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Percepções analíticas da crise econômica e racionalidade política

SEÇÕES ESPECIAIS

A CONJUNTURA DAS ESCOLHAS PÚBLICAS

Percepções analíticas da crise econômica e racionalidade política

Jorge Vianna Monteiro

Professor de políticas públicas da Escola Brasileira de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Ebape/FGV) e professor associado do Departamento de Economia da PUC-Rio. Endereço: PUC-Rio - Departamento de Economia - Rua Marquês de São Vicente, 225 - Gávea - CEP 22453-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jvinmont@econ.puc-rio.br

Um comentário estabelecido a partir do modelo analítico da public choice - uma vertente da moderna economia política que considera as políticas públicas resultado da interação social, sob instituições de governo representativo.

Coordenação: Jorge Vianna Monteiro

1. Introdução

Em meados de 2009, a crise econômica que irrompeu há um ano na economia dos EUA e rapidamente se espalhou pelo mundo, dá sinais mistos de atenuação e de perpetuação de efeitos negativos.

Uma das previsões que podem ser feitas para o futuro próximo é a de que as economias nacionais estarão sob a pressão de reconfigurar muitas das regras que dão conteúdo ao processo político, muito especialmente na dimensão constitucional, para que a estrutura das escolhas públicas em operação reflita o consenso da sociedade e não uma improvisada via rápida que prestou serviços à solução de problemas de política pública específicos, como observado em 2008 e nos meses iniciais de 2009.

Os resultados até aqui obtidos com a política de reação à crise mostram tanto as vantagens quanto as desvantagens de se utilizar de instituições e mecanismos decisórios já existentes para lidar com as situações de incerteza e risco que se apresentam correntemente (Congleton, 2009:41):

por um lado, os problemas de política econômica são decorrentes em grande parte dos próprios vícios de procedimentos que há longo tempo integram a formulação de estratégias dos agentes públicos e privados;

por outro lado, a associação da autoridade monetária com a principal unidade decisória política (Ministério da Fazenda ou equivalente) tem se mostrado crucial na articulação dos esforços anticrise, chegando por vezes a estender inovadoramente suas missões convencionais na formulação e operacionalização das escolhas públicas.

A seção 2 trata da inexorável dinâmica dos grupos de interesses preferenciais que se desdobra nessa trajetória macroeconômica.

Em outra dimensão, a nova onda de escândalos1 1 Intensificada a partir do segundo trimestre de 2009. no Congresso Nacional ou, mais especificamente, no Senado Federal, leva a que sejam sugeridas novas regras ad hoc para disciplinar o comportamento dos legisladores, direcionando-os ao atendimento do interesse coletivo. Digamos ser essa uma abordagem correcional.

Essa é uma tentativa de delimitar localmente disfunções que, em verdade, se originam em um contexto mais amplo: o da própria representação política por via constitucional e eleitoral. Ou seja, o que se evidencia nesses fatos é um desvirtuamento de toda a noção de democracia representativa, muito mais do que uma falha gerencial ou administrativa da organização legislativa. Ao mesmo tempo, não se trata de enquadrar comportamentos que reflitam o despreparo deste ou daquele legislador, mas a ausência de induções que façam com que o cálculo de estratégias dos políticos se reconfigure em novas bases, independentemente de quem seja o político ou a que partido se filie, e que possibilite que o interesse geral ou coletivo seja servido.2 2 Portanto, o que se torna necessário é promover uma reforma, anteriormente a modificar regras operacionais específicas do Regimento Interno da Câmara dos Deputados ou do Senado.

A seção 3 explora essa perspectiva de análise.

2. Dinâmica da crise

Várias são as sinalizações quanto ao tipo de consenso que será demandado no atual estágio do ajuste econômico que se promove nas diversas economias mundiais (e o Brasil não é exceção):

o tamanho da economia pública - o governo como unidade orçamentária, tanto quanto unidade de controle, são faces da politização dos arranjos econômicos que têm se expandido significativa e aceleradamente;3 3 A arquitetura constitucional das democracias é pouco receptiva a esse tipo de desdobramento das escolhas públicas, de modo que correntemente a ordem constitucional vai se apresentando cada vez mais como um conjunto de regras de pouca estabilidade. Em decorrência, essas regras irão requerer um novo design que promova o seu efetivo sentido de mecanismo de coordenação de expectativas, tanto quanto o de balizamento aos poderes governamentais (Ordeshook, 1992).

a garantia de titularidades - direitos assegurados em áreas como a trabalhista e previdenciária muito provavelmente deverão ser redefinidos, no rastro da adoção de mecanismos institucionais que previnam a ocorrência de novas crises de características similares à atual;4 4 Um aspecto dessa reforma é a pressão pela retomada do crescimento econômico, o que induzirá a que antigas reivindicações quanto ao rebaixamento dos custos trabalhistas ganhem maior expressão no debate político.

o sistema da separação de poderes - haverá uma contraposição à tendência que já vinha sendo observada anteriormente à crise (e que se acentuou ao longo da crise) quanto à hipertrofia do poder da alta gerência econômica do Executivo.5 5 As adaptações que têm sido feitas no processo decisório público têm comprometido substancialmente as vantagens do sistema decisório tricameral de interação do Executivo e do Congresso. Com isso, ainda que deputados e senadores sejam chamados a aprovar medidas emergenciais, isso se dá ante a pressão de decidir sobre uma agenda que é fundamentalmente ad hoc, definida e operada pelos burocratas do Executivo. Para um estudo de caso, ver "Plano Real & disfunção institucional", Estratégia Macroeconômica, v. 17, n. 418, 29 jun. 2009, e "Plano Real & disfunção institucional - II", Estratégia Macroeconômica, v. 17, n. 419, 13 jul. 2009.

A crise vem causando fortes impactos sobre as instituições políticas e a formulação de políticas. Por consequência, certas dimensões da crise acabam exacerbadas ou mais complexas. A figura 1 capta essa relação de causa e efeito.


Um exemplo observável em várias economias nacionais é o recondicionamento da política de ajuste fiscal: com a forte expansão dos gastos públicos na jurisdição federal, e diante da queda da arrecadação tributária, as demais jurisdições de governo passam a pressionar o governo central para aumentar o seu quinhão nesses novos gastos federais, tanto quanto para que se redefinam as regras do federalismo fiscal.6 6 Uma evidência muito didática a essse respeito, e que tem expressão análoga no caso brasileiro, é apresentada em "The influence game: lobbyists prosper in downturn", Washington Post, 3 maio 2009, em que se discute a relação de custo/benefício com que se confrontam os prefeitos de cidades dos EUA, em sua opção por pressionar o governo central, contratando serviços especializados de lobistas.

Na figura 1, essa é uma ocorrência perversa que ilustra a sequência [4] → [5].7 7 De longa data entende-se que o rent seeking gera potenciais custos sociais, em pelo menos três frentes (Olson, 1982): (a) tornando o processo político mais fragmentado, de vez que os grupos de interesse acabam por traduzir-se em coalizões políticas efetivas, compromete-se a eficiência e a renda agregada; (b) as transferências de renda e riqueza empreendidas a favor desses grupos amortecem a capacidade da economia nacional em adaptar-se a novas tecnologias e a realocar recursos, reduzindo, ademais, as chances de crescimento econômico; (c) tais coalizões distributivas aumentam, por outro lado, a complexidade da própria regulação econômica, do papel desempenhado pelo governo, e mesmo o entendimento de todo o envolvimento governamental na economia.

O sentido mais desejável das regras do jogo é que elas gerem incentivos positivos e, por seu turno, comportamentos virtuosos dos participantes do jogo, ou seja, produzam escolhas que promovam o bem-estar coletivo ou geral. Em contraposição, o processo político é inerentemente a fonte de potenciais atendimentos preferenciais tais como desonerações tributárias, subsídios, fundos orçamentários, barreiras alfandegárias e regulações de mercado de todo tipo e, desse modo, levando a ganhos e perdas de incidência muito localizada (Monteiro, 2007, cap. 6).8 8 Tal ocorrência ganha notoriedade no mundo contemporâneo, uma vez que a crise mundial tem contribuído para o avanço da intrusão governamental nos mercados. Figurativamente, pense o leitor que esse desenvolvimento é representado pelo deslocamento da fronteira entre o setor público e o setor privado: não apenas essa linha divisória avança sobre as atividades privadas, como também o padrão desse avanço segue uma trajetória sinuosa, em face da diversificação das formas que essa intrusão assume. Da perspectiva da decisão privada, indivíduos e grupos de indivíduos investem recursos reais, na tentativa de viabilizar transferências de renda e riqueza a seu favor, que somente podem ser obtidas com a anuência do processo político. Tal é o mecanismo do rent seeking (Monteiro, 2007, cap. 6).

Para minimizar os efeitos perversos desse mecanismo, uma nova rodada de mudança institucional se faz necessária - o que dá lugar a legislações que enquadram, por exemplo, atividades de lobbying, a influência de recursos privados no processo eleitoral e o uso de espaço na mídia com o propósito de aumentar as chances de que um determinado grupo de interesses privados seja atendido em sua demanda para obter benefícios ou evitar custos.9 9 A experiência da economia norte-americana oferece exemplos notáveis da importância de se disciplinar o rent seeking; experiência que é ilustrada por legislação nacional, mas especialmente aquela surgida em jurisdições estaduais. Ver a propósito a ocorrência citada mais adiante nesta mesma seção.

A mobilização de grupos privados em torno da obtenção de vantagens preferenciais também pode ter significado expressivo entre as próprias atividades dos mercados de bens e serviços. Assim, a complexidade das regras do jogo fica evidenciada no fato de que nem sempre elas regulam diretamente a interação de escolhas públicas com escolhas privadas em um dado mercado.

A figura 2 capta esse tipo de regulação pela seta [1] que, diferentemente das regulações setoriais, [2] e [3], atua sobre a interação [9]. O objetivo desse conjunto de regras [1] é minimizar os efeitos perniciosos da associação de interesses privados, e seu potencial impacto negativo no bem-estar coletivo - o que se apresenta na sequência ([1] →[9]) →([7],[8]) → [6]. Um exemplo empírico recente é a legislação surgida no estado americano de Vermont e que tem por alvo o relacionamento entre a classe médica e a indústria farmacêutica que potencialmente gera benefícios preferenciais e, portanto, compromete o interesse coletivo (no caso, o atendimento de saúde à população).10 10 A lei em questão (S.48-2009) é um extenso rol de regras que regulam o mercado de provisão de serviços médicos e o marketing no mercado farmacêutico "Vermont acts to make drug makers's gifts public", New York Times, 20 maio 2009. A tendenciosidade revelada pelas preferências da classe médica (um dos sentidos de [9] na figura 2) se dá pela aceitação de recebimentos de refeições, viagens e presentes, falsos arranjos de consultoria profissional e outros tipos de relacionamentos com firmas de biotecnologia em geral. Em termos quantitativos a ocorrência aqui apresentada está longe de ser um fato trivial. Em 2008 ("Report of Vermont attorney general", abril 2009): (a) a indústria farmacêutica daquele estado norte-americano gastou cerca de US$ 3 milhões em remunerações, gastos de viagem e outros pagamentos diretos a médicos, hospitais, universidades e outros destinatários, com o propósito explícito de marketing de seus produtos; (b) dos cerca de 5 mil profissionais registrados na área de cuidados de saúde, quase a metade foi alcançada por tais benefícios, sendo que cerca de 70% do montante citado acima foi direcionado aos médicos e, destes, os 100 indivíduos mais contemplados receberam a fatia de US$ 1,8 milhão; (c) em razão de outras regras em vigor, somente 17% dos pagamentos feitos pela indústria farmacêutica à classe média eram divulgados publicamente.


O comprometimento do interesse coletivo ([7],[8]) → [6] é identificado em duas vertentes: preferência pela prescrição de uma determinada marca de produto, em detrimento de marcas dos competidores, ainda que essa alternativa possa ser mais benéfica ao paciente; os médicos podem ser induzidos a receitar drogas novas, mais caras e possivelmente mais perigosas para a vida humana.

A mencionada legislação, [1], estabelece detalhada regulação da interação [9], com o propósito geral de submeter esse relacionamento a algum tipo de formalização e maior transparência.

A reflexão que fica é o vazio institucional em que as diversas interações mostradas na figura 2 se processam na economia brasileira. Pense o leitor na virtual inexistência de regulação do lobbying. Assim, pode-se inferir que são substancialmente elevados os desvios com que as políticas públicas são providas, relativamente ao atendimento do interesse coletivo, com o comprometimento de recursos que direcionados ao rent seeking deixam de ser utilizados com maior produtividade, por exemplo, na expansão da produção de bens e serviços.

3. Racionalidade das regras eleitorais

Os mecanismos democráticos podem se relacionar uns aos outros, seja como complementos, seja como substitutos, isto é, um dado mecanismo pode aumentar ou diminuir os benefícios líquidos de outro (Vermeule, 2009).

Tomem-se no processo político as regras de financiamento de campanhas eleitorais.

Por complementaridade, essas regras reforçam as decisões majoritárias no Congresso, na medida em que elas dão a tais decisões maior grau de responsabilização (accountability): a disfunção no financiamento das eleições leva a que os processos legislativos majoritários acabem por favorecer grupos de interesses preferenciais que podem influenciar o comportamento de deputados e senadores a um baixo custo e, portanto, induzindo a um déficit de responsabilização.

Por outro lado, como exemplo de relação de substituição entre mecanismos democráticos, seja a adoção de regras de financiamento eleitoral e outro conjunto de regras que deem transparência à deliberação legislativa. A legislação eleitoral pode anular total ou parcialmente os benefícios de um processo de escolhas mais equânime e transparente, na extensão em que as regras de financiamento de campanhas favoreçam a interesses organizados, tanto quanto ao aumento puro e simples da quantidade de legislação.

A figura 3 é um expediente didático que singulariza alguns desses aspectos que, de uma forma ou de outra, têm sido apenas superficialmente tratados nas discussões correntes no Congresso sobre o financiamento público de campanhas.


As regras para o financiamento de campanha atendem a duas racionalidades simultaneamente, embora possam atuar muito desigualmente numa e noutra frente.

Vinculam-se a um esforço antissuborno dos agentes públicos.

Nessa perspectiva, o propósito geral é o de restringir a provisão e o uso de fundos de campanha: pelo lado da oferta, impondo-se limites às contribuições individuais ou de grupos; pelo lado da demanda, limitando-se os gastos dos candidatos e dos partidos políticos.

Pela sequência (1) → (3) →(4), por exemplo, o financiamento de campanha pouco regulado ou regulado de modo equivocado pode não ter a virtude de canalizar informação sobre as escolhas relevantes para o processo decisório dos políticos. Ao invés, ele pode dar aos mais economicamente fortes uma vantagem política arbitrária e injusta (Noveck, 2009:8) - o que acabará por se refletir no padrão de políticas econômicas (4) → (5).

Operam como um mecanismo de provisão igualitária de bem-estar.

Abundância de recursos de campanha (financeiros e não financeiros) e desigualdade de acesso a tais recursos acaba por desequilibrar a influência de diferentes segmentos da sociedade sobre o resultado eleitoral, tanto quanto sobre as escolhas públicas. Afinal, a sequência (6) → (7) pode atuar autonomamente na promoção de um padrão de políticas de benefícios líquidos substancialmente concentrados. Mesmo porque, "na medida em que se valoriza a diversidade na concentração de poder, os mecanismos da democracia devem ser tão independentes quanto possível do poder concentrado na esfera econômica" (Overton, 2004:100).

Ao mesmo tempo, diante da pouca efetividade de muitas das restrições que têm sido impostas às finanças de campanha, pode-se definir uma estratégia de disclosure (1), seja pelo total acesso à informação dos financiadores - o que se propõe a neutralizar a corrupção política, seja, ao contrário, criando uma "urna secreta de doações" e, assim, deixando o candidato na ignorância quanto à identidade de seus doadores (Ackerman e Ayres, 2002).

Todavia, esses são temas que envolvem problemas nada triviais (Noveck, 2009), uma vez que a opção por uma dada estratégia de disclosure permite estabelecer um controle sobre precisamente que tipo de informação estará disponível para instrumentar a regulação eleitoral, e também que informação poderá ser ocultada de modo a impedir que decisões impróprias ou corruptas sejam tomadas. Uma dificuldade concreta nesse sentido é que a disponibilização de informação relativa a quem doa quanto a qual candidato ou partido pode, afinal, ser perversa: tal informação pode não ter maior impacto nas escolhas legislativas, (4) → (5) e, no entanto, facilitar a que grupos de interesses preferenciais operem o mecanismo de rent seeking em proveito próprio (Noveck, 2009:42).

Assim, falta na habitual discussão sobre novas regulações do financiamento eleitoral reconhecer que a escolha a ser feita não é propriamente entre não ter disclosure e ter disclosure total: torna-se crucial estabelecer qual informação deve se tornar disponível e em que formato (Garrett, 2003:1012; Monteiro, 2007:158-160).11 11 No âmbito das sequências mostradas na figura 3, essa é uma parte essencial para que se possa melhor enquadrar o significado dos mecanismos da democracia representativa, tanto quanto do uso de "dinheiros políticos" que promoveriam a corrupção do processo legislativo (Noveck, 2009:42).

4. Conclusão

Diversas considerações estratégicas sublinham a complexidade da crise atual, assim como são indicativas de dimensões que, mais cedo ou mais tarde, deverão ser reconhecidas para lidar com as decorrências da própria crise, tanto quanto para assegurar de que um abalo dessa magnitude não volte a ocorrer ou deixe de ser detectado a tempo. Entre outras:

a economia pública sempre criticada por seu tamanho exagerado e por sua ineficiência, sobretudo em países emergentes, deverá ser percebida pela qualidade de seu planejamento;12 12 Por certo, a visão liberal do Estado intervencionista passa por uma reavaliação. Afinal, o Primeiro Mundo - de governos de tamanho mais contido e mercados eficientes - apresenta-se hoje em desalinhamento: a regulação, o gasto público e o desequilíbrio das contas públicas assumem proporções avassaladoras, justo em razão do reconhecimento da substancial - e só agora detectada - ineficiência de seus mercados mais estratégicos, tais como bancário, hipotecário, segurador, e automotivo. A própria geração de emprego pelo setor público apresenta-se como contraponto para compensar a talvez definitiva extinção de postos de trabalho no setor privado que a crise acarretou. Como coadjuvante, a estatização virtual e transitória de atividades privadas (sobretudo bancos e seguradoras) torna essa geração de empregos ainda mais significativa. Assim, a economia pública se expande simultaneamente nas frentes orçamentária, regulatória e de produção de bens e serviços - algo não observado há longo tempo.

por força de expectativas negativas e da queda de demanda, os mercados de bens e serviços têm sido enxugados em número de firmas, de tal sorte que generalizadamente se observa estruturas de mercado de "competição entre poucos", com significativo risco de práticas monopolísticas e de cartel;13 13 Reforçando, portanto, a intervenção do Estado - o que irá requerer inovação na forma e conteúdo da regulação econômica, uma vez que mesmo em mercados já regulados esse tipo de intrusão governamental revelou-se, especialmente nas economias do Primeiro Mundo, amplamente ineficaz.

o delicado equilíbrio de forças entre os departamentos de governo fica duradouramente alterado, com a transferência de poder decisório da legislatura para a alta gerência do Executivo;14 14 O que até o surgimento da crise era tido por uma disfunção ou imperialismo da ação executiva de governo, progressivamente toma a forma de um processo de escolhas públicas talhado para lidar com a emergência econômica. Nesse sentido, pode-se notar o impacto que essa mudança trará para a própria arquitetura constitucional. Em economias como a norte-americana e a brasileira é previsível uma reconfiguração do sistema de separação de poderes: nos EUA, já bastante abalado pelos poderes excepcionais de que se tem lançado mão, primeiro, na política antiterrorismo, e, segundo, na reação à crise, desde meados de 2008; no Brasil, pelo uso continuado do mecanismo da emissão de MPs. Em ambos os casos, o Congresso tem sido enfraquecido pela hipertrofia do poder de propor do Executivo. Por fim, vale observar dois outros níveis de reconfigurações na arquitetura decisória pública que já começam a se delinear no caso norte-americano: na divisão de tarefas entre a autoridade monetária e unidades decisórias encarregadas do planejamento macroeconômico e orçamento (Tesouro, por exemplo). A esse respeito, ver "Behind the scenes, fed chief advocates bigger role", New York Times, 24 jun. 2009; em razão dos poderes excepcionais que o Executivo vai assumindo na reação à crise econômica (o que acaba por ter o significado de uma extensão virtual do poder de mando do governo), uma nova classe de problemas pode demandar maior grau de deferência com que o Judiciário poderá tratar as iniciativas do Executivo. Ver a propósito "New justice could hold the key to presidential power", New York Times, 25 maio 2009.

o avanço da fronteira pública tanto quanto sua maior diversidade leva a que o mecanismo de obtenção de transferências de renda e riqueza junto ao processo político (rent seeking) mostre-se mais ativo e sofisticado, o que se reflete na necessidade imperiosa de criar ou alterar as regras que disciplinem mais efetivamente o lobbying, o uso de recursos privados em campanhas eleitorais, bem como a concentração de poder no mercado da mídia;15 15 Essas são as principais avenidas pelas quais transitam os interesses preferenciais em suas articulações junto a políticos e burocratas. Em tempos de generalizada escassez de recursos públicos, o atendimento de objetivos de interesse coletivo deverá ser revitalizado. De igual modo, diante da presença mais volumosa e variada do governo nos mercados de bens e serviços, há que zelar mais efetivamente pela governança ética. Incidentalmente, este último aspecto tem importantes conexões com a análise desenvolvida na seção 3.

muito embora haja evidências de maior regulação transnacional (sobre paraísos fiscais, por exemplo), pode-se especular que as economias nacionais operarão sob regras menos limitativas, ditadas por organismos como a OMC, o FMI e o Banco Mundial;16 16 Como observado nos últimos meses, a racionalidade econômica de grande parte dessas instâncias de decisão global tornou-se uma armadilha para o equacionamento de políticas anticrise de sucesso e, pode-se mesmo argumentar que, em alguns casos, o receituário multinacional tornou mais frágil a capacidade de reação de muitas economias nacionais. É provável que surja, por exemplo, um "novo protecionismo", em que práticas discriminatórias no comércio internacional sejam requalificadas, aceitando-se maiores graus de liberdade nas políticas protecionistas dos mercados nacionais.

a formulação de nonmarket strategies ("estratégias de ação coletiva" Monteiro, 2004, figura 3) por parte das firmas torna-se ainda mais fundamental e complexa no cenário pós-crise, como garantidora de sucesso de mercado;17 17 Às estratégias convencionais de mercado ( market strategies), as firmas agregam seus planos de interação com a presença do governo nos mercados em que operam (Monteiro, 2004:18-22). Nesse sentido, elas devem investir em capacidade de prospecção e entendimento dos mecanismos do processo político, tanto quanto na demanda por atendimento junto ao processo político (usando as vias do lobbying, doações de campanha e de espaço na mídia).

a crise oferece uma ocasião para que se redefinam padrões de reforma institucional para temas como a alocação de poderes emergenciais aos governos e a operacionalização de formas de articulação das várias instâncias governamentais.18 18 No Brasil, é provável que o disciplinamento de mecanismos constitucionais como a emissão de MPs e o federalismo fiscal seja redefinido em novas bases. Em que extensão o Congresso deve assumir maior controle sobre a formulação de políticas públicas, em um ambiente de crise econômica? Qual o significado de se usar o Fundo de Participação de Estados e Municípios, como recurso compensatório da perda conjuntural de receitas de estados e municípios, comparativamente a ser uma ferramenta estrutural que define o arranjo federativo? Tais parecem ser questões cujas respostas serão reconsideradas, ante a experiência da crise.

  • ACKERMAN, B.; AYRES, I. Voting with dollars: a new paradigm for campaign finance. New Haven: Yale University Press, 2002.
  • CONGLETON, R. On the political economy of the financial crisis and bailout of 2008 George Mason University, 2009. (Center for Study of Public Choice Working Paper Series).
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  • ______. The interaction of democratic mechanisms Harvard Law School, 2009. (Public Law & Legal Theory Working Paper Series, 9-22).
  • 1
    Intensificada a partir do segundo trimestre de 2009.
  • 2
    Portanto, o que se torna necessário é promover uma
    reforma, anteriormente a modificar regras operacionais específicas do Regimento Interno da Câmara dos Deputados ou do Senado.
  • 3
    A arquitetura constitucional das democracias é pouco receptiva a esse tipo de desdobramento das escolhas públicas, de modo que correntemente a ordem constitucional vai se apresentando cada vez mais como um conjunto de regras de pouca estabilidade. Em decorrência, essas regras irão requerer um novo
    design que promova o seu efetivo sentido de mecanismo de coordenação de expectativas, tanto quanto o de balizamento aos poderes governamentais (Ordeshook, 1992).
  • 4
    Um aspecto dessa reforma é a pressão pela retomada do crescimento econômico, o que induzirá a que antigas reivindicações quanto ao rebaixamento dos custos trabalhistas ganhem maior expressão no debate político.
  • 5
    As adaptações que têm sido feitas no processo decisório público têm comprometido substancialmente as vantagens do sistema decisório tricameral de interação do Executivo e do Congresso. Com isso, ainda que deputados e senadores sejam chamados a aprovar medidas emergenciais, isso se dá ante a pressão de decidir sobre uma agenda que é fundamentalmente
    ad hoc, definida e operada pelos burocratas do Executivo. Para um estudo de caso, ver "Plano Real & disfunção institucional",
    Estratégia Macroeconômica, v. 17, n. 418, 29 jun. 2009, e "Plano Real & disfunção institucional - II",
    Estratégia Macroeconômica, v. 17, n. 419, 13 jul. 2009.
  • 6
    Uma evidência muito didática a essse respeito, e que tem expressão análoga no caso brasileiro, é apresentada em "The influence game: lobbyists prosper in downturn",
    Washington Post, 3 maio 2009, em que se discute a relação de custo/benefício com que se confrontam os prefeitos de cidades dos EUA, em sua opção por pressionar o governo central, contratando serviços especializados de lobistas.
  • 7
    De longa data entende-se que o
    rent seeking gera potenciais custos sociais, em pelo menos três frentes (Olson, 1982): (a) tornando o processo político mais fragmentado, de vez que os grupos de interesse acabam por traduzir-se em coalizões políticas efetivas, compromete-se a eficiência e a renda agregada; (b) as transferências de renda e riqueza empreendidas a favor desses grupos
    amortecem a capacidade da economia nacional em adaptar-se a novas tecnologias e a realocar recursos, reduzindo, ademais, as chances de crescimento econômico; (c) tais coalizões distributivas aumentam, por outro lado, a complexidade da própria regulação econômica, do papel desempenhado pelo governo, e mesmo o entendimento de todo o envolvimento governamental na economia.
  • 8
    Tal ocorrência ganha notoriedade no mundo contemporâneo, uma vez que a crise mundial tem contribuído para o avanço da intrusão governamental nos mercados. Figurativamente, pense o leitor que esse desenvolvimento é representado pelo deslocamento da
    fronteira entre o setor público e o setor privado: não apenas essa linha divisória avança sobre as atividades privadas, como também o padrão desse avanço segue uma trajetória sinuosa, em face da diversificação das formas que essa intrusão assume. Da perspectiva da decisão privada, indivíduos e grupos de indivíduos investem recursos reais, na tentativa de viabilizar transferências de renda e riqueza a seu favor, que somente podem ser obtidas com a anuência do processo político. Tal é o mecanismo do
    rent seeking (Monteiro, 2007, cap. 6).
  • 9
    A experiência da economia norte-americana oferece exemplos notáveis da importância de se disciplinar o
    rent seeking; experiência que é ilustrada por legislação nacional, mas especialmente aquela surgida em jurisdições estaduais. Ver a propósito a ocorrência citada mais adiante nesta mesma seção.
  • 10
    A lei em questão (S.48-2009) é um extenso rol de regras que regulam o mercado de provisão de serviços médicos e o marketing no mercado farmacêutico "Vermont acts to make drug makers's gifts public",
    New York Times, 20 maio 2009. A tendenciosidade revelada pelas preferências da classe médica (um dos sentidos de [9] na
    figura 2) se dá pela aceitação de recebimentos de refeições, viagens e presentes, falsos arranjos de consultoria profissional e outros tipos de relacionamentos com firmas de biotecnologia em geral. Em termos quantitativos a ocorrência aqui apresentada está longe de ser um fato trivial. Em 2008 ("Report of Vermont attorney general", abril 2009): (a) a indústria farmacêutica daquele estado norte-americano gastou cerca de US$ 3 milhões em remunerações, gastos de viagem e outros pagamentos diretos a médicos, hospitais, universidades e outros destinatários, com o propósito explícito de marketing de seus produtos; (b) dos cerca de 5 mil profissionais registrados na área de cuidados de saúde, quase a metade foi alcançada por tais benefícios, sendo que cerca de 70% do montante citado acima foi direcionado aos médicos e, destes, os 100 indivíduos mais contemplados receberam a fatia de US$ 1,8 milhão; (c) em razão de outras regras em vigor, somente 17% dos pagamentos feitos pela indústria farmacêutica à classe média eram divulgados publicamente.
  • 11
    No âmbito das sequências mostradas na
    figura 3, essa é uma parte essencial para que se possa melhor enquadrar o significado dos mecanismos da democracia representativa, tanto quanto do uso de "dinheiros políticos" que promoveriam a corrupção do processo legislativo (Noveck, 2009:42).
  • 12
    Por certo, a visão liberal do Estado intervencionista passa por uma reavaliação. Afinal, o Primeiro Mundo - de governos de tamanho mais contido e mercados eficientes - apresenta-se hoje em desalinhamento: a regulação, o gasto público e o desequilíbrio das contas públicas assumem proporções avassaladoras, justo em razão do reconhecimento da substancial - e só agora detectada - ineficiência de seus mercados mais estratégicos, tais como bancário, hipotecário, segurador, e automotivo. A própria geração de emprego pelo setor público apresenta-se como contraponto para compensar a talvez definitiva extinção de postos de trabalho no setor privado que a crise acarretou. Como coadjuvante, a estatização virtual e transitória de atividades privadas (sobretudo bancos e seguradoras) torna essa geração de empregos ainda mais significativa. Assim, a economia pública se expande simultaneamente nas frentes orçamentária, regulatória e de produção de bens e serviços - algo não observado há longo tempo.
  • 13
    Reforçando, portanto, a intervenção do Estado - o que irá requerer
    inovação na forma e conteúdo da regulação econômica, uma vez que mesmo em mercados já regulados esse tipo de intrusão governamental revelou-se, especialmente nas economias do Primeiro Mundo, amplamente ineficaz.
  • 14
    O que até o surgimento da crise era tido por uma disfunção ou imperialismo da ação executiva de governo, progressivamente toma a forma de um processo de escolhas públicas talhado para lidar com a emergência econômica. Nesse sentido, pode-se notar o impacto que essa mudança trará para a própria arquitetura constitucional. Em economias como a norte-americana e a brasileira é previsível uma reconfiguração do sistema de separação de poderes: nos EUA, já bastante abalado pelos poderes excepcionais de que se tem lançado mão, primeiro, na política antiterrorismo, e, segundo, na reação à crise, desde meados de 2008; no Brasil, pelo uso continuado do mecanismo da emissão de MPs. Em ambos os casos, o Congresso tem sido enfraquecido pela hipertrofia do poder de propor do Executivo. Por fim, vale observar dois outros níveis de reconfigurações na arquitetura decisória pública que já começam a se delinear no caso norte-americano: na divisão de tarefas entre a autoridade monetária e unidades decisórias encarregadas do planejamento macroeconômico e orçamento (Tesouro, por exemplo). A esse respeito, ver "Behind the scenes, fed chief advocates bigger role",
    New York Times, 24 jun. 2009; em razão dos poderes excepcionais que o Executivo vai assumindo na reação à crise econômica (o que acaba por ter o significado de uma extensão virtual do poder de mando do governo), uma nova classe de problemas pode demandar maior grau de deferência com que o Judiciário poderá tratar as iniciativas do Executivo. Ver a propósito "New justice could hold the key to presidential power",
    New York Times, 25 maio 2009.
  • 15
    Essas são as principais avenidas pelas quais transitam os interesses preferenciais em suas articulações junto a políticos e burocratas. Em tempos de generalizada escassez de recursos públicos, o atendimento de objetivos de interesse coletivo deverá ser revitalizado. De igual modo, diante da presença mais volumosa e variada do governo nos mercados de bens e serviços, há que zelar mais efetivamente pela governança ética. Incidentalmente, este último aspecto tem importantes conexões com a análise desenvolvida na seção 3.
  • 16
    Como observado nos últimos meses, a racionalidade econômica de grande parte dessas instâncias de decisão global tornou-se uma armadilha para o equacionamento de políticas anticrise de sucesso e, pode-se mesmo argumentar que, em alguns casos, o receituário multinacional tornou mais frágil a capacidade de reação de muitas economias nacionais. É provável que surja, por exemplo, um "novo protecionismo", em que práticas discriminatórias no comércio internacional sejam requalificadas, aceitando-se maiores graus de liberdade nas políticas protecionistas dos mercados nacionais.
  • 17
    Às estratégias convencionais de mercado (
    market strategies), as firmas agregam seus planos de interação com a presença do governo nos mercados em que operam (Monteiro, 2004:18-22). Nesse sentido, elas devem investir em capacidade de prospecção e entendimento dos mecanismos do processo político, tanto quanto na demanda por atendimento junto ao processo político (usando as vias do
    lobbying, doações de campanha e de espaço na mídia).
  • 18
    No Brasil, é provável que o disciplinamento de mecanismos constitucionais como a emissão de MPs e o federalismo fiscal seja redefinido em novas bases. Em que extensão o Congresso deve assumir maior controle sobre a formulação de políticas públicas, em um ambiente de crise econômica? Qual o significado de se usar o Fundo de Participação de Estados e Municípios, como recurso compensatório da perda conjuntural de receitas de estados e municípios, comparativamente a ser uma ferramenta estrutural que define o arranjo federativo? Tais parecem ser questões cujas respostas serão reconsideradas, ante a experiência da crise.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Out 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2009
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