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Democracia deliberativa: leitura crítica do caso CDES à luz da teoria do discurso

Deliberative democracy: a critical look at the CDES case through the discourse theory

Resumos

Este artigo propõe uma leitura crítica da prática da democracia em tempos atuais. Para tanto, empreende uma reflexão sobre a democracia na modernidade, em que os limites impostos pelo Estado burocrático apontam para a possibilidade do desenvolvimento mais profícuo da democracia deliberativa. Os autores observam teoricamente a prática discursiva e seu potencial democratizante, para então desvelar em que medida a orientação estratégica da ação em espaços discursivos pretensamente democráticos compromete o sentido de igualdade participativa. Para ilustrar a abordagem teórica, analisam empiricamente o caso do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), um fórum de debates entre representantes da sociedade civil e do governo, criado no início da gestão Lula no intuito de fomentar a participação da sociedade em questões do Estado. A despeito do avanço obtido na adoção de tal modelo, quando o contexto democrático é analisado à luz da teoria do discurso, surgem novas referências de análise das contradições nas quais se estabelece a prática democrática nesses tipos de fóruns. O caso do CDES revela um paradoxo: apesar de certos procedimentos da democracia deliberativa, é recorrente a orientação estratégica.

administração pública brasileira; democracia deliberativa; teoria da ação comunicativa


This article takes a critical look at how democracy is practiced today. It reflects on democracy in modern times, when the boundaries imposed by the bureaucratic state indicate the possibility of a productive development of deliberative democracy. It then observe in theory the discursive practice and its democratic potential so as to reveal to what extent the strategic direction of actions in allegedly democratic discursive spaces compromises the meaning of participatory equality. To illustrate its theoretical approach, it presents an empirical analysis of the case of Economic and Social Development Council (CDES) a forum composed by civil society and government representatives created in the beginning of the Lula administration in order to improve the participation of society in state issues. Even though the adoption of this model has represented an advance, when the democratic context is analyzed through the discourse theory there are new analytical references of the contradictions in which the democratic practice is established in these kinds of forums. The CDES case reveals a paradox: although some procedures characterize deliberative democracy, strategic orientation is recurrent.

Brazilian public administration; deliberative democracy; communicative action theory


ARTIGOS

Democracia deliberativa: leitura crítica do caso CDES à luz da teoria do discurso

Deliberative democracy: a critical look at the CDES case through the discourse theory

Fábio VizeuI; Daniel BinII

IMestre em administração pelo Centro de Pesquisa e Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal do Paraná (Ceppad/UFPR) e doutorando em administração pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eaesp/FGV). Professor do curso de administração do Centro Universitário Positivo (Unicenp). Endereço: Rua Carlota Mion, 13, ap. 04 — Campina do Siqueira — CEP 80740-660, Curitiba, PR, Brasil. E-mail: vizeu@ unicenp.br

IIMestre em administração pela UFPR e doutorando em sociologia na Universidade de Brasília (UnB). Pesquisador visitante (honorary fellow) no Departamento de Sociologia da University of Wisconsin-Madison. Endereço: The University of Wisconsin-Madison — 3407 William H. Sewell Social Sciences Building — 1180 Observatory Drive, Madison, WI, 53706, EUA

RESUMO

Este artigo propõe uma leitura crítica da prática da democracia em tempos atuais. Para tanto, empreende uma reflexão sobre a democracia na modernidade, em que os limites impostos pelo Estado burocrático apontam para a possibilidade do desenvolvimento mais profícuo da democracia deliberativa. Os autores observam teoricamente a prática discursiva e seu potencial democratizante, para então desvelar em que medida a orientação estratégica da ação em espaços discursivos pretensamente democráticos compromete o sentido de igualdade participativa. Para ilustrar a abordagem teórica, analisam empiricamente o caso do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), um fórum de debates entre representantes da sociedade civil e do governo, criado no início da gestão Lula no intuito de fomentar a participação da sociedade em questões do Estado. A despeito do avanço obtido na adoção de tal modelo, quando o contexto democrático é analisado à luz da teoria do discurso, surgem novas referências de análise das contradições nas quais se estabelece a prática democrática nesses tipos de fóruns. O caso do CDES revela um paradoxo: apesar de certos procedimentos da democracia deliberativa, é recorrente a orientação estratégica.

Palavras-chave: administração pública brasileira; democracia deliberativa;teoria da ação comunicativa.

ABSTRACT

This article takes a critical look at how democracy is practiced today. It reflects on democracy in modern times, when the boundaries imposed by the bureaucratic state indicate the possibility of a productive development of deliberative democracy. It then observe in theory the discursive practice and its democratic potential so as to reveal to what extent the strategic direction of actions in allegedly democratic discursive spaces compromises the meaning of participatory equality. To illustrate its theoretical approach, it presents an empirical analysis of the case of Economic and Social Development Council (CDES) a forum composed by civil society and government representatives created in the beginning of the Lula administration in order to improve the participation of society in state issues. Even though the adoption of this model has represented an advance, when the democratic context is analyzed through the discourse theory there are new analytical references of the contradictions in which the democratic practice is established in these kinds of forums. The CDES case reveals a paradox: although some procedures characterize deliberative democracy, strategic orientation is recurrent.

Keywords: Brazilian public administration; deliberative democracy; communicative action theory.

1. Introdução

Apesar de constituída em uma época remota, a democracia tem sido considerada um modo deliberativo e político que caracteriza fortemente a modernidade. Não há praticamente Estado no mundo atual que não se intitule "democrático", não obstante a diversidade de sistemas de governo que possam ser associados ao termo (Giddens, 1991). Hoje a democracia decepciona por conta da degradação das práticas democráticas, e um dos motivos é o sentimento dos eleitores de não estarem sendo devidamente representados (Demo, 2002a). Nesse sentido, Dahl (2000) aponta para um paradoxo: apesar de ser constatado um declínio na confiança dos cidadãos nas instituições políticas democráticas, a confiança e o desejo pela democracia em si continuam elevados. Essa lacuna entre o sistema democrático como um ideal de governo e os atuais procedimentos e mecanismos políticos pretensamente democráticos demonstra a necessidade de se repensar a própria prática democrática, especialmente no que tange a sua viabilidade empírica.

A racionalização observada na modernidade, que propugnou a impessoalidade das regras, retirou o indivíduo de cena e fez do Estado um ente superior, colocando em questão o próprio ideal democrático, já que comprometia a emancipação e criava a coerção pela racionalidade técnica e sistêmica da burocracia (Habermas, 1987). No entanto, têm surgido movimentos cuja idealização se aproxima daquilo que seria o núcleo original do conceito de democracia (Costa, 2002), uma vez que visa à participação política mais efetiva do cidadão. Segundo Giddens (1991), as democracias de nossa época têm experimentado a intensificação das atividades de vigilância no interior dos Estados-nação; esse processo tem gerado pressões crescentes para uma maior participação democrática do cidadão politizado. Esse parece ser o caso dos arranjos políticos que se associam à democracia direta e que, com isso, oferecem um contraponto à democracia representativa, chamada por Santos e Avritzner (2003) de elitista, liberal, tradicional, clássica e hegemônica.

Assim, vemos surgir no cerne dos estados contemporâneos diversos espaços de deliberação/discussão que pretendem avançar na consolidação de uma democracia mais participativa. Uma das designações atribuídas a esses espaços é a denominação "conselhos", cuja composição é dada por integrantes da sociedade civil e do governo. Constituídos especialmente em torno de grandes questões sociais — saúde, educação, segurança pública etc. — "estes conselhos foram incorporados à estrutura dos governos nacional e subnacionais, para garantir a descentralização político-administrativa e a participação da população na formulação e controle das políticas sociais setoriais" (Costa, 2002:87-88). Recentemente, no Brasil, foi constituído o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social — CDES, um fórum misto de assessoramento ao presidente da República, do qual fazem parte diferentes personalidades da sociedade civil e do governo. Sua criação foi amplamente divulgada como um esforço, por parte do governo que se estabelecia no ano de 2003, rumo à participação democrática da sociedade no processo decisório.

Este artigo verifica a dimensão e a efetividade do CDES como espaço democrático, considerando a possibilidade de aproximação entre o ideal democrático e a concretização da prática democrática. Para tanto, buscamos no modelo de democracia deliberativa de Habermas a base para a compreensão das condições que viabilizam a prática democrática no atual contexto nacional multicultural. Por meio do recente desenvolvimento da filosofia da linguagem (Habermas, 1987), o autor delimitou um novo critério de racionalidade para a prática social, de forma a constituir uma nova base epistemológica para o processo democrático (Habermas, 2002). Todavia, no mesmo sentido que provê um referencial epistemológico rico para se pensar em uma democracia deliberativa viável, a teoria comunicativa de Habermas questiona a capacidade de um determinado tipo de ação racional — estratégico — como prática adequada ao processo democrático pleno — que reside na possibilidade simultânea de emancipação e igualdade político-participativa. O intuito do artigo foi verificar no CDES a existência de ações discursivas de caráter estratégico, no sentido de contestar as condições de igualdade político-participativa que deveriam sustentar esse tipo de organização político-democrática. Nossa hipótese de trabalho é que a existência da orientação estratégica em tais espaços de participação demonstra ser apenas aparente o avanço rumo à democracia plena, já que a ação racional estratégica pressupõe uma interação coercitiva e opressora.

O presente artigo se divide em três partes: discussão sobre o desenvolvimento da prática democrática na modernidade, onde se destaca a transfiguração do ideal de igualdade e justiça a partir do advento do Estado burocrático e a recuperação do núcleo original, no qual se privilegiava a participação direta; apresentação do modelo de democracia deliberativa e dos elementos da teoria do discurso de Habermas que sustentam tal modelo; e apresentação do caso do CDES e dos resultados da análise dos dados à luz do referencial teórico apresentado nas seções precedentes.

2. A democracia na modernidade: dos limites do Estado burocrático ao retorno da participação direta

Apesar de marcadamente inspirado na Antigüidade, o conceito moderno de democracia assume diferenças substanciais com a concepção grega (Sartori, 1994). A mais significativa diz respeito à forma como a democracia era operacionalizada em ambos os períodos históricos, ou seja, a participação direta na Antigüidade e a representação na era moderna — apesar de existirem questionamentos quanto ao escopo participativo na democracia ateniense, fato este que põe em dúvida o seu caráter "direto" (Sartori, 1994). De qualquer modo, essa diferença entre a concretização democrática da antigüidade e a da era moderna abarca aspectos mais profundos, relacionados com o contexto social em que as duas concepções históricas de democracia eram aplicadas. A polis grega era uma instituição relativamente simples, por isso a concepção de um "governo do povo" na era antiga era muito mais factível do que na era moderna. Nesta última, a complexidade social se acentuava cada vez mais, pelo crescente pluralismo de classes sociais (Rémond, 1997) e pelo surgimento de uma estrutura administrativa sofisticada e independente: o governo estatal, que se desenvolveu graças à crescente necessidade de controle e coordenação da vida pública. É certo que o desenvolvimento do Estado moderno como instituição reificada ocorreu graças ao advento do modo capitalista de produção (Saes, 1993); também é correto afirmar que, entre a democracia grega e a moderna, é esta entidade social reificada que surge como fator diferencial determinante. De acordo com Sartori (1994:35)

a democracia antiga era concebida numa relação intrínseca, simbiótica, com a polis. E a polis grega não tinha nada da cidade-estado como estamos acostumados a chamá-la — pois não era, em nenhum sentido, um "Estado". A polis era uma cidade-comunidade, uma koinomía. Tucídides definiu-a com três palavras: ándres gar polis — os homens é que são a cidade. É muito revelador que a politéia tenha significado, ao mesmo tempo, cidadania e estrutura (forma) da polis. Assim, quando falamos do sistema grego como um Estado democrático, estamos sendo grosseiramente imprecisos, tanto terminológica quanto conceitualmente.

A partir da construção histórica de instituições como o Estado e o modo capitalista de produção, a democracia se constituiu na era moderna em bases muito diversas da sua concepção original. Nesse sentido, outro processo histórico se destaca, justamente pela forte correlação com ambas as questões. Esse processo foi a racionalização da sociedade, que Weber (1982) denominou "desencantamento do mundo". A ideologia democrática moderna foi inicialmente condicionada pelos interesses de igualdade e de justiça social, que somente puderam ser concretizados por meio do estabelecimento de um Estado de Direito, que se realizou pela institucionalização de um sistema jurídico complexo e formal, consolidado em bases racionais-legais. De acordo com Weber (1982), significaram o desenvolvimento de uma nova forma de poder e autoridade para a época, fundada na legitimidade da lei racionalmente constituída. A orientação racional-legal foi o traço mais marcante de todo o processo de modernização do mundo ocidental. Tal processo está imbricado com a questão econômica, tendo-se conta que a racionalização destacada por Weber é aquela do cálculo utilitário de conseqüências, onde os aspectos morais não são considerados, justamente por se tratar do tipo de racionalidade envolto na esfera objetiva do mundo social, das relações utilitaristas e causais (Habermas, 1987). Se a democracia como ideal se estabelece em uma esfera deôntica, não se pode conceber uma ação social fundada na racionalidade instrumental como democrática (Habermas, 2002). Na verdade, quando todo o debate sobre a democracia na modernidade se fundamenta em princípios técnicos — mesmo que justificado por um interesse pragmático, preocupado com a viabilidade democrática em nosso tempo — a construção de caminhos para a efetivação democrática que dos debates resulta é epistemologicamente pobre (DeLeon, 1994).

Para Santos e Avritzner (2003), o surgimento de formas complexas de administração estatal — burocracias — levou à não-prevalência da gestão participativa imaginada por Rousseau. Assim, o processo de racionalização redundou em um novo tipo de dominação — antes o patrimonial, agora o burocrático — que, à sua maneira, também imporia limites à liberdade dos indivíduos em sociedade e à participação deles nos assuntos do Estado. Segundo Touraine (1994), as sociedades modernas estão muito distantes da libertação propalada com a modernidade. Mesmo com o sistema da representatividade vemos a não-conformação da vontade do cidadão, pois a gestão burocrática do Estado suprime a liberdade política individual em nome de um pretenso interesse da coletividade, justificada pela competência técnica. Em suma, constituída no sentido liberal, a lógica da representatividade fomenta uma falsa dicotomia entre o direito individual e a vontade coletiva (Wheatley, 2003), entre o apetite do individualismo e a viabilidade de uma sociedade econômica (Habermas, 2002).

É assim que a democracia da modernidade se sustenta pelo Estado burocrático, e isso é marcante na definição de uma orientação racional-instrumental na concretização desse tipo de democracia. Sob o ponto de vista do Estado burocrático, a democracia, como valor igualitário, é ambígua, visto que a racionalização que sustenta a burocracia é coercitiva. Para Weber (1982:260), a lógica racional puramente utilitarista e técnica da burocracia faz com que esse tipo de administração corresponda mesmo a um mecanismo de viabilização de uma democracia própria às sociedades de massa:

a burocracia acompanha inevitavelmente a moderna democracia de massa em contraste com o governo autônomo democrático das pequenas unidades homogêneas. Isso resulta do princípio característico da burocracia, a regularidade abstrata da execução da autoridade, que por sua vez resulta da procura de "igualdade perante a lei" no sentido pessoal e funcional — e daí, do horror ao privilégio, e a rejeição ao tratamento dos casos "individualmente".

Mesmo sendo a burocracia estatal favorável à operacionalização de uma democracia das sociedades de massa, é preciso ressaltar que essa uniformização dos indivíduos é paradoxal pois, ao mesmo tempo que viabiliza a igualdade a partir da norma, se estabelece de forma impositiva. Por esse motivo a democracia representativa sustentada pelo Estado burocrático é limitada, porque na prática constringe a individualidade do sujeito — negando a vontade particular — em nome do interesse coletivo — que deveria ser o reflexo do interesse individual.

Assim, a crítica ao sistema burocrático de administração e poder público resulta em uma crítica à própria democracia representativa. É assim que certos autores da ciência política têm explicitamente vinculado a bancarrota da democracia moderna ao tecnicismo provocado pela racionalidade instrumental (Touraine, 1994; Bobbio, 2000). Ainda a partir do desenvolvimento do Estado burocrático, a democracia como ideal original — o governo de todos — se transfigura em uma oligarquia tecnicista que, apesar de abarcar estruturas políticas específicas para salvaguardar a vontade coletiva — a escolha dos representantes pelo voto —, não garante o cumprimento da vontade e liberdade individuais.

A partir desse quadro histórico observamos que, mesmo tendo a democracia moderna se constituído a partir de um radical ideal de "igualdade política e econômica, de forma que ninguém possa submeter seu semelhante" (Held, 1987:78), este não se concretizou, devido à transfiguração do sistema político em um sistema burocrático e tecnicista, onde a representatividade pura e simples não garante a emancipação do cidadão e a justiça. Por isso, recentemente vem surgindo um movimento social e intelectual que visa recuperar o núcleo original da prática democrática, ou seja, a participação direta da sociedade civil no processo decisório (Costa, 2002). Para que a participação direta seja viável empiricamente, ela vem se processando em pequenos espaços públicos, constituídos exclusivamente para essa prática política e que estão, de alguma forma, agregados à macroestrutura política, servindo de contraponto ao sistema democrático representativo e à burocracia estatal. O sentido "alternativo" dos recentes mecanismos de participação direta pode ser medido pela nítida associação desse processo com a crescente mobilização da sociedade civil em grupos de interesse constituídos para a defesa de demandas sociais que vêm sendo negligenciados pela gestão pública — por exemplo a questão da segurança pública — ou mesmo para a defesa dos interesses das minorias — como as questões indígena e do homossexualismo (Wheatley, 2003).

De acordo com Santos e Avritzner (2003), o Brasil, como a Índia, é um dos países em que as potencialidades da democracia participativa mais se manifestam. No Brasil, uma das iniciativas mais conhecidas de participação popular em decisões do Estado é o orçamento participativo de Porto Alegre, que começou no final da década de 1980. Todavia, outra forma interessante de democracia deliberativa vem sendo adotada no país: os conselhos sociais, uma iniciativa que visa à integração entre membros do Estado e da sociedade civil no processo decisório da gestão pública, seja de forma efetiva ou consultiva. Esses conselhos atraem os pesquisadores pelo reconhecimento do seu potencial de maior democratização dentro dos estados burocratizados (Costa, 2002).

Um aspecto importante nesses conselhos sociais é a heterogeneidade dos participantes. Geralmente, são membros de diferentes grupos de interesse — que muitas vezes adotam posturas políticas diversas —, mas assumem uma responsabilidade compartilhada em relação à questão que dá ensejo à formação do conselho (Costa, 2003). Com a dinâmica e os procedimentos discursivos e decisórios querendo ser a essência do processo democrático nos conselhos sociais, Costa (2003) recupera o entendimento de Dahl (2000) sobre democracia procedimental para explicar quais seriam os critérios de igualdade que viabilizariam uma relação democrática não-contraditória, ou seja, que atenderiam ao requisito de igualdade sem se valer de mecanismos coercitivos, como ocorre no modelo democrático representativo do Estado burocrático. De acordo com Costa (2003:104-105),

a democracia procedimental pode ser entendida como um método a ser seguido quando as pessoas se associam com o objetivo de decidir sobre questões de interesse comum. O método supõe o compromisso para com as decisões tomadas, desde que sejam obedecidas as regras discutidas e estabelecidas em comum, em torno da definição de uma agenda, para a tomada de decisões relativas a esta agenda. O método será democrático, isto é, conduzirá a democracia, se adotar procedimentos compatíveis com os seguintes critérios: igualdade política, participação efetiva, qualificação necessária à escolha de decisões adequadas e controle final da agenda.

Devido à omissão no modelo de Dahl (2000) no que tange à teorização de uma pragmática dos procedimentos democráticos, recorremos ao modelo de democracia deliberativa de Habermas, já que este se apresenta a partir de uma elaborada teoria de ação social (Habermas, 1987, 2002). É importante destacar que Costa (2003) já havia sinalizado a complementaridade entre as propostas da democracia procedimental e da democracia deliberativa, apesar da autora não aprofundar os aspectos teóricos que sustentam a prática discursiva que viabiliza tais modelos democráticos.

3. O processo democrático do ponto de vista do discurso

A democracia deliberativa é um tipo de entendimento sobre o processo democrático centrado na prática discursiva, onde a argumentação racional e os procedimentos eqüitativos para a participação discursiva e decisória são os critérios de igualdade democrática. Nesse tipo, a igualdade é concebida exclusivamente sob o ponto de vista político, já que pressupõe as diferenças naturais da individualidade dos sujeitos participantes. Não exclui a natureza individual em nome da coletividade, como pretende o requisito da vontade da maioria no modelo da democracia representativa. Como salienta Wheatley (2003:511),

reconhecer a natureza da democracia como deliberação e não como agregação não é um argumento para a reconstrução da democracia liberal, mas sim para um entendimento diferente de como ela funciona. Um entendimento deliberativo da democracia demanda que os membros exponham não simplesmente de acordo com eles mesmos, na medida de liberdade e justiça que eleições podem promover, mas também com relação à igualdade política, a representação e a consideração da perspectiva e interesses das minorias.

A democracia deliberativa privilegia, sobretudo, o reconhecimento do outro como um sujeito com direito de fazer valer a sua vontade individual dentro de um processo que visa ao acordo coletivo. Apesar de aparentemente utópica, essa premissa se fundamenta na possibilidade de aceitação ou não da argumentação dos "outros" falantes, e na reconsideração dos próprios motivos e alegações tendo por base outros motivos mais razoáveis que os "nossos". Habermas (1987, 2002) considera que, se no debate prevalece o reconhecimento dos sujeitos políticos capazes dentro do processo deliberativo e se a argumentação tem por critério a racionalidade intersubjetivamente compartilhada, o consenso é obtido sem que se valha de algum recurso coercitivo. Mas o tipo de racionalidade que foi predominante no processo de modernização do mundo — a razão de meios em relação a fins, do cálculo utilitário de conseqüências — não é adequado como critério de racionalidade para a democracia do tipo deliberativo. Porque, para Habermas (1987), apesar da razão instrumental fundamentar adequadamente apenas o sentido teleológico de uma ação, ela se torna inadequada no processo da intersubjetividade, justamente por não privilegiar todos os critérios de validez presentes em uma relação interpessoal. Por considerar a comunicação fundamento explicativo para os critérios da racionalidade plena, Habermas (1987) denominou como "racionalidade comunicativa" a que permite o acordo sem coerção. Vejamos quais são os aspectos considerados por esse autor para a elaboração conceitual da razão comunicativa.

De acordo com a perspectiva pragmático-lingüística habermasiana, todo ato de fala tem uma significação. Agir por meio da fala significa dizer que a práxis do ponto de vista lingüístico sempre tem um sentido — do ponto de vista do agente, uma intenção; do ponto de vista do ouvinte ou de um observador, uma interpretação do ato. Em uma relação sujeito-objeto, o sujeito intervém na realidade objetiva para satisfazer sua vontade — ação monológica. Em interações entre sujeitos, se considerarmos todos os participantes como detentores de vontade e capazes de práxis, existe pelo mais de uma orientação significante — ação dialógica — e para que exista a plenitude das vontades satisfeitas e das verdades aceitas, é necessário o acordo intersubjetivo.

De acordo com Habermas (1987), a estrutura universal do ato de fala pressupõe dois tipos distintos de intenção: o êxito da ação lingüisticamente mediada, quando se espera por meio da fala intervir e alterar algo na realidade exterior ao sujeito; e o entendimento dos significados entre os sujeitos participantes que, de acordo com os analistas da estrutura do ato de fala, é preliminar ao sentido teleológico da comunicação. Sendo o ato de fala uma ação de construção intersubjetiva de significados, a comunicação natural pressupõe um acordo entre os sujeitos quanto ao significados das proposições faladas. Nesse sentido, Habermas (1990:71, grifo nosso) constitui dois tipos fundamentais de ação social lingüisticamente mediada:

os tipos de interação distinguem-se, em primeiro lugar, de acordo com o mecanismo de coordenação da ação; é preciso saber, antes de mais nada, se a linguagem natural é utilizada apenas como meio para transmissão de informações ou também como fonte de integração social. No primeiro caso trata-se, no meu entender, de agir estratégico; no segundo, de agir comunicativo. No segundo caso, a força consensual do entendimento lingüístico, isto é, as energias de ligação da própria linguagem, tornam-se efetivas para a coordenação das ações, ao passo que no primeiro caso o efeito de coordenação depende da influência dos atores uns sobre os outros e sobre a situação da ação, a qual é veiculada através de atividades não lingüísticas.

Para Habermas (1987), a contradição nas relações sociais em nossa sociedade se explica em primeiro plano pelo uso estratégico da linguagem, dado pela orientação teleológica — ao êxito — do ethos racional-instrumental predominante na modernidade. A racionalidade do cálculo utilitário de conseqüências somente abarca sentido sob o ponto de vista de uma relação causal entre sujeito e objeto — nesse caso, quando a interação é social, um dos sujeitos representa o objeto a ser manipulado para a obtenção de um fim; aí, a ação racional-instrumental é monológica, justamente por ser estratégica. Já na ação comunicativa, "os atores buscam entender-se sobre uma situação e ação para poderem assim coordenar de comum acordo seus planos de ação e com eles suas ações" (Habermas, 1987:124).

Para que haja a ação comunicativa — situação ideal de fala — Habermas (1987) apresenta a idéia de pragmática universal. O autor considera que para satisfazer as três diferentes esferas de mundo da realidade social — a realidade objetiva, a subjetiva e a normativa — é necessário que o ato de fala pleno seja capaz de estabelecer:

veracidade — o que é dito deve ser verdadeiro;

sinceridade — a intenção explicitada deve ser autêntica;

retidão — as normas sociais a que se recorre devem ser válidas para todos os participantes;

inteligibilidade, ou seja, o proferimento deve ser claro.

Por outro lado, sendo a ação estratégica uma forma de manipulação — consciente ou inconsciente —, para que haja acordo sem entendimento das pretensões reais, deve haver distorção comunicativa. Assim, a ação estratégica deve manipular os sentidos de verdade, de sinceridade, de retidão e de inteligibilidade nas interações lingüísticas. Por exemplo, na área organizacional — onde a orientação racional-instrumental predomina, Forester (1994:140) descreve a distorção comunicativa assim:

as organizações podem adulterar fatos ou noticiar falsamente. Podem exigir um precedente autorizado, direitos ou uma habilidade onde elas não têm nada. Podem enganar seus clientes para proteger prerrogativas organizacionais ou enganar o público para proteger ou intensificar ganhos próprios. Como organizações a serviço do homem, podem distrair a atenção das necessidades sociais básicas e restringir programas públicos para resultados mais limitados.

A partir do modelo de ação social apresentado por Habermas (1987), igualdade entre sujeitos significa plenitude na ação social intersubjetiva, obtida exclusivamente pelo tipo comunicativo, tendo em vista a contradição da ação racional orientada para o êxito e a sua subjacente necessidade de distorção comunicativa em atos de fala do tipo estratégico. Nessa perspectiva, as democracias representativas nos Estados burocratizados, por serem constituídas por bases racionais-instrumentais — privilegiando, assim, a ação estratégica —, deturpam o sentido libertário na relação entre cidadãos. Assim, a partir da teoria do discurso, o conceito de liberdade democrática toma um novo rumo, centrado na participação por meio do debate e na construção racional comunicativa das questões, sendo este teor racional expandido pela noção de realidade impressa na ação comunicativa (Habermas, 1987). De acordo com a teoria do discurso, "procedimento e pressupostos comunicacionais da formação democrática da opinião e da vontade funcionam como importantes escoadouros da racionalização discursiva das decisões de um governo e administração vinculados ao direito e à lei" (Habermas, 2002:282).

Outro aspecto diretamente relacionado com a questão democrática é o fato da reciprocidade ser algo central na teoria habermasiana e isso ocorre em dois sentidos. Primeiro, a recuperação de uma dimensão ampla do sujeito — dada pela noção de intersubjetividade como foco central da natureza humana — permite a emancipação via interação social. Segundo, a concepção de uma relação sujeito-sujeito em contraposição à relação sujeito-objeto — dada pelos modelos de ação comunicativa e ação estratégica, respectivamente — permitiu uma mudança de foco que poderá dar solução aos principais impasses na operacionalização da democracia na modernidade.

Assim, na democracia deliberativa, o acordo seria obtido tendo como critério a ação comunicativa, que reconhece no outro sua condição de sujeito competente, ou seja, reconhece a igualdade política e se vale da busca pela significação em todas as suas esferas possíveis, inclusive buscando a inteligibilidade. Por outro lado, por se fundar apenas no êxito objetivo, a ação estratégica é opressora por definição e, por isso, se contrapõe aos princípios da democracia deliberativa. Na verdade, esse tipo de ação é utilizado como mecanismo manipulativo em espaços pretensamente democráticos, e aí se encontra um importante critério para a crítica a muitos espaços discursivos ditos democráticos. A partir daí, retomamos a questão dos conselhos sociais considerados espaços profícuos para a democracia deliberativa com uma questão. Se existir uma orientação estratégica em tais espaços de participação, o avanço rumo à democracia plena é apenas aparente? Por isso, investigamos o CDES, para verificar em que dimensões ali se estabelecem a ação comunicativa e a ação estratégica, para constituir um entendimento crítico sobre a efetividade do conselho como agente de democratização no cenário político brasileiro. De resto, as análises empreendidas nesse caso são elucidativas por indicarem dificuldades e limitações de se estabelecer um sistema de democracia deliberativa, que deve ser tomado como um modelo ideal-típico (Costa, 2003).

4. Procedimentos metodológicos

A parte empírica deste artigo foi delineada a partir de um formato essencialmente ideográfico, que visa manter a necessária consistência epistemológica em relação ao quadro teórico de referência utilizado. Os procedimentos empregados na elaboração deste artigo foram de natureza descritivo-qualitativa, por serem indicados para se compreender o fenômeno social sob estudo e suas especificidades de modo aprofundado (Goldenberg, 2003; Haguette, 2003), tendo em vista as inter-relações complexas dos acontecimentos (Stake, 1995). O objetivo, por envolver temas como cidadania, participação e envolvimento, demanda pesquisa qualitativa (Demo, 2002b).

O método de pesquisa foi o estudo de caso, análise que considera a unidade social como um todo (Goldenberg, 2003) e supõe a possibilidade de se conhecer adequadamente um fenômeno a partir da sua intensa exploração (Becker, 1999).

Em relação à coleta dos dados empíricos, foram utilizados dois tipos principais de fontes: documentos e entrevistas semi-estruturadas. Os documentos consultados envolveram legislação sobre o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social — CDES, atas de reuniões, cartas de concertação, programa de governo, entre outros dados disponíveis nos sites do CDES e da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social — Sedes, na internet.

As entrevistas foram realizadas com membros — conselheiros e suplentes — do CDES, de diversas esferas de atuação, e com um funcionário da Sedes. Eles foram selecionados de modo intencional, considerando-se as oportunidades de acesso, a disponibilidade para prestar informações e a receptividade ao trabalho por parte de potenciais informantes. À exceção da entrevista com o servidor da Sedes, todas as demais tiveram seu conteúdo gravado com autorização dos entrevistados. Foi possível também efetuar observação direta por meio da participação, como pesquisador, na reunião de um dos grupos de acompanhamento constituídos no âmbito do CDES.

Para verificar como o conselho se estrutura em relação à sua lógica discursiva — se ela se aproxima do modelo dialógico da ação comunicativa ou de um modelo estratégico de influência por parte de grupos —, os dados disponíveis foram analisados por meio de análise de conteúdo de cunho hermenêutico. Para a validação dos dados obtidos foi utilizada a técnica de triangulação que, segundo Stake (1995), consiste em obter informações adicionais visando revisar e confirmar interpretações extraídas dos dados já coletados. Para as entrevistas, foram comparadas as respostas obtidas a fim de associar experiências dos diversos entrevistados e checar os comentários de uns com os de outros (Seidman, 1998).

5. Apresentação e análise do caso CDES

Constituído no início do governo Lula, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social — CDES é um espaço público não-estatal que atua como órgão consultivo e de assessoramento do presidente da República. Segundo o servidor da Sedes, o Conselho procura tornar as decisões do governo baseadas num caráter amplo e plural, que seria obtido por meio da participação da sociedade. É uma forma de atenuar efeitos de problema típico da democracia representativa, ou seja, após a eleição o governante tender a decidir de forma distanciada da sociedade civil. O CDES possibilita resgatar a democracia naturalmente limitada pelo sistema representativo, já que procura ouvir a sociedade que, dessa forma, tem a oportunidade de participar de decisões do governo. Ao se referir às reformas constitucionais que o governo decidiu implementar no início de seu mandato, o presidente da República situou o CDES como um dos

espaços públicos não-estatais, em que as pessoas podem opinar e divergir, para, ao final, sentirem-se partícipes das decisões. O exercício da democracia é complexo, difícil, no entanto é pelo processo democrático do diálogo e do contraditório que se obtém a certeza do convencimento para a tomada de decisões. É pelo diálogo que se chegará a um novo pacto com a sociedade para as soluções dos graves problemas do país e para a definição de políticas públicas.

Em termos normativos — legislação1 1 Decreto no 4.744/2003, de 16 jun. 2003. Dispõe sobre a composição e funcionamento do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social — CDES, e dá outras providências. Disponível em: < www.presidencia.gov.br/casacivil/site/static/le.htm>. Acesso em: 24 abr. 2005. —, ao CDES compete "assessorar o presidente da República na formulação de políticas e diretrizes específicas, voltadas ao desenvolvimento econômico e social, produzindo indicações normativas, propostas políticas e acordos de procedimento". Como se pode perceber, o CDES tem função consultiva e não-deliberativa, logo, seus encaminhamentos não necessariamente se transformam em ações do governo, cabendo a este a faculdade de acatar ou não tais proposições.

A origem do CDES remonta à campanha da eleição presidencial do ano de 2002, quando o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva lança a proposta de criação de um conselho com vistas à construção de um novo contrato social por meio do diálogo entre diversos segmentos da sociedade brasileira. No programa de governo constava:

O Conselho de Desenvolvimento Social terá como atribuição coordenar, definir metas e desenhar instrumentos de incentivos para a estratégia do governo federal de inclusão social. A partir do estabelecimento de metas sociais, o Conselho atuará na implementação articulada e integrada dos programas nacionais de enfrentamento da pobreza, do desemprego, da desigualdade de renda e das carências educacionais.

Observando a idéia original, constatamos que, diferente daquela concepção, o Conselho foi constituído a partir de uma idéia mais ampla. Além das questões sociais da concepção original serem presentes nas discussões do CDES, a explicitação da prioridade pelas classes mais pobres que constava na idéia original agora dá lugar a um objetivo formal do CDES de promover a concertação nacional com vistas a um novo contrato social entre os diversos segmentos e classes sociais capaz de promover o desenvolvimento econômico e social. Observe que, no nome do Conselho, diferentemente da proposta original, consta o termo "econômico".

Composto por 90 membros de diversos setores da sociedade — empresários, trabalhadores, intelectuais e representantes de movimentos sociais e do terceiro setor —, o CDES é um fórum que se propõe a articular representações da sociedade civil por meio de conselheiros que representam diversos segmentos socioeconômicos. Além dos membros oriundos da sociedade civil, 12 ministros de Estado compõem o Conselho, além do presidente da República, que preside o CDES. Em termos de representatividade, a presença majoritária de membros de fora do governo pode ser vista como tentativa de dar ao CDES um caráter pluralista e participativo. Por outro lado, parece contrariar essa idéia o fato de que dos 90 membros titulares, metade é ligada ao segmento empresarial. Sobre esse aspecto, um dos conselheiros, se reportando à criação do CDES, disse imaginar que "num momento difícil que Lula já tem o apoio dos movimentos sociais, vamos dizer, da esquerda que o elegeu, o Conselho seria o lugar pra ele obter o apoio do empresariado".

Estrutura básica de funcionamento e dinâmica discursiva

O CDES é formado por diferentes ambientes de discussão: o Pleno, que reúne todos os seus membros, é a composição responsável por definir o posicionamento do Conselho sobre os temas apreciados; os grupos temáticos que, por terem prazo determinado de existência, fazem propostas de pareceres ou elaboram propostas sobre assuntos em tramitação no CDES, ou seja, é o espaço de discussão, onde as análises são aprofundadas para posterior apreciação por parte do Pleno; e os grupos de acompanhamento que, sem prazo determinado de existência, têm a atribuição de acompanhar temas específicos. Quando necessário, são realizados diálogos regionais e colóquios para se discutir temas pontuais ou que não sejam considerados pertinentes de discussão nos demais fóruns. A pauta de discussões do Conselho pode ser sugerida pelo presidente da República ou pelos próprios conselheiros, que podem fazê-lo de forma individual ou em grupo.

Antes de se iniciar as discussões no Pleno, o tema definido como foco da reunião é apresentado pelo ministro de Estado responsável pelo assunto no governo. Na seqüência, três conselheiros, oriundos de diferentes segmentos sociais, escolhidos previamente, têm a oportunidade de se manifestar sobre o mesmo tema. Após essas três intervenções, o ministro retoma a palavra para concluir o assunto, procurando responder aos conselheiros. Finalmente, os demais conselheiros podem se manifestar sem que haja qualquer limitação para a quantidade de pronunciamentos.

Esse formato das discussões tem sofrido reparos por parte de conselheiros que vêem no processo dificuldades para se construir propostas nascidas no próprio CDES, uma vez que privilegia a discussão entre governo e conselheiros, em prejuízo de debate entre conselheiros. Para um dos membros do CDES ouvidos, essa dinâmica é "um diálogo dos conselheiros (...) reagindo à fala governamental, mas não tem uma metodologia que permite a fala, a discussão entre os conselheiros, entre as falas dos conselheiros, e isso possibilitaria, por exemplo, tentar construir alguns consensos".

Outro problema se relaciona ao próprio diálogo entre governo e conselheiros. Na sexta reunião do Pleno, o conselheiro José Moroni, ligado à esfera dos movimentos sociais, propôs "iniciar as reuniões com algumas falas de conselheiros, pois iniciamos com 12 ministros e estamos com dois na fala dos conselheiros". Na reunião anterior, o conselheiro Ricardo Young, empresário, já tratara do assunto protestando contra a ausência de ministros, cuja presença, segundo ele, era importante para tornar o debate mais interessante. Segundo um de nossos entrevistados, "quando o presidente sai, eles [ministros] também saem. Raramente ficam. Raramente. Muito raramente". Esse entendimento é reforçado pela reivindicação do conselheiro Luis Aimberê feita na sexta reunião do Pleno. A ata daquela reunião registra uma passagem em que ele "reivindica formato diferente das reuniões, para que alguns conselheiros possam falar no início, e não no final, o Conselho deve ser mais ouvido".

Os encaminhamentos definidos pelo CDES, todos destinados ao presidente da República, são formalizados contendo, cada um deles, um dos seguintes indicadores de posicionamento do Conselho: consenso; recomendação, quando for um entendimento da maioria dos conselheiros; ou sugestão, quando for um entendimento de alguns dos conselheiros. A atribuição desse indicador não se dá por votação, mas por meio da interpretação do secretário-executivo do CDES, papel desempenhado pelo secretário da Sedes. Segundo um dos entrevistados, servidor da Sedes, na filosofia do CDES o voto não é considerado um meio adequado para se chegar à decisão; a idéia é atuar na busca do consenso, tanto que, até hoje, prossegue o entrevistado, nenhum encaminhamento foi definido por meio de votação.

O CDES demonstra ser um fórum de discussão bastante complexo, marcado por conflitos e divergências de idéias, que, aliás, seriam naturalmente presentes num grupo tão heterogêneo em termos das representações que ali se encontram e que, historicamente, tendem ao antagonismo.

Nos debates é marcante a defesa de pontos afetos ao conselheiro que se manifesta: empresários reclamam da carga tributária incidente na produção e das taxas de juros que também, segundo eles, oneram os setores em que atuam; sindicalistas reclamam de questões salariais e da tributação sobre os trabalhadores; professores universitários reivindicam mais recursos para pesquisa; e o segmento social reivindica mais ação do governo em políticas de proteção social. Desse modo, o CDES, em alguns momentos, se configura como fórum mais de reivindicações particulares do que de construção de políticas públicas nacionais conforme pensado originalmente. Para um dos conselheiros entrevistados, ligado à esfera do trabalho, há no CDES "grupos, e todos eles têm interesses, cada qual tem o seu objetivo a alcançar". Para outro, ligado aos movimentos sociais, "são bem definidos sim os interesses, para mim são claros os interesses que estão ali, tanto os interesses corporativistas, como os interesses de classes também, não há dúvida sobre isso". Um dos exemplos citados por esse conselheiro foi o da reforma da previdência, onde havia uma clara cisão em três grupos principais: o empresariado, que focalizava a questão de previdência privada como uma oportunidade de negócio; o movimento sindical, que visava à manutenção de direitos dos trabalhadores do mercado formal; e o movimento social, que levantou a questão das pessoas que trabalhavam na informalidade e, por isso, estavam fora do sistema de previdência.

No diálogo interno, as posições políticas e ideológicas, sejam do governo, sejam de conselheiros, são defendidas e criticadas de forma consideravelmente aberta e transparente, conforme mostram as atas de reuniões do Pleno. Um exemplo é a política econômica, mais especificamente a questão dos juros básicos da economia, que é assunto recorrente nas discussões e muitas vezes objeto de críticas, às vezes severas, por parte dos que a vêem como restrição ao desenvolvimento do país.

Procedimentos que comprometem a interação discursiva

Conforme vimos, a principal atribuição do CDES é de assessoramento ao presidente da República, logo, os encaminhamentos do Conselho podem ou não ser acatados pelo governo. No momento que entrevistamos o servidor da Sedes, duas questões se destacavam no debate nacional: o reajuste do salário mínimo e a taxa de juros básicos da economia. Sobre isso, o entrevistado disse: "se vier uma recomendação sobre o salário mínimo (maior que o valor definido pelo governo) ou sobre a (redução da) taxa de juros, eu tenho certeza que o presidente não vai acatar". Essa clareza também há dentro do CDES; para um dos conselheiros que ouvimos, "nunca nós podemos deixar e esquecer que o Conselho é um órgão de assessoramento ao presidente da República". Há reclamações de membros do CDES sobre posições do Conselho não se transformarem em ações do governo. Por exemplo, na sexta reunião do Pleno do CDES, o conselheiro Antoninho Trevisan, empresário, disse que ao se discutir a "reforma tributária, houve um compromisso em torno da simplicidade do sistema, do não aumento da carga, do não constrangimento da atividade industrial", no entanto, "a análise da Lei no 10.833/03 aponta para o caminho contrário às indicações deste Conselho". Para a conselheira Sônia Fleury, o CDES

é uma das principais inovações do governo Lula, no sentido de aprofundar e dar um outro sentido à democracia. No entanto, há uma crescente, e acho que enorme, frustração da sociedade na medida em que as promessas, os acordos, inclusive que são feitos nesses fóruns, não têm sido cumpridos. Então, promessas, que foram acordos assumidos pelas autoridades governamentais aqui conosco, não têm sido cumpridas.

Nesse cenário, podemos questionar se o CDES tem sido utilizado mais como espaço para o governo apresentar propostas do que para promover a construção conjunta de soluções. Segundo um dos conselheiros, ligado à esfera dos movimentos sociais, "já no momento da reforma da previdência, o Conselho passou a ser não um espaço de negociação, mas um espaço no qual o governo expunha suas idéias para a sociedade para obter legitimidade, não pra ouvir". Para ele, "isso ficou muito claro, por exemplo, na política industrial. O governo chegou com um plano de política industrial, ninguém nos mandou o plano antes". Outro membro do CDES, ligado ao meio empresarial, com o mesmo entendimento sobre a reforma da previdência, afirmou ainda que "quando se discutiu a questão da reforma tributária, veio o projeto do governo para ser discutido dentro do CDES", ou seja, não foi construído, mas apreciado pelo CDES. O mesmo entrevistado criticou a atitude do governo de colocar a questão para ser analisada pelo Conselho em apenas um dia, o que, segundo ele, não poderia ocorrer dada à magnitude e complexidade do tema. No caso da reforma da previdência, matérias como instituição de teto remuneratório, elevação da idade mínima de aposentadoria, redução do valor das pensões e contribuição dos inativos são alguns exemplos sobre os quais a ata da reunião do Pleno que analisou o relatório encaminhado ao presidente da República não mostra nenhum consenso. Tais matérias constaram na proposta de reforma encaminhada pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo, indicando aí a preponderância do posicionamento do governo, a despeito da falta de consenso no CDES.

De modo geral, os exemplos acima fornecem indícios de uma lógica estratégica, conforme demonstrado por Forester (1994). Nesses casos, o governo parecia mais estar em busca de apoio e legitimação para suas idéias do que efetivamente procurando formatar propostas de reformas advindas do diálogo com representantes da sociedade. No caso das reformas previdenciária e tributária, segundo Fleury e Alves (2004:1007, grifo nosso), no CDES o governo usou a tática de buscar o acordo mínimo possível e, num episódio altamente simbólico, em que o presidente da República se dirigiu ao Congresso com as propostas de reformas acompanhado por membros do Conselho e pelos governadores dos estados, "demonstrou o espírito de consenso que o governo quis imprimir aos dois projetos". Essa estratégia serviu, de acordo com as autoras, como forma de reduzir pressões de congressistas por barganhas de cargos e verbas públicas e, no caso da demonstração de espírito de conciliação, como meio de atenuar os impactos das críticas de parlamentares governistas incomodados em votar pontos historicamente combatidos quando estavam na oposição.

A questão econômica é um importante indicativo do quanto o CDES tem sido preponderantemente platéia do ponto de vista do governo. Ou seja, o governo discute, porém de forma refratária às reivindicações por mudanças que, no entendimento de alguns conselheiros, seriam necessárias ao desenvolvimento do país. O discurso de membros do governo é o do incentivo ao diálogo, como, por exemplo, na sétima reunião do Pleno, na qual o ministro da Fazenda disse:

gostaria muito de receber de vocês críticas, sugestões, proposições, porque é a consolidação da nossa agenda na área do desenvolvimento econômico. A propósito, nós gostaríamos de ter com este Conselho um diálogo bastante franco, bastante consolidado, para que essa agenda possa avançar de maneira efetiva.

No entanto, na décima reunião, em que, a exemplo de outras, a área econômica do governo defendeu fortemente a atual política econômica, alguns conselheiros externaram sua percepção sobre a pouca efetividade dos diálogos ali travados a ponto de repercutirem nas posições da área.

Nesse debate, o posicionamento e o discurso da equipe econômica indicaram que o caminho não deve mudar. Para o presidente do Banco Central,

os números que estamos vendo, os indicadores físicos de crescimento, não só numéricos, mostram que o país está crescendo, o país está aumentando a produção, o país está aumentando os empregos, a arrecadação pública está aumentando, o que permite ao governo, portanto, ter melhores condições de fazer política social e isso está dando condições para que, ao contrário do passado, não se tenha uma chamada bolha de crescimento.

Do outro lado do debate, conselheiros representantes da sociedade civil, críticos da ortodoxia da equipe econômica, evidenciaram o convencimento de que, nesse tema, as posições do CDES são praticamente nulas em termos de capacidade de provocar alguma mudança. O conselheiro Antoninho Trevisan, empresário, analisou a décima reunião do Pleno da seguinte forma: "esta é uma reunião onde parece que barreiras intransponíveis estão sendo estabelecidas, o que leva a sensação de que cada um dos conselheiros acha que a discussão não vale a pena porque os pressupostos já estão dados pelo governo (grifo nosso) e eles são irremovíveis". Nessa mesma reunião, a conselheira Jurema Werneck disse:

tenho participado do Conselho e acho que essa é a primeira vez que fico com dificuldade de achar as palavras para traduzir o meu pensamento. E a minha dificuldade, na verdade, é movida por um profundo desencanto. É o desencanto da sensação de que tem um diálogo de surdos, pelo menos o diálogo que busco não é o diálogo do qual estou participando, ou seja, não há diálogo. Então esse desencanto faz desaparecerem algumas palavras. A apresentação do ministro Palocci para mim foi bastante contundente na afirmação da presença profunda desse diálogo de surdos. Porque a afirmação do sucesso da política econômica produzida pelo governo Lula é uma afirmação de sucesso que não encontra eco nesse Brasil onde vivo, que não dialoga com esse Brasil daqueles gráficos.

Outro aspecto que também parece indicar o comprometimento da interação discursiva teorizada por Habermas (1987) é a distorção do requisito da veracidade do ato discursivo. Trata-se do viés que, por vezes, o emitente do discurso confere ao modo de apresentar a sua argumentação. Por exemplo, representantes do governo, ao tratar do tema política econômica, falam dos benefícios que a mesma tem trazido para o país; por outro lado, alguns dados, talvez contrários ao seu argumento, podem não ser incluídos na discussão. Indício dessa prática é a reivindicação da conselheira Jurema Werneck:

no ano passado, na última reunião do Conselho, com a mesma apresentação, do mesmo ministro Palocci, do mesmo presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, eu tinha feito a colocação de que era preciso que esses dados viessem agregados aos dados que demonstrassem a evolução da desigualdade paralela à evolução desses ganhos econômicos que estão mostrados. Ainda espero que daqui a um ano, na próxima reunião do Conselho, o ministro da Economia e o presidente do Banco Central possam trazer aqueles dados da redução da desigualdade, aqueles gráficos paralelos, com as cores diferentes, que de fato demonstrem um efeito e que comprove que isso que vocês têm feito tem valido a pena.

Para um conselheiro entrevistado, "nas informações que o governo apresenta quando se discute, por exemplo, a política econômica, no que eles entendem que seriam as informações essenciais, não há filtro, mas no que eles entendem, é o que eles entendem, e aí sim, há uma seleção clara dos indicadores que eles citam".

Problemas no reconhecimento da igualdade político-discursiva

Apesar de ser facultado ao CDES e a todos os seus conselheiros emitir opiniões originadas no âmbito do próprio Conselho, cabe lembrar que o presidente da República pode ou não acatar os encaminhamentos do Conselho, sejam eles consensos, recomendações ou sugestões.

Diversos aspectos do CDES indicam uma estrutura normativa que privilegia a participação, porém ela parece um tanto restrita ao direito, embora amplo, de manifestação, expressão e defesa de pontos de vista. No que se refere à efetividade — capacidade de influenciar — dessa participação, percebemos indícios de ser relativamente reduzida. A própria estrutura normativa não é totalmente capaz de garantir a participação de todos à medida que algum ator tiver maior controle sobre a agenda do Conselho. Nesse sentido, Fleury (2003) chama a atenção para o risco de se comprometer a possibilidade de concertação se o CDES vier a se tornar mera platéia diante da pauta definida pelo governo. A autora, que também é conselheira do CDES, alerta que, por diferentes razões, o tempo destinado para que o governo apresente suas propostas tem sido progressivamente maior do que o tempo destinado à discussão por parte dos conselheiros. Para um dos conselheiros ouvidos, há quem defina o Conselho como "um espaço privilegiado de informações, de acesso às informações, meio que platéia, em que o governo usa o Conselho... na verdade ele usa o Conselho, aquele espaço, para, de certa forma, se comunicar com a sociedade", porém, "mais para falar".

A partir da análise das atas das reuniões do Pleno do CDES, constatamos que a maioria dos temas discutidos é proposta pelo governo. Já na primeira reunião ordinária do Conselho, discutiram-se alguns aspectos de reformas constitucionais que o governo recém-empossado tencionava implementar, e uma passagem da ata daquela reunião deixa claro que as propostas seguiriam delineamentos estipulados pelo governo. Consta no documento que os "ministros de Estado Jaques Wagner, Ricardo Berzoini e Antonio Palocci Filho expuseram os princípios e diretrizes que orientarão (grifo nosso) as reformas trabalhista, previdenciária e tributária".

A questão econômica — tema polêmico nos debates do CDES — tem dado ensejo a um antagonismo evidente, de cunho ideológico. Por exemplo, essa contraposição de teor ideológico se dá claramente entre governo/empresariado e movimentos sociais quando a questão é a política monetária do governo. Na décima reunião do Pleno, enquanto, de um lado, o ministro da Fazenda defendia essa política dizendo que o país estava crescendo, criando empregos e que os indicadores mostravam ser esse um movimento sustentável — opinião compartilhada por conselheiros ligados ao meio empresarial, com destaque para os do setor bancário — do outro lado, Sérgio Haddad, vinculado à esfera dos movimentos sociais, questionava: "como entender que a política econômica pode ser eficaz se ela é construída através de danos sociais e justifica-se que os juros têm que ser altos por causa da inflação? Por que manter uma política que concentra renda em um país que já é dos mais injustos no mundo?". Outra demonstração de cisão ideológica dentro do CDES que, de certa forma, mostra a área econômica do governo próxima ao pensamento dos empresários, se deu na décima reunião do Pleno. Na ocasião, o presidente do Banco Central tratava da necessidade de aperfeiçoar as normas de competição no sistema bancário, para que ele funcionasse com mais eficiência, "como mostrado inclusive pelo Vaccari e pelo próprio Sérgio, como conseguem fazer outros países com sistemas mais racionais" (grifo nosso). Os termos em destaque indicam surpresa por parte do membro do governo em ver, nesse ponto, pensando de acordo consigo, um representante de trabalhadores e um de movimentos sociais.

Por outro lado, aquilo que seria um fórum idealizado sob pressupostos pretensamente igualitários do ponto de vista político, revela-se como um palco onde, além de disputas, vemos articulações e coalizões em torno de posições ideológicas. Um dos meios utilizados é a formação de alianças internas, umas mais frouxas outras mais organizadas. No segundo caso, destaca-se a figura do "conselhinho". Durante as discussões da reforma da previdência, algumas pessoas, identificadas por um dos nossos entrevistados como da "esquerda do Conselho", começaram a se aproximar em função, ao que parece, de afinidades ideológicas. Segundo ele, que faz parte do grupo, formou-se aí um fórum informal de discussões que recebeu o apelido de "conselhinho". Trata-se de um grupo de aproximadamente 15 conselheiros que, antes de cada reunião de Grupo Temático ou do Pleno, se reúne em âmbito distinto do CDES. Segundo o entrevistado, "com isso foi se criando um fórum de discussão, de conversa, de troca de idéias, onde ninguém é obrigado a concordar com ninguém".

Outro indício de articulação ideológica, porém entre conselheiros ligados ao meio empresarial, identificado nos debates da reunião que tratou dos juros bancários, foi a reação de um conselheiro, empresário, às críticas feitas por outros empresários aos bancos por conta dos lucros considerados exorbitantes. Nessa reação, o empresário ponderou: "precisamos sempre ter muito cuidado, sobretudo o setor empresarial, nesta discussão, para não parecer que estamos querendo antagonizar setores da própria comunidade empresarial". Essa posição indica a existência de articulação, ou ao menos, de alinhamento político-ideológico em torno de interesses de classe, pois em alguns momentos os atores envolvidos podem divergir em determinados temas — por exemplo, juros que o setor da produção paga ao sistema financeiro. Para um de nossos entrevistados, "há um grupo, que na realidade são os empresários, que é sempre coeso".

Além do aspecto de controle da agenda — tempos de falas e definição de pautas — que o governo exerce com preponderância em relação aos demais conselheiros, poderíamos citar indícios de articulações do próprio governo com determinados setores presentes no CDES, comprometendo, com isso, o processo de reconhecimento mútuo de igualdade do ponto de vista de legitimidade política. Por exemplo, a respeito da política industrial, que citamos anteriormente, um entrevistado revelou que a mesma "veio para ser apresentada já consensuada nos fóruns empresariais". Outro exemplo, segundo um conselheiro entrevistado: "na formação da comissão organizadora do Congresso sobre desenvolvimento, este ano, a comissão já veio formada anteriormente proposta pela Secretaria; já tinham conversado com alguns conselheiros que eles achavam que tinham de estar presentes nessa comissão".

6. Conclusão

Existem duas importantes conclusões a que podemos chegar a partir dos resultados obtidos. A primeira diz respeito à constituição original do CDES e a forma como foi idealizado, por meio das quais buscou-se dar ao Conselho um formato de incentivo à participação da sociedade civil, de modo a ter aí um espaço democrático genuinamente discursivo. Neste sentido, a intenção de estabelecer uma maior democratização do Estado via conselhos sociais é reconhecida como legítima, como pode ser verificado pelo caso do CDES. Mas, quando direcionamos nossa análise ao modo de funcionamento do Conselho, no que se refere à participação dos seus membros, percebemos que há dificuldade em se reconhecer a igualdade política de todos os participantes, e isso é um ponto que compromete sobremaneira o estabelecimento da democracia deliberativa. A nítida articulação discursiva — ação estratégica — e a cisão ideológica comprovam esse não-reconhecimento. Além disso, quando se trata do aspecto da efetividade das discussões e encaminhamentos do CDES nas ações do governo, fica claro que este discute e ouve, porém reserva-se o direito de agir de acordo com as suas concepções políticas acerca dos temas analisados pelo Conselho. Isso contradiz as próprias intenções originais do governo ao constituir o CDES, e põe em questão se esse fórum não é para o governo um mecanismo de controle e de monitoramento da opinião de segmentos-chave na sociedade, no sentido de favorecer a implantação de políticas.

Uma ressalva a ser feita diz respeito às limitações dos resultados empíricos do presente artigo. Em virtude da impossibilidade de generalização estatística do estudo de caso, não se conclui que a dinâmica verificada no CDES se estabelece da mesma forma em outros tipos de conselhos sociais. Mas em função do seu caráter exploratório, acreditamos que esse fato não compromete a significância do artigo, já que os resultados correspondem a importantes sinalizações para estudos empíricos futuros.

Além disso, pretendemos explorar pontos que pudessem revelar desafios e ambigüidades quanto à aplicação de um modelo de democracia substancialmente diferente de todo o contexto político em que vem sendo constituída a administração pública brasileira. Esta última, com um histórico de profunda orientação burocrática e patrimonialista (Faoro, 2001), dificilmente se libertaria de uma orientação instrumental no estabelecimento de um espaço de discussão como o CDES. Os pontos contraditórios levantados na presente análise indicam a dificuldade por parte dos atores em se desvencilhar de uma ação social orientada para o êxito — em especial, dos atores integrantes do governo —, ou mesmo, para o êxito particular de determinada facção, conforme demonstrado pelas articulações de grupos ligados ao empresariado, por um lado, e aos grupos ligados à ideologia "de esquerda", por outro, como no caso do chamado "conselhinho".

Finalmente, se partirmos da idéia de Bobbio (2000) de que para avaliar o nível de desenvolvimento da democracia este não pode mais ser mensurado por meio da quantidade de pessoas que votam, mas sim por meio da quantidade de locais — diferentes dos locais políticos — em que o cidadão pode exercer o direito de voto, o estabelecimento de conselhos é um esforço importante para a busca de democratização das relações entre o Estado e a sociedade brasileiros. Mas, isso deve ser pensado a partir de um referencial teórico mais consistente, para que não se incorra no erro de uma falsa sensação de maior democratização. Quando o refinamento teórico não ocorre, o que é considerado um avanço pode, na verdade, representar a manutenção do status quo.

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Artigo recebido em maio 2006 e aceito em jul. 2007.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Fev 2008

    Histórico

    • Aceito
      Jul 2007
    • Recebido
      Maio 2006
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