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Razão e sensibilidade no ensino de administração: a literatura como recurso estético

Sense and sensibility in management teaching: literature as an aesthetic resource

Resumos

Este artigo problematiza o uso da literatura como recurso estético durante o processo de ensino da administração, com base em uma análise multidisciplinar dos trabalhos acadêmicos publicados, com a finalidade de: refletir sobre literatura e o papel da ficção no ensino, articulando a literatura com a existência humana; abordar a pesquisa em organizações e o uso de gêneros e estilos literários na produção do conhecimento; e discutir sobre os usos dos textos literários em ensino, pelo relato e discussão de práticas que utilizam a literatura. Tem especial destaque a dimensão estratégica da atividade de ensino que usa a literatura como recurso estético. A conclusão é de que o texto literário é um poderoso recurso de aprendizagem, pois tem como matéria-prima a palavra, o discurso, que é a essência da administração. E, também, que a integração entre administração e literatura pode ser uma estratégia fecunda, favorecendo criatividade e descoberta, pois possibilita o desenvolvimento de capacitações para sentir e conhecer.

estética; ensino de administração; aprendizagem; literatura


The goal of this article is to challenge the use of literature as an aesthetic resource in management teaching-learning. The research is based on a multidisciplinary literature review in order to: think about fiction and its role in teaching, articulating fiction with human existence; explore organizational research and the use of literary genres and styles in knowledge production, and discuss about the use of literary texts in teaching through the presentation and discussion of practices using and capitalizing on fiction. Special attention is given to the strategic dimension of teaching activity that uses fiction as an aesthetic resource. The research's conclusion suggests that literary text is a powerful learning resource because it has as primary source accounts and discourse, these being the essence of management. Another conclusion is that the relationship between management and literature translates into a rich strategy, encouraging creativity and discovery as it allows the development of capabilities to feel and to know.

aesthetics; management teaching; learning; literature


ARTIGOS

Razão e sensibilidade no ensino de administração: a literatura como recurso estético

Sense and sensibility in management teaching: literature as an aesthetic resource

Tânia FischerI; Eduardo DavelII; Sylvia VergaraIII; Philip D. GhadiriIV

IDoutora em administração pela USP, professora titular da Escola de Administração da UFBA e coordenadora do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (Ciags). Coordena o Programa de Capacitação Docente em Administração da Anpad. É pesquisadora 1-A do CNPq. Endereço: Av. Reitor Miguel Calmon, s/n — CEP 40110-903, Salvador, BA, Brasil. E-mail: pdgs@ufba.br

IIPhD em administração pela École des Hautes Études Commerciales de Montréal. Professor na Université du Québec à Montréal. Professor associado ao Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (Ciags) da UFBA. Endereço: UQAM, 100, Sherbrooke Ouest, Montréal — H2X 3P2 — Canada. E-mail: davel.eduardo@teluq.uqam.ca

IIIDoutora em educação pela UFRJ e professora titular na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da FGV. Endereço: Praia de Botafogo, 190 — CEP 22258-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: sylvia.vergara@fgv.br

IVDoutorando em administração na Judge Business School, University of Cambridge, Inglaterra. Endereço: 4143, rue Rivard, Montréal (Québec) — H2L 4J1— Canada. E-mail: philip.ghadiri@cantab.net

RESUMO

Este artigo problematiza o uso da literatura como recurso estético durante o processo de ensino da administração, com base em uma análise multidisciplinar dos trabalhos acadêmicos publicados, com a finalidade de: refletir sobre literatura e o papel da ficção no ensino, articulando a literatura com a existência humana; abordar a pesquisa em organizações e o uso de gêneros e estilos literários na produção do conhecimento; e discutir sobre os usos dos textos literários em ensino, pelo relato e discussão de práticas que utilizam a literatura. Tem especial destaque a dimensão estratégica da atividade de ensino que usa a literatura como recurso estético. A conclusão é de que o texto literário é um poderoso recurso de aprendizagem, pois tem como matéria-prima a palavra, o discurso, que é a essência da administração. E, também, que a integração entre administração e literatura pode ser uma estratégia fecunda, favorecendo criatividade e descoberta, pois possibilita o desenvolvimento de capacitações para sentir e conhecer.

Palvra-chave: estética; ensino de administração; aprendizagem; literatura.

ABSTRACT

The goal of this article is to challenge the use of literature as an aesthetic resource in management teaching-learning. The research is based on a multidisciplinary literature review in order to: think about fiction and its role in teaching, articulating fiction with human existence; explore organizational research and the use of literary genres and styles in knowledge production, and discuss about the use of literary texts in teaching through the presentation and discussion of practices using and capitalizing on fiction. Special attention is given to the strategic dimension of teaching activity that uses fiction as an aesthetic resource. The research's conclusion suggests that literary text is a powerful learning resource because it has as primary source accounts and discourse, these being the essence of management. Another conclusion is that the relationship between management and literature translates into a rich strategy, encouraging creativity and discovery as it allows the development of capabilities to feel and to know.

Keywords : aesthetics; management teaching; learning; literature.

1. Introdução

O uso da literatura no ensino de administração é promissor, especialmente quando se trata do aprendizado de teorias e práticas relativas a gestão e a contextos organizacionais. Com efeito, os atos de gerir, ensinar e aprender têm em comum o uso da palavra. Administra-se pela palavra, pelo discurso, pela retórica. Como o ensino também é retórica, o ato pedagógico pode ser uma arte. Ensinar e aprender são oportunidades de criação, tanto quanto o exercício do poder. Partimos do princípio que gerir, ensinar e aprender exigem doses ponderadas de razão e sensibilidade.

Na condição complexa de texto e hipertexto, a gestão tem o suporte conceitual de múltiplas disciplinas e saberes que confluem para aplicações práticas. Além disso, a gestão tem componentes de engenho e arte, de tecnologia e artesanato, de conteúdo e forma. Como processo social por excelência, supõe construção e compartilhar de significados. Também está embebida em contextos culturais, envolvendo pensamento e emoção, expressos pela palavra e outros tipos de linguagem. O ensino de administração deverá refletir as características inerentes à prática da gestão, tais como a interdisciplinaridade e o fato de ser um processo culturalmente imerso e construído em conjunto com quem aprende.

A área de administração é uma conjunção de teorias e práticas. Na aprendizagem sobre a prática, misturam-se experiências vividas e imaginárias; cognição e emoção; de forma imprevisível e não controlada por quem ensina, tal qual a gestão. Assim, os recursos estéticos de ensino terão um papel múltiplo: são inspiradores, potencializadores e facilitadores da aprendizagem e, também, representações da experiência humana e contraponto sensível e crítico aos conceitos, princípios e generalizações das teorias.

Se na vida organizacional a estética é uma força orientadora e organizadora e não simplesmente uma maquiagem da organização (Davel et al., 2004b), no processo de aprendizagem, pode-se dizer o mesmo. Dutton (2003:16) defende a introdução de mais vitalidade nos estudos organizacionais e entende que o campo tem um poder potencialmente transformador das práticas profissionais: "how we research, how we do teaching and how we do service work". Assim, argumentamos que os recursos estéticos permitem revitalizar o ensino-aprendizagem da administração (Davel et al., 2004a, 2004b, 2007), como pode ser o caso do uso da música, da dança (Davel et al., 2005) e da literatura.

O objetivo deste artigo é problematizar o uso da literatura como recurso estético durante o processo de ensino da administração, tendo como base a literatura existente. Primeiramente, refletimos sobre a literatura e o papel da ficção, articulando-a com a existência humana. Em seguida, abordamos a pesquisa em organizações e o uso de gêneros e estilos literários na produção do conhecimento. Na seqüência, discutimos o uso dos textos literários em ensino, pelo relato e discussão de práticas que utilizam a literatura. Damos um especial destaque à dimensão estratégica da atividade de ensino que utiliza a literatura como recurso estético.

Vale ressaltar que ensinar administração é tão complexo e desafiador quanto ensinar outras áreas de ciências sociais que lidam com a dimensão humana em sua grandeza, vilanias e paixões. Em um campo complexo que tem o poder como conceito-chave, o aprendizado se dará pelo encontro com as teorias e pela compreensão das razões dos que exercem as práticas. Por exemplo, Knights e Willmott (1999) se valem de quatro romances (Nice work; The remains of the day; The bonfire of the vanities; The unbearable lightness of being) para ensinar questões organizacionais ligadas a poder e identidade. De fato, aprender sobre poder e gestão pode ser uma aventura, na descoberta do humano no que tem de brasileiro e universal, como este artigo pretende argumentar, defendendo a literatura como recurso estético.

2. Sobre literatura: ficção, existência e imaginação

...uma definição é sorte.

É pegar borboletas no ar,

É capturar. É ter um lado poético e um lado

prosaico, duro. É a satisfação

quando se vê aquilo cristalizado.

(Aurélio Buarque de Holanda)

O primeiro mestre que teve seus ensinamentos transcritos por um discípulo foi Sócrates, que ensinava conversando e cujos ensinamentos foram registrados por Diálogos de Platão. A literatura como registro escrito é, desde a antigüidade clássica, um recurso para compartilhar, com aprendizes, a experiência humana acumulada.

Medeiros (2005) fez um declarado "elogio à leitura" em sua tese, percorrendo uma larga trajetória da escrita que vai dos rolos de papiro ao hipertexto, mudando radicalmente a estrutura da escrita, que se torna não-seqüencial e dá opções ao leitor. "Trata-se de uma série de blocos de textos conectados entre si por nexos de escolha, que formam diferentes trajetos para o usuário" (Londow, citado por Medeiros, 2005). Papiro e hipertexto são veículos da leitura, da boa ou má leitura. A escrita e a leitura são indissociáveis, tanto quanto o escritor e o leitor, o mestre e o aprendiz. A literatura e a leitura têm área de interseção. Não há literatura se não houver leitor, se não houver leitura.

Medeiros (2005) identifica vários tipos de leitura: leiga e clerical, à maneira de Ivan Ilich; a leitura do mundo, de que fala Paulo Freire (1980); a leitura crítica, enfatizada por Marques de Melo; a leitura canônica, à moda de Harold Bloom; experiência de leitura, tal como a define Jorge Larrosa; leitura como aprendizagem formal; leitura como interpretação, no sentido proposto por Orlandi; leitura como atribuição de sentido, segundo a estética da recepção; e da comunidade de leitores, de Blachot, entre outras.

Os significados de leitura são muitos, permitindo grande diversidade de usos. Lê-se para conhecer, para aprender, para interpretar e avaliar o mundo. Lê-se também para participar de comunidades de aprendizagem e práticas. Lêse para viver a experiência da vida com sensibilidade e imaginação. Porém, a literatura não é vida, é representação e ficção. Chiappini (2005:105) define literatura

como tudo o que é escrito, ou seja, qualquer texto escrito caberia na concepção ampla do conceito. Mas, podemos delimitar mais e conceber literatura apenas como aqueles textos com intenção artística, supondo que não há literatura sem um trabalho específico com as palavras.

Discini (2003) sugere Aristóteles como ponto de partida e de chegada para uma reflexão sobre a arte da escrita. Para Aristóteles, imitar e criar imagens é natural do ser humano, são formas de experimentar o universo. A literatura cria uma super-realidade, isto é, uma realidade paralela ao ambiente que foi imitado. Chiappini (2005) reconhece, enfim, a dificuldade de definir literatura e pede auxílio a Carlos Drummond de Andrade "para quem a literatura é uma luta com as palavras", utiliza, também, a definição ambígua de Alfonso Reyes, quando diz que a "literatura é uma verdade suspeita" (Reyes, citado por Chiappini, 2005).

De fato, a literatura não enfoca a realidade, mas um campo de possibilidades. O romance, por exemplo, não examina a realidade, mas sim a existência, que é algo que se passa no passado, ela é o campo de possibilidades humanas, tudo que o ser humano pode se tornar, tudo de que ele é capaz. Existir significa "estar no mundo". Logo, o romance nos instiga a compreender o personagem e seu mundo como possibilidades. O romancista não é nem historiador, nem profeta: ele é explorador da existência (Kundera, 1986). A literatura coloca sua poesia, imaginação e fineza à disposição do leitor, explorando seu vasto campo de possibilidades. Portanto, "toda obra literária é essencialmente uma pesquisa" (Beauvoir, 1965:84), mas não se trata de uma pesquisa de um denominador comum, de uma classificação dos seres humanos ou de uma teoria que os governe. Ela é, antes de mais nada, uma busca do particular em suas múltiplas formas e nuanças, até as mais gerais e amplas (Tournier), as mais extremas (Kafka; Orwell; Huxley), as mais prováveis, passando pelas mais cotidianas (Joyce; Proust). Podemos dizer que o escritor busca desvelar o ser humano para acordar sua humanidade e sua infinita possibilidade de ser.

Teorias contemporâneas da literatura se encaminham para uma visão pragmática do fenômeno literário (Olinto, 2004). Nessa ótica, textos não são literários em si mesmos, mas produzidos, transmitidos e recebidos como literários por diversos atores sociais em seus respectivos domínios, de acordo comnormas e convenções, internalizados e historicamente contingentes (Olinto, 2004). Os textos literários são, portanto, contextualizados e elaborados a partir de pressupostos e cânones, para permitir o seu reconhecimento como literatura. A literatura supõe, portanto, estruturas próprias a cada gênero literário, que terão naturezas distintas segundo o estilo do autor. Narrativas de diversos tipos, em versos e prosa, povoam nossas memórias e dão significados à vida.

Lembra Machado (2001), o artigo de Robert Louis Stevenson, de crítica literária, intitulado "Web, texture and the juggling of orange", traduzindo, "Teia, textura e malabarismo com laranjas", em que defende a necessidade da arte literária obedecer a padrões, a estruturas amarradas com nós bem firmes, embora o texto deva também ter leveza e movimento, como se o autor brincasse de "jogar laranjas para o alto, dançando com graça inimitável". Equilibrarse entre precisão e leveza, razão e sensibilidade, parece ser o desafio maior da literatura. Se pensarmos no romance, constatamos que ele pode ser visto como uma recusa de reduzir o domínio da ação humana à sede de explicação pela razão. "O espírito do romance é o espírito da complexidade. Cada romance diz ao leitor: as coisas são mais complicadas do que você pensa" (Kundera, 1986:30).

Podemos também observar que a literatura é obra de compaixão que convida o leitor a se colocar no lugar do outro quando ela anima um personagem no nosso imaginário e quando ela o faz viver uma gama de emoções humanas com nuança. A literatura é a escuta particular da vida interior de si mesmo e dos outros, onde a imaginação é sinônimo de escuta. Ela permite uma empatia bem singular, pois ela se dá à expressão do sentimento mais do que à sua simples compreensão (De Koninck, 2000).

Chiappini (2005) dá pistas importantes para o uso da literatura na pesquisa social e no ensino, lembrando que há duas tendências predominantes na teoria literária que oscilam em direções contraditórias. De um lado, a ênfase na especificidade e na autonomia, de outro a capacidade de representar a realidade. "De um lado, a literalidade, de outro a mimesis" (Chiappini, 2005:245). Para os que quiserem ultrapassar essa dicotomia, há, como desafio, articular as duas dimensões, concebendo e trabalhando o texto por meio do contexto e vice-versa.

Antônio Cândido (1995) esclarece a função da literatura, o que vai nos auxiliar no desenvolvimento deste artigo quando nos referirmos à literatura como recurso para conhecer melhor as organizações e gestão, para ensinar e aprender sobre esses temas. Para esse autor,

a função da literatura está ligada à complexidade de sua natureza, que explica, inclusive, o papel contraditório mas humanizador (talvez humanizador porque contraditório). Analisando-a podemos distinguir pelo menos três faces: 1) ela é uma construção de objetos autônomos como estruturas e significados; 2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e dos grupos; 3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente.

Com a mesma maestria, Isolda Holmer-Paes (1975) defendia a íntima integração entre emoção e razão, na natureza e na estrutura da obra literária.

para uma análise do conhecimento literário, é necessário, primeiramente, compreender a natureza de obra literária, seu verdadeiro modo de ser. Uma leitura que vise a um conhecimento literário genuíno deverá ser guiada pelos princípios de unidade, totalidade e coerência, características da estrutura da obra literária.

Quando a expressão das percepções e vivências do autor encontra eco no leitor, reproduz-se a magia presente na relação mestre/aprendiz, quando esta é revitalizada por meio de recursos estéticos que integram cognição e emoção. A literatura, ou seja, o registro escrito, é um meio fecundo de compartilhar com aprendizes a sabedoria acumulada pela humanidade, permitindo a recriação dela, como uma tocha que passa de mão em mão, de uma geração para outra.

Além disso, as asas da imaginação podem abrir-se para a representação da realidade ou para versões ficcionais da existência humana. Assim, a literatura é um recurso para melhor conhecer, expressar e construir as organizações contemporâneas ou reconstruir memórias e significados de organizações que desaparecem no tempo. É, também, um recurso estético promissor para aprender e ensinar sobre organizações e gestão.

3. A pesquisa em administração sobre literatura

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consterna é se este livro não tiver os cem leitores Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, é quando muito, dez. Dez? Talvez cinco.

(Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas)

A literatura é usada por pesquisadores de administração como recurso de investigação. Phillips (1955) encoraja os leitores a usar novelas, histórias curtas, jogos, canções, poemas e filmes como abordagens legítimas para estudar administração e organizações. Entre as razões do autor, destaque para a conexão entre análise organizacional como uma disciplina acadêmica e a experiência subjetiva dos participantes da vida organizacional. Mais particularmente, o uso da literatura seria uma adição importante aos modos já tradicionais de estudar sobre fenômenos sociais em geral e organizações. O recurso a textos literários como fonte de pesquisa se justifica também pelo fato de que não se consegue sempre obter informações tão subjetivamente ricas sobre alguns processos organizacionais (por exemplo, sobre a identidade) por meio de entrevistas ou observações diretas.

Facini (2004:41) propõe alguns métodos para o uso da literatura no estudo dos fenômenos sociais em geral e pergunta: "como se pode construir um enfoque que, embora dependa de contribuições de áreas como a teoria literária ou mesmo a lingüística, seja específico da história, de sociologia, da antropologia". Responde, citando duas formas de trabalhar com literatura na pesquisa social: na primeira, o pesquisador usa os textos como uma espécie de fonte — entre outras, para desenvolver um tema; na segunda, a própria criação literária é o objeto de investigação ou o objeto investigado, transforma-se na criação ou é representado por ela.

Devemos lembrar que a administração não é uma disciplina da mesma natureza e estrutura da sociologia, antropologia ou psicologia, que são categorizadas como ciências sociais. Administração é considerada ciência socialmente aplicável, o que significa ser referenciada à prática, ao que se faz. E é sobre essa prática que se constrói a teoria. As teorias organizacionais refletem a prática e nos ajudam a construir essa mesma prática. Não esqueçamos que "o modo de aprender sobre organizações e gestão ao longo da história humana foi nascer, viver e morrer nelas. Prática de gestão e conhecimento explícito sobre organizações adquirem-se na prática que se estrutura como construção social" (Fischer, 2003).

Refletindo sobre gêneros e estilos literários: a produção acadêmica

Ao considerarmos a literatura como campo fecundo para se aprimorar a prática de ensino da administração, podemos lançar a seguinte questão: como as narrativas e outros gêneros literários podem ser representativos e interpretativos das práticas e como são usadas na pesquisa e no ensino de organizações e gestão? Os textos podem ter diferentes funções e tramas. Kaufmann e Rodriguez (1995) lembram que texto provém do latim textum, tecido, tela, trama e recorrem à metáfora do tapete para expressar a idéia do texto enquanto trama de funções de linguagem: "Imaginemos um tapete em cuja trama se destacam nós, cores diversas, fios que se entrecruzam de diferentes maneiras, para configurar uma paisagem".

As tramas podem ser classificadas de quatro formas: narrativa, argumentação, descrição e conversação, que podem ser combinadas em textos literários que se caracterizam, primordialmente, por ser orientados por cânones estéticos. É o caso dos contos, novelas, obras teatrais e poesias. No entanto, as tramas da literatura podem ser muito mais complexas. Funções literárias podem combinar-se com funções informativas. Ou seja, a intencionalidade estética pode estar presente em um artigo científico, em que a subjetividade do autor pode estar evidente.

Phillips (1995) trabalha a narrativa e a ficção, construindo uma tipologia para caracterizar a pesquisa em estudos organizacionais. Distinguindo entre não-ficção e ficção, narrativa e não-narrativa, o autor destaca a biografia, os estudos de caso e os estudos etnográficos como narrativas não-ficcionais, que são, para o autor, um campo de pesquisa já bastante desenvolvido em organizações. Phillips (1995) cita, como exemplo, os trabalhos derivados da teoria neo-institucional, baseados em estudo de caso. A ficção contém um conjunto incomensurável de informações, dependendo do objeto e da natureza da investigação. Se a intenção for explorar as experiências de vida organizacional, todo o tipo de gênero narrativo é válido, desde que usado apropriadamente.

Por sua vez, Hatch (1996) acredita que a aplicação da literatura ao texto organizacional abre perspectivas novas para a pesquisa, e cita os trabalhos de Czarniaswska-Joerges (1999), sobre narrativas organizacionais; e os de Van Manen (1985) sobre estilos e gêneros narrativos. Na verdade, Hatch (1996) considera a narrativa um método de amplo espectro, ao possibilitar, em primeiro lugar, a construção de uma posição epistemológica, porque permite manifestações da subjetividade; não obstante, a maioria das narrativas ser escrita por objetivistas.

Narrativas objetivistas são, em nosso entender, bem exemplificadas pelos casos no modelo harvardiano, que são também os preferidos do mercado editorial e se situam na categoria de casos para Roesch (2005). Segundo a autora, são o relato de uma situação vivida nas organizações a ser utilizada no ensino. Mas "todo caso para ensino parte de um objetivo educacional e a situação relatada representa conceitos teóricos ou modelos" (Roesch, 2005:166). Os casos objetivistas constroem teorias como as abordagens subjetivistas e grande parte da literatura reflexiva da produção da pesquisa em administração.

Em segundo lugar, as narrativas são caminhos de reflexividade, o que é especialmente demonstrado nos trabalhos de Michel Foucault e Clifford Geertz (Hatch, 1996). Mesmo que a autora entenda que as fronteiras entre objetividade e subjetividade estão bastante diluídas nas organizações pós-industriais, as diferenças são significativas "quando consideramos atos de pesquisa, a distinção entre o que você sabe (conhecimento direto) e o que os outros sabem (conhecimento oriundo de sua perspectiva) permanece significativa" (Hatch, 1996:370).

Hatch (1996) lembra que o interesse por narrativas aparece na teoria organizacional por meio de histórias sobre organizações, que evoluíram para a narrativa entendida como tal pela teoria literária. Para a autora, a adoção de abordagens literárias nas narrativas sobre organizações oportunizou, também, as aplicações de uma grande variedade de conceitos literários, incluindo materiais e artefatos (Czarniaswska-Joerges, 1999), estilos narrativos e gêneros e alegorias (Van Manen, 1985, 1989). A narrativa integra o pesquisador e o objeto de seu trabalho, pela relação íntima que se estabelece entre eles.

Aplicadas às teorias organizacionais, as narrativas tomam formas de histórias, textos, discursos e atos narrativos, como falas e escritas. Ou, como esclarece Hatch (1996:101), "a teoria organizacional é constituída por textos e discursos produzidos por pesquisa, falares e escritas sobre organizações". Além da escrita em forma de narrativa, existem as narrativas literárias que podem servir à pesquisa. Esse é um campo pouco explorado no Brasil, e um dos bons exemplos é o trabalho de Tenório (2000), utilizando o romance de Eça de Queirós, Alves e cia., como recurso para discutir os riscos e perigos das alianças empresariais.

Concluímos a reflexão sobre a importância da narrativa na pesquisa com a perspectiva de trabalhar abordagens objetivistas, subjetivistas e com triangulações e metatriangulações entre ambos. Como exemplo, um estudo sobre uma organização como o Mosteiro de São Bento da Bahia, conforme a realizada por Carvalho e Fischer (2006). Pode-se estudar a trajetória do mosteiro, por meio de documentos oficiais, questionários padronizados e entrevistas focalizadas. Teremos aí um estudo de caso único construído com dados ditos objetivos. Podemos também estudar a trajetória dessa instituição, fundadora da organização modernista, a partir de depoimentos dos abades e monges, colhidos diretamente, ou por meio de escritos dispersos no tempo. A desconstrução e reconstrução dos discursos de sujeitos imersos no claustro, acompanhadas de observações da vida monasterial, podem propiciar a construção de uma narrativa na qual percepções, emoções e vivências pessoais poderão aflorar, permitindo ver além de portas maciças ou de nuvens de incenso. Se forem combinadas as duas abordagens, teremos visões angulares diferentes, e também podem ser articuladas teorias que se complementem por suas diferenças. Se for possível voltar ao mosteiro depois de algum tempo e repetir o estudo, contextualizando-o no espaço social mais amplo (a cidade ou a sociedade deste tempo), teremos uma investigação de caráter longitudinal e outras narrativas.

O acúmulo dessas narrativas, quer objetivadas em casos de pesquisa, quer apresentadas como casos para ensino ou outra forma adequada aos objetivos do que se propõe, é um manancial de recursos de ensino, conforme orientações de Roesch (2005). Além de tais recursos, decorrentes da pesquisa, existe o acervo literário, patrimônio da humanidade, disponível como leitura e com grande potencial de aproveitamento didático.

Uso em ensino: lendo os textos literários

A literatura tem sido usada com crescente entusiasmo no ensino de administração conforme registros e depoimentos de Cohen (1998), Phillips (1995), Gayley (1993), Shaw (1992) e outros. Quer entendida como literatura por Gailey (1993) e por Shaw (1992), por narrativa (Hatch, 1996; Czarniawska- Joerges, 1999) ou como ficção narrativa (Phillips, 1995; Cohen, 1998), o uso de diversos tipos de leituras expressas em gêneros tais como romances, contos e peças teatrais têm sido objeto de experiências e reflexões, independentemente das divergências semânticas sobre o tema.

Gayley e Carrol (1993) já tinham chamado a atenção para a colaboração possível entre o ensino da administração e literatura. Cook e Land (2006) fazem uma discussão interessante sobre as dimensões textuais e extratextuais da literatura, entendendo que as organizações estão no cerne da literatura. Shaw (1992) sugere textos literários para o ensino da ética. Harrison e Akine (2000) propõem o uso de vários gêneros literários (como poesias, crônicas, documentos, contos, romances) para o ensino de práticas de liderança, apresentados em paralelo com artigos e filmes. Parker e co-autores (1999) tratam os estudos organizacionais como ficção científica, rejeitando o "dandismo" que, acreditam, perpassa o campo atualmente e prevêem um futuro próximo, onde a ficção científica seria utilizável na gerência.

Cook (2000) reflete sobre ficção, representações e estudos organizacionais fazendo referências especiais à obra de Jorge Luís Borges, e como as narrativas desse autor podem contribuir para interpretações e representações organizacionais e sobre a complexidade que se apresenta a teóricos praticantes no estudo de organizações. Assim, Cook (2000) justifica a sua opção: "the interest in the fantastic literature, and Borges fiction against a background of an increasing awareness of the pervasiveness and relevance of functionality as a routine aspect of organizational life".

Uma questão é colocada: como se pode traduzir a pesquisa sobre a literatura um atividade pedagógica? A seguir, apresentaremos o exemplo dado por um mestre referencial no campo dos estudos organizacionais, que desenvolve uma instigante experiência de ensino.

4. Traduzindo a pesquisa sobre literatura em atividades pedagógicas

Embora não se deva estabelecer uma relação causal entre heróis literários e "boas práticas" de gestão, pois seria simplista e redutor usar, assim, a ficção no ensino de administração, é possível o uso metafórico e inspirador de muitas personagens da literatura universal para refletir sobre arquétipos da liderança. Um exemplo dessa feliz utilização vem de um autor referencial nas ciências sociais, em geral, e no campo da gestão, em particular.

James March, poeta e professor como ele mesmo se define (Augier, 2004), vem desenvolvendo uma experiência na Universidade de Stanford bastante ilustrativa de uma "boa prática" (March e Weil, 2003). O curso é estruturado por obras e personagens clássicas da literatura universal: Otelo, de Shakespeare; Joana D'Arc, de Bernard Shaw; Guerra e paz, de Tolstói; e Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes. O curso de liderança e organizações acolhe em torno de 350 estudantes em grande auditório, de diferentes níveis de ensino e admite ainda 30 ou 40 participantes especiais da comunidade. São 20 sessões de uma hora e 15 minutos de exposição, seguidas de 45 minutos de discussão sobre questões apresentadas na aula anterior.

No curso, os participantes são solicitados a refletir sobre essas obras, elaborar notas, bem como já devem ter lido as quatro obras literárias em torno das quais o curso é construído. Uma hora suplementar por semana é dedicada à discussão de questões livres, de interesse dos estudantes, a partir dos textos já lidos ou de textos de outros autores. March e Weill (2003:14) apontam para o que consideram o dilema essencial das escolas de gestão

leadership poses a teaching dilemma for a school of management. The importance of leadership does not assure that schools of management have anything to teach about it. The problem is not unique to leadership. Any educator knows that the importance of a topic is not particularly well correlated with knowledge about it or susceptibility to teaching. Topic such as "success" or "virtue" or "love" are similarly important without necessarily being easily taught.

Os estudantes, segundo March, querem saber como chegar à liderança e como agir, efetivamente, como líderes. O autor entende que os estudos acadêmicos oferecem poucos subsídios para responder a essas questões. Os resultados da pesquisa são interessantes para os acadêmicos e para as histórias que eles escrevem sobre organizações. São importantes para os líderes compreenderem as organizações, mas não oferecem muita ajuda para liderar.

O curso é baseado em dois princípios: o primeiro é que os problemas da liderança são indistinguíveis dos problemas da vida. O segundo é que tais problemas não estão tratados somente no campo das ciências comportamentais, mas também por novelas e poemas da grande literatura. O curso não é focado particularmente na identidade dos líderes na literatura, mas "na forma com que a literatura ilumina os contextos sobre liderança" (March e Weil, 2003).

As premissas que orientam o curso são:

uma concepção da condição humana — o indivíduo pode ter influência sobre o curso dos acontecimentos, saber onde está a virtude, ser recompensado por suas boas ações;

uma concepção do indivíduo — o indivíduo procura descobrir e afirmar sua identidade, respeitando deveres ligados ao seu papel e status, participando de sua comunidade;

uma concepção das organizações sociais — são elas fundadas sobre uma lógica da identidade ou de comunidade;

uma concepção da ação em sociedade justificada por seus objetivos, considerada coerente, relativa a um sistema de valores ou de preferência estável, mas confrontada com as ambigüidades dos objetivos, experiências individuais, poder ou sucesso.

Dom Quixote é o personagem que inspira, em March, três grandes questões sobre a liderança. O que motiva e justifica as grandes ações? Que papel desempenha a visão do líder? Que papéis desempenham os prazeres vividos no curso da ação? James March considera que, como Dom Quixote, o líder pode ser confrontado por desafios permanentes entre a lógica da realidade e da identidade, que age segundo uma visão e se protege dos críticos de seu entorno, pois as visões mais interessantes não têm o necessário pragmatismo.

A dimensão de ambigüidade do líder é evidenciada na percepção de Dom Quixote como um símbolo da alegria de viver, em contraponto com o afastamento da realidade.

James March complementa essa estratégia de ensino com entrevistas com líderes e, também, com o cinema; produziu, em conjunto com Steven Schecter, o filme Paixão e disciplina: lições de Dom Quixote sobre a liderança. A estratégia adotada por James March é um bom exemplo do uso da literatura como recurso estético, pois em primeiro lugar é efetivamente um recurso usado de forma interdisciplinar, isto é, trata temas de administração articulados a conceitos e princípios da literatura. Em segundo lugar, exalta valores e contribui para a formação dos estudantes como indivíduos e participantes de comunidades. Em terceiro lugar, desenvolve habilidades cognitivas não apenas no plano da compreensão, mas de análise, síntese e avaliação críticas de fenômenos complexos. Em quarto lugar, é uma estratégia de ensino que tem padrões organizativos (aula estruturada com conferência do professor, discussão a partir da leitura prévia de textos e de questões instigantes, aula com questões livres propostas pelos alunos). O próprio James March avalia o curso positivamente, o que é comprovado pela procura dos estudantes (March e Weil, 2003).

E no Brasil? Podemos antever tendências no sentido de quebrar as tradições didáticas pela incorporação da literatura como recurso estético?

5. Novas idéias para utilizar a literatura em sala de aula: os mapas de sedução no Brasil

Se as sereias pretendem desviar Ulisses do caminho escolhido, Itaca consegue dar-lhe forças para ser fiel ao caminho. Se as sereias prometem prazer imediato e sem esforço, Itaca exige um esforço do caminho antes do prazer do reencontro.

(Joan Ferrès)

As sereias do caminho de Ulisses representam o princípio do prazer com satisfação imediata e sem esforço, enquanto Itaca é o princípio da realidade, da razão. No imaginário brasileiro, as iaras são também seres encantados, assim como o boto responsável pela sedução das virgens. O viajante deve chegar em casa, mesmo que se encante pelo caminho e, muitas vezes, são as seduções que tornam o caminho mais prazeroso e permitem o encontro com a razão.

Mapas de sedução, denominação de Ferrès (2000), são necessários aos professores. Como recursos estéticos que são, têm a missão de abrir um caminho sensível ao conhecimento. A partir daí, sensibilidade e razão podem ser consideradas não excludentes, embora possam apresentar caráter dual e conflituoso. Em contextos de sala de aula, razão e sensibilidade são geralmente separados nas estratégias de ensino usadas pelos professores, interferindo na construção do conhecimento e nos significados que o conhecimento pode ter para o estudante. No entanto, como diz Novak (citado por Moreira, 1999), "a aprendizagem significativa subjaz à integração construtiva entre pensamento, sentimento e ação, que conduz ao engrandecimento humano".

Estudos sobre organizações e gestão devem ser articulados em estruturas de conceitos, princípios e generalizações que alicerçam as teorias. Qualquer recurso de ensino utilizado deve respeitar a natureza do conhecimento e estrutura subjacentes. Defendemos, então, a literatura como um componente estruturante da estratégia do professor, como um recurso estético. No entanto, sabemos o que é uma estratégia de ensino? Em princípio, podemos dizer que é um mapa de sedução, que não apenas dá pistas, mas traça caminhos tentadores.

Uma estratégia de ensino é uma atividade que tem a vida como base, caracterizando-se por partir do mundo concreto, ter organização, continuidade, duração, favorecendo a espontaneidade, a expressão e a imaginação, opondo-se à passividade, à indiferença e à coerção. Uma estratégia de ensino é, também, um instrumento potente nas mãos de bons professores. Uma estratégia é um ato intencional, um processo compartilhado por estudantes e professores, constituído de uma ou mais modalidades, um ou mais recursos de ensino, e que deve respeitar a natureza e a estrutura da matéria de ensino de que trata. Uma estratégia de ensino é um plano de ação. A aprendizagem, portanto, é construída na relação entre professores e estudantes mediados por modalidades de ensino (exposições, seminários, casos, projetos, vivências, interações, representações, jogos e muitos outros) e recursos que constroem significados, como a literatura. A estratégia é também um caminho que se constrói ao andar, parodiando o poeta espanhol Antônio Machado. A estratégia é aberta às contribuições do processo e da interação entre professores, matéria de ensino e estudantes. Considerando a relação triádica entre professor, recursos de ensino e estudantes (Gowin, 1981), o professor usa recursos que organizam contextos de ensino e aprendizagem para que ele e os estudantes compartilhem significados.

Se estamos ensinando um conteúdo em estudos organizacionais, falamos de um campo pluriparadigmático, portanto, de tratamento interdisciplinar ou transdisciplinar de estruturas complexas que já envolvem textos e contextos, narrativas, ficção e metáforas como conteúdos de ensino, como vimos anteriormente. Para tornar a aprendizagem mais significativa, o uso de textos de literatura brasileira pode ser um bom recurso de envolvimento do estudante na estrutura do conteúdo, possibilitando um mergulho em universos ficcionais presentes em contos, romances, poesias, peças teatrais e outros tipos de textos menos usuais, como letras de músicas populares, cartuns, textos publicitários e outros.

Apenas erguendo uma ponta do véu que encobre um vasto manancial literário, lembremos de como o estudo sobre burocracia poderia se valer de textos de Machado de Assis; estudos sobre culturas infranacionais, dos romances de Érico Veríssimo e Graciliano Ramos; os de perfis de liderança, dos personagens arquétipos de João Guimarães Rosa, e dos presentes nas narrativas de Glauber Rocha e Cacá Diegues, das narrativas épicas de letras de música como Pedro Pedreiro, de Chico Buarque, ou mesmo de letras de rap, tão ilustrativas dos conflitos do mundo urbano brasileiro. Peças teatrais como as de Nelson Rodrigues retratam a classe média brasileira; as de Plínio Marcos, os excluídos; as de Ariano Suassuna e Dias Gomes, como as de Corpo Santo, o imaginário delirante universal.

Se assumirmos a premissa de que o aprendizado do mundo (nem sempre o dos prazeres) passa, também, pelos sentidos, de que modo a literatura pode ser usada como recurso estético na modalidade de ensino mais simples, que é a aula expositiva? Vamos tentar demonstrar, por meio de dois exemplos, que a aula expositiva pode ser apenas um veículo para o conteúdo ou pode ganhar muito mais significado se for enriquecida por recursos da literatura. No primeiro exemplo, o professor atém-se ao conteúdo. No segundo, constrói uma estratégia mais complexa.

Exemplo 1: relacionando conceitos da literatura com os da gestão

Em uma aula de introdução à administração, no curso de graduação da Universidade Beta, o tema central é o conceito de gestão. O professor preparou uma exposição oral, ilustrada por transparências. De modo dedutivo, serão apresentados conceitos de gestão colhidos na literatura. O professor estabelece nexos entre os conceitos, fazendo referências às escolas de pensamento em que estão ancorados, que já foram apresentadas em aulas anteriores. Confronta as abordagens teóricas, apresenta exemplos e aplicação. Os esquemas estruturantes apresentados aos estudantes funcionarão como organizadores básicos.

Após sua exposição, o professor coloca o tema em discussão. Os estudantes propõem questões, fazem comentários. O professor responde às questões e finaliza com um conceito-síntese.

Exemplo 2: a literatura ilustrando conceitos e escolas de pensamento

No segundo exemplo, o professor investiria um tempo maior na preparação da aula. O objetivo é a apresentação de conceitos, seguida de análise e confrontação dos mesmos, referenciando-os às escolas de pensamento anteriormente trabalhadas.

O professor pode usar a literatura como ilustração dos conceitos e das escolas de pensamento, apresentando personagens literários como representativos de tipos ideais de liderança, associando-os a períodos históricos. Pode ir além da ilustração e selecionar narrativas na forma de pequenos contos, crônicas ou diálogos de peças teatrais e apresentá-los entremeando sua exposição, como representativos dos modos de pensar trabalhados.

Que personagens mitológicos em nossa literatura são mitos fundadores da brasilidade e podem nos ajudar a compreender melhor nós mesmos? Macunaíma, o herói sem nenhum caráter? Ou Antônio Conselheiro? Capitão Rodrigo, do épico O tempo e o vento? Emília ou Dona Benta, de Monteiro Lobato? Riobaldo ou Brás Cubas? Dona Flor ou Macabéa? As sagas tão bem retratadas por Guimarães Rosa em Grande sertão veredas; por João Ubaldo Ribeiro em Viva o povo brasileiro; por Ariano Suassuna em A pedra do reino; e por Érico Veríssimo em o Continente podem ser lidas em contextos de ensino e aprendizagem de administração, por suas grandezas e misérias, que tão bem refletem o ethos brasileiro e as formas de gestão empregadas em contextos sociais. Há letras de músicas populares que são narrativas, como Domingo no parque, de Gilberto Gil; ou Os argonautas, de Caetano Veloso.

As sátiras de Gregório de Matos sobre a degradação moral do governo colonial e a corrupção podem ser cotejadas com as charges de jornais, pois o Brasil tem grandes artistas gráficos e humoristas contundentes, como Millôr Fernandes, que dominam o texto e o traço. Pode existir também a combinação de textos com outros recursos estéticos, como pintura e fotografia, para caracterizar as épocas.

A aula pode ser precedida de leitura de obras literárias selecionadas, para que o aluno já tenha uma relação próxima com a literatura e uma ancoragem estética. Isso possibilitará o estabelecimento de relações, já que a ancoragem conceitual foi realizada no estudo de escolas de pensamento. A participação do aluno não será a de um mero espectador, mas pode ser muito mais interativa. Ele pode se encarregar de elaborar perfis das personagens literárias, tentando caracterizá-las de acordo com critérios dados pelo professor, e relacioná-las às épocas históricas às quais correspondem as respectivas escolas. Os estudantes podem ainda participar da exposição, intercalando as falas deles com o discurso do professor.

Variando os estilos de interação com a turma, o professor pode se dirigir ao grupo como um todo, a grupos divididos por temas, a estudantes, em particular, que contracenam com o professor. Podem ser, também, utilizadas dinâmicas grupais entremeando, precedendo ou sucedendo a exposição. Por exemplo, se todos os estudantes leram os mesmos textos, a turma pode ser dividida em dois grupos e ser estabelecido um debate na defesa ou ataque a uma personagem. Os argumentos, contra e a favor, explorarão estratégias de gestão usadas pelas personagens de ficção. Para tornar mais interessante, os grupos de ataque e defesa podem trocar de posição e reorganizar os seus argumentos.

Finalmente, o professor promove atividades de síntese, fazendo ele próprio uma recolocação dos conceitos de gestão, associando-os a escolas de pensamento, ou utiliza a contribuição dos estudantes nessa integração final. Utilizando estratégias dedutivas (do todo para as partes, dos conceitos para os exemplos) ou indutivas (dos estímulos para os conceitos, da representação para a substância, do concreto para o abstrato) ou uma combinação de ambas, o professor terá enriquecido a aula, ampliando significados do que é aprendido.

Refletindo sobre o exemplo 2

Que condições deve ter a estratégia do exemplo 2 para atender a critérios de efetividade? Em primeiro lugar, ela deve ser direcionada pelo conteúdo que se quer ensinar, pela estrutura e natureza da matéria, considerando também os estudantes que querem aprender. Ou seja, a inclusão da literatura como recurso estético deve ser uma feliz conjunção interdisciplinar, em que o recurso seja realmente o que se propõe, e não um substitutivo feérico do conteúdo. O canto das sereias não substitui as glórias da chegada; isto é, os resultados da aprendizagem. Em segundo lugar, ela deve possibilitar uma agregação de valor à formação humana, possibilitando uma visão crítica do mundo e uma reconstrução criativa do conhecimento. Em terceiro lugar, deve possibilitar o desenvolvimento de habilidades de comunicação e expressão, além da compreensão, da análise e da síntese dos conceitos e da articulação entre estes. Em quarto lugar, ela deve ter padrões de organização adequados, ser preparada previamente, prever participações e espaços de interação, respeitar seqüências lógicas e propriedade na inserção dos recursos literários.

A estratégia deve, também, ser concretamente situada na realidade em que vivem estudantes e professores. Ela deve ter efeitos imediatos sobre o sentir, o pensar e estar integrada a uma seqüência temporal de outros eventos pedagógicos, de efeito recursivo, que possam ampliar os significados da aprendizagem. Essa proposta de estratégia de ensino vai contra a corrente predominante do conservadorismo nas formas e formatos de ensino de administração. Para inovar e romper com essa corrente, experiências são bem-vindas, especialmente se forem avaliadas e difundidas.

6. Considerações finais

Como recurso, a literatura oferece infinitas possibilidades para o entendimento da gestão e para conferir significado às práticas. Para valorizar a literatura como recurso de ensino e aprendizagem em administração, é preciso, primeiro, compreender a natureza da obra literária, seu verdadeiro modo de ser e o seu potencial como recurso. A obra literária não é um simples artefato, não se resume à presença física do texto impresso, não é apenas uma realidade mental ou a sensação vivida pelo autor ou pelo leitor, mas está além da experiência individual. O texto literário é um poderoso recurso de aprendizagem, pois tem, como matéria-prima, a palavra, o discurso, que é a essência da gestão.

Em segundo lugar, a integração entre administração e literatura pode ser uma estratégia fecunda que favorece criatividade e descoberta, já que possibilita o desenvolvimento de capacitações para sentir e conhecer. Por conseguinte, ela permite novas conexões entre redes relacionais de conteúdo que são, aparentemente, dissociadas em campos disciplinares, mas integradas no mundo real.

Em terceiro lugar, a literatura oferece incontáveis "mapas de sedução" que tornam o ensino uma atividade prazerosa, sendo inerente à disciplina, entendida como um contexto organizacional. Segundo Holmer-Paes (1975), "a disciplina deve manter a sedução de descoberta, suas idéias excitam a imaginação para descobertas posteriores".

O uso de recursos estéticos como a literatura no ensino de administração depende, por fim, de uma reorganização do professor quanto aos valores, atitudes e procedimentos em sala de aula, o que envolve dimensões epistemológicas, teorias e práticas. Razão e sensibilidade são uma difícil (mas não impossível, e talvez bem desejável) conjugação no ensino e na aprendizagem, na vida e na arte.

Artigo recebido em jun. e aceito em ago. 2007.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007

Histórico

  • Aceito
    Ago 2007
  • Recebido
    Jun 2007
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