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Governabilidade (II)

SEÇÕES ESPECIAIS

A CONJUNTURA DAS ESCOLHAS PÚBLICAS

Governabilidade (II)

Jorge Vianna Monteiro

Professor de políticas públicas da Ebape/FGV e professor associado do Departamento de Economia da PUC-Rio. Endereço: PUC-Rio — Departamento de Economia — Rua Marquês de São Vicente, 225 — Gávea — CEP 22453-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jvinmont@econ.puc-rio.br

Um comentário estabelecido a partir do modelo analítico da "public choice" — uma vertente da moderna economia política que considera as políticas públicas resultado da interação social, sob instituições de governo representativo.

Coordenação: Jorge Vianna Monteiro

1. Introdução

Este artigo explora adicionalmente a questão da governabilidade (Monteiro, 2008):

as semanas recentes mostram importantes desdobramentos na economia política brasileira: uma possível alteração das regras constitucionais que tratam da inelegibilidade do governante em final de segundo mandato, a formalização de uma ampla política industrial e a declaração de inconstitu cionalidade de uma medida provisória que libera créditos extraordinários ao Orçamento da União.

A seção 2 retoma esses eventos, situando-os em uma mesma perspectiva analítica.

Já a seção 3 mostra o quanto é difícil caracterizar o fenômeno da governabilidade democrática nas complexas economias contemporâneas.

Isso decorre primeiramente das dificuldades inerentes à delimitação da formação e operacionalização de políticas públicas, tanto quanto da cobrança de responsabilidades (responsabilização ou accountability) que poderá ser exercitada pelo eleitor, uma vez detectados desvios significativos dessa provisão de políticas, relativamente ao interesse geral.

Essa seção explora o conceito de responsabilzação no peculiar ambiente institucional em que opera a economia brasileira:

a emissão de medidas provisórias apresenta características muito singulares que têm promovido sérias disfunções na democracia representativa, especialmente pelos condicionamentos que podem causar ao sistema constitucional da separação de poderes.1 1 Até setembro de 2001 (EC nº 32, de 11 de setembro de 2001), quando enfim a classe política convergiu para atenuar os efeitos colaterais indesejáveis que o mecanismo das MPs provocava, esses condicionamentos tinham um perfil bem definido: a extraordinária quantidade de MPs que tornava visivelmente decorativo o papel do Congresso Nacional como departamento legislativo (Monteiro, 2000). Sob o seu novo regime de emissão, as MPs passam a revelar uma decorrência possivelmente não antecipada pelos legisladores: fica habilitada uma estranha estratégia que tanto permite ao Executivo paralisar o Congresso, no que diz respeito à produção final de leis, quanto ao Congresso se autobloquear nessa capacidade e, assim, inviabilizando as escolhas públicas patrocinadas pelo Executivo (Monteiro, 2007, apêndice B).

A seção 4 reconfigura o habitual tema da emissão de MPs, com base em recentes avanços de uma teoria de ameaças legislativas (Halfteck, 2007), e que permite reconceituar as disfunções que esse mecanismo de emissão de leis por parte do Executivo causa às instituições representativas.

2. Equívocos institucionais em três escolhas públicas

Obedecendo à ordem cronológica de sua entrada no debate nacional, as escolhas públicas mencionadas na seção 1 podem assim ser analisadas:

ainda que em fase de balão de ensaio, prospera a idéia de que, a depender do resultado das eleições municipais, uma "PEC do terceiro mandato" poderá ser formalmente apresentada no Congresso Nacional.

Quanto a esse desdobramento, nada mais didático do que revisitar os acontecimentos da economia nacional do final de 1966 e meados de 1967, quando decisão equivalente foi encaminhada e aprovada no Congresso: a única diferença era que, então, se duplicava a extensão do mando da coalizão no poder (Monteiro, 2000, cap. 2).

Coincidentemente, o atual governo está associado a índices de avaliação expressivos, interna e externamente, a conjuntura internacional é amplamente favorável e ocorrem sucessivas novas iniciativas de políticas públicas que agregam o apoio de expressivos grupos de interesses especiais:

em um comprometimento formal que envolve um bloco de escolhas que combinam atendimentos preferenciais variados, o governo apresentou2 2 "Governo dobra prazo para quitar Finame", Gazeta Mercantil, 13 maio 2008. p. A1. a definição e operacionalização de uma "nova política industrial" ou, mais estranhamente, uma "política de desenvolvimento produtivo", segundo a terminologia oficial.

Com essa configuração, não surpreende a grande receptividade demonstrada pelos segmentos mais relevantes da indústria brasileira. Os benefícios associados a essa política totalizam cerca de 1/4 de trilhão de reais, em três anos. A Abinee (Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica), a Fiesp (Federação das Indústrias de São Paulo) e a ANTF (Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários), entre outros grupos de interesses, mal escondem sua satisfação, por trás de vagas avaliações críticas quanto à iniciativa "ter suas deficiências" ou que ainda faltaria reduzir a carga tributária e a taxa de juros.3 3 "Isenção para insumo doméstico em vigor" e "Setores ainda desconhecem as medidas específicas", Valor Econômico, 14 maio 2008. Política Industrial, p. A3.

A embalagem desse generalizado esquema de benefícios atende a ambas as partes: ao governo, que não fica tão exposto nesse atendimento diferenciado de vários segmentos da atividade econômica, e aos produtores e exportadores, por terem reconhecidos seus antigos pleitos, como atendimentos em prol do interesse geral. Com essa instrumentação definida sob o guarda-chuva de uma política industrial, o custo político de vê-la implementada é bem mais reduzido, comparativamente ao que se daria com atendimentos pulverizados, em diferentes pontos do tempo:

em decisão de 14 de maio de 2008, o Supremo Tribunal Federal limitou um pouco mais o uso do mecanismo de emissão de medidas provisórias — à margem da consideração de uma ação de inconstitucionalidade (ADI 4048) quanto a uma MP específica, no caso a MP nº 405, de 18 de dezembro de 2007, que foi convertida na Lei nº 11.658, de 18 de abril de 2008, ficou estabelecido que o governo não mais poderá emitir, com tanta flexibilidade, MPs que abram créditos extraordinários ao Orçamento da União.

Quanto a essa última ocorrência, apenas como ilustração, um dos juízes do STF apresentou estatística de que entre 1º de janeiro de 2007 e 17 de abril de 2008, esse tipo de uso de MP deu origem a 23 MPs, totalizando mais de R$ 60 bilhões que, desconsiderado o montante da dívida pública, totalizariam cerca de 10% do Orçamento da União de 2007.

Para tanto, impõe-se, de agora em diante, a estrita observância do caráter de imprevisibilidade e urgência do gasto público, como estabelecido na regra constitucional do art. 167, §3º. Em outras palavras, a abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública.

A decisão do STF deferindo medida liminar não foi, todavia, tão tranqüila: a votação foi de seis votos a favor e cinco votos contrários. Mesmo o atraso da aprovação da Proposta Orçamentária da União foi arrolado como atenuante para justificar a emissão de MP para liberar créditos extraordinários. Porém o fato é que a decisão do STF tem importante significado para a execução de políticas públicas.

Contudo, a decisão do STF não é senão um remendo constitucional, uma vez que o processo orçamentário da União tem sido, de longa data, um conjunto de procedimentos constitucionais continuadamente viciados. O que tem ficado oculto sob o eufemismo do debate "orçamento indicativo versus orçamento impositivo" é, na verdade, o fracasso da classe política em fazer valer a escolha orçamentária do Congresso Nacional. Embora defensável de um ponto de vista administrativo-gerencial, a ocorrência de um orçamento público que é implementado na melhor conveniência das preferências conjunturais dos burocratas do Executivo, é um fator de desagregação constitucional.4 4 O episódio mais deplorável nesse sentido continua sendo o Orçamento de 1994 que somente começou a ser implementado em outubro daquele ano (Monteiro, 1997, cap. 3).

O orçamento público é a vitrine mais transparente e objetiva do governo representativo. No entanto, a começar pelas negociações em torno do projeto de lei orçamentária, e do limitado sentido atribuído à Lei de Diretrizes Orçamentárias, passando pelo inevitável decreto de contingenciamento das despesas públicas, todos os envolvidos no jogo orçamentário bem sabem que o que se vota no Congresso é uma lei orçamentária sem qualquer comprometimento com sua execução. Em razão disso, o comportamento de deputados e senadores, quando da tramitação legislativa do projeto orçamentário, sofre forte indução para ser insensato e descolado de qualquer preocupação em atender o interesse geral.

3. A interação da economia com as instituições políticas

Diante da intermediação política que se interpõe entre um segmento definido no conjunto de cidadãos-eleitores-contribuintes (patrocinador) e o detentor do mandato eletivo (agente):

é uma quimera pensar-se que mesmo o mais hábil eleitor possa detectar tais desvios, bem como sinalizar com precisão o seu descontentamento junto a um determinado político ou partido político;

há um incentivo a que os representantes eleitos atuem estrategicamente, criando uma cortina de fumaça, entre eles e suas bases eleitorais, e assim distorcendo ainda mais a percepção do efetivo comportamento individual do político.

Em outras palavras: há dificuldades em determinar "de que modo, quem deve, e por que motivo ser responsabilizado perante a quem, e mesmo reconhecendo essas quatro dimensões deixa intocada a questão do que significa para um indivíduo ou uma instituição 'ter responsabilização'" (Philip, 2008:1).

Uma possibilidade para explorar o verdadeiro significado da governabilidade democrática em uma economia do mundo real é a de definir a responsabilização, separadamente do arranjo institucional democrático uma vez que, embora a responsabilização possa ser virtuosa para os valores democráticos, isso não precisa necessariamente se dar.

Uma contribuição recente nesse sentido considerara que um político P é passível de responsabilização relativamente à ação de política pública A, quando algum eleitor E pode exigir que P o informe ou justifique quanto a sua conduta no processo decisório público, relativamente a A (Philip, 2008:5). No entanto, essas ações de política pública podem ter significados distintos para diferentes eleitores, mesmo porque quase sempre essas políticas são providas em bloco: uma parte pode atender às preferências de um segmento do eleitorado, enquanto outra não e, portanto, não se pode ter um tipo de atendimento, sem ter de aceitar, ao mesmo tempo, o outro atendimento.5 5 A já citada "nova política industrial" é exemplo desse perfil distributivo.

Ademais, a origem dessas políticas pode não ser tão facilmente identificada na economia pública:

modernamente, com a extensão em que se opera o mecanismo de parcerias público-privadas (Monteiro, 2006), por exemplo, muitas das ações concretas de política pública resultam de processos decisórios privados, tais como de consórcios que operem uma rodovia, um projeto de irrigação ou um complexo hospitalar.

Nesse caso, nem mesmo o próprio político estará confortável com o seu grau de percepção e de responsabilização em face da provisão dessas políticas público-privadas:6 6 De fato, toda a viabilidade de um amplo e bem-sucedido esquema de parcerias público-privadas fica na dependência de se criar uma cultura política, administrativa e gerencial que aceite essa nova realidade do Estado oco, vale dizer, de atividades nominalmente públicas ou governamentais, mas que em sua essência são deixadas à decisão autônoma de agentes privados (Monteiro, 2006).

outro condicionamento à habitual extensão da teoria agente-patrocinador no entendimento da governabilidade e da responsabilização decorre da hipertrofia do sistema de separação de poderes.

A economia brasileira é o mais notável caso desse fenômeno.7 7 Embora por razões não-econômicas, os EUA se destacam desde 2001, pela hegemonia do Executivo, na formulação e operação de políticas de segurança interna e externa.

Logo, ainda que os legisladores se envolvam na aprovação de medidas provisórias, na etapa final de sua tramitação no Congresso, eles o fazem debaixo de limitada autonomia decisória (Monteiro, 2007 e 2004). Eles podem mesmo reivindicar parte do sucesso de uma MP ou da política pública a ela associada, quando na verdade podem ter tido um papel essencialmente passivo nesse sucesso.

Qualitativamente, a iniciativa presidencial de emitir MPs pode ser ainda mais perversa para o desempenho do agente (o legislador) perante o seu patrocinador (seu reduto eleitoral): a MP, quando aprovada, ocorre sob a circunstância de um processo legislativo que pode apresentar longas lacunas decisórias, uma vez que pelas regras atuais (pós-setembro de 2001) do art. 62 da Constituição, o mecanismo de emissão de MPs pode bloquear a agenda decisória da legislatura, por semanas seguidas.

4. O conteúdo de ameaça legislativa de uma MP

Contrariamente ao conhecimento convencional, pode-se argumentar que é a ameaça do Executivo em legislar — muito mais do que a emissão da MP, em si mesma — que pode exercer um papel extraordinariamente importante no controle do comportamento, não apenas da legislatura, mas também dos agentes privados.

A tipologia Halfteck abrange três categorias de ameaças legislativas (Halfteck, 2007:24).

Explícitas

Essa categoria envolve a comunicação formal de uma ameaça, sem qualquer ambigüidade tal como, diante da tramitação de um projeto de lei, em desacordo com as preferências da alta gerência econômica do Executivo, o presidente da República ou algum de seus porta-vozes anuncia a intenção de atalhar essa tramitação, com a emissão de uma MP. Todavia, esse padrão pode ser menos ostensivo e combinar a sugestão de um cronograma ou conteúdo ideal para o projeto de lei sob consideração.

A consolidação de um mecanismo pelo qual essa ameaça se materializa ex post também é ameaça explícita à qual o Congresso deve se adequar: as MPs de liberação de créditos extraordinários ao Orçamento da União — recém-neutralizados por decisão do STF8 8 Seção 2. — fornecem um desses exemplos de ameaça legislativa que as MPs viabilizam no jogo de escolhas públicas.

Há nessa ameaça certas peculiaridades: o presidente da República e, assim, os burocratas, sinalizam com informação que é substancial e objetiva, revelando sem ambigüidades seu interesse em controlar a trajetória do fenômeno em questão (alocação orçamentária, por exemplo) tanto quanto o desempenho em termos de interesse geral que será prejudicado, caso o comportamento desejado não seja alcançado. A MP ou a ameaça de editá-la expressa o sentido social das políticas que a MP se propõe a promover (Halfteck, 2007:25). A ameaça explícita também atende ao propósito de se tornar um comprometimento público do governo, com uma dada linha de ação.

Implícitas

Diferentemente da categoria anterior, uma MP pode não ser de todo emitida, mas ainda assim promover efeitos relevantes.

Quando da tramitação do projeto de lei das parcerias público-privadas (PL nº 2.546, de 19 de novembro de 2003), ao longo de 2004, o Executivo ameaçou, mais de uma vez, recorrer ao uso de MPs, caso o Congresso não promovesse a tramitação mais acelerada daquele projeto de lei (Monteiro, 2007, apêndice A).

Nesse sentido, o grau de comprometimento público com determinada preferência é bem mais fluido. No caso citado, a ameaça era vinculada tãosomente ao rápido desempenho da legislatura e ao sentido social que se teria com a ativação de projetos de investimentos com consórcios privados. Por conseqüência, há margem de incerteza em como o Congresso pode se alinhar com as preferências do Executivo.

De todo modo, a ameaça implícita pode ser contraproducente por condicionar a reputação do Executivo em levar adiante sua resolução de editar a MP. Nesse sentido, o poder de emitir MP assemelha-se ao poder de veto: seu significado mais estratégico decorre precisamente de que ele não venha de todo a ser efetivado.

Por igual, na longa trajetória das MPs na economia brasileira, uma ameaça implícita tem sido usada de modo a evitar as repercussões políticas que uma ameaça explícita poderia promover, mesmo junto às forças governistas no Congresso, ao reforçar o argumento de que há um uso excessivo de MPs. Levando em consideração essas qualificações, é razoável pressupor que, na atualidade, as ameaças implícitas se incorporam mais facilmente à estratégia de uso de MPs, comparativamente às ameaças explícitas (Halfteck, 2007:27).

Antecipatórias

Uma das conseqüências do longo período de uso do mecanismo de MP, e da variedade de circunstâncias institucionais de que dele os burocratas têm lançado mão, é que mesmo que não haja ameaças (explícitas ou implícitas) quanto à emissão de MPs, sempre há a possibilidade de que as MPs possam ser consideradas, como recurso na instrumentação das escolhas públicas futuras. Tais ameaças

surgem como antecipação probabilística de que (o governo) venha a fazer uma ameaça, em algum ponto do futuro. Analiticamente, esse risco inclui ameaças potenciais, tanto quanto legislação adversa potencial que venha a ser acionada sem o recurso (formal) a ameaças.

(Halfteck, 2007:28)

Esse risco é tanto maior quando se observa a facilidade com que o Executivo tem sido bem-sucedido em paralisar as deliberações legislativas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, pura e simplesmente manobrando com a cronologia da emissão de MPs: as lideranças no Congresso podem aquiescer aos objetivos do Executivo, em razão de que é necessário manter ativada a votação de projetos autonomamente surgidos na legislatura ou a ela encaminhados pelo Executivo.

Em termos quantitativos, a emissão de MPs prossegue impressionante, como mostra o indicador MP/Leis, na última linha da tabela: ao final do quinto mês do ano corrente, o volume de MPs equivale a quase duas vezes a produção de leis aprovadas no Congresso. A perspectiva analítica apresentada acima, no entanto, sinaliza que o condicionamento da atividade legislativa do Congresso pode ser qualitativamente mais relevante do que mostra esse indicador numérico.

5. Conclusão

Os três episódios referidos na seção 2 bem demonstram como é essencial associar a trajetória dos resultados macroeconômicos aos mecanismos institucionais subjacentes. Essa tem sido uma tendência da teoria econômica que começa a ser sistematizada ao começo da década de 1960, com o surgimento da corrente de pensamento rotulada, então, de public choice.9 9 De início, essa linha de pensamento agregava um núcleo de economistas liderados por James Buchanan (que viria a ser contemplado em 1986 com o prêmio Nobel de Economia) e Gordon Tullock. Em 1962, na contramão do pensamento econômico dominante nos grandes centros acadêmicos doa EUA, esses dois autores lançavam " O cálculo do consenso: fundamentos lógicos da democracia constitucional". A partir daí tornou-se impossível ignorar a possibilidade analítica de se considerar a economia pública por seus próprios mecanismos decisórios e suas próprias induções, não mais a considerando como imagem reflexa da economia de mercado. Diferentemente do que era, então, convencional, o agente público ou o governo não é pressuposto pautar suas decisões pelo critério do atendimento ao interesse geral ou coletivo, mas por seus próprios interesses e suas conveniências eleitorais. Em um ambiente institucional em que o poder de governo se apresenta difuso e instável, como é o caso da economia brasileira, a moldura analítica da public choice é especialmente adequada para enquadrar casos de escolhas públicas, como os que são tratados aqui.

Lamentavelmente, o debate econômico nacional trata as ocorrências econômicas e institucionais, separadamente. O reconhecimento de que certas políticas públicas são impróprias ou inadequadas é quase sempre associado ao tipo de agente de decisão (políticos e burocratas) nelas envolvidos, e não às induções a que esses agentes estão sujeitos no jogo das escolhas públicas. A referência feita acima, relativamente ao processo orçamentário da União, ilustra essa perspectiva de análise: o resultado final desse processo é inerentemente ruim não tanto porque os políticos são de baixa qualidade, mas porque são induzidos a construir estratégias que não fomentam a cooperação social no jogo orçamentário.

Por outro lado, a visão idealizada de que é por via eleitoral que as preferências dos cidadãos se traduzem na provisão de políticas públicas é, de longa data, desacreditada (Mansbridge, 2003). Em geral, reconhece-se que a ignorância do eleitor e assimetrias de informação no próprio eleitorado pervertem o sentido com o qual as eleições podem ser utilizadas para controlar os que detêm o mando.10 10 Ademais, a própria noção de "preferência coletiva" é generalizadamente tida por incoerente ou inexistente. Igualmente, como os políticos têm informação e conhecimento especializado que escapam aos eleitores, é nítida a vantagem operacional que os políticos podem exercitar na relação com os seus eleitores. O uso discricionário de poder por parte dos políticos passa a ser a regra e não a exceção.

Em um ambiente institucional em que o poder de governo se apresenta difuso e instável, como é o caso da economia brasileira, essas dificuldades são ainda mais graves.

Como tratado acima (seções 3 e 4), por via do mecanismo de MP, a alta gerência do Executivo — burocratas que não detêm mandato eletivo — pode acabar por exercer um expressivo controle da agenda dos legisladores.11 11 A última linha da tabela, apresentada na seção 4, fornece um indicador sumário dessa possibilidade. Com isso, preferências administrativas passam a dominar as decisões e o comportamento dos políticos no Congresso.

  • HALFTECK, G. Legislative threats, political institutions: legislatures abstracts, v. 2, n. 7. Editores J. Aldrich & D. Rohde, maio 2007.
  • MANSBRIDGE, J. Rethinking representation. American Political Science Review, v. 97, n. 4, p. 515-528, Nov. 2003.
  • MONTEIRO, J. V. Economia & política: instituições de estabilização econômica no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997.
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  • ______. Economia constitucional brasileira Rio de Janeiro: FGV, 2004.
  • ______. Como funciona o governo: escolhas públicas na democracia representativa. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
  • ______. Governabilidade (I). Revista de Administração Pública, v. 42, n. 3, maio/jun. 2008.
  • PHILIP, M. Delimiting democratic accountability. Political Studies, OnlineEarly Articles. 29 Apr. 2008, doi: 10.1111/j.1467-9248.2008.00720.x 2008.
  • 1
    Até setembro de 2001 (EC nº 32, de 11 de setembro de 2001), quando enfim a classe política convergiu para atenuar os efeitos colaterais indesejáveis que o mecanismo das MPs provocava, esses condicionamentos tinham um perfil bem definido: a extraordinária quantidade de MPs que tornava visivelmente decorativo o papel do Congresso Nacional como departamento legislativo (Monteiro, 2000). Sob o seu novo regime de emissão, as MPs passam a revelar uma decorrência possivelmente não antecipada pelos legisladores: fica habilitada uma estranha estratégia que tanto permite ao Executivo paralisar o Congresso, no que diz respeito à produção final de leis, quanto ao Congresso se autobloquear nessa capacidade e, assim, inviabilizando as escolhas públicas patrocinadas pelo Executivo (Monteiro, 2007, apêndice B).
  • 2
    "Governo dobra prazo para quitar Finame",
    Gazeta Mercantil, 13 maio 2008. p. A1.
  • 3
    "Isenção para insumo doméstico em vigor" e "Setores ainda desconhecem as medidas específicas",
    Valor Econômico, 14 maio 2008. Política Industrial, p. A3.
  • 4
    O episódio mais deplorável nesse sentido continua sendo o Orçamento de 1994 que somente começou a ser implementado em outubro daquele ano (Monteiro, 1997, cap. 3).
  • 5
    A já citada "nova política industrial" é exemplo desse perfil distributivo.
  • 6
    De fato, toda a viabilidade de um amplo e bem-sucedido esquema de parcerias público-privadas fica na dependência de se criar uma cultura política, administrativa e gerencial que aceite essa nova realidade do
    Estado oco, vale dizer, de atividades nominalmente públicas ou governamentais, mas que em sua essência são deixadas à decisão autônoma de agentes privados (Monteiro, 2006).
  • 7
    Embora por razões não-econômicas, os EUA se destacam desde 2001, pela hegemonia do Executivo, na formulação e operação de políticas de segurança interna e externa.
  • 8
    Seção 2.
  • 9
    De início, essa linha de pensamento agregava um núcleo de economistas liderados por James Buchanan (que viria a ser contemplado em 1986 com o prêmio Nobel de Economia) e Gordon Tullock. Em 1962, na contramão do pensamento econômico dominante nos grandes centros acadêmicos doa EUA, esses dois autores lançavam "
    O cálculo do consenso: fundamentos lógicos da democracia constitucional". A partir daí tornou-se impossível ignorar a possibilidade analítica de se considerar a economia pública por seus próprios mecanismos decisórios e suas próprias induções, não mais a considerando como imagem reflexa da economia de mercado. Diferentemente do que era, então, convencional, o agente público ou o governo não é pressuposto pautar suas decisões pelo critério do atendimento ao interesse geral ou coletivo, mas por seus próprios interesses e suas conveniências eleitorais.
  • 10
    Ademais, a própria noção de "preferência coletiva" é generalizadamente tida por incoerente ou inexistente.
  • 11
    A última linha da tabela, apresentada na seção 4, fornece um indicador sumário dessa possibilidade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2008
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