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Estatuto da Cidade: aspectos epistemológicos, sociopolíticos e jurídicos

Statute of the City: epistemological, social political and legal aspects

Resumos

Este artigo contribui com o debate sobre o Estatuto da Cidade (EC), vinculando-o a diferentes abordagens e clivagens subjacentes à crise da modernidade. Aspectos epistemológicos e teóricos são relevantes, mas têm sido negligenciados no debate. Neste artigo tais aspectos são abordados introdutoriamente. Faz-se também uma breve comparação de três enfoques especializados em direito urbanístico sobre artigos do EC, evidenciando-se a ausência de consenso e a necessidade de uma reflexão mais abrangente. Conclui-se que o que está em disputa no debate do EC são os recursos para a compreensão dos desafios de sua implementação, que envolvem especialmente três fatores: a abordagem comparativa entre os enfoques de especialistas do direito urbanístico; abordagem inter e transdisciplinar, com a contribuição do paradigma da complexidade; e a abordagem democrático-participativa, com políticas públicas orientadas pelas teorias e experiências relativas à terceira via e à formação de capital social.

Estatuto da Cidade; paradigma da complexidade; democracia participativa


This article brings a contribution to the debate on the Statute of the City (SC), linking it to different approaches and underlying cleavages of the crisis of modernity. The article introduces relevant epistemological and theoretical aspects that have been neglected in this debate and briefly compares three specialized urban law approaches to articles of the SC, showing absence of consensus and the need for a comprehensive reflexion. To conclude, what is in dispute in the EC debate are the resources for the understanding of the challenges of its implementation, which involves especially three factors: the comparative approach to the views of urban law specialists; an inter and trans-disciplinary approach, with the contribution of the complexity paradigm; a democratic-participative perspective, with public policies oriented by the theories and experiences of the third way and the formation of social capital.

Statute of the City; paradigm of complexity; democratic-participative perspective


ARTIGOS

Estatuto da Cidade: aspectos epistemológicos, sociopolíticos e jurídicos* * Os autores agradecem à Universidade do Vale do Itajaí (Univali) pelo financiamento da pesquisa, conforme Programa de Integração Pós-graduação e Graduação (PIPG).

Statute of the City: epistemological, social political and legal aspects

Sérgio Luís BoeiraI; Adriana Clara Bogo dos SantosII; Alini Giseli dos SantosIII

IDoutor em ciências humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor do Programa de Mestrado em Políticas Públicas (PMGPP) e do Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA) da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Endereço: Av. Osni João Vieira, 615, apto. 901- CEP 88101-270, São José, SC, Brasil. E-mail: sergio.l.boeira@redelnet.com.br

IIMestre em gestão de políticas públicas pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Especialista em direito processual civil. Professora do Centro Universitário de Brusque (Unifebe). Endereço: Servidão Antonio Belmiro Furtado, 235 - CEP 88306-505, Itajaí, SC, Brasil. E-mail: acbogo@terra.com.br IIIAcadêmica de direito da Universidade Vale do Itajaí (Univali). Endereço: Rua Conceição, 259 B - CEP 88304-220, Itajaí, SC, Brasil. E-mail: alini@univali.br

RESUMO

Este artigo contribui com o debate sobre o Estatuto da Cidade (EC), vinculando-o a diferentes abordagens e clivagens subjacentes à crise da modernidade. Aspectos epistemológicos e teóricos são relevantes, mas têm sido negligenciados no debate. Neste artigo tais aspectos são abordados introdutoriamente. Faz-se também uma breve comparação de três enfoques especializados em direito urbanístico sobre artigos do EC, evidenciando-se a ausência de consenso e a necessidade de uma reflexão mais abrangente. Conclui-se que o que está em disputa no debate do EC são os recursos para a compreensão dos desafios de sua implementação, que envolvem especialmente três fatores: a abordagem comparativa entre os enfoques de especialistas do direito urbanístico; abordagem inter e transdisciplinar, com a contribuição do paradigma da complexidade; e a abordagem democrático-participativa, com políticas públicas orientadas pelas teorias e experiências relativas à terceira via e à formação de capital social.

Palavras-chave: Estatuto da Cidade; paradigma da complexidade; democracia participativa.

ABSTRACT

This article brings a contribution to the debate on the Statute of the City (SC), linking it to different approaches and underlying cleavages of the crisis of modernity. The article introduces relevant epistemological and theoretical aspects that have been neglected in this debate and briefly compares three specialized urban law approaches to articles of the SC, showing absence of consensus and the need for a comprehensive reflexion. To conclude, what is in dispute in the EC debate are the resources for the understanding of the challenges of its implementation, which involves especially three factors: the comparative approach to the views of urban law specialists; an inter and trans-disciplinary approach, with the contribution of the complexity paradigm; a democratic-participative perspective, with public policies oriented by the theories and experiences of the third way and the formation of social capital.

Key words: Statute of the City; paradigm of complexity; democratic-participative perspective.

1. Introdução

Este artigo, com base em pesquisa bibliográfica, contribui com o debate público em torno do Estatuto da Cidade (EC), estimulando a percepção de seus desafios, das controvérsias entre especialistas do direito urbanístico, além de sugerir uma ampliação do debate para a inclusão de clivagens subjacentes à crise civilizatória contemporânea. O artigo aborda, introdutoriamente, as clivagens epistemológica e político-institucional, sugerindo que as alternativas são ainda emergentes, de longo prazo e têm complementaridades mal diagnosticadas. O paradigma da complexidade, a terceira via e o capital social são os três termos que introduzimos no debate como diretrizes para superar enfoques meramente especializados, monodisciplinares, setoriais ou burocráticos. Na seção 2, recuperamos aspectos da história do movimento pela reforma urbana (MNRU) desde a década de 1960 e sugerimos que a aprovação do EC foi produto da aproximação do MNRU com o movimento ambientalista complexo-multissetorial. Na seção 3, examinamos três obras de autores especializados no EC, apontando controvérsias entre os mesmos sobre aspectos relevantes da lei federal. Foram comparados todos os artigos do EC, porém, nos limites deste artigo, foram apresentados comentários sobre os aspectos mais significativos.

Esteve fora de nosso propósito chegar a uma compreensão especializada do EC por meio do direito urbanístico, embora o consideremos um enfoque relevante, desde que contextualizado e complementado por outros, como o direito ambiental, o enfoque sociológico, o ecológico, o histórico, o geográfico, o político e o epistemológico. Na seção 4 abordamos aspectos contemporâneos das políticas do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU).

Complexidade, terceira via e capital social

Há diversas clivagens no interior da sociedade contemporânea em relação as quais os termos complexidade, terceira via e capital social se contrapõem. Sem a pretensão de fazer uma análise epistemológica e político-institucional das forças desagregadoras que subjazem à crise civilizatória contemporânea, pode-se apontar para dois diferentes tipos de clivagens, como demonstrado no quadro.

No paradigma disjuntor-redutor as ciências naturais e exatas, desde os séculos XVI e XVII, assumem a condição de conhecimento confiável, pretensamente objetivo, quantificável e racional, distinguindo-se e crescentemente separando-se do conhecimento filosófico, considerado menos confiável, subjetivo, metafísico. A concepção atomística da realidade e da sociedade cede espaço nas primeiras décadas do século XX a uma concepção relativista (de acordo com as mudanças da física newtoniana para a física quântica). No paradigma da complexidade, em formação especialmente nas últimas três décadas do século XX, busca-se associar sem fundir, distinguindo-se sem separar diferentes formas de conhecimento (Morin, 1998). A maior contribuição à compreensão dessa temática é a série de seis volumes intitulada La méthode, de Morin. Uma abordagem semelhante à de Morin é encontrada na obra de Boaventura Sousa Santos (2000:61), para quem o paradigma dominante (ou seja, o disjuntor-redutor) é um "modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas".

A ciência convencional, monodisciplinar ou normal (Kuhn, 1962) teve como destino o que Japiassu (1976) denominou "patologia do saber". Entretanto, pressionados pelos políticos profissionais a apresentar resultados quantitativos que pudessem impactar o eleitorado, os técnicos de cada setor governamental desenvolveram ao longo do século XX projetos operacionais, instrumentais, reforçando os pressupostos mais estreitos de cada ramificação da ciência.

Ainda que duas ou mais ciências fossem utilizadas num determinado projeto governamental ou parlamentar, tal associação era e continua sendo regida fundamentalmente pelo paradigma disjuntor-redutor.

Quanto à segunda clivagem, percebe-se na modernidade, em diferentes sociedades, conforme a correlação de forças de cada conjuntura, uma série de conflitos entre Estado, mercado e sociedade civil. No século XX, após duas guerras mundiais e a experiência traumática de totalitarismos de direita e de esquerda (Hobsbawm, 1995), emergem forças da sociedade civil que acentuam a necessidade de uma ampliação da cidadania. A década de 1960 é emblemática nesse sentido.

Na terminologia de Giddens, passa-se da modernidade simples para a modernidade reflexiva, ou seja, da fase na qual a identidade social dos cidadãos era marcada pelas instituições e tradições de classes antagônicas (burguesia e proletariado), no âmbito dos Estados-nações, para uma fase na qual a identidade social dos cidadãos torna-se mais reflexiva, mais plástica, dialógica, destradicionalizadora, em que as normas tradicionais de conduta perdem eficácia (com diversas consequências contraditórias). Dos riscos e ameaças da natureza à sociedade humana passa-se aos riscos e ameaças socialmente produzidos à natureza, aos ecossistemas.

O processo de globalização é impulsionado pelas novas tecnologias de comunicação e as sociedades nacionais interagem de forma crescentemente complexa, com inúmeras consequências impremeditadas e/ou imprevisíveis.

Em síntese, à emergência do paradigma da complexidade (Morin e Kern, 1995) e dos debates sobre multi, inter e transdisciplinaridade, no âmbito das instituições de pesquisa, acrescenta-se a emergência da modernização reflexiva (Giddens, Beck e Lash, 1997).

Enquanto a ciência e a tecnologia são disseminadas pelas instituições sociais, Estado, mercado e organizações da sociedade civil interagem de forma crescentemente complexa, em redes sociotécnicas.

Na obra The third way and its critics, publicada originalmente em 2000 e traduzida no Brasil em 2001, Giddens responde às críticas à terceira via política, como forma de superar o esforço de uma reelaboração defensiva do pensamento de esquerda diante dos enfoques neoliberais. Para o sociólogo britânico, o conjunto de ideias conhecido como terceira via seria a perspectiva que tomaria o espaço conquistado pelo neoliberalismo até recentemente, e pela social-democracia de "velho estilo" antes dele. O fato de, em setembro de 2001, o mundo ter entrado numa nova era do terror, e com isto ter estendido a "era dos extremos" e o "breve século XX" de Hobsbawm (1995), torna, a nosso ver, ainda mais relevante o debate em torno de uma alternativa entre as posturas unilaterais da esquerda e da direita.

Quanto ao capital social, Giddens afirma que seu cultivo é essencial para a economia do conhecimento. O "novo individualismo" que acompanha a globalização "não é refratário à cooperação e à colaboração - a cooperação (em vez da hierarquia) é positivamente estimulada por ele" (Giddens, 2001:82). Para o autor, a confiança ativa, abertamente negociada, em vez de regida pela tradição e pelo hábito, é parte da política da terceira via.

A própria tecnologia da informação é um fator de promoção da cultura de parceria e colaboração, dado que uma mesma base tecnológica pode ser formada por diferentes especialistas. Essa colaboração entre especialistas de diferentes organizações tem viabilizado alianças entre universidades e empresas, entre organizações do chamado terceiro setor e órgãos governamentais, ampliando o capital social. Sobre esse conceito, cabe considerar as contribuições de Higgins (2005); Putnam (1993); Franco (2001); Baquero (2001); Kliksberg e Tomassini (2000).

As duas clivagens destacadas têm no capital social, na terceira via e no paradigma da complexidade algumas respostas abrangentes e consistentes, embora apareçam frequentemente dissociadas na literatura das ciências sociais e humanas. Não temos o propósito de avançar no exame das divergências epistemológicas e teóricas entre os autores citados, mas apenas de chamar a atenção para uma complementaridade entre a clivagem epistemológica e a clivagem político-institucional.

Entendemos que tal percepção contribui com a compreensão dos desafios enfrentados pelos atores sociais que têm, no Brasil, lutado por uma reforma urbana e pela sustentabilidade ambiental do modelo de desenvolvimento socioeconômico.

2. Aspectos históricos do movimento pela reforma urbana

As origens da ideia de reforma urbana no Brasil remontam à década de 1960, mas as discussões que ocorriam no país não foram isoladas, pois outros países da América Latina também travavam esse debate, embora no Brasil ele tenha adquirido maior visibilidade. No governo do presidente João Goulart (1961-64) foi elaborado um Projeto de Reforma Urbana, considerado um importante marco histórico a respeito do assunto. Em 1963, um evento em Petrópolis, no Rio de Janeiro, do qual participaram políticos, técnicos e intelectuais, foi outro marco do movimento, mas a questão de a moradia ter sido enfatizada naquele momento ainda não tinha a repercussão que a questão da reforma agrária comparativamente tomava nos meios de comunicação.

Naquela época, entre os anos 1950 e 1960, o Brasil vivenciava uma série de movimentos sociais em favor das "reformas de base" (reforma sanitária, da educação, da assistência social), mas os que mais tiveram visibilidade foram os que tratavam da reforma agrária e da reforma urbana. Com a urbanização do Brasil e o crescimento dos problemas e conflitos urbanos, o movimento da reforma urbana ganhou maior força, especialmente porque, já naquela época, as capitais davam mostras do que viria a ser o processo de urbanização no Brasil, caso não houvesse uma mudança na rota do crescimento com desigualdade.

No entanto, em decorrência do regime militar que se instaurou no país após o golpe de 1964, esses movimentos de "reforma" perderam força, o que acabou por fazer com que o de reforma urbana ficasse adormecido por cerca de duas décadas, contribuindo também para aprofundar o fosso que separa o mercado imobiliário daqueles que não têm acesso a ele.

Em meados dos anos 1970, as manifestações sociais voltaram a ter força, especialmente os movimentos sociais urbanos, impulsionados por setores da Igreja Católica que se inspiravam na Teologia da Libertação, reacendendo a questão urbana e reivindicando a função social da propriedade.

Na década de 1980, a bandeira da reforma urbana se diversificou e outras questões além da moradia passaram a fazer parte desse movimento, já que o Brasil se apresentava muito mais urbanizado e complexo do que no início do movimento. A mobilização pela reforma urbana acabou desembocando na constituição do Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU), em 1987.

Foi entre meados e o fim da década de 1980 que o movimento pela reforma urbana passou a ter uma concepção progressista. De acordo com o sociólogo e geógrafo Marcelo Lopes de Souza, essa concepção pode ser caracterizada como um conjunto articulado de políticas públicas, de caráter redistributivista e universalista, voltado para o atendimento do seguinte objetivo primário: reduzir os níveis de injustiça social no meio urbano e promover uma maior democratização do planejamento e da gestão das cidades (Souza, 2002:158). Segundo o autor, o MNRU diferencia suas propostas das que se limitam a simples intervenções urbanísticas, mais preocupadas com a funcionalidade, estética e ordem do que com a justiça social (Souza, 2002:158).

Vale observar, também, que o autor reconhece a necessidade de uma abordagem interdisciplinar no que se refere ao planejamento urbano, um diálogo entre múltiplos especialistas, sob um enfoque crítico e democrático-participativo.

Os diversos movimentos sociais existentes no Brasil, especialmente o MNRU, ganharam nova visibilidade pública no período pré-constituinte e todos conseguiram, na íntegra ou parcialmente, inserir suas propostas e reivindicações na Constituição Federal (CF) de 1988. Uma das maiores conquistas da mobilização social daquele período foi a inserção dos arts. 182 e 183, no capítulo II (política urbana), do título VII (ordem econômica e financeira) na CF. No entanto, como ressalta Souza (2002:159), o MNRU, apesar de conseguir elaborar uma emenda popular subscrita por quase 130 mil eleitores, constatou que, ao longo dos debates e votações no Congresso, a emenda teve supressões relevantes como, por exemplo, as referentes aos transportes coletivos e serviços públicos, além da que se referia à aplicação do instrumento "usucapião" em terrenos públicos.

Nelson Saule Junior, citado por Maricato (2001:101), observa que:

A proposta vencedora do bloco conservador de parlamentares denominado "Centrão", na Assembleia Nacional Constituinte, de condicionar, nos termos do §4º do art. 182 da Constituição Brasileira, a aplicação dos instrumentos destinados a conferir uma função social à propriedade urbana à existência de uma lei federal e do plano diretor, continua produzindo efeitos favoráveis para os interesses dos agentes responsáveis pela especulação imobiliária e efeitos negativos para a promoção de uma reforma urbana nas cidades.

Todavia, da inserção dos arts. 182 e 183 na CF, da sua previsão constitucional até a edição da lei regulamentadora da "política urbana" passaram-se 11 anos. Somente em 2001 foi aprovado o EC - Lei nº 10.257, de 10 de julho -, que regulamentou os principais instrumentos jurídicos e políticos de intervenção urbana (arts. 182 e 183 da CF), estabelecendo "normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental" (art. 1º).

Conforme Medauar e Almeida (2004:42),

o Estatuto da Cidade (... ) veio preencher uma condição de executoriedade das normas contidas nesse capítulo da Constituição Federal, sobretudo no art. 182, uma vez que o art. 183, igualmente disciplinado por esta Lei, já poderia entender-se autoexecutável. (... ) De todo modo, a prévia edição da lei federal que ora se comenta era elemento necessário à atuação legislativa dos municípios, ainda que alguns aspectos da previsão do art. 182 da Constituição Federal já pudessem ser diretamente disciplinados por lei municipal.

O EC é instrumento legal que visa combinar a gestão participativa com as premissas da sustentabilidade ecológica e econômica, além de introduzir um novo conceito de gestão urbana, objetivando a melhor ordenação do espaço urbano, com observância da proteção ambiental e a busca de solução para problemas sociais graves, como a moradia e o saneamento, por exemplo, que o caos urbano faz incidir, de modo contundente, sobre as camadas carentes da sociedade (Medauar e Almeida, 2004:17).

Além disso, o EC mantém os princípios básicos estabelecidos na CF, preservando o caráter municipalista, a centralidade do plano diretor e a ênfase na gestão democrática, fortalecendo a necessidade de um planejamento sistemático e integrado, construído a partir de um modelo participativo de gestão urbana em todas as decisões de interesse público.

A relevância da temática socioambiental é destacada especialmente nos dois primeiros anos da década de 1990, durante os preparativos para a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92, que incorporou a necessidade da conciliação entre proteção ambiental com desenvolvimento econômico. Nessa conferência foram celebradas importantes convenções internacionais (da diversidade biológica e a que trata de mudanças climáticas, além de uma declaração sobre florestas). A Rio-92 aprovou, igualmente, documentos de objetivos mais abrangentes e de natureza política, como a Declaração do Rio e a Agenda 21 (que estabelece objetivos concretos de sustentabilidade em diversas áreas). O capítulo 28 desse documento estratégico para o século XXI trata das "iniciativas das autoridades locais em apoio à Agenda 21".

As metas definidas, como a realização de um processo de consultas às populações para alcançar um consenso sobre uma Agenda 21 local até 1996, não foram atingidas, a não ser tardiamente e em poucos municípios. As causas desse fato e das frustrações subsequentes são múltiplas: a) desinformação da própria imprensa sobre a Agenda 21, editada no Brasil somente em 1995 pela Câmara dos Deputados (1995); b) inércia dos poderes públicos municipais, predominantemente conservadores e comprometidos com as forças predatórias em âmbito local; c) insensibilidade socioambiental de grande parte do público politizado sob as vertentes do liberalismo, do conservadorismo e mesmo da esquerda partidária; d) precária difusão desse volumoso documento (471 páginas) por parte da própria ONU, em função de suas divergências internas e fragilidades institucionais no contexto da década de 1990 e início do século atual. Isso, no mínimo, coloca em dúvida a chamada "vocação democrática da gestão ambiental brasileira" (Carvalho, 2003).

Apesar desses fatores, as questões ambientais e sociais, debatidas em diferentes espaços e por movimentos sociais inicialmente distantes, passaram a ter um foco de convergência nas cidades, após a realização da Conferência da ONU. O ambientalismo se diversificou durante os preparativos para a Rio-92, acentuando seu perfil multissetorial, transclassista e global-local. Os urbanistas e demais ativistas do MNRU passaram a considerar a relevância e a complexidade do conceito de desenvolvimento sustentável, apesar das inúmeras interpretações divergentes.

Atores sociais vinculados a diferentes setores e camadas da sociedade brasileira - diante dos constrangimentos das políticas macroeconômicas ditadas por organismos internacionais (OMC, FMI, Banco Mundial) -, passaram a defender a conjugação dos princípios da sustentabilidade com os da ampliação dos espaços da cidadania (Camargo, Capobianco e Oliveira, 2002; Viana, Silva e Diniz, 2001). Nesse processo o esforço do MNRU em redirecionar as políticas de desenvolvimento urbano tem convergido com muitas políticas ambientais emergentes no contexto do chamado "ambientalismo complexo-multissetorial" (Viola e Boeira, 1990; Crespo e Leitão, 1993; Boeira, 1998; Boeira, 2003).

Com efeito, esse tipo de ambientalismo tem sido caracterizado como um movimento histórico e civilizatório (portanto, de longo prazo), não simplesmente "social" nem restrito às classes médias ou aos atores autodenominados "ambientalistas", "ecologistas" ou "conservacionistas". O ambientalismo complexo-multissetorial, composto por um número não necessariamente definido de setores sociais (número variável em cada conjuntura sociopolítica), tem sido muito precariamente descrito em pesquisas sociais também em razão de limitações epistemológicas das ciências sociais. Referimo-nos ao tradicional conflito entre os métodos das ciências ditas naturais e as ciências sociais, bem como aos obstáculos encontrados no processo de articulação inter e transdisciplinar nos centros de pesquisa (Vieira e colaboradores, 2005; Vasconcelos, 2002; Philippi Jr. e colaboradores, 2000). Em todo caso, destacamos o caráter aglutinador desse conceito no que se refere às clivagens epistemológica e político-institucional anteriormente referidas.

3. Aspectos controversos do Estatuto da Cidade: reflexividade entre especialistas

O EC, conforme já visto, estabelece as diretrizes gerais da política urbana e normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.

Com o objetivo de ampliar a compreensão do EC no contexto da reflexividade do saber jurídico, buscamos comparar três enfoques de obras especializadas, selecionadas entre as 33 disponíveis no mercado editorial, em levantamento realizado por meio da internet em diversos websites, em 11 de abril de 2005 e 12 de abril de 2005. Selecionamos, entre as obras mais acessíveis, as que apresentavam algumas significativas divergências.

Pudemos observar divergências relevantes acerca de alguns instrumentos previstos no Estatuto da Cidade. Primeiramente, destacamos os arts. 5º, 6º e 7º. O art. 5º trata do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; o art. 6º da transmissão do imóvel, por ato inter vivos ou causa mortis e das obrigações de parcelamento, edificação ou utilização previstas no art. 5º; e o art. 7º trata do IPTU progressivo no tempo. Maurício Santos (2004:71) considera inconstitucionais tais dispositivos.

Com relação ao art. 5º, o autor ressalta que, ao outorgar ao poder municipal o direito de impor obrigações sobre a propriedade de particular, determinando parcelamento, edificação ou utilização compulsória, fere um direito fundamental do indivíduo: o direito de uso e gozo da propriedade, previsto no art. 5º, inciso XXII da CF. Por consequência, Santos entende que o art. 6º reflete a inconstitucionalidade do art. 5º, pois - ao prever que a transmissão do imóvel posterior à data da notificação, transfere também as obrigações de parcelamento, edificação ou utilização previstas no art. 5º, sem qualquer prorrogação de prazo para que o novo proprietário utilize seu imóvel - denota a vontade soberana do Estado, autoritária, e não o desenvolvimento urbano, o que entende ser inconstitucional.

Com relação ao art. 7º, que trata do IPTU progressivo no tempo, Santos (2004:83) destaca também sua inconstitucionalidade, já que a progressividade aludida possui caráter de confisco, o que seria ilegal. Destaca ainda que alguns municípios que adotaram a progressividade do IPTU tiveram suas leis, na maioria, julgadas inconstitucionais.

Por sua vez, Mukai (2001) entende que os arts. 5º e 6º concretizam a exigência do §4° do art. 182 da CF, destacando que o art. 6º pode ser solucionado, em caso de dificuldade no seu cumprimento por parte dos herdeiros, da utilização do instituto jurídico da operação urbana consorciada, prevista nos arts. 32 a 34 da lei. Já com relação ao art. 7º, esse autor diverge de Santos, pois entende que se trata de tributação extrafiscal de finalidade punitiva, com progressividade no tempo, para assegurar o cumprimento da função social da propriedade, obedecidos os requisitos previstos nos §§2º e 4º do art. 182 da CF. Acrescenta, ainda, que o IPTU progressivo normal, para fins urbanísticos e sociais, está contemplado no §1º do art. 156 da CF e também no §4º do art. 182 da mesma.

Medauar e Almeida (2004:58), sobre os arts. 5º, 6º, 7º e 8º, ressaltam que todos guardam direta relação com a definição constitucional da função social da propriedade urbana; por isso são plenamente constitucionais, já que, no direito positivo brasileiro, a função social da propriedade urbana é definida pela Constituição (art. 182, §2º). Mas salientam que é o plano diretor municipal que fornecerá, em cada caso, a definição material dessa função, daí a necessidade de legislação específica complementar.

Quanto ao art. 7º, que muita polêmica tem causado, Medauar e Almeida defendem sua constitucionalidade com fundamento no art. 182, §4º, II, da CF, havendo, no entanto, a necessidade de ser regulamentado por lei municipal. O impedimento que havia para a cobrança do IPTU progressivo tornar-se aplicável era a edição da lei federal, agora suprida pela edição do EC.

De outro lado, o art. 8º, referente à desapropriação com pagamento em títulos, tem, para os autores Santos e Mukai, natureza inconstitucional; para Santos (2004:114), tal dispositivo conflita com a norma constitucional do art. 5º, inciso XXIV, que determina os pressupostos da desapropriação e a forma de pagamento, que deverá ser em dinheiro e não em título público. Da mesma forma pensa Mukai (2001:12), pois tal dispositivo não leva em conta a justa indenização prevista no art. 5º, inciso XXIV da CF.

O art. 10 é outro ponto que merece destaque. Trata-se da usucapião, já prevista na lei civil, mas que foi ampliada com o EC, que previu também a usucapião coletiva. Santos nada questiona acerca da sua constitucionalidade; já Mukai afirma que a nova figura, com requisitos próprios, é de duvidosa constitucionalidade, pois pode ofender o direito de propriedade.

Outra controvérsia pode ser verificada com relação ao art. 25, que diz respeito ao direito de preempção, que confere ao poder público municipal preferência na aquisição de imóvel urbano que seja objeto de alienação onerosa entre particulares. Para Santos (2004:138-139), tal dispositivo esbarra mais uma vez no direito de propriedade, e também no fato de que, havendo interesse do poder público na aquisição de imóvel, esse interesse deve basear-se em necessidade, utilidade pública ou interesse social, e para tanto haverá a desapropriação. Portanto, entende ser inconstitucional tal dispositivo. Mukai (2001:20), por sua vez, não se manifesta contrário a tal instrumento.

Os autores divergem também quanto ao chamado Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), previsto no art. 36 do EC. Para Santos (2004:161), novamente o dispositivo fere o direito de propriedade, bem como sua utilidade, pois restringe o direito à construção frente aos interesses do vizinho. Todavia, acrescenta que pode ser um instrumento de grande valia nas cidades em rápido crescimento. Mukai, por sua vez, ressalta que a matéria do EIV seria administrativa, sendo, inclusive, desnecessária sua regulação em lei federal, mas nada questiona acerca da sua constitucionalidade (2001:31-32).

De forma geral, percebe-se que os questionamentos quanto à constitucionalidade de muitos dos dispositivos ainda se prendem ao fato de que ditos instrumentos violam o direito de propriedade do indivíduo, até então considerado intocável, mas que, com o advento da CF de 1988 e com o Novo Código Civil, passou a ser relativizado. Isso porque, devido às constantes transformações sociais e políticas do período de modernidade reflexiva, o direito de propriedade também tem sofrido um processo de reflexividade entre os especialistas. Foi um direito forjado na primeira geração de direitos, no período da modernidade simples, tinha como marca a individualidade (concepção atomística da realidade, paradigma disjuntor-redutor); era um direito inviolável e absoluto.

Também o progresso material era visto como tendência linear, o que passou a ser inconciliável com a nova geração de direitos difusos e coletivos, entre eles a proteção ao meio ambiente - incorporados na CF e no EC. A noção de sustentabilidade do desenvolvimento implica a resistência a uma concepção linear e simplista com uma concepção complexa, dialógica, plural. Conforme diz Ribeiro (2005:60), "o que deve ser sustentável não é a cidade, mas o estilo de vida urbano, que tem nas cidades mais uma forma de manifestação".

Este artigo contribui para uma melhor organização do debate público. Entendemos que uma compreensão consistente do EC vai além do debate entre especialistas e além de uma interpretação mecanicista da lei como um conjunto de "instrumentos" que devem ser "implementados", conforme sugere a obra Estatuto da Cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos (Rolnik, 2002). Essa obra - uma realização do Instituto Pólis com apoio da Câmara dos Deputados, da Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior, da Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência República e da Caixa Econômica Federal - é uma contribuição sem dúvida relevante, por seu detalhamento, mas mantém-se vinculada principalmente a uma concepção disjuntora-redutora de mundo, a partir da interpretação do direito urbanístico como especialidade superior de conhecimento. A propósito da crise de paradigmas no âmbito do direito, recomenda-se a análise da contribuição de Boaventura Santos (2000).

4. Vigilância sociopolítica do Estatuto da Cidade

Mesmo com as divergências acima apontadas, parece haver consenso entre os especialistas sobre o fato de que a edição dessa lei representa um importante avanço em matéria urbanística no Brasil que, durante muito tempo, foi relegada a segundo plano, o que acabou por gerar consequências desastrosas para as cidades brasileiras - marcadas pela fragmentação, segregação, ineficiência, tecnocracia, clientelismo, anomia, poluição e violência.

Segundo Bassul (2005:25-26),

voluntária ou involuntariamente, a gestão tecnocrática alimentou um processo caracterizado, de um lado, pela apropriação privada dos investimentos públicos e, de outro, pela segregação de grandes massas populacionais, em favelas, cortiços e loteamentos periféricos, excluídas do acesso a bens, serviços e equipamentos urbanos essenciais.

Evidentemente, diante dessa situação, o que se impõe é uma complexidade desorganizada sobre uma compreensão crítica, plural e aberta - o que representa o maior obstáculo ao direito urbanístico, no contexto da crise de paradigmas. Para Medauar e Almeida o EC é um conjunto de figuras jurídicas, um instrumental a ser operacionalizado em nível municipal, adaptado à realidade de cada cidade. O estatuto fornece os parâmetros aos executivos e legislativos municipais para a elaboração de suas leis e planos urbanísticos, que devem seguir as diretrizes fixadas na lei, com a participação da coletividade.

Se a mera edição de lei não implica necessariamente sua aplicação, como ocorre com frequência no Brasil, como o movimento sociopolítico de reforma urbana se posiciona quanto à questão da sua efetiva implementação pelos municípios?

Tal questão não consta nas obras acima comparadas, o que denota certa indiferença dos especialistas quanto à mobilização social como ingrediente necessário à implementação do estatuto. Para encontrar uma resposta, nesse sentido, analisamos informações de diversos websites relacionados à questão urbana, especialmente o do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), que representa o MNRU, e o do Instituto Pólis (que faz parte do FNRU).

O FNRU participa do Conselho Nacional das Cidades, especialmente no Comitê Técnico da Habitação, mas também em outros comitês. Nos artigos encontrados em websites há uma avaliação predominantemente positiva da atuação do Ministério das Cidades pelo FNRU na condução do projeto de desenvolvimento urbano proposto, denominado PNDU (Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano). No entanto, também está claro para o FNRU que a atuação do Ministério das Cidades não pode deixar de ser constantemente acompanhada pelo movimento, de forma que somente com uma contínua pressão, divulgação e acompanhamento, além de suporte técnico e científico, será possível avançar na democratização do espaço urbano.

No documento Síntese do Encontro Nacional do FNRU, evento realizado nos dias 15 e 16 de julho de 2005, encontramos várias propostas de atuação do movimento, entre as quais se destacam: a) conduzir os processos de elaboração dos planos diretores de forma articulada; b) discutir os instrumentos prioritários para a política do FNRU; c) montar um banco de relatos de experiências independente do Ministério das Cidades; d) produzir materiais didáticos e pedagógicos; e) conduzir um processo de monitoramento após a elaboração dos planos diretores; f) sistematizar e divulgar processos de impedimento de planos diretores que foram elaborados sem participação popular; g) mobilizar movimentos populares para participar do processo de elaboração dos planos diretores.

O FNRU posicionou-se formalmente contra a substituição do ministro Olívio Dutra, ex-prefeito de Porto Alegre, pelo atual ministro Márcio Fortes de Almeida. Cabe observar que a experiência administrativa dele está vinculada principalmente a órgãos de agricultura, não tendo sido prefeito de nenhuma cidade. Segundo o FNRU, a mudança significou um retrocesso em relação ao pacto obtido até então, com avanço das políticas setoriais de habitação, saneamento, regularização fundiária, mobilidade e transporte.

A Marcha Nacional da Reforma Urbana e pelo Direito à Cidade, realizada em agosto de 2005, integrada por uma série de movimentos sociais, reflete a política constante de "vigilância" por parte da sociedade civil, organizada quanto ao papel desempenhado pelo governo.

Para que os planos diretores sejam de fato participativos, é preciso, segundo o FNRU, lutar pela instituição de conselhos municipais das cidades (ou de política urbana), além de lutar pela articulação com outros conselhos, o que interpretamos como uma busca de formação de capital social ou cívico.

Quanto ao conteúdo dos planos, o FNRU alerta: é preciso evitar que seja tecnocrático, muito extenso, com muitas diretrizes genéricas e bem-intencionadas, seguidas de um perfil detalhista, como predominou no passado. O FNRU quer plano diretor simples, objetivo e de fácil entendimento da população, mas reconhece um conflito importante entre o conhecimento e as demandas populares (em geral concretas e imediatas), por um lado, e, por outro, o conhecimento técnico (urbanístico e jurídico), permeado de conceitos teóricos e com perspectiva de efetivação a médio e longo prazos. A questão da natureza do conhecimento está na pauta do movimento; portanto, ainda longe de uma solução.

5. Conclusões

Com este artigo, procuramos evidenciar aspectos controversos do Estatuto da Cidade, além de sugerir que a compreensão deles está vinculada, direta ou indiretamente, às clivagens epistemológica e político-institucional da modernidade, sintetizadas no quadro. Com efeito, o EC é uma lei que está marcada por uma história de mobilização social, simbolizada pelo MNRU/FNRU e pelo movimento ambientalista, pelos conceitos de sustentabilidade e de democracia participativa.

Entendemos que os desafios enfrentados nas tentativas de implementação do EC renovam os desafios relacionados à elaboração e implementação das Agendas 21 locais, e que, subjacentes a elas, persistem as clivagens da modernidade industrial. Estas dificultam o diálogo e a mobilização social, por intermédio das forças dominantes, seja quanto à concepção de ciência (ou saber confiável), seja quanto à concepção de cidade sustentável. Para os que defendem o paradigma da complexidade, a terceira via e geração de capital social, o enfoque monodisciplinar ou disjuntor-redutor constitui-se como grande obstáculo, muitas vezes mal diagnosticado nas contribuições setorialistas, nas diversas áreas segmentadas das políticas públicas. O EC, assim, é produto de uma crise das forças dominantes no sentido de reproduzir suas concepções de mundo, assim como é fruto de um esforço de atores sociais em busca de alternativas nem sempre bem-compreendidas.

O chamado direito a cidades sustentáveis, inscrito no EC, remete para uma utopia na sociedade brasileira contemporânea, já que a sustentabilidade não pode ser concebida de forma isolada em cada localidade. Os desafios intermunicipais não são passíveis de compreensão sem uma abordagem da própria globalização - e esta, por sua vez, não se limita à dimensão econômica (implicando também as dimensões culturais, políticas e ecológicas).

Entretanto, o EC é um recurso indispensável à ação que visa a uma resistência à insustentabilidade hegemônica - especialmente em âmbito global - ou à conquista gradual da sustentabilidade socioambiental, viável a partir de articulação de projetos locais e regionais. O que está em disputa no debate do EC são os recursos para a compreensão dos desafios de sua implementação, que envolvem diversos fatores, especialmente os três seguintes: a) a abordagem comparativa entre os enfoques de especialistas do direito urbanístico; b) abordagem inter e transdisciplinar, com a contribuição do paradigma da complexidade; c) abordagem democrático-participativa, com políticas públicas orientadas pelas teorias e experiências relativas à terceira via e à formação de capital social.

Por fim, é relevante ressaltar as limitações deste artigo, reconhecendo a necessidade de uma continuidade da pesquisa, com atualização dos dados documentais e empíricos, além de uma abordagem teórico-paradigmática mais consistente.

Artigo recebido em ago. 2006 e aceito em mar. 2008.

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  • *
    Os autores agradecem à Universidade do Vale do Itajaí (Univali) pelo financiamento da pesquisa, conforme Programa de Integração Pós-graduação e Graduação (PIPG).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Recebido
      Ago 2006
    • Aceito
      Mar 2008
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