ser trivialmente reduzida.

É como se gasto público e impostos se determinassem apenas pela força da oferta.

No entanto, mais do que nunca, estão em disputa elevados ganhos especiais (rents) que podem ser viabilizados com a manutenção ou alteração de regras do jogo da política econômica, mesmo aquelas com status constitucional.

Assim, a necessidade de promover cortes nos gastos públicos deve ter em conta o lado da demanda, e as correspondentes estratégias privadas que:

visam obscurecer o fato de que a incidência desses gastos tem a sustentá-la relevantes grupos de beneficiários, de razoável expressão eleitoral ou mesmo de elevada capacidade de mobilização junto ao processo político;

provêm um biombo a grupos de interesses, para que busquem apropriarse desses gastos em seus novos direcionamentos ou, de todo, ocupar o espaço da ação governamental, substituindo-a pela provisão privada de bens e serviços.

Na perspectiva da redução da carga de impostos, vale ressaltar que:

muitos de seus proponentes são beneficiários — ou demandam novos benefícios — de toda sorte de vantagens tributárias (isenções, alíquotas protecionistas, entre outros formatos) que, ao longo do tempo, acabaram por pressionar a capacidade de o Estado financiar a sua expansão.

Em conseqüência, fica por ser reconsiderada a viabilidade do elenco de soluções que têm sido habitualmente apresentadas, para reestruturar as contas públicas.

O governo (Estado) contemporâneo apresenta-se sob configurações onde a tradicional provisão unificada pela decisão dos burocratas públicos cede lugar a uma "parafernália estrutural de agencificação, contratação e parcerias sob várias roupagens" (Painter, 2006:499). De fato, nesse ambiente institucional de complexas intermediações as noções convencionais de responsabilização pelas escolhas públicas são levadas a um ponto crítico (Monteiro, 2006).

Há duas metáforas que têm sido usadas para tipificar essa face do governo ou Estado, na economia contemporânea.

Governo de intermediários (Ortiz e Issacharoff, 1999)

A noção intuitiva de conexão eleitoral é a de que o eleitor vota e o reflexo desse ato manifesta-se diretamente nos resultados do processo político.

O elo entre eleitor e representante eleito é suficientemente complexo para desaconselhar que ele sirva de base ao entendimento de como se formam e operam as escolhas públicas. Ainda assim, tal intermediação não deve ser simplesmente depreciada: "os intermediários (...) aumentam a significância da participação política individual, e seu papel pode ser explicado como formas de tipificação da mercadoria política, que de outro modo seria de difícil entendimento" (Ortiz e Issacharoff, 1999:4).

Por exemplo, a marca de um partido político (um desses intermediários) que vem atrelada a uma proposta de política sinaliza que um determinado candidato guarda proximidade com um dado conjunto de preferências nas escolhas públicas. Ao reduzir o custo de informação para o eleitor, tal intermediação aproxima-o do político.

Porém, ainda sob esse aspecto, a economia pública brasileira se sai muito mal, pela fluidez da ideologia partidária e da fragilidade da adesão do político ao partido.

A perspectiva analítica da intermediação política é igualmente importante no entendimento de toda a operação do sistema constitucional da separação de poderes, uma vez que há regras que regulam essa intermediação e que viabilizam, com maior ou menor formalidade, o resultado das escolhas públicas.

Tal é o caso da extensão de mandatos de comissões legislativas, da atuação do Ministério Público, de novas regulações sobre partidos políticos e financiamento de campanhas eleitorais, já que partidos e outras organizações extragovernamentais são um mecanismo informal que sustenta acordos estabelecidos entre agentes formalmente alocados a diferentes departamentos, pelo sistema de separação de poderes.

Estado oco (Hill e Lynn Jr., 2005; Terry, 2005; Milward, 1994)

A presença dessa variedade de agentes públicos define o grau em que o governo se distancia de sua provisão de bens e serviços, ou seja, o número de estágios decisórios que se interpõem entre a origem e o uso de fundos públicos (Milward e Provan, 2000:362). Ou, alternativamente, o uso de instrumentos de política vai além do simples recurso a empresas públicas, agências reguladoras e subsídios (instrumentos "substantivos"); há que lançar mão de um conjunto diferente de ferramentas (instrumentos de "procedimento") que tem o propósito de afetar indiretamente os resultados finais de uma política, por meio da manipulação dos processos dessa política, tal como as parcerias público-privadas (Howlett, 2000).

3. Significados da revisão judicial

O episódio da MP nº 324 é ainda mais didático, quando se sabe que as freqüentes propostas de "reforma política" costumam passar ao largo da questão das vantagens comparativas do candidato-incumbente que decorrem de seu significativo peso na distribuição de tarefas na democracia representativa brasileira.

A tabela atualiza o fluxo de MPs em 2006, comparativamente ao período 2003-05. Observa-se que, a despeito das restrições adicionais impostas pela EC nº 32 (11 de setembro de 2001) à emissão de MPs, ainda é expressiva a quantidade de MPs: seu volume se equipara a cerca de 75% da produção de leis originadas no Congresso Nacional. Por outro lado, a figura mapeia a evolução da variável MP/L*, desde o início do regime da EC nº 62, sendo que L* é a quantidade de leis, exceto as de revogação de MPs.4 4 Na figura, outubro de 2006 vai até o dia 26, inclusive.

Vale notar que, imerso no embate eleitoral, o Congresso torna-se ainda mais vulnerável a esse mecanismo de emissão de leis acionado pelo Executivo Federal, tanto que somente duas semanas após a data de emissão da MP nº 324 ocorreu o seu efetivo embargo judicial.5 5 Outras MPs, com igual propósito de abertura de crédito extraordinário, sempre passaram incólumes à vigilância da legislatura. Possivelmente, o fato só é agora notado quando processado na estratégia eleitoral do candidato presidencial da oposição.

Por outro lado, o embargo à MP nº 324 deve ter surpreendido o governo. Afinal, na longa história das MPs no presidencialismo brasileiro, raras têm sido as manifestações do Judiciário, em qualquer de suas instâncias, suspendendo os efeitos desse tipo de iniciativa do Executivo. De todo modo, revisão judicial é tida como um anátema na teoria da democracia (Monteiro, 2004:41-42: a decisão judicial contrapõese a uma legítima manifestação de um presidente da República eleito e contorna uma possível manifestação dos representantes eleitos que integram o Congresso Nacional, sendo uma decisão de um integrante de um colegiado, cujos membros não passam por teste eleitoral, mas são nomeados para o posto.

Desenvolvimentos analíticos recentes enquadram a revisão judicial no governo representativo em duas vertentes (Eylon e Harel, 2006).

Convencionalmente, a revisão judicial é adequada, por cumprir a função potencialmente restritiva aos demais departamentos de governo, em razão de seu relativo distanciamento da política partidária e de sua natureza deliberativa.

Tal vertente tem por corolário a posição do Judiciário, como protetora de direitos individuais que tendem a ser restringidos, em decorrência de escolhas movidas pelo interesse político-eleitoral. Enquadra-se nesse tipo de escolha o agigantamento do poder político, em qualquer de suas dimensões.

O caso da MP nº 324 espelha essa classe de revisão judicial: o Executivo teria extrapolado as regras que definem o poder de legislar do presidente da República, expressas no art. 62 da Constituição. Em termos do corolário antes mencionado, a revisão judicial da MP nº 324 protege os direitos individuais do eleitor, ao neutralizar um conjunto de ações orçamentárias que desequilibram a competição eleitoral.

Outra vertente justifica a revisão judicial que se apóia no direito de dar voz ao cidadão, uma vez que seus direitos tenham sido infringidos.

Em decorrência, o fundamento da revisão judicial não seria propriamente a melhor vocação do Judiciário, para assim atuar, mas ele é a oportunidade de que dispõe o cidadão de ser ouvido por uma instância imparcial, viabilizando um direito que deve ser respeitado, "mesmo quando, ao fazê-lo, ele atue em detrimento da proteção eficaz de outros direitos" (Eylon e Harel, 2006:993). Executivo e Congresso Nacional têm comprometimentos eleitorais que conflitam com a atenção isenta que poderiam dispensar aos pleitos dos cidadãos, tomados individualmente.

4. Conclusão

As perspectivas de intermediação política e de delegação de poderes, como apresentadas na seção 2, reforçam a noção de que as escolhas públicas são mais aptamente descritas, como um jogo de coordenação do que de controle (Strauss, 1998:155), o que pode servir de ponto de partida para a busca de soluções concretas para os problemas da economia brasileira.

Ao mesmo tempo, diante da distração da legislatura quanto às implicações da política orçamentária implícita na MP nº 324, foi o acesso disponível à instância judicial que permitiu a um deputado da oposição se fazer ouvir, em seu pleito concreto, quanto à observância das regras desse jogo.

Referências bibliográficas

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HOWLETT, M. Managing the "hollow state": procedural policy instruments and modern governance. Canadian Public Administration, v. 43, n. 4, p. 412-431,Winter 2000.

MILWARD, H. Nonprofit contracting and the hollow state. Public Administration Review, v. 5, n. 1, p. 73-77, Jan./Feb. 1994.

_____; PROVAN, K. Governing the hollow state. Journal of Public Administration Research and Theory, v. 10, n. 2, p. 359-379, 2000.

MONTEIRO, J. V. Lições de economia constitucional brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

_____. Estado oco & parcerias público-privadas. Revista de Economia & Relações Internacionais, v. 5, n. 9, p. 56-73, jul. 2006.

ORTIZ, D.; ISSACHAROFF, S. Governing through intermediaries. 1999. (University of Virginia School of Law Legal Studies Working Paper Series).

PAINTER, C. Review of the book Making public policy. Public Administration, v. 84, n. 2, p. 498-501, June 2006.

STRAUSS, P. The internal relations of government: cautionary tales from inside the black box. Law and Contemporary Problems, v. 61, n. 2, p. 155-170, Spring 1998.

TERRY, L. The thinning of administrative institutions in the hollow state. Administration & Society, v. 37, n. 4, p. 426-444, Sept. 2005.

  • 1
    Mesmo a campanha de mídia do Tribunal Superior Eleitoral, ao longo de todo o período eleitoral, enfatizava esse controle pelo voto, como fato, e não como idealização.
  • 2
    Por meio dessa MP, o presidente da República abre crédito extraordinário, em favor dos ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, da Fazenda, da Justiça, da Previdência Social, do Trabalho e Emprego, dos Transportes, da Defesa, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e das Cidades, no valor global de R$ 1,5 bilhão. Por ser uma MP, sua validade é imediata.
  • 3
    Posteriormente (27 de outubro de 2006), no entanto, o TRF da 1ª Região tornou sem efeito a liminar de 18 de outubro de 2006 (Justiça autoriza governo federal a gastar R$ 1,5 bilhão (
    O Globo, 28 out. 2006, p. 9).
  • 4
    Na figura, outubro de 2006 vai até o dia 26, inclusive.
  • 5
    Outras MPs, com igual propósito de abertura de crédito extraordinário, sempre passaram incólumes à vigilância da legislatura. Possivelmente, o fato só é agora notado quando processado na estratégia eleitoral do candidato presidencial da oposição.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Dez 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
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