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Crise e percalços da aferição de uma política pública - I

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Crise e percalços da aferição de uma política pública — I

Jorge Vianna Monteiro

Professor de políticas públicas da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Ebape/FGV). Professor associado do Departamento de Economia da PUC-Rio. Endereço: PUC-Rio, Departamento de Economia — rua Marquês de São Vicente, 225 — Gávea — CEP 22453-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jvinmont@econ.puc-rio.br

Um comentário estabelecido a partir do modelo analítico da public choice — uma vertente da moderna economia política que considera as políticas públicas resultado da interação social, sob instituições de governo representativo.

I. Introdução

Estes são tempos em que as intervenções que os governos empreendem em economias em crise envolvem um grau de complexidade extraordinário, especialmente porque o efeito dessas políticas transborda para vários segmentos da atividade econômica tanto quanto tem implicações político-eleitorais e, portanto, muito qualifica o alcance de seus objetivos originais.

É incerta a apuração do ganho líquido pelo governo — e, por extensão, pelos cidadãos-contribuintes — com essa classe de iniciativa, mesmo que decorridos dois a três anos da introdução da política.1 1 TREASURY now sees profit from bailouts. New York Times, 30 Mar. 2011. N. Barofsky — inspetor-geral do programa de salvamento do sistema financeiro nos EUA (Tarp, Crise e perCalços da aferição de uMa polítiCa públiCa — i Troubled Asset Relief Program) — apresenta algumas importantes reflexões que ilustram a questão levantada.2 2 BAROFSKY, N. Where the bailout went wrong. New York Times, 29 Mar. 2011. Perceba o leitor que o caso do Tarp, como apresentado na seção II, a seguir, tem expressivo valor didático para ser extrapolado para outras políticas, em outras economias nacionais, especialmente o Brasil.

Em outra frente, a agenda de política econômica no Brasil aparentemente vai se tornando similar à dos anos 1990, pelo menos no discurso do governo e nas ênfases dadas pela mídia: quando tanto se fala em resistência da taxa de inflação, que teima em escapar das metas do Banco Central, e no tradicional contraponto entre juros altos e cortes de gasto público, como centro do combate à inflação. Em uma leitura mais rápida, tem-se a impressão que se está de volta à reedição da antiga polêmica dos termos de troca entre crescimento econômico e inflação.

Todavia, esse é um equívoco de percepção tanto quanto de ambientação analítica — tal é o ponto de vista apresentado na seção III.

II. O "sucesso" do Tarp

Remanesce a questão de, por sua grandiosidade, o Tarp ser uma política pública que talvez não deva ser aferida tão somente por sua missão de salvamento de bancos. Ou, em outras palavras, 30 meses depois de seu lançamento, a métrica do sucesso dessa iniciativa é questionável:

▼ de fato, hoje, "esses bancos [que foram acolhidos nesse programa] exibem lucros recordes e a aparentemente duradoura vantagem competitiva que os acompanha, por serem considerados 'muito grandes, para serem deixados quebrar'"3 3 BAROFSKY, N. Where the bailout went wrong. New York Times, 29 Mar. 2011. ou, em outros termos, serem deixados à própria sorte.

▼ Evitar a quebra do sistema financeiro nacional é inegavelmente um benefício para toda a sociedade. E mais: ter os bancos estabilizados e voltando a conceder empréstimos e, posteriormente, tê-los repagando os empréstimos obtidos do Tesouro, em extensão e rapidez inesperadas, pode sintetizar outra perspectiva de sucesso dessa política do governo Obama.4 4 Sobre essa estratégia de repagamento, ver Monteiro (2011: cap. 4).

Portanto, talvez seja mesmo um equívoco sumariar essa política como simplesmente um "salvamento".

O governo Obama aponta ter obtido lucro de US$ 6 bilhões, apenas no programa de socorro a bancos, ao que se acrescentarão outros US$ 14 bilhões, na medida em que centenas de pequenos bancos venham a repagar fundos recebidos do Tarp.5 5 TREASURY now sees profit from bailouts. New York Times, 30 Mar. 2011. Ao mesmo tempo, sugerindo precisão estatística, o Tesouro dos EUA estima que até aqui os contribuintes tiveram ganho líquido de US$ 23,6 bilhões, em toda essa operação — o que, pelas razões aqui arroladas, é uma informação a ser vista com grande cautela, especialmente na temporada pré-eleitoral de 2012.

O que são, afinal, US$ 23,6 bilhões diante de um déficit orçamentário projetado para 2011 de US$ 1,5 trilhão? Enfim, além da questão da precisão da medida, será essa a métrica de sucesso apropriada para uma política pública de tal envergadura?

▼ E, quanto a outros objetivos mais amplos (e eleitoralmente mais sensíveis) contemplados na mesma iniciativa, tais como a proteção dos valores dos imóveis residenciais e a preservação da propriedade imobiliária — e que foram vitais para se obter o apoio legislativo necessário a essa lei emergencial de estabilização econômica?

Dessa ótica, a conclusão a que se pode chegar está longe de ser reconfortante.

Foi indicado ao Congresso que o Tarp destinaria até US$ 700 bilhões para a compra de hipotecas e, para obter os votos necessários, o Tesouro prometeu ainda que modificaria essas hipotecas, de modo a dar apoio aos desesperados proprietários de imóveis residenciais.6 6 FINAL arguments: was Tarp a success or failure? It depends on who you think was supposed to help. Slate.com, 1.4.11: Moneybox. Com efeito, a lei estabelece expressamente que esse departamento de governo faça precisamente isso. No entanto, "pouco foi feito para cumprir os termos dessa barganha legislativa".7 7 BAROFSKY, N. Where the bailout went wrong. New York Times, 29 Mar. 2011.

O formato institucional da obtenção desse segundo propósito do Tarp se dá também em 2009, por meio de outra política pública: Hamp (Home Affordable Modification Program) — o que ilustra como é imperioso investir na habilitação de mecanismos de coordenação entre políticas. E é nessa área que o Tarp seria notoriamente falho: o Hamp tem a cobertura de 3 a 4 milhões de famílias com problemas em suas hipotecas residenciais. Porém, até o final do primeiro trimestre de 2011, pouco mais de 600 mil famílias obtiveram modificações permanentes em seus empréstimos hipotecários.8 8 FINAL arguments: was Tarp a success or failure? It depends on who you think was supposed to help. Slate.com, 1.4.11: Moneybox.

III. A qualidade dos processos de política

As economias brasileira e mundial dos tempos atuais apresentam características institucionais muito distintas, comparativamente ao mundo de antes da crise de 2001 e, assim, há que notar a reconfiguração por que passa a intervenção governamental, bem como a reação dos agentes privados.

A crise oferece a oportunidade para que os governos nacionais ampliem sua presença em várias frentes, mais especialmente em volume orçamentário (gastos, dívida, impostos) e regulatório (estabelecimento de novos e complexos blocos de regras que condicionam os mercados de bens e serviços).

Perceba o leitor a falta de resolução da classe política para com a promoção de um ajuste fiscal mais intenso do que o governo tem proposto realizar, mesmo que os preços estejam em alta. À proverbial "cultura do gasto público" observada no Congresso junta-se a retórica oficial de associar esse comportamento dos preços internos a fatores exógenos, tais como a trajetória do mercado mundial de commodities, especialmente do petróleo. Ademais, o trunfo da retomada do crescimento do PIB que se observa desde 2010, ainda que, hoje, em bases mais contidas, condiciona, por igual, o comportamento que Congresso e Judiciário possam ter nas escolhas públicas.9 9 Comparativamente ao Primeiro Mundo, o Brasil segue sendo caso ímpar, por ter conseguido contornar a fase mais intensa da crise em um período relativamente mais curto.

A crise induz a um sentido de urgência que, por seu turno, leva a que o presidente faça concessões a um leque mais amplo de políticos do que os de sua estrita coalizão eleitoral.

Não apenas o Executivo tem maior condição de acelerar a trajetória de mudança nas políticas públicas, tanto quanto os legisladores elevam seu poder de barganha junto ao presidente da República (Posner e Vermeule, 2011:13). Uma resultante nessa barganha se define pela transferência de poder decisório ao presidente, com a alta gerência do Executivo passando a operar sob regimes de delegação de autoridade de decisão cada vez mais abrangentes.

Em 2011, o caso típico dessa ocorrência é a negociação em torno da fixação do salário mínimo no nível em que acabou sendo referendado pelo Congresso (Lei nº 12.312, 25/2/2011) e, talvez mais importante ainda, pela aceitação quase que pacífica de que em 2012-15 essa classe de regulação econômica seguirá uma fórmula de indexação que dispensa que o Congresso seja consultado previamente, dando ao presidente o poder de emitir um decreto, para formalizar o nível do salário mínimo nesse período.

A propósito, uma conjectura que se delineia quanto a isso é que tal indexação poderá se tornar imprópria, a valer a trajetória da taxa de inflação projetada para os próximos meses. Portanto, não se descarta a possibilidade de que o governo venha a neutralizar o impacto inflacionário dessa regra de atualização do salário mínimo, por alguma outra via menos transparente.10 10 O cancelamento puro e simples dessa regra de atualização enfrentaria o período vindouro de eleições municipais — o que poderá acautelar a coalizão no poder quanto ao impacto negativo que isso possa ter na reação sindical e no eleitorado em geral.

IV. Conclusão

Em contraposição ao caso norte-americano apresentado na seção II, tome-se a operação de salvamento da economia de Portugal, em curso desde meados de maio de 2011: embora pressentida desde meados de 2010, só agora se anuncia uma operação de US$ 110 bilhões11 11 Comparativamente, operação análoga com a Grécia totaliza US$ 155 (maio de 2010) e com a Irlanda, US$ 120 (novembro de 2010). a ser aprovada pela Comissão Europeia.12 12 PORTUGAL asks Europe for bailout. New York Times, 6 Apr. 2011. Cerca de 15% desse aporte total serão alocados como capital novo a bancos portugueses que tenham sido barrados do mercado financeiro, por mais de um ano (MARKETS losing faith in Portugal. New York Times, 4 May 2011). Os recursos para esse bailout virão, em partes iguais, do European Financial Stabilization Mechanism, do European Financial Stability Facility e do FMI.

Há uma questão relevante nesse exemplo: por que se deixou a deterioração alcançar volume tão grande no desequilíbrio das contas públicas e de pagamentos aos credores externos? Terá sido essa disfunção de todo percebida? Terá sido subavaliada? Em qualquer dos casos, fica exposta a pouca efetividade dos mecanismos institucionais, tanto no âmbito da economia nacional quanto no da União Europeia.

Nessa linha de raciocínio, o sucesso dessa regulação econômica deve levar em conta:

▼ os prejuízos (refletidos pelo maior montante da ajuda agora demandada) na obtenção da estabilidade econômica que essa operação trará a Portugal, cuja economia em 2011 deve sofrer contração real de 1,3% no PIB, com a taxa de desemprego da mão de obra alcançando 14%.

▼ A maior probabilidade de contágio que essa operação tardia traz para outras economias europeias, mais especificamente para a Espanha e, de novo, a Grécia.13 13 UNEASE about Greece grows as S.&P. Downgrades its debt again. New York Times, 9 May 2011.

▼ Outra vez, essa política apresenta complexas interações com políticas convencionais de ajuste fiscal — o que mais diretamente terá reflexões na eleição de junho de 2011, para a formação de um novo parlamento e um novo governo.

A incerteza que cerca o futuro dessa política de salvamento em Portugal é, assim, muito elevada.14 14 MARKETS losing faith in Portugal. New York Times, 4 May 2011.

Por igual, como mostra didaticamente o caso da economia norte-americana, também há a componente inescapável das eleições presidenciais de 2012: o presidente Obama dá partida à sua campanha pela reeleição15 15 OBAMA to campaign on record of progress. Washington Post, 4 Apr. 2011. Post Politics. — o que põe em evidência outros custos a que não apenas a política de salvamento está sujeita, mas, de fato, toda estratégia que o governo venha a adotar daqui em diante.

Um ingrediente novo na campanha eleitoral (que não estava disponível em 2001) decorre da recente decisão da Suprema Corte,16 16 Ciclo político-eleitoral. Estratégia Macroeconômica, v. 11, n. 445, 1 nov. 2010. ao viabilizar grandes doações privadas às campanhas eleitorais. Este é um tema a que o governo Obama mostra-se especialmente vulnerável,17 17 OBAMA reelection campaign expected to tap big-money donors. Washington Post, 4 Apr. 2011. Post Politics. em face de um de seus mais notórios comprometimentos: o de combater o uso de dinheiros privados nas campanhas eleitorais e as distorções que as grandes doações trazem ao fomentar o atendimento preferencial de grupos, em sua atuação junto ao processo político e ao governo em geral.18 18 Com a nova regra ativada pela decisão da Suprema Corte, e que já dá sinais de beneficiar grandemente o Partido Republicano, o presidente Obama arrisca perder credibilidade junto ao eleitorado, uma vez que a competição eleitoral só será efetiva caso os democratas também recorram às grandes doações (OBAMA reelection campaign expected to tap big-money donors. Washington Post, 4 Apr. 2011. Post Politics.).

Já no âmbito da economia brasileira, é curioso que o debate contemporâneo tanto enfatize a qualidade dos resultados finais da política econômica, tais como o gasto público e as exportações, porém pouco se dê atenção à qualidade dos processos e regimes, sob os quais se produz a política econômica.

  • MONTEIRO, J.V. Governo e crise: escolhas públicas, 2007-2011. Rio de Janeiro: Editora FGV, [2011] (no prelo).
  • MONTEIRO, J.V. Como funciona o governo: escolhas públicas na democracia representativa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
  • DAVIDOFF, S.; ZARING, D. Regulation by deal: the government's response to the financial crisis. Administrative Law Review, v. 61, n. 3, p. 463-541, Summer 2009.
  • POSNER, E.; VERMEULE, A. The executive unbound: after the Madisonian Republic. Oxford: Oxford University Press, 2011.
  • 1
    TREASURY now sees profit from bailouts.
    New York Times, 30 Mar. 2011.
  • 2
    BAROFSKY, N. Where the bailout went wrong.
    New York Times, 29 Mar. 2011.
  • 3
    BAROFSKY, N. Where the bailout went wrong.
    New York Times, 29 Mar. 2011.
  • 4
    Sobre essa
    estratégia de repagamento, ver Monteiro (2011: cap. 4).
  • 5
    TREASURY now sees profit from bailouts.
    New York Times, 30 Mar. 2011.
  • 6
    FINAL arguments: was Tarp a success or failure? It depends on who you think was supposed to help. Slate.com, 1.4.11: Moneybox.
  • 7
    BAROFSKY, N. Where the bailout went wrong.
    New York Times, 29 Mar. 2011.
  • 8
    FINAL arguments: was Tarp a success or failure? It depends on who you think was supposed to help. Slate.com, 1.4.11: Moneybox.
  • 9
    Comparativamente ao Primeiro Mundo, o Brasil segue sendo caso ímpar, por ter conseguido contornar a fase mais intensa da crise em um período relativamente mais curto.
  • 10
    O cancelamento puro e simples dessa regra de atualização enfrentaria o período vindouro de eleições municipais — o que poderá acautelar a coalizão no poder quanto ao impacto negativo que isso possa ter na reação sindical e no eleitorado em geral.
  • 11
    Comparativamente, operação análoga com a Grécia totaliza US$ 155 (maio de 2010) e com a Irlanda, US$ 120 (novembro de 2010).
  • 12
    PORTUGAL asks Europe for bailout.
    New York Times, 6 Apr. 2011. Cerca de 15% desse aporte total serão alocados como capital novo a bancos portugueses que tenham sido barrados do mercado financeiro, por mais de um ano (MARKETS losing faith in Portugal.
    New York Times, 4 May 2011). Os recursos para esse
    bailout virão, em partes iguais, do European Financial Stabilization Mechanism, do European Financial Stability Facility e do FMI.
  • 13
    UNEASE about Greece grows as S.&P. Downgrades its debt again.
    New York Times, 9 May 2011.
  • 14
    MARKETS losing faith in Portugal.
    New York Times, 4 May 2011.
  • 15
    OBAMA to campaign on record of progress.
    Washington Post, 4 Apr. 2011. Post Politics.
  • 16
    Ciclo político-eleitoral.
    Estratégia Macroeconômica, v. 11, n. 445, 1 nov. 2010.
  • 17
    OBAMA reelection campaign expected to tap big-money donors.
    Washington Post, 4 Apr. 2011. Post Politics.
  • 18
    Com a nova regra ativada pela decisão da Suprema Corte, e que já dá sinais de beneficiar grandemente o Partido Republicano, o presidente Obama arrisca perder credibilidade junto ao eleitorado, uma vez que a competição eleitoral só será efetiva caso os democratas também recorram às grandes doações (OBAMA reelection campaign expected to tap big-money donors.
    Washington Post, 4 Apr. 2011. Post Politics.).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2011
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