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Equívoco analítico & celebração do Plano Real

Analytical mistake and celebration of the Real Plan

Resumos

Este artigo discute a política antiinflacionária dos anos 1990 ("Plano Real") em sua moldura constitucional, na tradição do programa de pesquisa da public choice, revelando aspectos que as análises econômicas convencionais não contemplam: deterioração do sistema de separação de poderes; intensificação do poder discricionário dos burocratas federais; custos de transação associados ao plano, em termos de redução de transparência do processo decisório de política e perda de privacidade, na perspectiva do eleitor-contribuinte.

Plano Real; política econômica; economia brasileira; medidas provisórias; economia constitucional


This article discusses the Brazilian antiinflation policy in the 90s (Real Plan) in its constitutional reference, in the tradition of the public choice research program, revealing aspects that the traditional economic analysis do not consider: the flaws of the separation of powers; he substantial discretionary power of the federal bureaucrats; the transaction costs associated with the plan in terms of reduction of policy decision transparency and privacy from the perspective of the voter-taxpayer.

Real Plan; economic policy; Brazilian economy; provisional laws; constitutional economics


Equívoco analítico & celebração do Plano Real

Analytical mistake and celebration of the Real Plan

Jorge Vianna Monteiro

Professor de políticas públicas da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Ebape/FGV) e professor associado do Departamento de Economia da PUC-Rio. Endereço: PUC-Rio - Departamento de Economia - Rua Marquês de São Vicente, 225 - Gávea - CEP 22453-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jvinmont@econ.puc-rio.br

RESUMO

Este artigo discute a política antiinflacionária dos anos 1990 ("Plano Real") em sua moldura constitucional, na tradição do programa de pesquisa da public choice, revelando aspectos que as análises econômicas convencionais não contemplam: deterioração do sistema de separação de poderes; intensificação do poder discricionário dos burocratas federais; custos de transação associados ao plano, em termos de redução de transparência do processo decisório de política e perda de privacidade, na perspectiva do eleitor-contribuinte.

Palavras -chave: Plano Real; política econômica; economia brasileira; medidas provisórias; economia constitucional.

ABSTRATC

This article discusses the Brazilian antiinflation policy in the 90s (Real Plan) in its constitutional reference, in the tradition of the public choice research program, revealing aspects that the traditional economic analysis do not consider: the flaws of the separation of powers; he substantial discretionary power of the federal bureaucrats; the transaction costs associated with the plan in terms of reduction of policy decision transparency and privacy from the perspective of the voter-taxpayer.

Keywords: Real Plan; economic policy; Brazilian economy; provisional laws; constitutional economics.

1. Introdução

Em meados de 1993, o governo brasileiro dava início a uma nova iniciativa de combate à inflação, então rotulada Programa de Ação Imediata (PAI), logo seguida, meses adiante, pela mudança da unidade monetária nacional, o real.1 1 Convencionou-se localizar o nascimento desse esforço de estabilização de preços mais consistente que um governo buscou realizar precisamente na introdução da nova moeda, o que se deu por meio de uma superdesindexação que se seguia a uma superindexação de pouco tempo antes, quando se estabeleceu a unidade real de valor (URV) (Monteiro, 2000). É prática habitual passar em revista experiências de política econômica- mesmo aquelas de maior envergadura, como o Plano Real - tomando-se em consideração apenas indicadores de desempenho global, tais como taxas de inflação, níveis de crescimento do PIB, do emprego, do consumo agregado, câmbio, contas públicas e contas externas, e agregados monetários. Nessa perspectiva, todo o ambiente institucional em que a política pública ocorre é colocado sob a cláusula do "tudo o mais constante".2 2 Ou, para usar uma nomenclatura dos anos 1930: pouco se examina o lado qualitativo da política econômica (Monteiro, 1982:91-92).

É precisamente nessa perspectiva que a atual celebração do plano3 3 Passada década e meia dessas ações anti-inflacionárias, com a proximidade das eleições em 2010 o tema ressurge com grande destaque no debate político e na mídia. acaba não resultando muito adequada. Não se trata de discutir a inevitabilidade da iniciativa ou disputar seu pronto e expressivo sucesso anti-inflacionário, mas de reconhecer certa classe de custos que tal política econômica trouxe para a sociedade brasileira, e que se estende até os dias atuais.4 4 O Plano Real já foi substancialmente examinado na perspectiva institucional (Monteiro, 1997, 2000, 2004), desse modo este artigo busca inovar, partindo de recente vertente analítica da interação de mecanismos democráticos (Vermeule, 2007, 2009). Parte dessa análise é estendida para o primeiro mandato do governo Lula em Monteiro (2009). As conclusões aqui obtidas, no entanto, podem ser vistas como complementares às apresentadas nessas referências. Ou, visto por outra perspectiva (Buchanan, 2009:152), o que as análises habituais da política econômica praticada na economia brasileira nos anos de 1990 não reconhecem é a existência de restrições, conjuntos de regras, ou, mais amplamente, regras constitucionais.

2. Repercussões nos macromecanismos institucionais

O fundamento central do plano é sua âncora institucional (Monteiro, 1997, 2000, 2004), ou seja, desde os seus primórdios, com o PAI, a iniciativa, nascida no governo Itamar Franco e aprofundada no governo Fernando Henrique Cardoso, foi alicerçada no intenso uso de poder discricionário da alta gerência do Executivo. A instrumentação do plano foi quase que integralmente a de medidas provisórias - leis muito peculiares porque sua emissão é da alçada exclusiva do presidente da República - o que, por extensão, atribui substancial poder de propor (Baron e Ferejohn, 1989) aos burocratas do Executivo.

Uma dessas peculiaridades decorre do sentido experimental das escolhas públicas que o mecanismo de medida provisória (MP) emprestava, então, aos policy makers: um conjunto de decisões postas em vigor no período t é passível de revisão em qualquer ocasião posterior e, em qualquer extensão, em t + n, sendo que n é uma variável de estratégia dos burocratas.5 5 Pelas regras constitucionais (redação original, outubro de 1988 a setembro de 2001, do art. 2 da Constituição) subentendia-se que n = 30 dias. A prerrogativa do burocrata, todavia, era a de poder ampliar esse prazo por tempo indefinido (à ocasião, a duração média da vida de uma MP típica do Plano Real era de 20 meses; Monteiro, 2000), com ou sem revalidação de todo ou parte do texto da MP.

A tabela apresenta evidência objetiva do fenômeno. Como se pode notar, o auge da utilização de MP é mesmo o período de implantação do plano: por exemplo, janeiro de 1995 a setembro de 2001 concentra mais de 4/5 da produção de MP efetivada desde outubro de 1988. Ao mesmo tempo, observe-se que no cômputo da quantidade de MP estão incluídas as reedições de MP.6 6 O argumento, muito em voga nos anos 1990, de que se devesse eliminar desse cômputo tais reedições não procede, uma vez que a reedição era, à época, parte integrante do poder de propor embutido no mecanismo de MP: a reedição era um recurso estratégico dos burocratas, para revalidar com ou sem alterações a vigência de uma MP, ao mesmo tempo que ajudava a manter a lei, e suas consequências, à margem da apreciação final pelos legisladores.

Aos fatos apresentados na tabela pode-se adicionar o significado dessa instrumentação, comparativamente à atividade legislativa de origem no Congresso Nacional, ou seja, que não tenha decorrido da aprovação de projeto de conversão de MP. Sob essa perspectiva, evidências mostradas em Monteiro (2000) estabelecem muito objetivamente o lado sombrio dessa política econômica: ocorre por todo o período de implementação do plano elevada e sustentada transferência de poder de decisão legislativa do Congresso para o Executivo, mais exatamente para a alta gerência econômica do Executivo e que:

▼ estabelece um dilema contramajoritário (Monteiro, 2007:217), no sentido de que a intensidade do uso de MP em face à produção de leis pelo Congresso retira significado à conexão eleitoral, uma vez que é a deliberação administrativo-gerencial de policy makers sem mandato eletivo que se sobrepõe às escolhas majoritárias da legislatura;

▼ por igual, promove a desabilitação do sistema constitucional da separação de poderes (art. 2o da Constituição), uma vez que o Executivo passa a concentrar poderes de definir as regras do jogo e ao mesmo tempo jogar o jogo segundo essas mesmas regras.7 7 Mais ainda quando se leva em conta que essa é uma mudança virtual nos mecanismos constitucionais, que dispensou a aprovação formal de proposta de emenda constitucional.

Percebe-se assim que o sucesso do plano, como política anti-inflacionária, não deve ser passado em revista por critérios convencionais de aferição de políticas, uma vez que essa é uma política pública que alterou o arcabouço fundamental da economia constitucional brasileira.

Uma política econômica pode ser associada ao resultado de um jogo vinculado {J1, J2} (Monteiro, 2007:39-40).

J1: de uma parte, o policy maker faz suas escolhas entre um conjunto de regras alternativas que irão vigorar nas intervenções que o governo planeja conduzir na economia nacional - essa é a fase em que o plano assume a característica de política constitucional.

J2: uma vez se tenha desenhado o ambiente institucional (definição das regras do jogo), o policy maker passa a fazer suas escolhas entre conjuntos alternativos de resultados macroeconômicos finais (taxa de inflação, nível de gasto público, entre outros).8 8 Esse é o jogo convencional de política, em que tais resultados finais pressupõem um comprometimento com uma dada configuração institucional-constitucional.

A metodologia habitual de aferição do maior ou menor grau de sucesso de uma política econômica limita-se à perspectiva J2. Tal atitude, todavia, é tanto mais precária quanto mais intensa é a reconfiguração institucional que a intervenção governamental promove, como estabelecida em J1. A condição do "tudo o mais constante", implícita nas avaliações do Plano Real, é muito abrangente, para que se possa aferir com precisão custos que essa iniciativa impôs à sociedade, em termos do abalo nos fundamentos da democracia representativa.

Ademais, a troca substancial da trajetória político-legislativa pela passagem gerencial da concepção e operacionalização das intervenções do plano impõe ao cidadão substancial custo, para que ele possa se mobilizar ex ante ou ex post, de modo a melhor se adaptar à deliberação governamental.9 9 Sobre esse aspecto, ver a seção 4, adiante.

3. Repercussões nos micromecanismos institucionais

Na seção 2, o custo social da política econômica é associado a problemas do design institucional macro ou de grande escala, vale dizer, à virtual suspensão do sistema da separação de poderes, que não atuaria contrapondo interesses dos burocratas do Executivo aos dos membros do Congresso.10 10 E eventualmente do próprio Judiciário (Monteiro, 2000). Com isso, a hipertrofia decisória nas escolhas públicas habilita um processo de escolhas públicas centrado no autointeresse do governo.

Na argumentação que se segue, o foco são os mecanismos geradores de incerteza que, operando corretamente, suprimem informações na formação de estratégias dos policy makers, induzindo-os, assim, a ser imparciais ou, dito de outro modo, a almejar atender ao interesse geral ou coletivo.

Um dos pressupostos da democracia é que os agentes públicos não atuem em prol de seus próprios interesses. À parte a benevolência ou o altruísmo inerente a esses policy makers, tais pressupostos decorrem de induções promovidas pelas regras do jogo de política econômica, ao sujeitarem esses agentes à incerteza quanto à distribuição de benefícios e ônus das decisões que eles venham a tomar.

Tal incerteza pode ocorrer por duas vertentes (Vermeule, 2007:32).

▼ Supondo que tais agentes ignorem suas funções no jogo tanto quanto seus próprios atributos (Rawls, 1999:118-23).

A ilustração didática que tanto serve de exemplo de sala de aula é a de um bolo que deve ser cortado e a primeira fatia escolhida. Os dois participantes desse experimento ignoram a priori qual deles será encarregado de dividir o bolo e a quem caberá primeiro escolher uma fatia. Nessa circunstância, a indução de ambos os participantes do jogo é optar pela regra da divisão imparcial, ou seja, cortar o bolo exatamente ao meio.11 11 Há um senso de altruísmo, benevolência e, por que não, de "justiça" nesse véu de incerteza sob o qual atuam esses participantes. Todavia, esse é um ambiente institucional muito irreal nas escolhas públicas: os burocratas do Executivo sabem muito bem a extensão e peculiaridades do poder de propor que a MP lhes franquia, em decorrência das regras constitucionais.

▼ Uma segunda forma de estabelecer o véu de incerteza nas escolhas públicas é tornar incerto o ganho que os burocratas - e o governo - possam auferir com a emissão de uma dada MP. A complexa intermediação (Monteiro, 2007:27-8) em que os resultados finais dessas decisões instrumentadas por MP se materializam faz com que o conjunto de informações de que dispõem os burocratas seja incompleto e, assim, incerto.

Essa forma de véu atua no sentido de limitar a disponibilidade das informações que o policy maker necessitaria para atuar em proveito próprio - o que é uma concepção mais plausível do que a anterior.

Porém, no regime de MP que vigorou até 11 de setembro de 2001,12 12 Isto é, anteriormente à EC n o 32 que pela primeira vez alterou as regras originais do art. 2 da Constituição. ambos os sentidos do véu de incerteza ficam sem efeito, uma vez que uma MP emitida pode manter-se com esse status interino ad infinitum, sujeita a intermináveis reedições e a alterações discricionárias (Monteiro, 1997, 2000).

De sorte que essa componente de pequena escala do ambiente democrático também fica abalada. Com isso, o "déficit de democracia" (Monteiro, 2007, apêndice B) promovido pelo uso intensivo de MP na instrumentação do plano tem fundamento tanto no macrodesign institucional (disfunções do sistema de separação de poderes), quanto no microdesign (impedimentos a que as deliberações de política sejam tomadas em bases de imparcialidade).

Ainda que a alta gerência do Executivo fosse comprometida com a promoção do interesse geral, persistiria outra dimensão das instituições de governo representativo: teriam esses emissores de medidas provisórias responsabilidade (accountability) pelas políticas do plano, perante a sociedade como um todo?

Na medida em que esses burocratas operam sob o princípio da delegação, tal responsabilização decorreria naturalmente do mandato eletivo daqueles que delegam, uma vez que poderes e funções delegadas viriam acoplados a restrições constitucionais impostas ao processo legislativo. Também sob esse aspecto os mecanismos da democracia brasileira operavam (e em certa extensão ainda operam) muito limitadamente. Os fatos consumados estabelecidos pelas MPs poderiam acabar sendo referendados pelo Congresso meses após terem sido provocados pelos burocratas.

De modo que há uma delegação pouco efetiva estabelecida pelos que detêm mandato eletivo, em prol dos que não o detêm e que atuam nos ministérios e agências reguladoras: o exercício de poder burocrático discricionário permanece elevado.13 13 Uma especificação constitucional mais explícita dessa delegação poderia atenuar esse vício da democracia. Contudo, como já referido anteriormente, isso só viria a ocorrer com a EC n o 32 e ainda assim muito imperfeitamente (Monteiro, 2009, 2007, apêndice B). A atenuante comumente apresentada a esse tipo de crítica à delegação de que o Executivo, por via do mandato eletivo presidencial, também é passível de responsabilização (Nzelibe, 200:1.217) não se aplica inteiramente aos fatos econômicos brasileiros dos anos 1990: a desproporção entre quantidade emitida de MP versus leis autonomamente aprovadas pelo Congresso é muito elevada (Monteiro, 2000), podendo alcançar a ordem de 10:1, por exemplo.14 14 Por certo que os mentores do Plano Real tomam a posição implícita de que a estrutura e a organização do Congresso brasileiro são, em certo sentido, fonte inferior de responsabilização democrática, comparativamente à que estaria atrelada ao mandato exercido pelo presidente da República. A torrente de MP que instrumenta o Plano Real (como mostrado na tabela) não deixaria de ser uma credencial democrática a lastrear todo o esforço anti-inflacionário: na melhor das hipóteses, a responsabilização não se enfraqueceria com a delegação presidencial aos burocratas.

4. Transparência versus sigilo

A transparência decisória pode ser do interesse dos legisladores, na medida em que ela encoraja eleitores a ceder aos legisladores poderes, funções e recursos que de outra forma eles não teriam disponíveis para seu uso. Contudo, esses mesmos legisladores atuam sob incentivos a manter sigilo em relação a alguns aspectos das políticas públicas, não obstante isso ser contrário às preferências dos eleitores. Por exemplo, na provisão de atendimentos preferenciais que alocam benefícios a grupos economicamente fortes e bem organizados, e que são fontes de potencial provisão de recursos às campanhas eleitorais desses legisladores. O efeito líquido dessas duas vertentes é incerto, mas é improvável que o status quo - em que vigore algum grau de sigilo - otimize a transparência.

A public choice exemplifica isso com o processo orçamentário público (Vermeule, 2007). Essa perspectiva de análise, no entanto, pode ser estendida ao mecanismo de emissão de medidas provisórias.

Nessa ordem de considerações, tem-se que custos e benefícios relacionados à transparência nas escolhas públicas podem nos levar às seguintes proposições:

▼ o sigilo decisório promove uma boa deliberação, enquanto a transparência restringe a barganha em prol do autointeresse;

▼ a transparência garante tanto a responsabilização dos legisladores (e do governo em geral) perante os eleitores - o que é bom - quanto perante os grupos de interesses preferenciais - o que é mau.

Por outro lado, a transparência de uma MP ocorre em dois contextos:

▼ o da MP em si mesma - o claro e integral entendimento de seu texto, por parte dos agentes que atuam nos mercados a que a regulação especificada na MP se dirige;

▼ o do processo de emissão da MP - a detecção dos primeiros sinais de que a MP será emitida, a discussão de seus propósitos e formato, segundo as preferências da alta gerência do Executivo, e as diversas instâncias administrativo-gerenciais pelas quais tramita a deliberação.

Por certo que esses dois contextos são inter-relacionados: quanto mais didático for o texto final da MP,15 15 E o da correspondente Exposição de Motivos. mais provável que os agentes privados, mesmo sob a incerteza de como transcorreu o processo de produção da MP, tenham percepção mais efetiva dos inputs desse processo (Vermeule, 2007:187).

Sob esse segundo ponto de vista, o ambiente administrativo-gerencial em que a MP se origina é, por natureza, dominado pelo uso de poder discricionário dos burocratas, especialmente porque a MP não é precedida de um projeto de MP ou algo similar.

Cabe ao burocrata decidir se deixa vazar ou não a informação preliminar sobre a emissão da MP e seu teor. Ao longo da implementação do plano, muitas vezes as MPs apresentam texto substancialmente longo e abarcando diferentes temas de políticas públicas, o que traduz a deliberada opção por baixo grau de transparência das regulações ali adotadas. Portanto, o grau de sigilo nessa etapa é útil para que se possa tomar uma boa deliberação de política econômica, ao mesmo tempo que o governo minimiza nessa fase a influência dos grupos de interesses.16 16 Lembro ao leitor que a transferência de poder decisório da classe política para a classe dos burocratas desvia igualmente o alvo central do lobbying desses grupos. Todavia, a sociedade como um todo será pega de surpresa com a política adotada com essa instrumentação legal: o grau de responsabilização pela escolha pública em vigor é assim muito baixo. Aos eleitores caberá se adaptar aos efeitos da MP e tentar se mobilizar na fase seguinte, quando da tramitação da MP no Congresso. Porém, nos anos 1990 essa era uma mobilização de elevado custo de transação, uma vez que a MP já teria posto em marcha efeitos concretos na economia, muitos dos quais de difícil reversão, tal como exemplificado pela mudança da unidade monetária nacional, em 1994 (Monteiro, 1997, 2000, 2004).17 17 Independentemente da questão da instrumentação do Plano Real por MP, há ainda uma ocorrência singular observada na política orçamentária pública, como ocorrido em 1994. Nesse ano, o Orçamento da União somente veio a ser estabelecido formalmente, com a aprovação do Projeto da Lei Orçamentária de 1994, após terem sido decorridos 10 meses do ano fiscal. Por consequência, nesse ano crítico do plano, a sustentação orçamentário-fiscal da política econômica foi substancialmente opaca, não tendo os cidadãos (e seus representantes eleitos no Congresso) qualquer chance de intervir nas decisões de gasto público. Nesse interregno, o governo funcionou sem qualquer controle objetivo da sociedade, uma vez que o Orçamento da União não esteve disponível por mais de 4/5 do ano fiscal. Assim, esse é um período em que se reforça adicionalmente o discricionarismo decisório nas escolhas públicas.

5. Conclusão

Sob a estrita perspectiva institucional, o Plano Real reúne duas grandes tendências.

▼ Explora no limite o sentido vago das regras de emissão e tramitação de MP, na redação do art. 2 da Constituição - que vigorou com sua versão original até setembro de 2001 (EC no 32).

De fato, tanto o governo Itamar Franco quanto o governo Fernando Henrique Cardoso levam adiante a estratégia institucional-constitucional inaugurada no governo Collor: após mapeamento minucioso do texto constitucional, percebeu-se que as regras constitucionais definiam em seus "silêncios" (Foley, 1989) ampla base sobre a qual o Executivo poderia fortalecer e mesmo ampliar seus poderes e funções no sistema da separação de poderes.

Reforça-se, pois, um sentido de interinidade das regras que definem o mando e a organização do mando no jogo de políticas.

▼ Uma decorrência constitucional nefasta (ou uma "tragédia constitucional", Eskridge e Levinson, 1998) dessa prática é o deliberado desinteresse de toda a classe política brasileira por votar os atos legais que tornariam o novo texto constitucional amplamente operacional - dando, assim, continuidade às tarefas iniciadas na Assembleia Nacional Constituinte.

Outra vez, o caso das MPs ilustra esse ponto de vista. Embora desde cedo as lacunas do mecanismo de emissão de MP fossem apontadas e criticadas, nem a situação nem a oposição de então deram passos efetivos para tornar mais bem definidas as engrenagens desse mecanismo.

Os tempos do Plano Real são tempos em que deliberadamente se mina a força coletiva que inerentemente está associada ao conjunto das regras constitucionais e que dão a elas status superior seja em relação às instituições de governo que elas definem, seja às deliberações que elas viabilizam (Foley, 1989:3). Assim, a política econômica dos anos 1990 não pode ser passada em revista por critérios convencionais de desvios em relação a metas preestabelecidas das principais variáveis macroeconômicas; muito menos estabelecer a comparabilidade com esforços anti-inflacionários ocorridos contemporaneamente em outras economias nacionais, ou mesmo na história da própria economia brasileira.

Afinal, o contexto institucional-constitucional do plano é muito singular na escala de poder discricionário exercitado pela alta gerência econômica do Executivo federal: é o governo representativo adaptado às preferências dos burocratas.18 18 Nos anos 1990, o roteiro de uma MP se inicia na teia gerencial-administrativa do Executivo e de lá é controlado por um período médio estimado de 20 meses, passando ao largo das virtudes da democracia representativa que envolve a apreciação do texto da MP pelo complexo processo de aprovação majoritária da Câmara dos Deputados e do Senado e, ao fim, pela consideração do presidente da República no uso do poder de veto e a eventual manifestação do Congresso quanto ao veto presidencial. Ao evitar por um longo tempo essa tramitação legislativa típica, a emissão de MP esvazia diversos propósitos constitucionais cruciais:

▼ reduz potencialmente o custo político do atendimento a interesses preferenciais privados, uma vez que o processo gerencial-administrativo tem reduzida transparência;

▼ subverte a representação federativa da composição do Senado, aumentando as possibilidades de maior atendimento a estados e regiões de maior poder econômico (Manning, 2000:239-40);

▼ prejudica a filtragem das leis de menor qualidade, ao viabilizar a possibilidade de se passar qualquer lei, sobretudo porque o mecanismo da MP, como opera no Plano Real, traz implícita a possibilidade de se testar uma política pública que, a seguir, poderá ser discricionária e sucessivamente emendada pelos próprios emissores da MP.

Em suma: uma política econômica da envergadura do Plano Real não comporta uma aferição convencional que deixe de lado a instabilidade institucional-constitucional que acabou por promover e cujos reflexos se fazem sentir, em certa medida, até hoje (Monteiro, 2009).19 19 A questão relevante não é se este ou aquele resultado macroeconômico pode ser induzido por meio da ação política ou coletiva. Em contraposição, a estratégia é determinar como este ou aquele conjunto de restrições pode ser configurado de modo a operar, permitindo a geração de uma ordem que atenda certos atributos desejáveis (Buchanan, 2009:153).

Artigo recebido em ago. e aceito em set. 2009.

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  • 1
    Convencionou-se localizar o nascimento desse esforço de estabilização de preços mais consistente que um governo buscou realizar precisamente na introdução da nova moeda, o que se deu por meio de uma superdesindexação que se seguia a uma superindexação de pouco tempo antes, quando se estabeleceu a unidade real de valor (URV) (Monteiro, 2000).
  • 2
    Ou, para usar uma nomenclatura dos anos 1930: pouco se examina o lado
    qualitativo da política econômica (Monteiro, 1982:91-92).
  • 3
    Passada década e meia dessas ações anti-inflacionárias, com a proximidade das eleições em 2010 o tema ressurge com grande destaque no debate político e na mídia.
  • 4
    O Plano Real já foi substancialmente examinado na perspectiva institucional (Monteiro, 1997, 2000, 2004), desse modo este artigo busca inovar, partindo de recente vertente analítica da interação de mecanismos democráticos (Vermeule, 2007, 2009). Parte dessa análise é estendida para o primeiro mandato do governo Lula em Monteiro (2009). As conclusões aqui obtidas, no entanto, podem ser vistas como complementares às apresentadas nessas referências.
  • 5
    Pelas regras constitucionais (redação original, outubro de 1988 a setembro de 2001, do art. 2 da Constituição) subentendia-se que
    n = 30 dias. A prerrogativa do burocrata, todavia, era a de poder ampliar esse prazo por tempo indefinido (à ocasião, a duração média da vida de uma MP típica do Plano Real era de 20 meses; Monteiro, 2000), com ou sem revalidação de todo ou parte do texto da MP.
  • 6
    O argumento, muito em voga nos anos 1990, de que se devesse eliminar desse cômputo tais reedições não procede, uma vez que a reedição era, à época, parte integrante do poder de propor embutido no mecanismo de MP: a reedição era um recurso estratégico dos burocratas, para revalidar com ou sem alterações a vigência de uma MP, ao mesmo tempo que ajudava a manter a lei, e suas consequências,
    à margem da apreciação final pelos legisladores.
  • 7
    Mais ainda quando se leva em conta que essa é uma mudança
    virtual nos mecanismos constitucionais, que dispensou a aprovação formal de proposta de emenda constitucional.
  • 8
    Esse é o jogo convencional de política, em que tais resultados finais pressupõem um comprometimento com uma
    dada configuração institucional-constitucional.
  • 9
    Sobre esse aspecto, ver a seção 4, adiante.
  • 10
    E eventualmente do próprio Judiciário (Monteiro, 2000).
  • 11
    Há um senso de altruísmo, benevolência e, por que não, de "justiça" nesse
    véu de incerteza sob o qual atuam esses participantes. Todavia, esse é um ambiente institucional muito irreal nas escolhas públicas: os burocratas do Executivo sabem muito bem a extensão e peculiaridades do poder de propor que a MP lhes franquia, em decorrência das regras constitucionais.
  • 12
    Isto é, anteriormente à EC n
    o 32 que pela primeira vez alterou as regras originais do art. 2 da Constituição.
  • 13
    Uma especificação constitucional mais explícita dessa delegação poderia atenuar esse vício da democracia. Contudo, como já referido anteriormente, isso só viria a ocorrer com a EC n
    o 32 e ainda assim muito imperfeitamente (Monteiro, 2009, 2007, apêndice B).
  • 14
    Por certo que os mentores do Plano Real tomam a posição implícita de que a estrutura e a organização do Congresso brasileiro são, em certo sentido, fonte
    inferior de responsabilização democrática, comparativamente à que estaria atrelada ao mandato exercido pelo presidente da República. A torrente de MP que instrumenta o Plano Real (como mostrado na tabela) não deixaria de ser uma credencial democrática a lastrear todo o esforço anti-inflacionário: na melhor das hipóteses, a responsabilização não se enfraqueceria com a delegação presidencial aos burocratas.
  • 15
    E o da correspondente Exposição de Motivos.
  • 16
    Lembro ao leitor que a transferência de poder decisório da classe política para a classe dos burocratas desvia igualmente o alvo central do
    lobbying desses grupos.
  • 17
    Independentemente da questão da instrumentação do Plano Real por MP, há ainda uma ocorrência singular observada na política orçamentária pública, como ocorrido em 1994. Nesse ano, o Orçamento da União somente veio a ser estabelecido formalmente, com a aprovação do Projeto da Lei Orçamentária de 1994, após terem sido decorridos
    10 meses do ano fiscal. Por consequência, nesse ano crítico do plano, a sustentação orçamentário-fiscal da política econômica foi substancialmente opaca, não tendo os cidadãos (e seus representantes eleitos no Congresso) qualquer chance de intervir nas decisões de gasto público. Nesse interregno, o governo funcionou sem qualquer controle objetivo da sociedade, uma vez que o Orçamento da União não esteve disponível por mais de 4/5 do ano fiscal. Assim, esse é um período em que se reforça adicionalmente o discricionarismo decisório nas escolhas públicas.
  • 18
    Nos anos 1990, o roteiro de uma MP se inicia na teia gerencial-administrativa do Executivo e de lá é controlado por um período médio estimado de 20 meses, passando ao largo das virtudes da democracia representativa que envolve a apreciação do texto da MP pelo complexo processo de aprovação majoritária da Câmara dos Deputados e do Senado e, ao fim, pela consideração do presidente da República no uso do poder de veto e a eventual manifestação do Congresso quanto ao veto presidencial.
  • 19
    A questão relevante não é se este ou aquele resultado macroeconômico pode ser induzido por meio da ação política ou coletiva. Em contraposição, a estratégia é determinar como este ou aquele conjunto de restrições pode ser configurado de modo a operar, permitindo a geração de uma ordem que atenda certos atributos desejáveis (Buchanan, 2009:153).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010
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